1. Materialismo e transcendência
1.1 Filosofia x Arte
Eu costumava iniciar meus cursos de filosofia do direito com uma espécie de exortação aos alunos sobre a relevância da filosofia. Eu perguntava quem faria a disciplina se ela fosse optativa e vários estudantes sinceramente indicavam que, se tivessem liberdade de escolha, dedicariam esse tempo a outras matérias. Essa era uma resposta previsível em um curso de direito porque esperamos que os profissionais dessa área sejam homens e mulheres pragmáticos dedicados ao domínio de sua técnica, mas pouco afeitos à teoria.
Nisso, os juristas se parecem com os músicos. Assim como os estudantes de música normalmente desejam aprender a tocar o seu instrumento, os estudantes de direito querem aprender a fazer petições, sentenças ou provas de concurso. Eles querem se tornar hábeis a responder perguntas e a resolver questões práticas, o que torna previsível um desinteresse por uma filosofia que, “tal qual praticada na universidade, está singularmente distante das ideias dos indivíduos comuns sobre a verdade e a razão, os deuses e o bem, a matéria e a mente” (Appiah, 1997). A explicitação verbal desse desinteresse, ou mesmo de uma franca rejeição, me dava a chance de tentar convencê-los da importância das várias disciplinas filosóficas, que era um esforço inútil: quem gostava de filosofia não precisava de convencimento e quem rejeitava a filosofia não era movido pelos meus argumentos.
Eu então explicava aos resistentes que a filosofia podia ser irrelevante para o seu sucesso individual, mas era importante para a sociedade que custeava os seus estudos em uma universidade pública. As reflexões filosóficas contribuiriam para que eles fossem conscientes dos limites de suas certezas, o que tipicamente leva a uma prática profissional mais crítica e menos opressora. Os juristas lidam diretamente com a vida das pessoas e sempre me pareceu útil para a coletividade que eles compreendessem a relatividade de suas convicções e valores. Minha argumentação tentava contrabalançar o desinteresse subjetivo dos estudantes pela filosofia por meio de uma utilidade objetiva, que emergiria apenas no nível social. No nível individual, a filosofia lhes daria mais dúvidas, mais angústias, mais esforço argumentativo e mais noites insones. Porém, os ganhos gerados para os clientes e jurisdicionados dariam sentido a essa imposição forçada de uma formação filosófica. Tal concentração na importância social da filosofia revela que eu não tinha bons argumentos para promover o interesse dos estudantes na minha disciplina.
Outro ponto que eu tentava desmitificar era o caráter tedioso da filosofia. Embora intimamente eu soubesse que o estudo de certas áreas da filosofia tem uma capacidade infinita para gerar enfado até nos estudantes mais engajados, eu tendia a compreender a rejeição à filosofia como resultado de experiências ruins e de abordagens inadequadas de cursos anteriores. Continuo acreditando que uma pedagogia deficiente estimula o desinteresse, mas os resultados limitados das minhas estratégias pedagógicas mais criativas indicam que esse fator tem importância reduzida. Além disso, olhando em perspectiva, boa parte dos estudantes não se interessava muito pelas aulas de professores mais capazes e carismáticos do que eu, como aquelas em que meu querido mestre Luis Alberto Warat explorava as relações entre o direito e o amor a partir de intersecções entre Cortázar e Jorge Amado (Warat, 1979).
Os professores de filosofia são conscientes do papel marginal que a sua disciplina ocupa na cultura atual, em que o pensamento reflexivo não se concentra nos filósofos, mas é distribuído por uma série de abordagens que têm um viés tão crítico (ou mais...) que as perspectivas filosóficas: psicanalistas, historiadores, antropólogos e cientistas políticos talvez tenham mais a contribuir para uma reflexão social contemporânea que os próprios filósofos. Essa percepção faz com que os professores precisem justificar a presença da disciplina de filosofia em variados currículos, explicando aos alunos porque eles deveriam dedicar tanto tempo a tal estudo. Imagino que não seja assim que começam os cursos de neurociência, de inteligência artificial ou de direito penal.
Hoje, entendo que a filosofia é como a música erudita. É extremamente útil que um professor de música seja capaz de oferecer abordagens instigantes e criativas, que gerem interesse para as obras de Bach, de Satie ou de Villa-Lobos. Todavia, por mais que a capacidade retórica e pedagógica dos professores possa encantar alguns alunos, vivemos em culturas nas quais o interesse pela música erudita costuma ser limitado. Inclusive, pode ocorrer de certos estudantes não terem interesse musical algum, como João Cabral de Melo Neto, que dizia “não gosto de música, nunca gostei. Sou um poeta visual, não auditivo” (Daniel Piza, 2004).
Pessoalmente, eu gosto de várias peças de música erudita, mas ouvir Adiós Nonino (Piazzolla, 1969) me faz pensar que Belchior tinha razão ao dizer que “um tango argentino me vai bem melhor que um blues” (Belchior, 1976a). Nosso gosto é modelado por nossa socialização, por nossas memórias afetivas, e acho que eu preciso entender que muitos estudantes observam a filosofia como eu observo a ópera: sem ver graça nenhuma, apesar de entender intelectualmente que algumas pessoas apreciem essa peculiar combinação de música e teatro.
Ninguém precisa da música para ter sensibilidade. Menos ainda da ópera, o que me deixa aliviado. Para minha tristeza, porém, não precisamos do samba, nem de Piazzolla, nem de Belchior. Apesar disso, creio que John Stuart Mill tinha razão em afirmar que a capacidade de fruir obras artísticas complexas (ele pensava na literatura) aumente bastante nossa capacidade de obter prazer por um preço baixo e sem muitos efeitos colaterais (Mill, 2005). A compra com melhor custo-benefício que fiz a de uma versão de bolso do Guerra e Paz, que me deu alegrias durante três meses e me ensinou coisas para a vida toda, pelo preço de um sanduíche.
Um raciocínio semelhante pode ser aplicado à filosofia. Ninguém precisa da filosofia para desenvolver uma consciência crítica, pois muitos são os caminhos que podem nos conduzir a uma postura mais reflexiva. Como diziam Deleuze e Guattari, “ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja: acredita-se dar muito à filosofia fazendo dela a arte da reflexão, mas retira-se tudo dela, pois os matemáticos como tais não esperaram jamais os filósofos para refletir sobre a matemática, nem os artistas sobre a pintura ou a música” (1992).
A arte pode nos tornar tão reflexivos quanto a filosofia. Inclusive, aprendi mais com os textos literários de Sartre, de Camus e de Nietzsche do que lendo livros teóricos sobre filosofia. O próprio Platão escrevia diálogos, e não tratados, e alguns de seus principais argumentos são alegorias narrativas. Esse potencial crítico de tais autores não vem apenas do fato de que eles se movimentam nos limites entre a filosofia e a literatura. Os livros de Dostoiévsky, de Kundera ou de Clarice Lispector estimulam a reflexividade de modo tão intenso quanto os deles.
Ademais, há outros caminhos para cultivar nossas formas de ver o mundo: a religião, a psicologia, a astrologia, a psicanálise. Podemos desenvolver uma identidade sensível à diferença em qualquer campo onde exista uma vasta experiência acumulada e uma interação de perspectivas conflitantes. Todavia, o fato de que “filosofia é o rótulo de maior status no humanismo ocidental” (Appiah, 1997) faz com que haja uma tendência a tentar nomear como filosóficas obras que têm um caráter criativo ou crítico das ideias tradicionais. Esse tipo de apropriação parece menos razoável do que o reconhecimento de que há vários caminhos reflexivos possíveis. Como ironiza Kwame Appiah, “talvez fosse melhor não chamar um livro de cozinha de filosofia culinária” (1997), e o mesmo pode ser dito de obras de filosofia jurídica, filosofia africana ou filosofia oriental. Entendo mais produtiva a escolha de Viveiros de Castro, que caracteriza o perspectivismo ameríndio como um regime ontológico próprio, cuja relevância não passa por caracterizá-lo propriamente como uma filosofia (Viveiros de Castro, 2015).
Penso ser mais interessante seguir essa intuição e tratar o pensamento ameríndio como um outro da filosofia, uma reflexão que nos oferece alternativas à tradição metafísica ocidental que recebe o pomposo rótulo de filosofia. Essa é uma percepção convergente com a proposta de Sérgio São Bernardo no sentido que, melhor do que falar de uma filosofia africana, seria identificar os saberes e pensamentos africanos, visto que se corre o risco de confundi-los com um discurso filosófico que “é um saber que se propõe universal, mas não é um saber universal” (2006).
1.2 Ciência x Filosofia
Boa parte das notas de rodapé à obra de Platão (Whitehead, 1978) é um discurso para iniciados, e a formação necessária para fruí-los pode ser penosa para quem não tem um gosto especial pela abstração. Isso ocorre porque a filosofia se interessa primordialmente pelas categorias com as quais pensamos, o que faz com o que o discurso filosófico tenha sempre um alto grau de abstração. Continua valendo a advertência que Platão escreveu no portal da Academia: “Quem não é geômetra não entre!” (Cornelli e Coelho, 2007).
Acontece que várias pessoas têm uma sensibilidade mais afeita às imagens pictóricas, às narrativas ou à corporeidade, o que as faz tem pouca atração tanto pela geometria como pela filosofia. João Cabral, por exemplo, tinha essa sensibilidade concretista: “você pode ver que em minha poesia há sempre uma vontade de concretizar as palavras, mesmo aquelas que não sejam concretas. Quando uso o sonho cobre-se de pó é para dar uma qualidade física à imagem, para substantivá-la” (Daniel Piza, 2004). Sua poesia não é voltada a representar ideias abstratas, mas a servir como uma máquina de comover (machine à émouvoir), sendo ele um crítico mordaz da “poesia meditabunda que se quer filosofia” (Daniel Piza, 2004), mas que não consegue ser adequadamente nem uma coisa nem outra.
Que tipo de filosofia poderia interessar a João Cabral? Certamente não seria a busca da essência fundamental das coisas, pois o caminho que ele propunha era o contrário: ele queria poder falar da coisa seda, ocultada pelos escombros da palavra seda, tão gasta em metáforas fáceis que se presta pouco para a poesia.
E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,
nada tem da superfície
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.
Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma,
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas,
há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,
de animal, de animalmente
de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.
(Melo Neto, 1994a)
Esse tipo de materialismo quase sempre foi entendido como uma marca de antifilosofia, pois o interesse abstrato dos filósofos sempre apontava para as ideias e não para as coisas. A busca de experimentar o mundo parece contraposta ao projeto de compreender o mundo, como cantou Belchior em Alucinação:
Eu não estou interessado em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente, romances astrais
A minha alucinação é suportar o dia a dia
E meu delírio é a experiência com coisas reais
(Belchior, 1976b)
Os filósofos dirão que a experiência com coisas reais é a matéria da filosofia, porque a filosofia estaria interessada em entender o que a realidade realmente é. Mas, em vez de nos apontar a coisa seda ocultada pela palavra seda, o filósofo da tradição grega precisaria se desvencilhar tanto da palavra como da coisa, para tentar descobrir o que seria de verdade a própria essência da seda. Quando entendemos que tal essência imaterial, metafísica, é o próprio objeto da filosofia clássica, podemos compreender por que motivo Platão foi um crítico tão mordaz dos artistas que propôs inclusive que eles não tivessem lugar na cidade.
O artista tem compromisso com a emoção e não com a verdade, motivo pelo qual ele tem uma capacidade incrível de propagar ideias falsas, mas atraentes. Quando falam do mundo, os artistas terminam por criar uma realidade inventada: heróis, mitos e narrativas que são muito mais comoventes do que a própria verdade. Como diria Pessoa, “o poeta é um fingidor, que finge tão completamente” que não é capaz de saber onde termina a realidade e onde começam suas invenções. A habilidade dos poetas é perigosa como a dos profetas, pois eles nos mostram sua visão de mundo como se fosse o mundo, multiplicando fantasmas tão convincentes que os tomamos pela realidade.
Platão não queria o mundo cheio de fantasmas dos artistas, mas um mundo real, despido de sombras e alucinações. A abordagem filosófica envolve o reconhecimento de que aquilo que percebemos sensorialmente como realidade está longe de ser a realidade inteira. O legado dos gregos é um ceticismo muito grande acerca de nossa capacidade de percepção direta das coisas, porque a realidade é composta por elementos materiais e também por elementos imateriais: a quantidade, o tempo, a justiça, a beleza, a verdade.
Vista por fora, cada coisa é radicalmente única. Cada árvore, cada pedra, cada pessoa é uma singularidade e as singularidades podem ser descritas, mas não podem ser compreendidas. Mas Platão queria olhar as coisas por dentro, e o dentro das coisas não é material. Ninguém percebe sensorialmente os números. Ninguém percebe sensorialmente as causas de um fenômeno. Ninguém percebe sensorialmente o tempo passar. Esses elementos imateriais são inferidos racionalmente, porque é o nosso intelecto que nos mostra que todo fato tem causas, que a sucessão de eventos exige a existência do tempo ou que dezessete é um número primo. Tais elementos imateriais compõem o que a tradição filosófica chama de metafísica: um conjunto de elementos e qualidades que não acessamos pelos sentidos, mas cuja existência além do mundo físico nos é revelada por nossa razão.
O passo seguinte desse raciocínio é entender que a imensa multiplicidade de objetos singulares somente é compreensível quando entendemos cada um desses objetos singulares como realizações particulares de um certo padrão geral. O filósofo, com isso, não se concentra nas coisas particulares (como podem fazer os poetas), mas sobre os padrões, que são imateriais. Enquanto os objetos materiais são radicalmente singulares e mutáveis, as entidades metafísicas têm um caráter geral e permanente: o tempo, o azul, o calor e o número dois são sempre os mesmos, independentemente das situações concretas em que nós os observamos.
Toda essa perspectiva filosófica é duramente criticada por Fernando Pessoa (ou melhor, por Alberto Caeiro), que diagnostica com precisão que "os filósofos são homens doidos" porque eles não se contentam em descrever a natureza por fora. Os filósofos querem compreender a natureza por dentro (ou seja, pelos atributos metafísicos que conformariam cada objeto singular), mas Caeiro sabia muito bem que “a Natureza não tem dentro; senão não era a Natureza”. No Guardador de Rebanhos, Caeiro retoma várias vezes a tese de que “o único sentido oculto das cousas é elas não terem sentido oculto nenhum” (XXXIX).
Tal negação do sentido íntimo das coisas, tal rejeição da existência de qualquer objeto imaterial, cristalizou-se no século XX sob o título de existencialismo, perspectiva cuja expressão mais cristalina se encontra no verso de Caeiro que diz que “as coisas não têm significação: têm existência”. E para nos explicar como é possível observar o mundo como pura matéria, Caeiro nos diz:
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo.
Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo....
Evidentemente, Caeiro não precisa da filosofia. Melhor dizendo, Caeiro não precisa da velha filosofia dos gregos que ainda hoje habita as nossas estantes e os nossos livros, e que envolve uma busca pelos universais, pelos absolutos, pelos sentidos íntimos das coisas de uma natureza vista por dentro, por tudo isso que não existe senão como delírio. Um longo delírio que herdamos dos gregos e que deveria ter sido guardado nas prateleiras de antiguidades curiosas, juntamente com a medicina hipocrática e a alquimia. Imagine o que Caeiro diria a Mário Sergio Cortella se ele ouvisse que:
A Filosofia se preocupa em pensar as razões da existência. Pensar aquilo que, de fato, faz com que o ser humano tenha sentido. Por exemplo, do que é feita a realidade? Por que é deste modo e não de outro? Qual o propósito que as pessoas dão à vida? Qual o lugar do mal dentro disso? A felicidade existe ou é ilusão? Por que existe alguma coisa, em vez de nada existir? Por que as coisas são como são? (Cortella, 2019)
De fato, penso que Caeiro não diria nada, mas tampouco se interessaria pelas palestras de Cortella. Também não se animaria muito com a defesa de Miguel Reale de que a filosofia busca um significado totalizante e uma ideia de universalidade.
Quando se afirma que Filosofia é a ciência dos primeiros princípios, o que se quer dizer é que a Filosofia pretende elaborar uma redução conceitual progressiva, até atingir juízos com os quais se possa legitimar uma série de outros juízos integrados em um sistema de compreensão total. Assim, o sentido de universalidade revela-se inseparável da Filosofia. (Reale, 2002)
Reale e Cortella não estão sozinhos. Eles dão voz ao legado metafísico dos gregos, sempre interessado nos primeiros princípios, nas verdades fundamentais ocultas, nas habilidades intelectuais que seriam capazes de dissolver os simulacros. Na origem dessa concepção está o modo como Aristóteles explicou a importância do conhecimento. No livro Metafísica, o Estagirita explicou que algumas pessoas conseguiam exercer um ofício (como a medicina ou a advocacia) de modo eficiente em função de sua larga experiência, pois a experiência permite que enfrentemos várias situações e que aprendamos a como nos portar em cada uma delas (981a). Um bom construtor de barcos sabia construir bons barcos. Um bom piloto de barcos sabia conduzir os barcos, sabia fazer um barco chegar com segurança ao seu destino. Um bom advogado sabe escrever petições eficazes. Todos eles podem ser exímios profissionais por meio de um conhecimento intuitivo, desenvolvido com base na experiência. A longa experiência permite testar diferentes abordagens e observar diversas tentativas, permitindo que uma pessoa saiba como se comportar em uma série de contextos.
Para Aristóteles, a experiência poderia gerar eficácia, mas era a reflexão sobre a própria experiência que permitiria que uma pessoa identificasse o padrão que guiava os comportamentos eficientes, formulando uma ideia geral sobre como uma pessoa deveria agir em situações semelhantes (981a). É o conhecimento dessas causas e princípios que se pode chamar de sabedoria (982a), sendo especialmente importante a passagem da técnica para a ciência, que permite ao sábio não apenas fazer, mas também ensinar, pois ele se torna capaz de explicar os motivos pelos quais uma ação é adequada.
Por um lado, já estavam aqui delineadas em Aristóteles algumas das estruturas típicas da ciência, como a busca dos padrões causais entre os fenômenos. Por outro, Aristóteles não buscava compreender apenas as relações materiais entre os fenômenos, mas também as finalidades últimas das coisas, as características essenciais dos seres, os valores objetivamente corretos. Na tradição grega, a ordem natural investigada pela filosofia era mais rica do que a ordem natural investigada atualmente pelos cientistas: enquanto os cientistas estão interessados somente nas relações causais entre fenômenos empíricos, os gregos entendiam que a investigação dessa ordem também poderia mostrar os valores naturais, as regras naturais de justiça, os critérios naturais de bem, as formas naturais de organização política, e muitas coisas que são parte do nosso universo simbólico. O legado grego, presente em várias abordagens filosóficas feitas hoje em dia, a ordem natural deveria oferecer respostas para as perguntas metafísicas indicadas por Cortella, e não apenas para o restrito rol de perguntas dos cientistas.
No século XIX, o legado filosófico foi duramente contraposto por várias perspectivas materialistas, que buscaram demonstrar que não passava de um delírio a pretensão de encontrar verdades objetivas por meio de algum tipo de exercício racional. Não existiam princípios últimos a serem encontrados, mas apenas regularidades que poderiam ser descritas. Esse foi o momento em que as explicações científicas foram expandidas do campo da natureza para englobar também a sociedade, a cultura e todas as instituições humanas. E não interessa ao cientista saber porque o mundo é de uma certa forma, nem qual é a finalidade última das coisas, mas apenas explicar como os fatos se relacionam.
Auguste Comte formulou o conceito de positivismo para explicar que, no século XIX, estava em curso uma mudança radical de perspectiva. No Curso de Filosofia Positiva, publicado entre 1830, ele afirmou que os primeiros modelos explicativos humanos eram ficcionais, ou seja, explicavam o mundo a partir de narrativas mitológicas baseadas na atuação direta e contínua de entidades sobrenaturais dotadas de intencionalidade. No segundo estágio, chamado de metafísico, a intencionalidade dos deuses é substituída por referências a uma ordem abstrata, não intencional, inerente à própria natureza, que culmina nas noções jurídicas de que a sociedade deve ser organizada de acordo com o direito natural. No terceiro estágio, chamado por Comte de positivo, as pessoas deixam de lado a busca filosófica pelos primeiros princípios e pelas finalidades essenciais (que formam o núcleo da metafísica), e se limitam ao discurso científico, que esclarece as regularidades observadas na natureza e cujos enunciados têm sempre uma pretensão relativa de veracidade.
O aspecto positivo do materialismo de Comte é simbolicamente importante. Quando um metafísico qualifica o cientista como materialista, ele quer dizer que falta alguma coisa à ciência, já que ela nada tem a dizer do mundo imaterial, que é o mais importante, por ser o lugar da justiça, da beleza e da verdade. O materialista seria alguém que tem um mundo pela metade: sem deuses, sem princípios, sem nenhum desses elementos que dariam sentido à realidade. Quando Comte assume o rótulo de positivista, ele busca inverter esse jogo e indicar que o cientista não é alguém que é cego para a verdadeira realidade, mas alguém que abandonou a crença injustificada em ficções. O materialismo não é uma abordagem pela metade, mas pode ser uma perspectiva plena, completa, positiva.
1.3 O desencantamento do mundo
Essa oposição entre materialismo e transcendência é uma questão central ainda hoje, pois muitas pessoas entendem o materialismo na chave da falta: a falta de uma espiritualidade, de uma ideia de justiça, de um sentido objetivo que confira algum valor a esta existência. Segundo Milovic, o desencantamento do mundo faz com que a estrutura do real deixe de ser teológica e nossas explicações transitem do campo filosófico para o científico: “a virada da perspectiva moderna é, desse modo, uma específica perda espiritual” (Milovic, 2005). A expressão canônica dessa angústia foi formulada por Dostoievski, no diálogo em que Dimitri Karamázov fala com Aliócha sobre as ideias agnósticas de Ivan:
O irmão Ivan é uma esfinge e cala, está sempre calado. Já a mim, Deus tortura. Não faz senão torturar. Mas e se Ele não existir? [...] Eu lhe perguntei, ficou calado. [...] Eu lhe disse: já que é assim, tudo é permitido? (Dostoiévski, 2008, p. 770)
Desde o início, a modernidade precisou afirmar que a liberdade humana era absoluta (o que era necessário para justificar a deposição dos regimes políticos baseados na tradição), mas essa afirmação não se voltava a indicar que cada pessoa deveria fazer o que deseja. O pensamento moderno reconhecia claramente que o livre exercício de uma autonomia ilimitada conduziria à guerra de todos contra todos e que, portanto, era necessário estabelecer limites políticos à liberdade individual. A integração social das comunidades modernas não poderia mais ser dada pelas narrativas unitárias das perspectivas tradicionais, mas era preciso inventar uma outra forma de integração: uma coordenação política, baseada paradoxalmente na própria liberdade.
A modernidade é duplamente paradoxal (Costa, 2020). De um lado, ela precisa da autonomia dos indivíduos para que ela possa servir como base para um poder político que imponha limites a essa própria autonomia. De outro lado, ela precisa que a soberania dos governos também seja limitada, visto que o exercício de um poder absoluto poderia conduzir à continuidade da guerra que se pretendia aplacar.
A modernidade precisa de absolutos limitados: a autonomia limitada pelo contrato, a soberania limitada pelos direitos naturais (e, posteriormente, pelo direito positivo, na forma de constituições). A modernidade deseja e recusa a liberdade, e o seu legado não é o de sujeitos radicalmente livres, mas de pessoas imersas em uma série de estruturas sociais voltadas a conter os excessos de liberdade, garantindo a possibilidade da coexistência política de atores muito diversos. Na ausência da autoridade divina, que sentido existe em suportar os sofrimentos que nos são impostos pela socialidade? Hobbes, que escreveu em períodos de intensa guerra civil, contentava-se com um governo que fizesse cessar a guerra. Porém, mesmo que a paz seja necessária (pergunte-se isso hoje a uma pessoa da Síria, do Iêmen ou da Ucrânia), ela não é suficiente para gerar a felicidade. O que Dostoiévski ressalta em suas obras é que a ausência de um sistema de valores religiosos deixa a vida sem sentido e, com isso, inviabiliza uma existência plena.
Em um famoso texto de 1918, Max Weber chamou de desencantamento do mundo o resultado do processo de racionalização das sociedades modernas que destruiu as formas de sociabilidade que davam sentido à existência das pessoas, de tal forma que o avanço da ciência parecia inafastável de uma espécie de empobrecimento espiritual (Weber 2011). Tal diagnóstico deve muito à percepção de León Tolstói de que a racionalização pode encher o homem moderno de pensamentos, mas não lhe oferece um sentido de plenitude, visto que uma racionalidade despida de metafísica somente pode lhe oferecer “o provisório, nunca o definitivo. Por esse motivo, a morte é, a seus olhos, não tem sentido. E porque a morte não tem sentido, a vida do civilizado também não o tem” (Weber, 2011). Nas palavras de Sara Lyons, o desencantamento significa que a vida humana “was reduced to calculable, material forces, and the cost was a pervasive sense of alienation, nihilism, and ennui” (2014).
Em meados do século XIX, essa percepção ganhou inclusive o nome de mal du siècle, que designa uma “profunda crise espiritual” (Hoog e Brombert, 1954), uma forma de “angústia metafísica perante a condição e o destino dos homens” (Peltier-Zamoyska, 1963), que atravessa os movimentos românticos e reflete o sentimento de inadequação das pessoas aos papéis desencantados que a modernidade lhes relega. Nos versos do jovem poeta Musset:
Tudo está bem limpo em suas estradas de ferro;
Tudo é grande, tudo é lindo - mas nós morremos em seu ar. [...]
A hipocrisia morreu, não acreditamos mais nos padres;
Mas a virtude morre, não acreditamos mais em Deus.
(Musset, 1841, p. 323)
Já em meados do século XX, Hoog e Brombert diagnosticaram que boa parte da literatura romântica deixou de comover as pessoas de um século depois, mas que “today, it is througth the ever alive notion of the mal du siècle that our age still commune with the values of 1830” (1954). Nessa mesma época, Camus identificou que o desencantamento do mundo conduzia a um sentimento angustiante de vazio, que ele chamou de absurdo e que Sartre havia designado como a náusea: “a descoberta da contingência, ou seja, do fato da gratuidade da existência, que se revela absoluta, pois viver não é necessário, mas sim um ato contínuo de escolha” (Schneider, 2006). Camus escreveu O Mito de Sísifo em 1942 para lidar com o fato de que muitas pessoas, frente ao caráter absurdo da vida (ou seja, frente à falta de um sentido metafísico), não conseguiam justificar a necessidade de seguir vivendo em um mundo desencantado (Camus, 2019).
Acusados de defender ideias que fatalmente mergulhariam as pessoas em desespero, os existencialistas contestaram essa crítica. Sartre foi mais duro, e disse que os cristãos estavam “confundindo seu próprio desespero com o nosso”, pois apenas eles se desesperariam com o reconhecimento de que é preciso que as pessoas construam seus próprios caminhos e que nada pode salvar os homens de si próprios (1987, p. 18). Camus foi mais compreensivo no diagnóstico dessa angústia, chegando inclusive a defender que o único problema filosoficamente sério era o do suicídio: precisávamos julgar se valia ou não a pena enfrentar os sofrimentos do mundo sem que houvesse um sentido objetivo a ser perseguido. A resposta de Camus era a de que, apesar da ausência de sentido metafísico, não deveríamos rejeitar o mundo, mas aceitar a nossa condição e viver com essa consciência. Tal resposta, porém, tendia a ser socialmente percebida como uma negação da espiritualidade, da verdadeira filosofia, dos valores morais e de tudo o que existe de mais caro às pessoas.
A recepção de Camus, de Sartre e de Nietzsche muitas vezes envolve o reconhecimento de que eles teriam feito uma crítica contundente à metafísica, mas que teriam falhado porque não colocaram nada no lugar da espiritualidade e da metafísica. O monumental Crime e Castigo, de 1866, representa uma crítica mordaz ao vazio que era gerado pelas perspectivas materialistas e pelo relativismo moral que elas engendram, crenças que conduziram Raskólnikov a um crime que somente vem a ser redimido por uma aceitação tardia do cristianismo (Dostoiévski, 2016). Essa é uma crítica que até hoje mostra sua vitalidade, em uma época na qual o relativismo cultural tem sido atacado pelo conservadorismo atual como uma forma de enfraquecimento da tradição ocidental, que precisa ser defendida contra essa forma de dissolução das verdades metafísicas.
Signo da atualidade dessas críticas metafísicas ao relativismo valorativo das correntes historicistas é o fato de que um dos principais motivos que levou o diplomata Ernesto Araújo a ser escolhido pelo presidente ultradireitista Jair Bolsonaro como ministro das Relações Exteriores foi ter escrito um texto em que defendeu a ideia, tão cara ao núcleo ideológico do bolsonarismo, de que “somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente” (2017). Ernesto Araújo defendeu que o principal inimigo do Ocidente não é externo, mas é interno, é justamente a mentalidade que ele chama de pós-moderna, que nega os valores da família e da tradição: “Trump fala de Deus, e nada é mais ofensivo para o homem pós‑moderno, que matou Deus há muito tempo e não gosta que lhe recordem o crime” (2017).
Um dos maiores expoentes desse conservadorismo atual é Steve Bannon, um dos principais estrategistas da vitoriosa campanha de Donald Trump, que qualifica as posições a que se contrapõe à sua própria ideologia como um “marxismo cultural secularista e humanista que é fundamentalmente oposto à moralidade judaico-cristã”. Em uma entrevista concedida a Allan dos Santos, que foi disponibilizada no Youtube e posteriormente tornada privada, Bannon defende, inclusive, que políticos como Trump, Bolsonaro e Orbán deveriam dizer que já se cansaram de ver os marxistas culturais “tentando esmagar a moralidade judaico-cristã e que estamos preparados para colocá-los na linha”.
No contexto brasileiro, esse posto de intelectual orgânico da extrema direita foi ocupado na última década por Olavo de Carvalho, pensador qualificado por Bannon como um verdadeiro filósofo e um dos maiores intelectuais conservadores do mundo. Inspirado em Voeglin, Olavo caracterizava os pensadores que rejeitam a metafísica como filodoxos, que valorizam a opinião relativa (doxa), que não deve ser confundida com as verdades objetivas que interessam aos filósofos. No Filosofia e seu inverso, Olavo afirmou que:
Tanto em Platão quanto em Aristóteles ou em toda a filosofia escolástica, o Supremo Bem não é um “valor”, muito menos uma “criação cultural”, mas a realidade suprema, o ens realissimum, fundamento primeiro e objeto último de todo conhecimento. A repulsa que isso causa à sensibilidade moderna é notória. (Carvalho, 2012)
Segundo Olavo de Carvalho, a filosofia não pode ser confundida com o debate racional, porque mesmo quando assume a “aparência externa de uma discussão, como acontece nos diálogos platônicos, o objetivo ali não é ‘provar’ coisa nenhuma, mas trazer à mostra, tornar visível, algo que está para muito além da discussão e da prova” (Carvalho, 2012). A popularidade atual de Olavo de Carvalho, Steve Bannon e de outros intelectuais ligados à nova direita (alt right) mostra que o embate que Comte caracterizou entre abordagens científicas e metafísicas não foi encerrado no século XIX. Devemos reconhecer que o avanço das teses positivistas, renovadas pelo neopositivismo do século XX, deixou nos meios acadêmicos um espaço muito reduzido para as perspectivas metafísicas que esses autores chamam de verdadeira filosofia.
Um dos pontos centrais desse embate é o que Max Weber diagnosticou como uma diferenciação das esferas de valor, que seria uma característica das sociedades modernas. Na Grécia antiga, tal como nas perspectivas metafísicas que se inspiram no seu legado filosófico, havia uma unidade valorativa que permitia que Platão sustentasse que “o belo, ou o justo, ou o que quer que seja, sejam um e o mesmo” (Carvalho, 2012). Essa abordagem permite que as pessoas vivam sua vida religiosa, moral, estética e utilitária dentro de um mesmo registro cultural, como se tudo fizesse parte de uma mesma ordem. Aquilo que é injusto é proibido, aquilo que é proibido é pecado, aquilo que é pecado é feio, aquilo que é feio desperta ojeriza, o que viabiliza uma harmonia entre as percepções religiosas, morais, artísticas e científicas.
Embora as sociedades tradicionais não tenham espaço para uma grande diversidade, elas tendem a oferecer um acolhimento muito grande às pessoas que compartilham a mesma visão de mundo. As narrativas tradicionais oferecem tanto uma descrição da realidade quanto uma justificação (religiosa, moral e/ou jurídica) das relações sociais em que estamos imersos. Tais narrativas culturais são importantíssimas pois elas nos fornecem chaves de compreensão que permitem que cada um de nós desenvolva a sua própria subjetividade, a sua forma particular de ver o mundo.
Tais relatos tendem a justificar as relações sociais em que estamos imersos e a definir os papéis sociais que cada um de nós deve desempenhar: o que se espera dos filhos, dos cidadãos de bem, das esposas, dos maridos, dos governantes, dos policiais, dos médicos, dos professores. Se cada pessoa cumpre o seu papel (na linguagem jurídica, se cada pessoa cumpre os seus deveres), os comportamentos sociais se tornam relativamente previsíveis e isso faz com que as formas de interação social possam ser relativamente estáveis. Se hoje vivemos um tempo de instabilidade, é previsível que várias pessoas busquem segurança nas narrativas tradicionais de Bannon e Olavo de Carvalho: os valores tradicionais estão em crise porque a modernidade abandonou os valores tradicionais, cuja restauração é a única via aberta a uma reintegração que purifique as sociedades contemporâneas da corrupção em que estão imersas.
Esses ideais de purificação são o oposto do que pregava a modernidade, que enfrenta justamente o desafio de organizar sociedades plurais, em que é impossível realizar esse retorno à unidade. A resposta moderna não está na purificação, mas na construção de estratégias de tolerância mútua, de contenção dos desejos, de um paradoxal equilíbrio que inclua na mesma sociedade visões de mundo aparentemente incompatíveis.
2. A gestão do sofrimento
2.1 A opressão das tradições
Se a palavra ‘modernidade’ aponta para o que é novo, a palavra ‘contemporâneo’ aponta para o que é atual, de tal modo que existe uma convergência de significados. Mas acontece que a modernidade foi nova há muito tempo, quando a combinação de vários movimentos (Reforma Protestante, grandes navegações, revolução científica) foi percebida pelos europeus como uma ruptura na continuidade histórica e permitiu qualificar como idade média (medium aevum) o período entre a queda do Império Romano e a Reforma (Green, 1992). Embora a ideia de uma era medieval remonte a percepções do século XVI, foi somente no final do século XVII que se consolidou a tripartição entre os períodos antigo, medieval e moderno.
Posteriormente, entendeu-se que a combinação de iluminismo e revolução industrial representava uma nova ruptura, que em língua inglesa dá início ao que é chamado de Late modern period (em oposição ao Early modern period), mas que os autores franceses chamam de Époque contemporaine, cujo início é previsivelmente fixado na Revolução Francesa. O problema de usarmos o termo contemporâneo para designar uma era que começou há duzentos anos é que terminamos precisando de estabelecer uma nova ruptura, para tratar das formas atuais de organização política e de teorização filosófica. Essa nova ruptura, cuja ocorrência é normalmente fixada em meados do século XX, é chamada em língua inglesa de Contemporary period, mas é comum que a língua portuguesa se refira a ele pela paradoxal denominação de pós-modernidade: aquilo que veio depois do novo.
Essa construção somente se torna compreensível quando entendemos que a modernidade, enquanto categoria filosófica, ficou cristalizada como marcação da ruptura de uma idade média (que hoje é antiga) que se encerrou com a descoberta europeia de que havia novos mundos a explorar e dominar. Para articular minha narrativa com os demais discursos contemporâneos, continuarei chamando de “modernidade” o modelo de organização social que emergiu na Europa por volta de 1500 e que se impôs globalmente pelo colonialismo europeu, a partir do princípio que “tudo o que não é moderno não é civilizado; é atravessado pela marca da barbárie, da marginalização, da subalternidade” (Nascimento, 2009). Reservarei o termo “contemporâneo” para falar dos problemas atuais, visto que existem vários tradicionalismos contemporâneos que se opõem diretamente às perspectivas que descrevemos como modernas.
Na modernidade, não houve uma exclusão das visões religiosas, mas uma tentativa de acoplar numa mesma sociedade fés distintas, que deveriam ser igualmente respeitadas, o que deslocou as concepções religiosas para a esfera privada. Essa transformação da religião (e da moral religiosa) em uma crença privada viabiliza a organização política de uma sociedade multirreligiosa, mas gera uma dissonância cognitiva em pessoas que podem ter uma crença religiosa (em uma divindade dotada de intencionalidade) incongruente com suas crenças filosóficas (como a existência de uma ordem natural imutável) e incompatível com seus conhecimentos sobre a natureza (puramente materialista e causal) e sua ideologia política (que afirma a soberania do povo).
A dificuldade que a mesma pessoa tenha tantas esferas de valor dentro de si reforça o sentimento romântico do mal de siècle, que anseia por retornar a um passado ficcional, em que seria possível desenvolver o que Tolstói chamava de uma subjetividade plena (Weber, 2011). O indivíduo moderno repousa num equilíbrio frágil, pois embora toda pessoa seja radicalmente única, a ordem social depende de uma coordenação de atividades que exige um elevado grau de padronização dos papéis sociais. Os desejos, valores e expectativas de cada um de nós (ou seja, daquilo que qualificamos como uma vida feliz) terminam por ser mais variados que os papéis sociais que nos são reservados, o que gera uma sensação de que algo está sempre fora do lugar.
Sigmund Freud percebeu que essa fragmentação conduziu vários dos seus contemporâneos do início do século XX a construir uma tese curiosa de que “seríamos bem mais felizes se a abandonássemos e retrocedêssemos a condições primitivas”, que viabilizassem a unidade perdida. Porém, Freud notou que o desejo de retornar ao tempo imaginado das tradições dissolvidas pela vida moderna não seria um remédio adequado para o sentimento que ele caracterizou como o “mal-estar do homem na civilização”: um desconforto que decorre do reconhecimento de que o avanço científico da modernidade elevou nossa capacidade de intervir no mundo, mas “não elevou o grau de satisfação prazerosa que esperam da vida, não os fez se sentirem mais felizes” (Freud, 2010). Ele compreendeu bem que as raízes desse desconforto eram mais radicais: não se tratava de um problema específico da civilização moderna, mas de um desafio da vida em comunidades políticas, cuja estabilidade exigia de cada indivíduo o sacrifício de seus desejos primários de satisfação sexual e de violência contra os inimigos.
Existe uma grande pressão no sentido de que devemos nos adaptar aos papéis sociais existentes, para podermos ter uma vida acoplada ao ambiente cultural em que estamos imersos. Uma velha sabedoria indica que o indivíduo deve ser adaptar ao ambiente, pois é muito difícil que o ambiente se adapte aos desejos de um indivíduo. Não devemos nos contrapor ao fluxo do tao, não devemos nos rebelar contra o nosso destino, devemos aceitar o nosso karma, e de nada adianta se postar contra a providência divina.
Apesar disso, cada um de nós tende a sentir uma certa inadequação (maior para uns, menor para outros) entre os papéis sociais que nos são impostos pela cultura e a vida que desejaríamos viver. Freud identificou bem que desejamos a vida em sociedade (com a estabilidade que ela gera), mas que essa vida social exige que nós nos abstenhamos de realizar vários dos nossos impulsos, dos nossos desejos. Por mais que seja importante para nós viver na civilização, o preço que pagamos em termos de sofrimento individual pode ser bastante alto: "o homem se torna neurótico porque não pode suportar a medida de privação que a sociedade lhe impõe, em prol de seus ideais culturais" (Freud, 2010).
Frente ao sofrimento individual perante as demandas culturais, a resposta tradicional é reafirmar a prevalência da cultura (do bem, do divino, da lei) sobre os desejos individuais. As perspectivas tradicionais do indivíduo que busca a sua própria realização fatalmente entram em choque com a sociedade, e os valores sociais devem prevalecer sobre os desejos individuais. Os filósofos antigos (e modernos) buscaram alterar essa equação, questionando a prevalência automática da tradição, sob o argumento de que os valores tradicionais são repletos de preconceitos, de obscurantismo, de atraso. Se temos algum critério para definir os deveres objetivos de cada pessoa, ele não pode ser a cultura (que é contingente), mas precisa ser a própria natureza (que é imutável e universal).
A possibilidade de criticar a tradição decorre da percepção filosófica de que a realidade percebida não corresponde à verdadeira realidade: observamos o mundo e podemos enxergar a existência de preconceitos, de injustiças sociais, de privilégios, de riscos ecológicos, de uma ineficiência das instituições políticas. Essa realidade que percebemos não corresponde exatamente à realidade que nos foi descrita pela nossa cultura (especialmente, pela nossa família), pois essas narrativas culturais naturalizam as relações de opressão existentes na sociedade e justificam uma série de injustiças.
A crítica filosófica à tradição exige um outro tipo de terreno para que sejam justificadas as limitações à liberdade individual: os limites não estão mais nos valores tradicionais, mas nos direitos naturais, em certas relações que decorreriam diretamente da natureza, e não da cultura, como a igualdade entre homens e mulheres e o direito a não ser escravizado.
2.2 O desassossego dos modernos
A filosofia moderna buscou superar a divergência religiosa pela afirmação de uma unidade valorativa, baseada diretamente na natureza, e capaz de justificar a construção de uma série de instâncias de controle social. Portanto, a modernidade não rompe a existência de certos parâmetros imutáveis que podem limitar a liberdade individual. Os filósofos modernos tentam escapar da acusação tradicional de que, "se Deus não existe, tudo é permitido", afirmando que certos direitos são naturais e podem ser descobertos pelo intelecto humano, e esse giro conduz a uma renovação do sofrimento decorrente da civilização: o alto preço que pagamos no nível individual para ter os benefícios de uma vida em sociedade.
Freud percebeu que esse sofrimento estimulava a ilusão romântica de que o sofrimento imposto pelas estruturas sociais poderia ser enfrentado por meio de um retorno à vida primitiva e à unidade valorativa proporcionada pelas sociedades tradicionais. Porém, ele foi um crítico mordaz desse tipo de resposta, que lhe parecia inadequada para superar a modernidade, visto que não é possível simplesmente dissolver a multiplicidade valorativa em que estamos imersos. A narrativa de Freud não deixava espaço para utopias totalizantes, pois o seu diagnóstico indicava simplesmente que não era possível superar essa tensão entre o individual e o coletivo, visto que se tratava de uma tensão constitutiva da vida de indivíduos imersos em uma experiência social. Como sintetizou Bauman, “a defesa contra o sofrimento gera seus próprios sofrimentos” (Carvalho, 2012).
O sentimento de desamparo pode nos impelir à busca religiosa por uma autoridade absoluta ou pela segurança ilusória que projetamos no passado, mas a ideia de que o retorno a uma unidade religiosa conseguiria equilibrar as sociedades modernas somente pode ser uma utopia plausível para quem não conhece o resultado das guerras religiosas europeias, que desgastaram aquelas sociedades até que o reconhecimento de um “empate técnico” entre católicos e protestantes conduziu a uma organização social que privatizou a esfera religiosa para viabilizar a construção de uma ordem política em que todas as pessoas pudessem professar lealdade a uma mesma liderança.
A coesão social possibilitada pela construção da tolerância recíproca entre católicos e protestantes é muito tênue, visto que se trata de dois grupos que hoje nos parecem tão próximos que é difícil imaginar que eles realizaram tantas guerras para purificar a sociedade e retornar à unidade perdida. Mesmo na Europa, os grupos que hoje se contrapõem têm divergências muito maiores, pois envolvem identidades sexuais, étnicas, culturais e religiosas mais intensas do que aquelas que o sistema político moderno foi desenhado para abarcar.
Esse alcance limitado do projeto moderno não causa espanto aos habitantes de “shithole countries” (Schwartsman e Schwartsman, 2018) que foram sujeitos a processos de colonização e que permanecem imersos em uma colonialidade (Quijano, 2011) que mantém ao longo do tempo um exercício de poder marcado pela seletividade étnica ou racial. Para a América Latina e a África, é evidente que a modernidade envolveu “um específico modo de exercício de poder, que tem uma específica maneira de articular conhecimentos para a validação desse modo de exercer o poder, fundado em uma geopolítica” (Nascimento, 2009). Curiosamente, a relação das metrópoles com os países colonizados sequer buscou transportar a ideia de que o governo decorreria de um contrato que exprimia a autonomia natural dos cidadãos: uma vez que os europeus descobriram a forma política necessária do exercício da autonomia individual, eles podiam se dedicar a implantar entre nós essas formas específicas de dominação fundadas em uma naturalização do caráter subalterno das culturas não-europeias. No desenho eurocentrado da modernidade, a geopolítica que emerge é justamente a expansão do poder das potências centrais uma pilhagem das nações periféricas, realizada em nome da expansão do estado de direito (Mattei e Nader, 2008).
Ocorre, porém, que tanto nos países centrais como nos periféricos, a modernidade resultou em uma integração seletiva da pluralidade social. A estratégia de evitar conflitos religiosos por meio do deslocamento da religião para a esfera privada somente poderia operar em contextos nos quais as concepções de bem dos vários grupos sociais fossem tão próximas que emergissem intensas convergências valorativas em torno dos direitos naturais. Como indica Miroslav Milovic, apesar do discurso de liberdade e autonomia, a modernidade permaneceu fechada à diferença e ligada à defesa de certos lugares privilegiados (Milovic, 2005). Uma vez que os discursos modernos estavam vinculados a uma noção eurocentrada de direitos naturais, a aplicação dessa lógica conduzia à naturalização das concepções de matriz europeia, constituída por uma estranha mescla de liberalismo e cristianismo: somos livres e autônomos, mas apenas para realizar os valores reconhecidos na tradição compartilhada por católicos e protestantes.
A unidade cultural pressuposta para que a ideologia moderna operasse com eficiência nunca esteve presente nas antigas colônias e, ao longo do século XX, a crescente pluralidade das sociedades contemporâneas colocou em xeque a viabilidade de produzir sociedades estáveis por meio desses processos de homogeneização, tanto nos centros (global e local) quanto nas periferias. No final do século XX, acirram-se tanto as críticas ao tradicionalismo moderno e começam a ter sucesso diversas lutas pelo reconhecimento de identidades (étnicas, raciais, de gênero e sexuais) que colocam em risco o privilégio das velhas tradições cristalizadas na forma de direitos e valores naturais.
No campo filosófico, essa reviravolta assumiu a forma de uma crítica radical da metafísica ocidental: a expressão dos valores tradicionais como se fossem naturais. Esse movimento foi percebido, por grupos conservadores, como uma espécie de ataque aos valores naturais, que precisavam ser defendidos contra os avanços dessa pauta progressista, o que desencadeou embates tão acirrados e polarizados que James Hunter os designou como uma “guerra cultural” (Hunter, 1991). É compreensível que as perspectivas religiosas e conservadoras entendam o desencantamento do mundo como uma perda gradual de sentido e como um afastamento dos verdadeiros valores, como uma imposição forçada (e equivocada) de uma multiplicidade de ordens que inviabilizam a plenitude de uma vida em que haja uma harmonia entre todas as ordens de problemas. Tal percepção levou vários grupos sociais a se mobilizarem em torno de novos platonismos, voltados a restaurar um mundo em que a unidade fosse novamente possível, especialmente a difícil unidade entre religião e racionalidade, que permitiria uma vida plenamente significativa.
Michel Maffesoli identifica nesse movimento um desejo de reencantamento do mundo, que “as elites instituídas não podem ou não querem entender” (2014). Um retorno aos valores tradicionais que opera em um nível emocional, e não na chave racionalizante da modernidade. “Histerias esportivas, festivais musicais, fanatismos religiosos, revoltas políticas imprevistas, mimetismos tribais de todas as ordens, não são compreensíveis exceto quando sabemos desconstruir o bem-pensar hegemônico, e perceber o retorno de uma ordem de coisas arcaica” (Maffesoli, 2014). Maffesoli ressalta “a sinergia entre o arcaico e o desenvolvimento tecnológico”, uma vez que as redes sociais se estruturam de forma orgânica, por meio do agrupamento de núcleos valorativamente homogêneos, em que é possível um acirramento da tribalização: um retorno a comunidades estruturadas em torno de um conjunto estável de mitos compartilhados. Tal retorno do mito, de uma verdade assentado no compartilhamento e não na fundamentação, é um signo de antimodernidade.
O desassossego com a pluralidade estimula o avanço de perspectivas que consideram ilusórias as multiplicidades, pois apenas a unidade é a verdade última das coisas. Como dizia Hegel: “a verdade é o todo” (Hegel, 2009). Esse holismo atravessa concepções muito diferentes, mas unidas pela ideia de que perdemos a ligação com o vínculo que nos unia a todos em uma comunhão: o vínculo com a natureza, com a ancestralidade, com a tradição, com a religiosidade. Porém, devemos reconhecer que o argumento de que a geração atual está perdida porque abandonou os verdadeiros já estava bem estabelecido nos Analectos de Confúcio (2009), há cerca de 2500 anos. A busca de restauração da unidade perdida, de resgate dos valores abandonados, de um retorno à natureza, é um tema recorrente no pensamento conservador.
Subjaz a essa concepção a noção de que existe uma ordem natural, que deve ser espelhada pelas nossas organizações sociais, caso elas pretendam ser justas e estáveis. Sempre houve uma luta para identificar quem seria o intérprete privilegiado dessa ordem, e a solução da modernidade foi enfrentar esse conflito na busca de estabelecer um núcleo essencial, que deveria ser compartilhado entre todos os grupos humanos: os valores que decorreriam de nossa própria racionalidade e que, portanto, seriam dotados de uma validade objetiva. Os pensadores modernos deslocaram o restante do que cada sociedade entendia como uma ordem natural (incluindo as autoridades religiosas e os costumes) para o campo do que não é racionalizável: as idiossincrasias, os gostos, os sentimentos religiosos, as lealdades nacionais.
3. A insustentável leveza da pós-modernidade
3.1 O sofrimento na modernidade líquida
A segmentação moderna permitiu construir uma ordem natural deflacionada (apresentada como o conjunto dos direitos naturais), capaz de acomodar várias perspectivas dentro da mesma sociedade. Por mais que a modernidade tenha construído discursos de valorização da abertura e da tolerância, continua sendo incômoda para muitas pessoas a ideia de que a multiplicidade é inevitável porque não é possível a reconstrução de uma grande narrativa, que consolide todas as nossas percepções em uma unidade.
Apesar da constante oposição de um holismo conservador, as sociedades modernas se tornaram cada vez mais plurais, o que terminou por deixar claro que o ideário moderno propunha uma tolerância muito relativa: a abertura estava limitada aos comportamentos e ideias que pareciam potencialmente aceitáveis para a maioria da sociedade. No século XX, a luta por igualdade passou pelo questionamento de posições que não foram devidamente tematizadas pelo liberalismo do século XIX, tais como o lugar social das mulheres, a multiplicidade de orientações sexuais e de papéis de gênero, os direitos dos migrantes e das minorias raciais e religiosas.
Não por acaso, a valorização da pluralidade que se opunha ao conservadorismo religioso hegemônico está no núcleo do que veio a ser chamado de pós-modernidade, denominação que foi cunhada em 1970, em um ensaio intitulado “A condição pós-moderna” (Lyotard, 2009). Nesse texto, Lyotard diagnosticou a inviabilidade contemporânea dos discursos movidos por um desejo de unidade totalizante. Ele sustentou que toda grande narrativa foi fragmentada em pequenas narrativas, que tornam compreensíveis certas parcelas de nossas experiências, mas que não é possível unificá-las na forma de um grande sistema filosófico e, menos ainda, como o grande sistema filosófico/estético/religioso/político esperado pelos metafísicos que ainda creem na existência de uma ordem natural a ser descoberta. Nesse ponto, Lyotard seguia a intuição anti-hegeliana de Theodor Adorno, de que “a totalidade é o falso” (Adorno, 1947).
Devemos ressaltar que esse diagnóstico de ruptura epistemológica não deve ser percebido imediatamente como uma descontinuidade social. Quando enfocamos as instituições políticas contemporâneas, e não os discursos teóricos, é comum que percebamos mais continuidades do que rupturas, o que estimulo diagnóstico de que ainda não vivemos propriamente em um mundo além dos limites da modernidade. Anthony Giddens, por exemplo, adota uma abordagem sociológica que o leva a diagnosticar que “em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes” (1991). Creio que essa conclusão é justificada pelo fato de que as instituições políticas contemporâneas podem ser bem descritas como versões radicalizadas das instituições modernas.
O caráter moderno da sociedade contemporânea se revela na continuidade do paradoxo constituído pela forma moderna de propiciar coesão social a sociedades complexas: buscar em uma natureza humana certos pontos de validade absoluta, que possam ser impostos a todas as pessoas (e a todas as culturas) por meio do exercício do poder político.
Por um lado, a manutenção dessas propostas de reintegração é contestada pelas correntes tradicionalistas, que apostam na unidade valorativa como única forma de garantir a coesão social. Aparentemente, as consequências sociais da modernidade estimulam a ilusão de que existe uma espécie de paraíso pré-moderno, em que seria possível uma vida plena, desde que fossem restaurados os valores perdidos. Porém, a radicalização da modernidade tem levado a relações sociais cada vez mais incompatíveis com as mitologias pré-modernas, pois longe de estimular a reconstrução das identidades comunitárias do passado, o contexto atual tem estimulado a ideia de que é preciso constituir novas subjetividades, adequadas aos acelerados processos de mutação que se operam nas formas de vida, especialmente nas formas de trabalho.
Por outro, a própria tese de que uma sociedade unificada é desejável é questionada pelos pensadores pós-modernos, que rejeitam tanto as tentativas de integração totalizante dos tradicionalistas quanto as tentativas barrocas dos modernos de afirmar a existência de limites naturais ao direito de liberdade. As críticas pós-modernas reconhecem o caráter híbrido das instituições sociais e a inviabilidade de uma utopia modernizante, também purificadora, que espera construir a unidade a partir da implantação dos projetos iluministas (Costa, 2020). As teorias pós-modernas tentam lidar com os paradoxos e os limites da racionalidade moderna, o que deixa pouco espaço para os projetos baseados em uma metafísica de unidade.
Por fim, existe uma dificuldade interna da própria modernidade no sentido de oferecer soluções para os problemas contemporâneos porque algumas das configurações sociais que têm emergido nas últimas décadas desafiam as utopias modernizantes. A pandemia de Covid-19, por exemplo, recolocou uma série de questões que pareciam estabilizadas, como a possibilidade de impor severas limitações às liberdades individuais em nome do bem-estar coletivo. Mas já enfrentávamos há tempos uma série de desafios que exigem uma coordenação em nível planetário, para evitar problemas que somente podem ser tratados nessa escala, especialmente as questões ambientais que podem alterar radicalmente as condições de vida na Terra. A uberização do trabalho e as novas tecnologias desafiam os sistemas modernos de proteção dos trabalhadores e colocam em xeque a própria noção de contrato de trabalho, como forma básica de organização da atividade econômica.
A organização política moderna é fundada em uma multiplicação de instâncias reguladoras, de compromissos políticos impostos por um governo central, cuja eficácia é desafiada por novas formas de organização social e política. Nesse contexto, muitas pessoas defendem que o desafio atual não é o de restaurar os valores tradicionais, mas o de adaptar-se aos modos de vida da atualidade, que geram formas particulares de sofrimento. Nesse contexto, Zygmut Bauman diagnosticou um novo mal-estar (ou seja, uma nova fonte de sofrimento psíquico): enquanto Freud entendeu que o desconforto das pessoas com a modernidade estava no fato de que as necessidades sociais de ordem deixavam pouco espaço para a liberdade individual, “os homens e as mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade” (Bauman, 2012).
O mal-estar da pós-modernidade decorreria de um sentimento de desamparo, acarretado pela perda da segurança que era oferecida pelos grandes sistemas de moralidade e pela consolidação de relações sociais mais instáveis e voláteis. No contexto atual, vivemos relações sociais com um alto grau de incerteza (sobre o futuro, sobre a maneira correta de viver, sobre os modos de se relacionar com as outras pessoas) e essa incerteza já não é vista como um inconveniente, mas como uma característica permanente e irredutível (Bauman, 2012), e até mesmo desejável. Para descrever esse fenômeno, Bauman deixou de falar de pós-modernidade e adotou a denominação de modernidade líquida, para indicar (tal como Giddens) que as organizações sociais contemporâneas não são fruto de uma ruptura dos processos de modernização, mas de sua própria consolidação, que fez com que as organizações sociais (e não as teorias) passassem uma fase sólida para uma fase líquida:
[...] uma condição em que as organizações sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável) não podem mais manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam. (Bauman, 2007)
Essa modernidade líquida foi largamente descrita por Bauman como uma nova realidade, que se impôs nas últimas décadas, e que modifica as relações de trabalho, as relações afetivas, as relações políticas. É perceptível que Bauman, que nasceu em 1925, fala de uma insegurança existencial que ele próprio sente e que viu se desenvolver durante sua longa vida (ele faleceu em 2017), mas da qual ele fala “sem saudosismo” (Basílio 2010) e sem propor qualquer forma de restauração da modernidade sólida ou de um retorno romântico à pré-modernidade. Esse modo de encarar os novos tempos como um desenvolvimento social a ser reconhecido e analisado parece realizar a indicação de Lyotard, em 1979, que a crise existencial desencadeada pela crise dos grandes relatos gerou inicialmente uma reação pessimista, um forte luto acarretado pela perda das certezas metafísicas, mas que “pode-se dizer hoje que o tempo do luto foi consumado. Não se deve recomeçá-lo” (Lyotard, 2009, p. 74). Era preciso adaptar-se aos novos tempos.
Todavia, passados quarenta anos da publicação do texto em que inseriu no campo filosófico a noção de pós-modernidade, parece que Lyotard foi muito apressado em dizer que “a própria nostalgia do relato perdido desapareceu para a maioria das pessoas” (Lyotard, 2009, p. 74). Creio que mais razão tem Maffesoli ao indicar que “na vida social em sua totalidade, predominam as reações emocionais, o jogo do ‘como se’, os devaneios. Essa necessidade de reencantamento do mundo que as elites instituídas não podem ou não querem entender” (Maffesoli, 2014).
Lyotard provavelmente tem razão no que toca às grandes narrativas filosóficas, ligadas à ideia de uma fundamentação racional da política ou da ciência, cuja defesa já não mobiliza a atenção dos intelectuais. Como disse Rorty, “a maior parte dos intelectuais de nossos dias descarta alegações de que nossas práticas sociais exigem fundações filosóficas, com a mesma impaciência que têm com alegações semelhantes postas pela religião”, mas a melhor forma de conquistar a atenção das pessoas para a filosofia é perguntar se Nietzsche tinha razão ao afirmar que “tanto a religião como o platonismo são fantasias escapistas” (Rorty, 2005).
3.2 A revolta da tradição
Os próprios filósofos praticamente deixaram de lado a necessidade de uma justificação metafísica da política e do direito, busca que marcou o início da modernidade. Porém, isso não quer dizer que a sociedade em geral tenha acolhido tranquilamente os ataques contemporâneos a toda a metafísica. Se os intelectuais estão mais dedicados a compreender a condição pós-moderna como um dado factual e a buscar maneiras de transformá-la, existe um movimento anti-intelectual, de matriz religiosa e conservadora, que tem se dedicado a promover uma restauração dos valores tradicionais que foram contestados pela modernidade como um todo, e não apenas por sua fase líquida.
Embora o incômodo do conservadorismo religioso com a insegurança e a fluidez da condição pós-moderna seja compreensível, a reação que tem sido gestada causa estranhamento, pois ela envolve a criação de uma teoria da conspiração baseada na ideia de “marxismo cultural”. Olavo de Carvalho defendia já em 2002 uma tese que veio a se tornar comum na extrema direita contemporânea: a de que existe um ataque concertado de pensadores marxistas para destruir os valores ocidentais: “destruir a cultura, destruir a confiança entre as pessoas e os grupos, destruir a fé religiosa, destruir a linguagem, destruir a capacidade lógica, espalhar por toda parte uma atmosfera de suspeita, confusão e ódio” (Carvalho 2002).
Não se trata de uma narrativa original, pois, como identificou Jérôme Jamin, essa teoria da conspiração emergiu em círculos políticos conservadores dos EUA no início dos anos 1990, e desde então tem se tornado cada vez mais influente em grupos de extrema direita (2018). Segundo Jamin, esse discurso “claims that the main goal of Cultural Marxism was much less honorable than merely academic research trying to understand the cultural dynamics of capitalism, and to many, it is seen as a dangerous ideology that has sought ‘to destroy Western traditions and values’” (Jamin, 2018), sendo que essa tese se tornou especialmente conhecida quando foi incorporada pelo político conservador estadunidense Pat Buchanan, em um livro de 2002, chamado eloquentemente de The Death of the West.
At Horkheimer's direction, the Frankfurt School began to retranslate Marxism into cultural terms. The old battlefield manuals were thrown out, and new manuals were written. To old Marxists, the enemy was capitalism; to new Marxists, the enemy was Western culture. […] To new Marxists, the path to power was nonviolent and would require decades of patient labor. Victory would come only after Christian beliefs had died in the soul of Western Man. And that would happen only after the institutions of culture and education had been captured and conscripted by allies and agents of the revolution. (Jamin, 2018)
Somente esse plano malévolo poderia explicar o avanço do relativismo e do respeito à diversidade, que a extrema direita dos EUA tende a chamar de politicamente correto, englobando sob este rótulo todos os seus adversários. Nas palavras de Samuel Moyn, “according to their delirious foes, ‘cultural Marxists’ are an unholy alliance of abortionists, feminists, globalists, homosexuals, intellectuals and socialists who have translated the far left’s old campaign to take away people’s privileges from ‘class struggle’ into ‘identity politics’ and multiculturalism” (Moyn, 2018). Em uma sociedade acostumada a pensar no marxismo como um risco, ganhou espaço a tese de que o marxismo tinha passado da arena econômica (em que foi vencido com a queda do Muro de Berlim) para a arena cultural, na qual ele tinha vencido. Nas palavras eloquentes e “politicamente incorretas” de Olavo de Carvalho:
Em poucas décadas, o marxismo cultural tornou-se a influência predominante nas universidades, na mídia, no show business e nos meios editoriais do Ocidente. Seus dogmas macabros, vindo sem o rótulo de “marxismo”, são imbecilmente aceitos como valores culturais supra-ideológicos pelas classes empresariais e eclesiásticas cuja destruição é o seu único e incontornável objetivo. Dificilmente se encontrará hoje um romance, um filme, uma peça de teatro, um livro didático onde as crenças do marxismo cultural, no mais das vezes não reconhecidas como tais, não estejam presentes com toda a virulência do seu conteúdo calunioso e perverso. (Carvalho, 2008)
Para tal perspectiva, o marxismo cultural representa uma ameaça à tradição ocidental, que precisa ser combatida com especial força porque não se trata de uma ameaça distante, mas de um plano de dominação cultural que teve êxito e que precisa ser desmantelado. Embora deixe claro que o marxismo cultural seja uma peça de ficção, Moyn esclarece que tal narrativa tem circulado cada vez mais amplamente em círculos conservadores e que ela tem sido usada para justificar uma reação, inclusive violenta, para defender os “valores ocidentais” e a “moralidade cristã” contra gays, lésbicas, feministas, imigrantes e comunistas (Moyn, 2018). Uma vez que o pensamento conservador descreve que o maior inimigo da verdadeira tradição é o ataque intencional e concertado de mestres malignos (Carvalho, 2008) que dominam o campo da cultura, atacá-los nada mais é do que um exercício de legítima defesa. Não é por acaso que o ativista de extrema direita norueguês Anders Breivik, que matou 77 pessoas em 2011, invocou repetidas vezes o “marxismo cultural” como justificativa para os seus atos (Jamin, 2018; Moyn, 2018).
Creio que o mais curioso dessa tese sobre o marxismo cultural é o fato de que, ao longo do século XX, vários pensadores socialistas também dirigiram críticas severas à filosofia contemporânea, justamente por considerar que a crítica aos valores objetivos significava uma adesão implícita ao status quo. Essas críticas levaram Jean-Paul Sartre a formular uma conferência, em 1945, na qual defendia o existencialismo contra as críticas simultâneas dos comunistas e dos cristãos. Os comunistas o acusavam de professar uma filosofia burguesa, meramente contemplativa e descomprometida com a transformação social. Já os cristãos o acusavam de haver negado os valores humanos fundamentais, na medida em que a gratuidade do mundo suprime os mandamentos de deus e os valores eternos. Uns e outros acusam o existencialismo de haver negado a possibilidade de um sentido metafísico para o mundo, que justificasse objetivamente a revolução ou a salvação, fomentando com isso a apatia, a inação e o desespero (Sartre, 1987).
Submetido a críticas semelhantes, Nietzsche ressaltou em toda sua obra que ele não era um niilista: ele não é um negador de tudo o que está aí, mas um afirmador de que a metafísica é uma forma de sensibilidade que deveria ser abandonada, porque “deus morreu”. Assim como Comte se viu levado a se qualificar como positivista, Nietzsche precisou defender que a rejeição da metafísica não era uma simples negação, porque o que propunha era justamente acentuar o caráter criativo da cultura. Não se tratava de descobrir entidades metafísicas, mas de compreender os processos por meio dos quais as interações sociais criam, instauram, produzem valores. Sartre tentou escapar desse tipo de crítica defendendo que o existencialismo é um humanismo peculiar, que ele chamou de humanismo existencialista:
Humanismo, porque recordamos ao homem que não existe outro legislador a não ser ele próprio e que é no desamparo que ele decidirá sobre si mesmo; e porque mostramos que não é voltando-se para si mesmo, mas procurando sempre uma meta fora de si – determinada libertação, determinada realização particular – que o homem se realizará precisamente como ser humano. (Sartre, 1987)
Sartre não parecia muito interessado em se conciliar com os cristãos conservadores, mas ele tampouco conseguiu convencer os comunistas ateus (que eram comprometidos com os ideais de uma igualdade imanente dos seres humanos) nem os comunistas cristãos (comprometidos com o caráter metafísico de sua moralidade), pois insistiu em afirmar a inexistência de um sentido externo que legitime objetivamente nossas ações. E, de quebra, ele conseguiu desagradar também os existencialistas, pois essa ideia de que o homem se realiza procurando uma meta fora de si pareceu uma concessão demasiada às teses metafísicas.
A dificuldade de Sartre em conciliar suas perspectivas filosóficas com as de pessoas que tinham ideais políticos semelhantes aos seus mostra que a ausência de uma utopia transcendente pode fazer com que as pessoas de sensibilidade metafísica considerem que falta alguma coisa ao materialismo. Porém, os pensadores materialistas simplesmente não têm como colocar nada no lugar da ordem natural e dos princípios metafísicos, justamente porque eles creem que esse lugar da metafísica deve permanecer vazio. Não lhes cabe oferecer uma metafísica alternativa, por mais que muitas pessoas os critiquem por se desviarem de um modelo filosófico voltado a recauchutar a metafísica, em vez de abandoná-la completamente.
Se tivessem um olhar menos paranoico e autocentrado, os inimigos declarados do “marxismo cultural” entenderiam que a filosofia contemporânea não tem como adversário o sistema dos valores tradicionais da família judaico-cristã, porque sua pretensão é mais ampla: trata-se de combater toda forma de metafísica, inclusive as socialistas. Mas parece que nossa espécie tem uma tendência a supor que nossos inimigos são aliados entre si, pois todos são contra nós, sendo que tal percepção pode conduzir a situações absurdas, como as descritas por Hans Kelsen no prefácio da 1ª edição da Teoria Pura do Direito, de 1934:
Os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu espírito é - asseguram muitos - aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros creem reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do Estado e do Direito. E não falta também quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta. Em suma, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não se tenha ainda tornado suspeita. (Kelsen, 1992)
Parece-me que a fina ironia de Kelsen contém o diagnóstico mais adequado das reações de todas as metafísicas contra a abordagem neopositivista que ele propôs para a ciência jurídica: as metafísicas buscam desqualificar a teoria que não lhes concede espaço algum. Ocorre que a sensibilidade metafísica, que era dominante em meados do século XX, quando Sartre e Kelsen escreveram suas obras, continua mostrando sinais de ser ainda a perspectiva dominante, seja na sua versão teológica (ligada a uma intencionalidade divina) ou abstrata (ligada a uma ordem natural despersonalizada).
Olavo de Carvalho tinha razão ao diagnosticar que a defesa tradicionalista dos valores cristãos não tem espaço favorável no ambiente acadêmico contemporâneo, o que explica que suas posições tenham uma recepção muito pequena na comunidade acadêmica, apesar de ele ser reconhecido como um sábio por vários grupos cristãos conservadores. Essa rejeição parece bastante compatível com a modernidade, que relegou a religião à esfera do privado justamente por reconhecer a impossibilidade de que sociedades complexas se articulem politicamente a partir de uma crença religiosa particular.
Por outro lado, as teses metafísicas mais abstratas são moeda corrente nos meios acadêmicos. Na tripartição de Comte, as perguntas descritas por Cortella e por Reale seriam classificadas no estágio metafísico, na busca ficcional pela natureza íntima das coisas, pelos princípios absolutos que deveriam compor a ordem universal. A teoria do direito lida com uma série de conceitos naturalistas, especialmente aqueles ligados ao ideário liberal, que considera naturais uma série dos direitos fundamentais. O avanço das políticas identitárias muitas vezes é permeado por uma noção naturalista muito aproximada do dogmatismo religioso: a igualdade das mulheres pode ser apresentada como uma conquista, mas também pode ser apresentada como uma realização de uma igualdade natural. Os direitos fundamentais podem ser lidos historicamente como uma construção política, mas também podem ser lidos na chave da realização de ideais de justiça imanentes, que justificam uma postura missionária voltada a concretizar os princípios constitucionais. O exemplo mais evidente dessa postura é a defesa de Roberto Barroso de que o STF tem uma função de vanguarda iluminista, na medida em que lhe cabe avançar a realização dos verdadeiros princípios (2018).
A contraposição de duas metafísicas dificilmente conduz a uma situação estável, quando ambas se consideram válidas de um ponto de vista objetivo. A polarização ideológica que vivemos hoje reforça a percepção missionária de todos os lados envolvidos e pode justificar a percepção de que o que existe é uma guerra de valores objetivos contra uma ameaça. Essa situação beligerante coloca em risco a estrutura política moderna, que é baseada justamente na construção de uma esfera política laica, na qual as decisões sejam tomadas por meio de acordos de interesse e não de imposições da verdade e da fé, que têm uma tendência a se manifestar em um messianismo salvacionista e purificador.
3.3 Filosofia e diferença
No século XX, o avanço dos discursos purificadores esteve constantemente ligado ao aflorar da antipolítica: a rejeição da política como arena para a realização de acordos de interesse entre adversários que têm legitimidade para participar da gestão da coisa pública e a afirmação da política como espaço voltado à concretização do bem, dos valores corretos (do ocidente, da moral cristã, da justiça social ou de qualquer outro valor que se pretende objetivo e transcendente). Quem tem a verdade ao seu lado, pode realizar a necropolítica (Mbembe, 2016) de modo legítimo.
O tensionamento que vivemos hoje, longe de ser um desvio imprevisível das nossas organizações políticas, parece um resultado previsível do arranjo constitucional das sociedades contemporâneas. A afirmação da soberania nacional ou popular foi fundamental para viabilizar a ruptura da tradição medieval, mas a institucionalização dos novos governos envolveu uma espécie de contenção do caráter revolucionário dessa soberania, por meio da afirmação de uma solução paradoxal: o povo é soberano, mas ele precisa observar os direitos naturais, que não passam de um nome metafísico para os direitos tradicionalmente reconhecidos em uma sociedade.
Esse tipo de equilíbrio paradoxal pode manter-se estável na medida em que os governos tenham uma atuação marginal, deixando que as pessoas se organizem a partir de seus próprios valores, como prega o liberalismo. Porém, na medida em que o governo se torna o principal fornecedor de serviços, especialmente de uma educação pública gratuita e universal, é preciso decidir quais serão as perspectivas valorativas que vão orientar essa atuação. A solução liberal promovia a pacificação social, mas por meio de uma distribuição muito desigual dos benefícios que gera uma alta concentração de renda. A alternativa social-democrata encontrada em meados do século XX foi que o Estado deveria proporcionar os serviços básicos, ou ao menos regulá-los de forma que houvesse um acesso amplo à saúde e à educação, requisitos básicos para a prosperidade de sociedades cuja economia exige uma intensa participação de profissionais especializados.
Não é por acaso que boa parte dos conflitos ideológicos atuais esteja concentrada no modo como os sistemas educacionais públicos devem lidar com os vários preconceitos que permeiam a sociedade e que restaram de certa forma estabilizados na medida em que a solução encontrada era a saída liberal de não ofender a moralidade vigente, para que um governo eletivo e parlamentar pudesse não entrar nos colapsos da paralisia total nem da guerra civil. Gargarella nos mostra claramente que a aliança liberal conservadora é uma característica muito forte do constitucionalismo latino-americano (e não só dele), mas podemos observar em vários lugares que a ruptura do respeito implícito aos preconceitos tradicionais elevou imensamente as tensões políticas contemporâneas (Gargarella, 2011).
O que resultará disso? Não sabemos. Ninguém pode prever o futuro. Não é inevitável nem é impossível que as tensões que afloraram nas sociedades contemporâneas desencadeiem uma guerra purificadora, voltada a construir uma unidade que reduza as tensões e viabilize uma justificação metafísica dos governos.
A filosofia tem algo a ver com essa questão? A filosofia contemporânea não se apresenta como um caminho para dizer qual é o bem absoluto e objetivo, como foi a pretensão metafísica dos gregos, retomada pelos modernos. “A palavra era bela e ia nascer, mas a raiz apodreceu” (Nejar, 2003) e o que resta ao discurso filosófico é nos ajudar a perceber com mais clareza os modos como nossas visões de mundo se estruturam e condicionam nossa capacidade de estabelecer relações sociais compatíveis com os princípios que forjamos. Talvez esse sentido inventado nos ajude, inclusive, como dizia meu saudoso amigo Miroslav Milovic, a encontrar alternativas que nos permitam “repensar ou, melhor dizendo, inventar o mundo” (Milovic, 2005). Mas não faremos isso multiplicando ilusões sobre uma natureza última das coisas que projete, na estrutura do mundo, os nossos próprios valores.
Seguindo o João que inspirou Antônio (Belchior, 1976a), precisamos forjar um pensamento que seja faca só lâmina que cante a palo seco “num deserto sem sombra em que a voz só dispõe do que ela mesmo ponha” (Melo Neto, 1994b; c). “A razão que não me dais, eu crio” (Nejar, 2003) a partir da aridez de um mundo despido de significados imanentes, mas que povoamos com nosso canto, seguindo a escolha de “empregar o seco porque é mais contundente” (Melo Neto, 1994c).