1. Filosofia e sabedoria

1.1 Sabedorias risíveis

Ninguém nasce filósofo. Também não se nasce médico, cozinheiro ou dentista. Toda profissão exige um certo percurso formativo, em que desenvolvemos as habilidades que nos permitem ser devidamente qualificados como padeiros, professores ou advogados.

Eu, por exemplo, sou filósofo. Mas devo confessar que demorei muito para falar de mim nesses termos. Creio que minha resistência a assumir tal designação decorria do imenso peso agregado ao título de filósofo. Apresentar-me como filósofo me parecia um ato ridículo, na medida em que parecia implicar a reivindicação de pertinência a uma casta especial, formada por indivíduos com uma profundidade intelectual superior. Como sintetizou Kwame Appiah, a filosofia é “o rótulo de maior status no humanismo ocidental” (1997), o que faz soar pedante uma pessoa designar a si própria como filósofa.

Esse tipo de reinvindicação nobiliárquica, ainda que involuntária, mostra os descaminhos da filosofia ocidental. Como toda revolucionária vitoriosa, ela se converteu rapidamente em uma nova encarnação do inimigo contra o qual ela lutava: a sabedoria. Quando dizer-se filósofo se converte em uma forma de qualificar-se como sábio, é porque a filosofia se transformou em uma palavra vazia.

Torna-se digno de riso quem se apresenta como sábio ou como célebre, pois essas designações não indicam o que uma pessoa é (como ser mãe) nem o que ela faz (como ser artista), mas revelam a maneira como as outras pessoas a reconhecem. O rótulo de sábio só faz sentido enquanto reconhecimento social do saber ou da prudência de um indivíduo e, por isso, trata-se de um título de prestígio, que somente pode ser atribuído pela própria coletividade. Quando disseram de Sócrates que ele era sábio, ele percebeu claramente que essa designação criava para ele uma armadilha. Segundo Paul Silbert, ele teria pensado algo assim:

Que outros me chamem de sábio, por reconhecerem meu conhecimento ou minha prudência, vá lá! Chamam de sábios gente que sabe ainda menos do que eu. Porém, o que não teria cabimento seria eu mesmo me chamar de sábio, pois cada um de nós é péssimo juiz de seus próprios méritos. Se eu posso assumir uma designação que trate de minha relação com a sabedoria, somente poderia ser um nome que fale de algo que eu realmente sou e que faço: alguém que deseja conhecer, que valoriza o conhecimento, mas nunca alguém que teria a verdade, como se a verdade fosse uma garrafa de vinho ou um cavalo. (Silbert, 2222)

Essa consciência fez com que Sócrates desenvolvesse o curioso título de filósofo: um rótulo que ele poderia atribuir a si próprio, sem soar ridículo. Com essa astúcia, Sócrates escapava do ridículo da designação, bem como da prisão implícita num papel social que, para ser preservado, exige dos sábios que se esforcem constantemente para manter sua posição de porta-voz dos discursos que fazem eco em sua comunidade.

1.2 A insustentável leveza do saber

Apesar desse início autocrítico e promissor, os herdeiros da tradição socrática logo passaram a reivindicar o lugar do sábio, com sua especial capacidade de diferenciar a Verdade de seus variados simulacros. A ideia de que o filósofo é capaz de um conhecimento objetivamente verdadeiro desnaturou o sentido original da palavra filosofia, convertendo-a em um tipo específico de saber institucionalizado.

Somente o reconhecimento inconsciente dessa equivalência entre filosofia e sabedoria explica a reticência que eu tinha em me chamar de filósofo, mesmo depois de ter me aventurado a escrever um livro em que trato das nossas formas de conhecer, um tema que sempre foi matéria de filosofia (Barros, 2010a). Eu tinha começado esse livro assim:

Eu não sou filósofo. Aliás, nem acho que o título filósofo signifique alguma coisa relevante, porque ele faz parecer que existe um certo grupo de pessoas que produzem aquilo que chamamos comumente de filosofia.

A sincera inverdade contida na primeira frase ressalta que é preciso sempre duvidar dos filósofos, assim como dos poetas. O filósofo “é um fingidor, que finge tão completamente” (Pessoa, 1990), que chega a se convencer de que são verdadeiras as coisas que ele gostaria de dizer. Tal convergência de sensibilidades raramente foi reconhecida pelos filósofos, tanto que Platão tratou de excluir terminantemente os poetas de sua República (1996), para que eles não defendessem publicamente teses tão perigosas como a de que “desaprender oito horas por dia ensina os princípios” (Barros, 2010b).

O status diferenciado dos filósofos depende da crença social de que existe uma ordem imanente das coisas, a ser desvendada pela especial inteligência desses seres reflexivos e profundos. Mas os poetas nunca levaram a sério os filósofos, sendo clássica a sarcástica descrição que Aristófanes fez de Sócrates, como uma pessoa que vivia nas nuvens. Os artistas deixaram claro que a pós-sabedoria dos filósofos carregou desde sempre algo de risível, visto a filosofia precisa revestir-se de uma sobriedade, uma seriedade e uma objetividade que ninguém pode pretender alcançar, sem parecer ridículo.

As pessoas que tiveram a alegria de ler Milan Kundera certamente pensaram em seus livros quando viram as “peso” e “risível” utilizadas no mesmo texto. Kundera escreveu romances em que explorou longamente as tensões entre peso e leveza e o caráter disruptivo das várias formas de humor. Não consigo pensar em levar a sério uma reflexão filosófica contemporânea feita por alguém que não tenha lido A insustentável leveza do ser (Kundera, 1985) ou O livro do riso e do esquecimento (Kundera, 1987). Evidentemente, na minha cidade ideal, os artistas ocupariam um lugar de destaque, em vez de serem relegados ao silêncio obsequioso.

Como era previsível, a estratégia platônica não funcionou e continuamos insistindo em colocar os poetas e os filósofos lado a lado, reconhecendo que ambos estão envolvidos em uma “didática da invenção” (Barros, 2010b), voltada a criar discursos capazes de mobilizar a sensibilidade de seus concidadãos. Esse reconhecimento me fez considerar mais adequado defender explicitamente que pessoas que escrevem livros de filosofia devem ser qualificadas como filósofas, mas que isso não implica reconhecer a elas a pertinência a uma aristocracia do pensamento. Eu devo poder me admitir filósofo com a mesma tranquilidade democrática que acompanha minha identificação como professor, como brasileiro e como leitor de Kundera.

2. Filosofia e política

2.1 O insustentável peso da filosofia

Até aqui, o objetivo foi deflacionar a noção de filosofia, tentando retirar dela a crosta de sabedoria que foi se acumulando na palavra ao longo do tempo. Os filósofos fingiram não ser sábios, para logo em seguida tentarem assumir a função social que eles tinham: serem os guardiães do verdadeiro sentido das coisas. O que levou a essa impostura não foi a má-fé dos filósofos, que procuraram incessantemente a verdade com as melhores intenções, ou seja, com um desejo sincero de desvendar o sentido íntimo das coisas (Pessoa, 1990). O que os levou os cultores da filosofia a seguir esse caminho foi justamente a crença inabalável de que existia esse tal sentido íntimo das coisas, a ser descoberto.

Foi somente no século XIX que começamos a duvidar seriamente da existência de uma ordem valorativa intrínseca à natureza. Desde então, desenvolvemos gradualmente a consciência de que a história humana não é um processo em que as nossas essências se realizam no mundo, mas um longo processo por meio do qual construímos e desenvolvemos nossos universos simbólicos.

A consciência histórica destrona a velha pretensão filosófica de encontrar as essências imutáveis de uma natureza eterna. Nietzsche chegou a afirmar que o que caracteriza os filósofos é justamente a falta de sentido histórico e a tentativa de pensar as coisas imutáveis, eternas, sem história, que serviriam como fundamentos objetivos para um conhecimento verdadeiro das essências.

A morte, a evolução, a idade, tanto quanto o nascimento e o crescimento, são para eles não só objeções, como até refutações. O que é não se torna, não se faz, e o que se torna ou se faz não é. [...] Resultado: mister se faz desprender-se da ilusão dos sentidos, do devir, da história, da mentira. Consequência: negar tudo o que supõe fé nos sentidos, negar todo o resto da humanidade. (Nietzsche, 2006)

O único conhecimento sólido, na tradição filosófica, está na descoberta das formas imortais, que subjazem aos movimentos do mundo, esses pontos arquimedianos em que podemos apoiar com segurança as alavancas do nosso conhecimento. Nada que muda na história pode ser objeto de um conhecimento seguro, para essa tradição metafísica.

O historicismo do século XIX torna ridículas as pretensões da filosofia grega, e com isso abre espaço para que possamos inventar um sentido novo para a própria ideia de filosofia, que passa a ser descrita como uma forma específica de trabalho intelectual.

Entretanto, devemos tomar cuidado para que a deflação do peso da palavra filosofia não nos conduza para uma dissolução completa desse conceito, caminho poderia nos levar a considerar todas as pessoas como filósofas porque cada um de nós tem a sua “filosofia de vida”. Isso seria tão equivocado como considerar que os advogados são escritores porque passam a vida a redigir petições iniciais e recursos. A simples habilidade de produzir textos escritos não permite qualificar uma pessoa como “escritora”.

Todos nós contamos histórias, mas isso não nos torna historiadores. Alguns de nós se interessam por entender como certos acontecimentos se passaram, mas isso tampouco nos torna historiadores. Isso nos torna interessados na história, e foi o reconhecimento de um interesse desse tipo que estava contido na formulação socrática do termo filo+sofia, designando um particular interesse pelo conhecimento verdadeiro.

Eu também canto, de vez em quando, com a família e os amigos. Também cheguei a tocar pandeiro no Samba do Peleja, mas isso não me torna um músico. Reservamos o nome de historiador e de músico para quem produz narrativas históricas ou discursos musicais com habilidade e constância.

Do meu lado, a atividade que exerço como maior regularidade é a de professor. A docência não envolve a produção de discursos propriamente filosóficos, mas a de textos pedagógicos, voltados a facilitar a compreensão das estruturas conceituais que permeiam os variados discursos que meus leitores encontram ao longo da vida. Um professor de filosofia não é necessariamente um filósofo, mas um cartógrafo que mapeia os modos de pensar, com o objetivo de auxiliar seus leitores e ouvintes a compreender melhor o que nós efetivamente fazemos quando tentamos explicar o mundo.

2.2 A invenção dos sentidos

Não é incomum que os professores de filosofia contribuam efetivamente para o campo, desenvolvendo uma leitura particular do mundo, que possibilita que eles sejam qualifiquemos também como filósofos. Mas a filosofia não é fruto do trabalho dos professores de filosofia, assim como a língua não é o resultado do trabalho dos linguistas. Os linguistas são estudiosos das linguagens, que produzem descrições sobre os modos pelos quais os seres humanos se comunicam por meio de códigos linguísticos. Os linguistas produzem a linguística, eles não produzem a língua.

Muito antes de haver linguistas, existiam múltiplas línguas, faladas por milhares de pessoas e constituídas pelo esforço comum de criar modos de compreensão recíproca. E, antes de haver línguas, havia linguagens mais simples: pictóricas, gestuais, sonoras. Tudo tem sempre um antes e as coisas que não tem antes são mistérios que desafiam nossa compreensão. Deixemos os mistérios para depois. Fiquemos com o fato de que nossas habilidades (linguísticas, sociais, argumentativas) antecedem historicamente a existência de discursos que tentam analisá-las e descobrir os seus padrões.

Muito antes de haver filósofos, existiram discursos estruturados a partir de categorias complexas, conjuntos de narrativas que tentavam converter o mundo em um lugar compreensível. Antes de haver filósofos, havia essa postura que veio a ser chamada de hermenêutica: observar a realidade como se ela fosse um texto, como se ela portasse um sentido a ser descoberto. Além disso, devemos esclarecer que as ideias filosóficas que os professores organizam e apresentam não estão contidas apenas dos livros de filosofia. Por exemplo, foi com o poeta Fernando Pessoa que melhor aprendi que os filósofos estão doentes dos olhos porque não veem o mundo como ele é, mas atribuem sentidos a coisas que não têm valores nem significado, apenas existência.

Somente compreendemos as coisas que têm sentido e, na tentativa de entender o mundo, supomos que podemos descobrir na realidade um sentido intrínseco, que não está lá, mas que fabricamos na medida em que o buscamos. As coisas não precisam ter um sentido para que nós tentemos interpretá-las: nosso olhar pode reconhecer em uma nuvem a forma de um dragão ou de um elefante, mas dragão e elefante são modelos que estão em nossa mente, e não nas próprias nuvens. Somos nós (observadores, leitores, intérpretes) que estabelecemos relações de semelhança, de consequência ou de finalidade, com as quais podemos reduzir a complexidade do mundo a certas formas recorrentes, elaborando modelos explicativos capazes de dar sentido unificado a uma multiplicidade de objetos e acontecimentos.

O objetivo deste livro é o de contribuir para que você reflita sobre algumas articulações possíveis (antigas, modernas, pós-modernas, etc.) sobre essas questões, para que possa avaliar em que medida as suas perspectivas se identificam com esses modelos explicativos. Como dizia Carlos Nejar, “a razão que não me dais, eu crio” (Nejar, 2003), e assim nós inventamos múltiplos universos simbólicos que povoam o mundo com significados, com valores, com direitos naturais e sentidos objetivos.

2.3 A mutação simbólica

Esses modelos de compreensão do mundo não são a filosofia, porque eles são muito mais amplos. Eles são as culturas, esses universos criados pela sedimentação de múltiplas camadas históricas, dentro dos quais cada indivíduo se encontra imerso desde seu nascimento. Nenhum de nós cria a cultura porque ela surge por um longo processo de decantação, no qual se cruzam as percepções de inúmeras pessoas, cada uma delas movida por nosso peculiar desejo de ordem: observamos o mundo como se ele tivesse uma ordem intrínseca e, previsivelmente, produzimos múltiplas descrições dessa ordem.

Uma realidade ordenada é um lugar habitável, dentro do qual podemos nos mover com mais previsibilidade e segurança. Nosso cérebro é uma máquina de produzir ordem, de criar padrões que permitam que nos comportemos de forma adaptada ao mundo, mesmo que contemos apenas com pequenas informações fragmentárias. Uma ordem inventada acalma nossas angústias e permite o estabelecimento de relações sociais estruturadas simbolicamente, constituindo um artefato cultural que nos permitiu viver em grupos de centenas de milhares de pessoas.

As primeiras ordens que criamos são mecanismos muito efetivos para transmitir certos padrões de comportamento entre gerações. De certa forma, eles são mecanismos efetivos demais, pois conseguem estabilizar certas formas de interação social de maneira tão rígida que elas se tornam um entrave: quando o ambiente muda, e nossas crenças religiosas geram comportamentos pouco adaptados, como é possível transformar as ordens sociais?

As sociedades que sobreviveram nos últimos 10.000 anos não são aquelas que se mostraram mais rígidas, pois uma ortodoxia demasiada obsta os processos de transformação que propiciam que as sociedades respondam às mudanças ambientais, adaptando-se a elas. Ao longo do Holoceno, nossos grupos sociais desenvolveram alguns elementos que propiciaram uma aceleração dos processos de mudança, servindo como filtros por meio dos quais definimos que aspectos de cultura serão mantidos e que elementos deverão ser transformados.

No âmbito das relações sociais, esse filtro de transformações é o governo: inventamos que as decisões de um grupo de pessoas vincularão toda a sociedade, o que possibilita transformações sociais mais rápidas, movidas por razões de natureza estratégica. No âmbito dos nossos universos simbólicos, não é possível a criação de um governo, pois ninguém decide sobre seus próprios valores, convicções e significados. A transformação dessa ordem simbólica não se dá por meio de uma decisão, mas por processos argumentativos que acentuam as incongruências de nossas formas de ver o mundo e nos impelem a reorganizá-los, segundo novos padrões.

Essa dinâmica de alteração não é privilégio da filosofia. Os profetas são figuras que alteram as ordens religiosas, promovendo rupturas. A arte altera nossas formas de descrever a realidade, oferecendo narrativas e representações inovadoras. A filosofia faz parte desse processo de mutação simbólica, mas sua atividade é concentrada na revisão explícita de nossos conceitos: trata-se de um discurso que tematiza diretamente as explicações vigentes, perguntando se eles devem ser mantidos ou transformados.

3. A reflexividade filosófica

3.1 Filosofia como atividade

No item 4.11 do Tractatus Logico-Philosophicus, Wittgenstein afirmou que a filosofia não é uma teoria, mas uma atividade voltada a elucidar o significado dos enunciados sobre os fatos, diferenciando aquilo que pode ser pensado e dito claramente daquilo que, por não poder ser enunciado com clareza, deveria ser calado (Wittgenstein, 1922). Proponho que não atribuamos à filosofia um objeto tão estreito quanto o naturalismo do Tractatus sugeriu, mas que adotemos a tese de Wittgenstein no sentido de que a filosofia deve ser vista como uma atividade reflexiva sobre nossos conhecimentos, e não como um saber.

Sugiro chamar de filosofia a atividade reflexiva que descreve o modo como nós pensamos sobre todos os temas abrangidos por nossa linguagem e não apenas sobre os fenômenos empíricos, como sugeriu Wittgenstein (Wittgenstein, 1922). Além disso, proponho reconhecer que ela não tem uma atividade meramente elucidativa, pois o discurso filosófico promove uma crítica voltada ao desenvolvimento de critérios para diferenciar o que deve ser mantido e o que deve ser transformado em nossas ordens simbólicas. Por esse motivo, a filosofia é uma atividade que sempre se exerce no presente: não faz sentido decidir o que deve ser modificado ou mantido em universos simbólicos do passado, nem do futuro.

De fato, muitas das pessoas que consideramos filósofos são apenas pessoas eruditas, que estudaram textos filosóficos, mas nunca se dedicaram realmente a fazer essa reavaliação de suas próprias ideias. Os próprios professores de filosofia, muitas vezes, são compendiadores dedicados de ideias alheias, mas que têm um baixo nível de reflexividade sobre suas próprias concepções. Um filósofo ortodoxo, dedicado a converter outras pessoas a suas próprias convicções, é uma figura que além de triste, é inútil: somente podemos mudar nossas crenças a partir de dentro, o que faz com que a filosofia precise ser um diálogo aberto, e não uma pregação missionária. Com relação a um desses pseudofilósofos, Mítia Karamázov deu uma resposta curiosa: “os Karamázov não são canalhas, mas filósofos, porque todos os russos de verdade são filósofos e tu, embora tenhas estudado, não és um filósofo, mas um smierd [um camponês simplório]” (2008, p. 764).

Embora a filosofia muitas vezes se apresente como um puro conhecimento, essa é uma caracterização enganosa, pois a questão da filosofia é sempre a de orientar um agir: que ideias devemos abandonar e que outras ideias devemos incorporar a nossas descrições de mundo? A citação preferida de Miroslav Milovic, meu grande professor de filosofia, era a última tese de Marx sobre Feuerbach: “filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas o que importa é transformá-lo” (Marx, 1982).

3.2 Filosofia e paradoxos

A pretexto de entender como o mundo verdadeiramente é, a filosofia forja novas formas de ver o mundo, que alteram nossas percepções e, consequentemente, nossas formas de agir. Essa vocação prática da filosofia, tão acentuada por Miro, faz com que ela seja uma atividade altamente contextual: não podemos filosofar senão a partir de nossa própria visão de mundo.

Nas Cidades Invisíveis, Marco Polo conta a Kublai Khan sobre várias cidades de seu vasto império, mas um dia o governante apontou que faltava falar de uma: Veneza, a cidade natal do célebre mercador. Marco sorriu e respondeu: “E de qual julgavas que eu te falava? […] Sempre que descrevo uma cidade digo qualquer coisa de Veneza. […]” (Calvino, 1990). E assim sempre fazemos nós, falando do mundo a partir de nossa mirada particular, composta pela interação de nossa personalidade com as diversas realidades que nos interpelaram ao longo da vida.

Eu nasci em um mundo sem internet. Eu cresci em uma sociedade em que telefones celulares eram pensados como algo tão distante quanto as viagens interestelares. Eu me tornei adulto imerso em relações sociais que se processavam sem WhatsApp, sem Instagram, sem Facebook, sem Tinder: sem nenhuma dessas plataformas de comunicação imediata nas quais operam muitas das interações sociais contemporâneas. Se eu tiver sorte, serei ainda testemunha das catástrofes ambientais decorrentes da mudança climática e dos abalos sísmicos que a inteligência artificial causará nos mercados de trabalho.

Com sorte, essas mesmas coisas serão vistas também por meu pai, que quando criança viajava a cavalo para passar férias na casa do meu bisavô, no interior da região norte do Brasil. Meu pai nasceu em 1951, quando os EUA tinham escolas segregadas (Brown v. Board of Education é de 1954), havia mais de 20 colônias europeias na África, as mulheres casadas no Brasil somente podiam exercer uma profissão com autorização prévia do marido (o Estatuto da Mulher Casada, que muda essa situação, é de 1962) e a homossexualidade era crime na Inglaterra (é de 1967 o Sex Offence Act, que legalizou a relações homossexuais praticadas entre maiores de 21 anos).

Foi nesse mundo tão diverso do nosso que a maioria dos atuais ministros do STF nasceu e foi educada. Juristas que foram socializados em um contexto social tão diversos, que desenvolveram valores e sensibilidades adequadas ao ambiente em que estavam inseridas há 50 anos, precisam julgar questões que muitas vezes desafiam esses valores e desbordam dos conceitos com os quais elas se acostumaram a observar a realidade.

Esse vertiginoso ritmo de mudanças faz com que, muitas vezes, a sensibilidade de uma pessoa guarde bastante distância com relação às percepções típicas de uma geração mais antiga (ou mais nova). Essas diferenças nos interessam porque a filosofia se desenvolve, a cada momento, discutindo os limites das percepções sociais hegemônicas.

A filosofia é útil quando nos desafia, especialmente quando explora as tensões internas que existem nas nossas visões de mundo. Cada um de nós tem uma sensibilidade construída a partir de fatores heterogêneos, que não formam um sistema unificado, e sim um mosaico repleto de incongruências que nos passam despercebidas porque cada peça do mosaico nos é familiar. O estudo da filosofia tende a nos tornar mais conscientes desses elementos paradoxais, a perceber que existem fraturas em nossos modelos explicativos, que os conceitos que usamos são vagos, que nossa indignação moral é seletiva, que acreditamos em fatos distorcidos e que todo mundo se acha mais justo e mais objetivo do que se é.

Essas incongruências não são um objeto exclusivo da filosofia: tratam delas os artistas, os psicólogos, os religiosos, cada um a seu modo. Os filósofos normalmente lidam com essas questões a partir de uma análise dos conceitos: observamos os repertórios conceituais que recebemos das gerações anteriores (a tradição, no sentido mais literal daquilo que é transmitido) e avaliamos em que medida esses modelos explicativos são adequados ao contexto atual.

Ocorre que esses critérios de análise são muito díspares: cada perspectiva filosófica tem seus padrões e eles não são compatíveis entre si. Apesar de toda essa disparidade, ou melhor, justamente por causa de toda essa disparidade, é importante que cada um de vocês identifique os modelos explicativos que você tende a usar, e que se torne conscientes das potencialidades e dos limites desses repertórios conceituais.

O exercício dessa reflexividade é a própria filosofia, que segue colocando em dúvida as verdades que nos são mais caras. Não se trata de uma atividade monopolizada pelos escritores de livros de filosofia, nem pelos professores de filosofia e, menos ainda, pelos bacharéis em filosofia. Não são os linguistas que produzem a língua e, tal como os idiomas são fruto da ação coordenada de todos os falantes, a filosofia é fruto do diálogo de todas as pessoas que estão envolvidas nesse tipo de reflexão, que tem caráter transformador sobre as pretensas verdades que constituem o senso comum.

4. A potencial atualidade da filosofia

4.1 A modernidade

Será que o discurso filosófico é capaz de oferecer contribuições relevantes para a definição coletiva acerca da manutenção, transformação ou rejeição das categorias linguísticas a partir das quais construímos nossos universos simbólicos?

Nos últimos séculos, consolidou-se a ideia de que as escolhas políticas e individuais deveriam ser pautadas por um conhecimento objetivo e rigoroso dos fatos, que não nos é dado pela filosofia, e sim pela ciência. Em um ambiente polarizado, como aquele em que vivemos hoje, a filosofia tende a ser percebida como irrelevante, visto que o questionamento das verdades que deveriam ser respeitadas é entendido como simultaneamente subversivo e inútil. Subversivo porque faz perguntas que deveriam ter sido silenciadas, mas inútil porque as pessoas são pouco propensas a modificar sua posição mediante um exercício reflexivo.

Neste período pós-moderno, tornou-se lugar-comum apontar os limites das crenças sociais dos nossos adversários: de um lado ou de outro do espectro político, as pessoas afirmam que seus opositores vivem em uma caverna, incapazes que são de enxergar a verdadeira realidade das coisas. Todavia, em vez de oferecer um caminho reflexivo e dialógico que possa esclarecer as percepções equivocadas, esse diagnóstico conduz a uma desqualificação dos opositores, o que justifica a utilização de estratégias de imposição violenta dos valores que eles são incapazes de reconhecer de forma autônoma.

Esta postura missionária se aproxima da sensibilidade que Tomás de Aquino demonstra na Summa contra Gentiles, na qual buscou demonstrar que certos elementos do cristianismo poderiam ser justificados diretamente pela razão, sem a necessidade de argumentos baseados na revelação bíblica (Davies, 2016). Por esse motivo, judeus, muçulmanos e outros povos de cultura não cristã incorreriam objetivamente em erro ao não reconhecerem as verdades cristãs demonstráveis por meio da razão natural, que todos os seres humanos compartilham.

Uma vez que os povos não-europeus se mostravam incapazes de reconhecer autonomamente as verdades objetivas e os valores calcados na racionalidade universal dos europeus, era legítimo que os colonizadores atuassem como tutores dessas populações incultas, que dependiam de uma condução adequada para que adotassem as formas civilizadas de organização social, política e moral. Nos embates tipicamente modernos, a crítica das posições tradicionais era realizada por meio de uma postura iluminista, que pressupunha a existência de uma verdade objetiva para além das crenças tradicionais, que poderia ser alcançada por meio do exercício de uma reflexão racional. A modernidade europeia, baseada na ideia de que as estruturas sociais desenvolvidas na Europa eram decorrências naturais da racionalidade humana, tinha como desenvolvimento previsível um movimento colonial por meio do qual essas verdades fossem impostas legitimamente a outras populações, visto que a colonização era percebida (pelos colonizadores, evidentemente) como um movimento civilizatório e emancipador.

4.2 Filosofia em tempos de polarização política

No final do século XIX, filósofos como Nietzsche se deram conta que os filósofos modernos apontavam a historicidade das perspectivas tradicionais, sem se dar conta da historicidade de seus próprios conceitos (Nietzsche, 2006). No início do século XX, essa radicalizada consciência histórica se desdobrou no reconhecimento por Hans Kelsen de que tal embate deveria ser percebido como uma competição entre diversas versões do jusnaturalismo, defendidas por pessoas plenamente convencida da validade objetiva de seus valores religiosos, liberais ou socialistas (Kelsen, 1992).

O relativismo axiológico de Kelsen foi mal-recebido tanto à esquerda como à direita. Na linguagem coloquial contemporânea, o neopositivismo kelseniano poderia ser percebido como uma ideologia de “isentões”, que se negavam a se alinhar com algum dos polos discursivos da época. Em meados do século XX, o que o senso comum exigia dos juristas não era o reconhecimento crítico de que todo sistema de governo implica a imposição violenta de certos valores, mas o comprometimento com a tese de que certos valores deveriam ser percebidos como objetivamente corretos, o que justificaria a sua imposição pelo Estado, inclusive por meio de decisões judiciais.

No ideário do constitucionalismo liberal, o século XX vivenciou uma ampliação do rol dos direitos fundamentais (igualdade racial, igualdade de gênero, liberdade de orientação sexual, direitos ambientais, etc.), que foram lidos em uma perspectiva jusnaturalista: esses direitos não são invocados como decorrências históricas de uma transformação social, mas como avanços no reconhecimento de uma natureza humana eterna e imutável, mas que não é totalmente reconhecida pelo senso comum.

No contexto missionário da modernidade, toda teoria dialógica soa como um simulacro, pois trata-se de um diálogo cujo resultado legítimo somente pode conduzir à imposição do verdadeiro bem. Assim como o colonialismo e a colonialidade (Quijano, 2011) não são descaminhos de uma modernidade distorcida, mas realizações do projeto político moderno, a polarização contemporânea é o resultado previsível do avanço de modelos políticos comprometidos com a imposição de um determinado sistema de valores, operação que somente pode ser feita pelo embate, e não pelo diálogo.

A convicção dos liberais sobre os seus valores não é menor do que a convicção conservadora acerca de seu ideário e este é um tipo de conflito que não aponta para uma solução pacífica, visto que os dois lados são movidos por uma mentalidade missionária, pouco disponível ao diálogo com as diferenças. A grande certeza que cada um de nós tem acerca do caráter objetivo de seus valores fundamentais faz com que poucos estejam abertos a rediscuti-los.

Quando a diferença pode ser simplesmente cancelada das ágoras virtuais contemporâneas, que sentido existe em retomar a antiga tradição filosófica do diálogo e da argumentação, como formas de lidar com as questões humanas mais controvertidas? Quando podemos votar nos candidatos com os quais nos identificamos e que mobilizam nossos afetos, que sentido existe em discutir publicamente as políticas públicas? Nossa forma política é uma ritualização da guerra, que possibilita a imposição dos valores majoritários a uma minoria que aspira se converter em maioria, no contexto de novas eleições.

O conflito ritualizado me parece efetivamente melhor do que uma guerra conflagrada, como a que acontece hoje no Iêmen, na Síria e na Ucrânia. Mas talvez devamos ouvir com mais cuidado as advertências de Hobbes, para quem esse tipo de ajuste ritualizado manteria vivas tensões sociais que fatalmente nos conduziriam a uma guerra civil (Hobbes, 2014). Se a terapêutica hobbesiana do governo soberano nos parece um pesadelo, devemos ser sensíveis para o fato de que um governo poliárquico (Dahl, 2005) é um ajuste muito instável e que precisamos de muito cuidado e sensibilidade para evitar que as divergências insolúveis não nos conduzam a uma imposição autoritária do bem.

No contexto atual de polarização e fechamento em bolhas, perdem atratividade as perspectivas teóricas que descrevem a sociedade em termos de tomadas de decisão racionalmente informadas por um discurso livre, e ganham espaço teorias agonísticas, que tratam das interações sociais em termos de poder, de imposição e de conquista. No lugar do universalismo iluminista, vemos uma série de neotribalismos (Maffesoli, 1996), que desafiam nossa capacidade de estabelecer uma sociedade capaz de articular as diferenças existentes entre seus vários grupos.

4.3 Filosofia e crítica

Quando a questão da verdade parece definida por critérios de identidade política, que lugar pode haver para a filosofia? O mesmo velho lugar, que ela tem ocupado desde os gregos: um espaço em que cada indivíduo pode articular dúvidas sobre as crenças sagradas de uma sociedade. As primeiras sociedades não tinham abertura para essa dimensão autocrítica, em que os elementos sagrados pudessem ser tematizados diretamente, em termos argumentativos. Com relação aos valores sociais fundamentais, o que se espera dos cidadãos é o respeito e a reverência, motivo pelo qual a filosofia sempre foi percebida como uma forma de impostura.

A filosofia sempre se coloca como um exercício crítico acerca dos conceitos dominantes em uma sociedade, no sentido de contribuir para definir quais são as concepções que devemos manter e reforçar, e quais são aquelas que compõem a nossa cultura, mas que deveriam ser abandonadas. Mas qual é a utilidade de realizar esse tipo de exercício, que viola o princípio básico de que, em time que está ganhando, não se mexe. Parece conveniente e democrático reconhecer que uma ideia que conquistou assentimento generalizado deve ser respeitada, seja porque ela faz parte de uma tradição venerável (para os conservadores), seja porque ela é a expressão majoritária de uma coletividade (para os liberais).

Por que deveríamos permitir que sejam colocados em xeque os valores que nos são mais caros? Para uns, as diferenças naturais entre homens e mulheres e os valores religiosos. Para outros, a igualdade de gênero e a liberdade de orientação sexual. Para outros, ainda, a distribuição de renda e a garantia de patamares mínimos de acesso à saúde, à moradia e à educação. O problema é que desejamos coisas muito estranhas ao esperar que sejam respeitados simultaneamente valores tão díspares e conflitantes. A solução moderna sempre foi empurrar essa diversidade radical para debaixo do tapete, por meio da fixação de um certo conjunto de pautas políticas que seriam objetivamente corretos e, portanto, politicamente imponíveis. Somente é possível a integração das diferenças conciliáveis: é permitido ser católico ou protestante, desde que todos professem um monoteísmo de origem judaica; é permitido ter ideias exóticas, desde que elas sejam mantidas na órbita privada.

Em suma, é permitido questionar a tradição, mas não ao ponto de rompê-la. A experiência sugere que a forma mais eficiente de atuação individual ou coletiva é avaliar os exemplos de sucesso e tentar mimetizar o comportamento dos indivíduos ou coletividades que se destacam. Seguir a tradição é uma forma de aprender com os erros dos outros, o que de fato parece uma estratégia muito razoável.

De fato, as estratégias de imitação são vitais para que certos traços culturais adaptativos permaneçam como parte de uma cultura. A mentalidade conservadora da maioria das pessoas parece bem alinhada com essa necessidade de produzir coletividades harmônicas, guiadas por culturas claras e estáveis. Porém, vivemos em sociedades dinâmicas, imersas em contextos complexos, cujas constantes alterações tendem a comprometer a efetividade das abordagens consolidadas e dos saberes do senso comum.

Inclusive, temos dúvidas cada vez mais severas acerca da ideia de que as sociedades poderiam ser estabilizadas pela realização de eleições periódicas, em que a expectativa de potencial sucesso viabilizasse que fosse estrategicamente melhor para as várias facções se submeter à guerra ritualizada pelo sufrágio. O recesso democrático que muitos países têm vivido, inclusive o nosso, sugere que alguns grupos sociais entendem que têm mais chances de sucesso político por meio de uma escalada autoritária do que por meio de uma estratégia institucional. Quando temos dúvidas acerca da solidez de elementos tão básicos de nossas organizações sociais, amplia-se a relevância do exercício de reflexão crítica sobre nossas formas de enxergar e avaliar o mundo, que chamamos tipicamente de filosofia.

Referências