Introdução ao livro Filosofia, Direito e Linguagem

Este livro corresponde à primeira parte dos meus cursos de Filosofia Política e Filosofia do Direito, disciplinas que tenho ministrado na UnB ao longo dos últimos anos (Costa, 2021). A obra é composta por seis ensaios que podem ser lidos de forma independente, mas que são apresentados em uma ordem que considero pedagogicamente adequada a uma leitura sequencial. Estes textos têm por objetivo apresentar aos leitores as características do discurso filosófico, bem como avaliar sua potencial relevância no contexto da sociedade contemporânea.

O primeiro ensaio, intitulado O que é a filosofia?, apresenta uma definição de filosofia que confronta as descrições que a caracterizam como um conhecimento acerca das essências naturais ou das estruturas atemporais da sociabilidade humana. Desenvolvendo uma intuição de Wittgenstein (1922), afirmo que o direito não deve ser considerado um saber, mas uma atividade que produz determinados tipos de discursos: análises reflexivas a propósito dos repertórios categoriais que estruturam nossos universos simbólicos.

O segundo texto, Os labirintos da linguagem, examina as relações entre linguagem e filosofia. Este ensaio serve como marco teórico da obra, que adota uma perspectiva linguística: a filosofia ela não tem por objeto fenômenos empíricos nem entidades metafísicas, mas as construções linguísticas formuladas por uma cultura. Para melhor compreender as relações entre as palavras e as coisas, este capítulo apresenta aos leitores uma cartografia mínima para que eles possam percorrer os labirintos linguísticos em que estamos encerrados.

Nesse ensaio, ressalto que a filosofia não é um caminho rumo ao desvelamento do ser nem uma via de acesso privilegiado às verdades íntimas do mundo. Os discursos filosóficos não têm por objeto uma ordem natural imanente à realidade, mas os sistemas simbólicos pelos quais as culturas explicam os fenômenos que observamos do mundo. Portanto, a filosofia é uma linguagem que fala de outras linguagens, inclusive dela própria. O texto analisa as implicações desta situação, que implica a emergência inevitável de uma série de paradoxos, que precisamos administrar.

O terceiro ensaio, O discurso e as coisas, faz uma introdução básica à filosofia da linguagem, com foco nas contribuições de Gottlob Frege. As abordagens analíticas contribuíram sobremaneira para a nossa compreensão dos modos como a linguagem humana opera e para a percepção do que significa considerar que alguns enunciados são verdadeiros. Este texto analisa as potencialidades e limites da filosofia analítica e desenvolve o argumento de que, frente à inevitabilidade dos paradoxos que emergem de nossas categorias linguísticas, não devemos abandonar a reflexão filosófica, mas construir uma abordagem reflexiva, que nos permita transitar com mais desenvoltura dentro dos labirintos da linguagem.

O quarto texto, Filosofia e sociedade, analisa o papel da filosofia nos processos de mutação social. Sustento que a atividade dos filósofos tem uma grande importância na sobrevivência a longo prazo das sociedades porque os discursos filosóficos incrementam a capacidade adaptativa das estruturas sociais. Toda organização social precisa se transformar para enfrentar as mudanças que ocorrem dentro delas e também nos contextos nos quais elas estão imersas. Proponho uma descrição da filosofia que a aproxima mais da política que da ciência, uma vez que as narrativas filosóficas, tal como os discursos políticos, participam da definição do ritmo adaptativo das organizações sociais.

O quinto ensaio, intitulado O mal-estar da contemporaneidade, lida especificamente com os desafios dos discursos filosóficos contemporâneos frente à constatação de que a filosofia não ocupa um lugar de centralidade na cultura atual. Contudo, ressalto que ainda existe espaço para as reflexões propriamente filosóficas, que tematizam reflexivamente o significado e o alcance dos modelos que construímos para explicar a realidade.

Na medida em que as perspectivas científicas se tornaram cada vez mais importantes, as sociedades viveram um processo que Max Weber designou por “desencantamento do mundo” (2001, p. 83). As ciências produzem explicações nas quais não há lugar para vários dos elementos que povoavam os universos simbólicos humanos, como deuses, almas e paraíso. A cientifização das narrativas culturais implica um influxo historicista e relativista que conduziu à contestação de diversos valores tradicionalmente considerados como naturais. Em vários países, é perceptível que está em curso uma reação a esse movimento.

Existe uma ressurgência de discursos que defendem um reencantamento tradicionalista e conservador das sociedades contemporâneas, especialmente ligados às perspectivas políticas de extrema-direita. Ao longo da modernidade, houve uma constante tentativa de equilibrar o naturalismo dos cientistas e o essencialismo dos filósofos e teólogos, estimulando o desenvolvimento de universos simbólicos híbridos, plenos de contradições e paradoxos.

A modernidade europeia somente adotou parcialmente as abordagens de caráter científico, incompatíveis com o cognitivismo moral das subjetividades modernas. A crítica dos empiristas e dos positivistas não dissolveu a esperança moderna de que uma análise adequada dos fenômenos pudesse conduzir à identificação de valores objetivos na ordem natural das coisas. As narrativas modernas adotaram uma mirada historicista sobre a política, pois era necessário justificar a contestação de um Antigo Regime fundado pelos costumes tradicionais. Por outro lado, elas afirmaram um essencialismo filosófico que caracterizava certas estruturas sociais como naturais, o que era indispensável para excluir, da autoridade governamental, a possibilidade de modificá-las.

Previsivelmente, os pensadores cristãos da modernidade europeia “descobriram” que os valores considerados fundamentais por suas culturas constituíam “direitos naturais” universais e eternos. Essa naturalização engendrou uma pretensão de universalidade da cultura europeia: seu monoteísmo, seus saberes científicos, suas formas de governo, sua filosofia. A pretensa universalidade desses elementos serviu como justificação “racional” da imposição violenta de uma dominação colonial (e pós-colonial) de outras culturas.

O texto ressalta que a estabilidade de uma ideologia tão paradoxal repousa sobre a relativa homogeneidade cultural das sociedades europeias, em que os grupos rivais eram igualmente cristãos, brancos e conservadores. Esse fundamento débil não sobreviveu às transformações sociais do século XX, que implicaram uma complexificação das sociedades. A emergência de sociedades cada vez mais plurais desafiou o projeto moderno de promover um compatibilismo naturalizante entre ciência e tradição. Com efeito, mostrou-se impossível a estabilização de sociedades industriais complexas a partir da referência mitológica a um conjunto de valores universais compartilhados por todos os seus membros. O quinto ensaio explora o modo como as tensões sociais contemporâneas exigem o desenvolvimento de um discurso filosófico mais aberto às diferenças que integram uma mesma comunidade (Milovic, 2004).

O sexto e último ensaio, Por que estudar filosofia hoje?, tem um título que dialoga com a obra de 1984, em que Roberto Lyra Filho buscou responder à pergunta “Por que estudar direito hoje?”. Naquele momento, Lyra se questionava do sentido de estudar direito em um ambiente autoritário, em que “a pseudociência dogmática do Direito se isolou numa redoma de servilismo político e defasagem técnica” (1993).

Como seria possível, numa situação ainda pouco propícia, de obstruções institucionais e violência repressiva, – atuar, nada obstante, com vista à transformação do mundo, sob a égide libertadora do autêntico e bom Direito? (Lyra Filho, 1993)

A resposta de Lyra Filho sugeria que, no contexto autoritário, o estudo do direito precisava ser crítico e que não poderia se limitar a uma interpretação das normas estatais, visto que “os direitos humanos não se esgotam nas normas vigentes” e que era preciso determinar os “limites jurídicos da própria insurreição legítima” (1993). Lyra Filho morreu em 1986, antes da publicação da Constituição de 1988, cujo caráter democrático estimulou uma mudança no discurso dos juristas críticos. Nesse novo contexto institucional, os juristas mais ligados aos “direitos humanos” abandonaram a crítica do direito oficial a partir de parâmetros transcendentais de validade. No lugar dessa abordagem “filosófica”, eles concentraram seus esforços na construção de uma hermenêutica constitucional capaz de concretizar juridicamente as promessas políticas da nova Carta Constitucional.

Esse “giro metodológico” é típico de sociedades em que existe uma convergência suficiente entre a aplicação dogmática do direito e as expectativas sociais de justiça. A mobilização de uma “crítica do direito” é mais exigente, em termos políticos e argumentativos, que uma “aplicação crítica do direito”. Esta segunda estratégia permite substituir um argumento filosófico fundado no espírito do direito, que objetiva derrogar leis injustas, por um argumento interpretativo, que se limita a exigir a harmonização das leis com os princípios constitucionais (Rouvière, 2023). Como a cultura jurídica tipicamente privilegia os argumentos que fazem referência aos textos legislativos (Rouvière, 2023), não causa espanto que os juristas brasileiros tenham adotado uma perspectiva metodológica e interpretativa, explicitamente voltada a desvelar o sentido profundo do direito.

As crenças dos juristas de 1984 são diferentes daquelas que impregnam o senso comum dos juristas de hoje. Contudo, permanece intocado o grau de convicção que eles depositam em suas novas crenças, tais como:

  • a legitimidade da constituição e do poder constituinte;
  • a existência de uma interpretação constitucional objetivamente correta;
  • a inevitabilidade do controle judicial de constitucionalidade para a manutenção da democracia;
  • a possibilidade de uma aplicação normativa simultaneamente teleológica e racional.

Nesse novo contexto, a distinção entre direito público e privado praticamente desapareceu, uma vez que todos os juristas devem interpretar o direito dando prevalência às regras constitucionais. Por outro lado, a ideia de sistema tornou-se central e o controle de constitucionalidade tornou-se a principal estratégia para a produção de uma ordem jurídica coerente com os princípios fundamentais. Toda aplicação normativa deve harmonizar os sentidos dos textos normativos com os princípios constitucionais, inclusive os implícitos, tal como o princípio da proporcionalidade.

Tal função harmonizadora é menos central em outras culturas jurídicas. No continente europeu, por exemplo, existe uma tendência a produzir discursos jurídicos mais respeitosos face à autoridade dos legisladores. Todavia, a prática jurisdicional dos tribunais da Comunidade Europeia envolve a necessidade de harmonizar diversas ordens jurídicas nacionais em um mesmo sistema. Esse desafio exige o desenvolvimento de abordagens que conferem um papel mais importante à interpretação criativa dos princípios, pois eles podem servir como parâmetros que orientam a necessária harmonização dos diferentes direitos em uma ordem comunitária unificada. Foi um desafio hermenêutico similar, embora num contexto político diverso, que estimulou a cristalização de um senso comum neoconstitucionalista no Brasil.

Parece evidente para a cultura jurídica brasileira que o papel legítimo dos juristas é o de elaborar interpretações normativas que concretizem o verdadeiro sentido da constituição. Nesse contexto, parece restar pouco espaço para uma reflexão filosófica sobre o direito: como os juristas são muito seguros da capacidade de seu repertório metodológico para a realização das funções sociais que eles se atribuem, eles não têm muito interesse em uma filosofia que tende a contestar suas crenças. Porém, cada vez que uma ideia se afigura incontestável, cresce a importância da filosofia, pois ela é um discurso que diagnostica nossas certezas e as coloca à prova.

Quando se torna socialmente aceitável que os juízes se apresentem como parte de uma vanguarda iluminista (Barroso, 2018) ou como especialistas politicamente neutros que operam uma metodologia autônoma (Bergel, 2001), devemos nos lembrar da advertência de Christian Atias no sentido de que, sem uma reflexão filosófica, o jurista pode desempenhar uma função social que ninguém deseja para si próprio: o papel de um “intelectual dos poderes de opressão” (Atias, 2009).

Referências