1. A função pedagógica das teorias

O curso de direito tem um caráter técnico, voltado a formar profissionais hábeis para realizar atividades práticas especializadas (Tholozan, 2021), tais como redigir petições, fazer sustentações orais e emitir pareceres. Nesse aspecto, ele se parece com os cursos de medicina, de música e de engenharia, que também objetivam educar pessoas proficientes na realização de ofícios cuja prática exige a combinação de um conhecimento denso (aprimorado por meio vários anos de estudo teórico) e de habilidades complexas (desenvolvidas por meio de vários anos de treino prático).

Tais saberes são chamados de “ciências aplicadas”, para diferenciá-los dos cursos de “ciências puras”, que formam pesquisadores cujo objetivo é a produção de novos conhecimentos, e não o exercício de atividades técnicas. Biólogos, químicos, antropólogos e cientistas políticos são educados por meio do desenvolvimento de habilidades de pesquisa, que exigem conhecimentos de metodologia e estatística que muitas vezes não estão presentes nos currículos de cursos com viés mais técnico. E tanto os bacharelados de ciência pura como de ciências aplicadas se diferenciam das “licenciaturas”, que objetivam formar professores e, por isso, combinam o conhecimento aprofundado de uma determinada área com uma capacitação teórica e prática para a docência.

O caráter pragmático dos cursos de ciências aplicadas não significa que eles não ofereçam uma dimensão histórica, filosófica ou sociológica de seus objetos. O ensino superior atualmente praticado não se limita a desenvolver habilidades práticas, pois é impossível exercer profissões complexas sem um domínio teórico abrangente. Um médico precisa conhecer sobre tipos de doenças, formas de diagnóstico e estratégias de tratamento, e todos esses saberes são teóricos: trata-se de conhecimentos adquiridos pelo estudo.

Os descaminhos do enfrentamento da pandemia de Covid-19 mostram os limites de uma formação médica baseada na transmissão do conhecimento cristalizado, pois vários foram os casos de profissionais de medicina que não se mostraram capazes de incorporar a suas práticas os resultados das pesquisas mais recentes. Quando o conservadorismo político é combinado com um conservadorismo clínico, calcado na reprodução das abordagens tradicionais e da valorização da experiência do médico, o profissional perde a capacidade de avaliar criticamente os resultados mais recentes das pesquisas médicas.

Um profissional que desconsidera pesquisas que contradizem suas intuições termina por se tornar incapaz de aprimorar suas práticas a partir de novas evidências. Por esse motivo, a formação universitária não pode se limitar a ensinar estudantes reproduzir certas práticas consolidadas: os profissionais de nível superior devem ser capacitados a aprimorar constantemente suas abordagens. Eles não precisam se tornar pesquisadores, cuja atividade é justamente a de produzir novos conhecimentos, mas é necessário que eles aprendam a difícil tarefa de avaliar a qualidade das pesquisas publicadas, para que sejam capazes de conduzir sua prática profissional a partir do conhecimento produzido pelas pesquisas mais sólidas e recentes.

Observe que também seria possível formar médicos com foco em procedimentos de imitação: os estudantes poderiam ser enviados aos hospitais, para observar a prática dos médicos mais experientes e, com isso, aprender os modos “corretos” de diagnosticar e tratar as enfermidades. Essa forma de ensino tem suas vantagens, pois ela é mais rápida e mais barata do que o ensino universitário que temos. Entretanto, esse tipo de abordagem gera resultados mais limitados: o aprendizado prático, por simples imitação de comportamentos, não consegue ensinar os motivos pelos quais o profissional experiente adotou determinadas providências.

O desenvolvimento das teorias se relaciona justamente com a produção de conhecimentos que possam ser ensinados e aprendidos de forma abstrata. Nosso cérebro é um ótimo instrumento de reconhecer padrões, mas ele somente chega a identificar padrões complexos por meio de séries muito longas de observação e de testagem das hipóteses interpretativas que projetamos. Por mais que tenhamos grande inteligência e capacidade de aprendizado, a velocidade em que podemos desenvolver conhecimentos a partir de nossas próprias observações é muito pequena. Nossa linguagem nos confere uma capacidade de ensino que acelera imensamente o ritmo de aprendizado e permite um desenvolvimento cultural cumulativo.

Eu não precisei ler todos os livros estudados por meus professores, pois eles foram capazes de fazer uma triagem das experiências cognitivas que eu precisaria ter para desenvolver os conhecimentos que eles alcançaram. Nossa capacidade cognitiva e nosso tempo no mundo são bastante limitados, e precisam ser geridos com cuidado. O papel de cada geração tem sido o de construir teorias generalizantes, que condensem o conhecimento desenvolvido em um sistema conceitual compreensível e coeso, que possa ser compreendido de forma eficiente. As teorias não são uma repetição do mundo, mas são modelos conceituais que descrevem os fatos, explicam suas causas e orientam nossas ações.

Teorias bem desenvolvidas são um requisito fundamental para o avanço de nossos conhecimentos sobre saúde, sobre buracos negros e sobre relações jurídicas. Isso não quer dizer que contemos hoje (nem que poderemos um dia contar) com teorias perfeitas, pois nossos modelos explicativos são sempre redutores e limitados. O que podemos fazer é trabalhar no desenvolvimento gradual de nossas abordagens teóricas, o que se faz por meio de uma constante avaliação dos méritos e dos defeitos das abordagens disponíveis, reflexão esta que nos faz alterar constantemente os quadros teóricos que orientam nossas ações.

Uma das principais formas de desenvolvimento ocorre quando entendemos que fenômenos que pareciam semelhantes devem ser tratados de modo diverso. No século XIX, por exemplo, contratação de trabalhos se dava por meio contratos civis de prestação de serviço, sendo que os desenvolvimentos da dogmática jurídica gradualmente diferenciaram deste gênero os contratos de trabalho, que deveriam ter um tratamento diferenciado. A teoria jurídica do final do século XX expandiu o conceito de “sociedade de fato” para lidar com situações familiares que escapavam das regras estritas do casamento oficialmente previsto. Frente ao diagnóstico de que as colisões de direitos fundamentais não se deixavam resolver adequadamente pelas formas típicas de enfrentamento de antinomias, foi desenvolvida toda uma teoria constitucional voltada a enfrentar esse tipo de conflito normativo.

Os desenvolvimentos teóricos nos oferecem uma rede de categorias com base nas quais podemos diferenciar situações que parecem semelhantes (como a incapacidade relativa e a absoluta) ou aglutinar situações que se afiguram diversas perante o senso comum (como a união de pessoas de sexos diversos e de pessoas do mesmo sexo). A marca fundamental do conhecimento científico não é o oferecimento de certezas absolutas, mas o fato de que existe um processo tão intenso de revisão que podemos ter relativa segurança de que se trata do melhor conhecimento disponível para orientar nossas decisões jurídicas, políticas e morais.

Essa revisão constante também ocorre em campos teóricos que não são científicos (como a filosofia, a matemática e as engenharias), mas que são submetidos a uma análise crítica constante. A complexidade dos modelos teóricos desenvolvidos por algumas áreas (como o direito e a medicina) faz com que a observação direta do comportamento dos especialistas (por exemplo, assistir a todas as sessões de um tribunal ao longo de vários anos) não permite a devida compreensão da rede de conceitos, de valores e de finalidades que estrutura essa prática social. A observação de comportamentos complexos não evidencia, de modo imediato, as teorias que pautam esses comportamentos.

Nossa forma de enfrentar essa dificuldade é a criação de sistemas de ensino/aprendizagem, capazes de produzir novas teorias, de avaliar criticamente as concepções dominantes e as alternativas propostas, e de ensinar as pessoas a manejar os instrumentos teóricos que compõem os modelos mais sólidos que se conseguiu produzir. Esses modelos teóricos são constituídos por teorias descritivas (que descrevem os fatos sociais em sua riqueza), teorias explicativas (que busquem estabelecer relações de correlação e de causalidade) e teorias normativas (que orientam a prática de certas atividades, a partir dos cânones reconhecidos).

A vantagem desses modelos é que eles podem ser ensinados e aprendidos de forma abstrata e concentrada: não precisamos observar anos de julgamentos para compreender o modo como o judiciário utiliza a noção de competência ou de pertinência temática. Outras pessoas já fizeram isso antes de nós, já consolidaram esse saber na forma de textos e, com isso, permitiram que nós consigamos incorporar esses conhecimentos de uma forma mais rápida e eficiente a nossas práticas individuais.

Na prática judicial brasileira, a ideia de “pertinência temática” é importante para definir os limites em que um governador de estado pode mover o controle de constitucionalidade. Nessa mesma prática, também são importantes os argumentos que mobilizam a ideia de que o acesso à justiça deve ser amplo. Essa multiplicidade de argumentos relevantes permite uma rica discussão sobre a compatibilidade entre a pertinência temática, o acesso à justiça, o devido processo legal e os outros elementos que são reconhecidos como pontos relevantes por nossa cultura jurídica.

2. Teoria e filosofia

O tensionamento entre os diversos parâmetros juridicamente relevantes dá margem a um debate infinito, renovado a cada vez que incorporamos novos elementos a esse jogo linguístico, como novas distinções conceituais (como a diferenciação entre gênero e sexo), mudanças nos valores sociais (como a radicalização da igualdade entre homens e mulheres), alterações nos contextos políticos (que mudam os resultados projetados para uma determinada interpretação do direito).

Todo esse debate conceitual está ligado à teoria do direito, mas isso não significa que ele seja filosófico. Um debate astrológico pode discutir o sentido adequado de ascendente, um debate religioso pode discutir o conceito correto de pecado, um debate físico pode discutir o conceito de tempo. A filosofia não deve ser caracterizada apenas como uma discussão sobre os conceitos, pois ela envolve uma análise dos parâmetros que nós utilizamos nesses infinitos debates teóricos.

A filosofia funciona como uma espécie de teoria sobre as teorias. Os filósofos tipicamente não classificam os objetos (pessoas, direitos, etc.), mas classificam nossos modelos teóricos (realistas, idealistas, teleológicos, tradicionais, modernos, etc.), para compreender os modos como esses modelos se constituem, se entrelaçam, se tensionam. Por esse motivo, o passo inicial do estudo da filosofia do direito é o reconhecimento de que a experiência jurídica envolve a produção de modelos teóricos diversos e que a devida compreensão de nossas práticas precisa reconhecer quais são os modelos que utilizamos e identificar adequadamente a sua estrutura, suas incongruências e suas potencialidades.

Ocorre que as pessoas que produzem os modelos teóricos (cientistas, juristas, teólogos, etc.) muitas vezes realizam essa atividade convencidos de que eles não se dedicam a construir modelos, mas a descrever objetivamente a realidade. Quando uma pessoa está firmemente convencida de que suas crenças refletem objetivamente a realidade, ela costuma lidar mal com os discursos filosóficos, cujo passo inicial é o reconhecimento de que todo modelo conceitual (inclusive aqueles que nos são mais caros) não passa de uma construção provisória, limitada e historicamente condicionado.

A tradição grega realiza esse movimento de forma parcial: os filósofos gregos acentuaram o caráter pouco sólido dos modelos oferecidos pela tradição grega (as sombras na caverna), mas acreditaram que o exercício da razão poderia nos guiar para um conhecimento objetivo da verdade. Nesse sentido, a tradição filosófica dos gregos seria ela própria, pouco filosófica, na medida em que acentua o caráter arbitrário das crenças tradicionais, mas afirma a existência de um acesso racional a modelos objetivamente válidos. Isso faz com que os filósofos da tradição grega busquem a miragem de uma descrição objetiva do mundo, seja em seu aspecto físico, seja em seu aspecto valorativo (o bem, a justiça, o dever).

Na modernidade, houve uma distinção entre a ciência (busca de uma descrição objetiva do mundo físico, a partir de análises empíricas) e uma filosofia que continuou circunscrita ao programa de esclarecer as verdades últimas do mundo. Dos dois lados, partia-se da ideia de que existe uma ordem natural, que poderia ser compreendida por abordagens observacionais (com a ciência) e por abordagens racionais (com a filosofia).

A filosofia contemporânea nasce quando os filósofos passam a considerar a própria filosofia como um modelo teórico, abandonando a ideia de que seria possível (tanto na ciência como na filosofia) a construção de modelos que espelhassem perfeitamente a ordem natural. Durante séculos, os filósofos travaram seus debates com o objetivo de determinar qual seria o modelo teórico objetivamente correto, quais seriam as classificações que corresponderiam à essência das coisas. Após o giro linguístico, parece demasiadamente ingênua a ideia de que seria possível descobrir os modelos objetivos, as normas naturais, e os valores absolutos que tanto encantaram aqueles que escreveram notas de rodapé à obra de Platão.

Esta filosofia contemporânea, linguística e historicista, é a que acredito que pode despertar o interesse dos profissionais do direito. Creio que boa parte do estranhamento entre os juristas e a filosofia vem do fato de que muitos cursos de filosofia do direito se inserem na tradição platônica, que é a de buscar uma resposta racional para as nossas perguntas fundamentais: O que é o direito? Quando uma norma é válida? Quando uma autoridade política é legítima?

Nosso objetivo não é chegar a uma resposta a essas perguntas, mas é reconhecer que coexistem em nossa cultura múltiplas respostas, que devem ser compreendidas tanto em sua estrutura (como elas se organizam) como em suas implicações políticas (que instituições elas engendram). Não nos é dado descobrir qual é a verdadeira (porque essa é uma pergunta tão equivocada quanto tentar descobrir que sabor de sorvete é objetivamente mais saboroso), mas podemos aprender muito quando refletimos sobre os motivos pelos quais preferimos determinados modelos conceituais e valorativos.

Embora a filosofia não tenha por objeto nossas crenças pessoais (mas sobre certos modelos coletivamente desenvolvidos), o estudo da filosofia costuma ter uma relevância grande para que os estudantes compreendam sua própria individualidade, visto que esse tipo de reflexão tende a nos ajudar a compreender melhor nossas identificações, nossos valores e nossos engajamentos. Em especial, o estudo da filosofia nos ajuda a ver que muitas vezes nossas preferências pessoais nos levam a certas escolhas teóricas que não formam um sistema consistente. Somos historicistas que acreditam em um direito natural. Somos evolucionistas que creem em valores imutáveis. Usamos critérios muito diferentes para julgar a validade das normas e práticas sociais com as quais concordamos e aquelas contra as quais nos opomos.

Nossas crenças pessoais, forjadas por uma complexa interação de conceitos aprendidos e valores vivenciados, não formam um sistema e normalmente somos pouco conscientes desse fato. O estudo da filosofia do direito tende a ser um momento no qual essas incongruências são trazidas a um nível consciente, o que nos dá a oportunidade de criar narrativas que de alguma forma estruturam a compreensão que temos sobre nossas ideias e nossos comportamentos.

O gatilho típico dessas reflexões é o fato de que os seres humanos tendem a ser muito rigorosos com relação aos argumentos alheios e pouco rigorosos quanto à avaliação das próprias intuições. O estudo da filosofia nos permite avaliar, com bastante rigor, os modelos teóricos e conceituais desenvolvidos por outras culturas, por outras pessoas, em outros momentos, e tendemos a ser muito rigorosos com esses pensamentos dos outros. Quando fazemos esse exercício dentro de um grupo plural, temos uma peculiar oportunidade de nos reconhecer como outros de nossos colegas e professores, que criticam nossas crenças (especialmente daquelas arraigadas no senso comum) com o mesmo rigor que utilizamos para avaliar as crenças alheias.

Esse trânsito, em vários casos, permite que passemos a avaliar nossas crenças um pouco como se fôssemos um outro de nós mesmos. A aposta que guia este livro é a de que as dúvidas geradas pelos questionamentos aqui realizados podem aumentar o nível de rigor com que os leitores medem seus próprios pensamentos e valores e o nível de abertura que eles têm para dialogar com pessoas que adotam parâmetros diversos dos seus.

Evidentemente, não são todas as pessoas que realizam esse movimento reflexivo sobre a sua própria subjetividade, mas a minha experiência como professor de filosofia do direito indica que os estudantes de direito são normalmente pessoas curiosas, que gostam de ler e que tem interesse em construir uma narrativa consistente sobre suas práticas, que dê um sentido existencial a sua própria atividade.

Além disso, por maior que seja a diferença entre a sensibilidade dos juristas e dos filósofos, devemos ressaltar que existe uma grande convergência entre as práticas argumentativas realizadas por essas duas comunidades. Os estudiosos de filosofia tendem a analisar os discursos filosóficos a partir de uma abordagem bastante semelhante àquela que é usada pelos estudiosos de direito: em ambos os casos, o objeto de análise são vários posicionamentos, várias abordagens, que é preciso analisar e compreender. Essa proximidade de abordagens faz com que o conhecimento do direito facilite a compreensão dos debates filosóficos, e vice-versa.

Os filósofos falam da justiça e do bem, enquanto os juristas falam da responsabilidade civil e do princípio da razoabilidade. Por mais distantes que esses objetos possam parecer, todos eles são construções interpretativas desenvolvidos em contextos sociais específicos, que buscam tornar compreensíveis certas práticas sociais.

A ideia de sistema é muito importante para ambas as disciplinas, e esta centralidade faz com que o pensamento teórico dos juristas seja muito próximo do pensamento teórico dos filósofos: ambas as abordagens se concentram no desenvolvimento de habilidades analíticas, capazes de compreender e avaliar diversas posições sobre o mesmo tema.

Em ambos os casos, o raciocínio típico é dedutivo: não se trata de uma tentativa de produzir descrições capazes de articular devidamente as observações empíricas sobre uma multiplicidade de fatos, mas de encontrar teorias que sejam consistentes com as nossas visões de mundo, com nossos valores, com as percepções sociais dominantes.

Tanto os juristas como os filósofos são profissionais capacitados em realizar a análise de posicionamentos teóricos, com vistas a apreciar a sua consistência e a produzir discursos retóricos capazes de convencer seus pares acerca das suas conclusões.

É certo que o aspecto pragmático do direito faz com que as questões analisadas sejam mais concretas e que os estudantes de direito precisem desenvolver uma capacidade técnica que é ausente nos cursos de filosofia, e que essa é uma diferença fundamental. Inobstante, existe uma grande afinidade entre os raciocínios filosóficos e o modo jurídico de comparar autores, de analisar elementos de uma teoria, de traçar a história dos conceitos e de buscar construções coerentes com certos princípios fundamentais.

Esse caráter dedutivo e sistemático faz com que o Direito e a Filosofia sejam muito diferentes dos cursos propriamente científicos, que forma profissionais especializados em uma atividade peculiar: a pesquisa empírica. Biologia, Antropologia e Ciência Política são cursos que oferecem aos estudantes um panorama sobre o conhecimento de cada uma dessas áreas, mas que têm especial foco no fornecimento do instrumental necessário para a realização de pesquisa científica que faça avançar esses conhecimentos. Essa pesquisa empírica, que é o núcleo das atividades em boa parte da universidade, desempenha um papel de pouco relevo tanto na filosofia como no direito, pois ambas essas abordagens se organizam a partir de elementos de análise e interpretação, com foco em discursos socialmente produzidos, e não em fatos.

Na medida em que a filosofia nos oferece mapas conceituais adequados para cartografar as múltiplas teorias e para avaliar a sua consistência, o desenvolvimento de uma reflexividade filosófica pode permitir aos juristas que compreendam melhor a sua própria prática e, também, que avaliem a consistência dos modelos teóricos que a orientam.

3. A irrelevância atual da filosofia metafísica

Apesar de defender a importância do ensino de filosofia do direito (que outra coisa esperar de um professor dessa matéria?), creio que certas abordagens filosóficas deveriam estar na estante de antiguidades que estudamos apenas por interesse histórico, como a mitologia grega, a filosofia natural e a astrologia. Ninguém estuda a física aristotélica para aprender algo sobre o mundo, embora possa ser interessante para entender como pensavam os gregos. O estudo das mitologias antigas pode ser muito interessante para pensarmos no modo como os humanos constroem suas subjetividades.

O teólogo Schleiermacher fez uma distinção interessante quando indicou que os antigos estudavam os textos canônicos buscando compreender a verdade que eles portavam. Um católico tende a ler a Bíblia buscando encontrar verdades subjacentes ao texto, e não como uma expressão de certos autores. Mas é justamente assim que os modernos encaram os textos literários e mesmo históricos: como expressões de um autor. Interessa-nos entender o que o autor quis dizer, mas não supomos que a compreensão de Aristóteles, de Cícero, de Dante ou do Padre Vieira seja capaz de nos mostrar verdades sobre o mundo.

Estudar a filosofia antiga como uma forma de compreender os modos como os antigos percebiam o mundo é algo muito proveitoso, especialmente porque o estudo de culturas diversas nos ensina muito sobre a contingência da nossa própria cultura. No caso da filosofia, esse tipo de abordagem é essencial, pois somente a compreensão histórica de como os modelos explicativos se desenvolvem pode nos oferecer um horizonte adequado a que compreendamos os limites e as potencialidades das culturas em que estamos imersos.

Além disso, algumas das estruturas simbólicas com as quais construímos nossos modelos de compreensão são muito antigas. A nossa cultura atual não é um sistema unificado, mas um conjunto de elementos que herdamos de vários momentos históricos e que compõem um mosaico complexo.

Ainda é presente em nosso senso comum a antiquíssima ideia de que o mundo tem uma ordem natural, que não é evidente, mas que pode ser conhecida por meio da razão, da experiência ou da revelação. Temos grande apreço por parte de nossos valores tradicionais, enquanto outra parte nos parece de um preconceito obscurantista. A maioria das pessoas tem uma visão religiosa do mundo, admitindo a existência de entes sobrenaturais dotados de intencionalidade. Ao mesmo tempo, a maioria das pessoas está também disposta a reconhecer que a cultura tem uma dimensão histórica, que não apenas realiza uma ordem predefinida, mas cria novas estruturas. A radical consciência histórica da pós-modernidade, que admite a historicidade das próprias condições de verdade, coabita com pretensões de fundamentação objetiva da igualdade entre homens e mulheres e da vedação da escravidão.

Podemos enfrentar essa multiplicidade de fragmentos de várias formas. Podemos adotar a perspectiva metafísica, que enxerga nessa multiplicidade uma sobreposição de ilusões e simulacros, tendo em vista que existe por trás disso tudo uma ordem natural que pode ser conhecida racionalmente. Podemos adotar uma perspectiva tradicional, que entende que a verdadeira ordem está além da cognição humana, mas pode ser conhecida por certas revelações. Podemos adotar uma perspectiva positivista, que nega qualquer tipo de transcendência. Podemos misturar várias dessas posições, gerando modelos paradoxais e por isso mesmo aceitáveis por nossos valores paradoxais.

Essas abordagens todas coexistem, e creio que um curso de filosofia do direito deveria ressaltar a existência dessa multiplicidade de discursos e dos limites e potencialidades de cada um. Porém, boa parte das perspectivas filosóficas tentam indicar qual é o modelo correto, ou no mínimo contribuir para que as pessoas possam diferenciar a verdade do simulacro. A espalhada ideia de que a filosofia é um estudo capaz de nos mostrar os primeiros princípios fez com que os filósofos contemporâneos tenham reconhecido explicitamente a inutilidade da Filosofia.

Os neopositivistas, em geral, consideram aquilo que se chama tipicamente de filosofia não deve ser considerada uma busca de verdades complexas e profundas, mas um grande mal-entendido: uma busca incessante de tentar responder perguntas mal formuladas, por meio de categorias imprecisas, que não tem como nos levar a lugar algum. O ceticismo mais drástico quanto a essa filosofia clássica foi manifestado por Wittgenstein, o neopositivista arquetípico: sobre aquilo que não se pode falar cientificamente, deve-se ficar calado (Wittgenstein, 1995). Pode-se fazer poesia, claro, e todas as outras artes, mas não se deve confundir a linguagem expressiva das artes com a linguagem científica que fala do mundo com objetividade e clareza.

Nenhum filósofo influenciado pelo giro linguístico pode afirmar, como Miguel Reale, que o problema fundamental da filosofia é descobrir os valores. Reale propôs uma teoria tridimensional do direito, que deveria ser compreendido como uma certa combinação entre fatos, valores e normas. Mais especificamente, o direito seria uma articulação normativa entre fatos e valores, cabendo à sociologia o estudo do direito como fato, à filosofia o estudo do direito como valor, e à ciência jurídica o estudo do direito como norma (Reale, 2009). Essa é uma divisão que identifica a filosofia com a metafísica, algo que foi feito amplamente até o século XIX, mas que se tornou uma divisão inadequada no século XX, quando tantos filósofos se insurgiram contra o legado grego e apresentaram a filosofia com uma disciplina que tratava da linguagem, e não das coisas em si.

Confesso que, se eu entrasse em uma aula de filosofia de um professor que estivesse interessado em me mostrar os valores corretos, ou as metodologias adequadas para descobrir distinguir a verdade do simulacro, meu primeiro ímpeto seria o de trancar imediatamente a matéria. Estudar a filosofia como faziam os gregos, como um caminho para descobrir os princípios, é algo profundamente distante da consciência histórica da filosofia contemporânea. Assim, se alguma utilidade tem o estudo da filosofia, essa utilidade não está em uma retomada do ideal grego de busca da verdade, mas no esclarecimento da estrutura linguística de nossos universos simbólicos, e do modo como podemos articular categorias para conferir sentido à nossa experiência.

4. Filosofia e sensibilidade reflexiva

O caráter técnico dos cursos jurídicos costuma atrair pessoas com inclinações práticas, que demonstram interesse em aprender tudo o que é necessário para escrever petições iniciais, para fazer sustentações orais, para redigir pareceres e proferir sentenças. Aparentemente, nada é mais diverso de um estudante de direito do que um estudante de filosofia, que normalmente escolhe este curso por valorizar questões teóricas. Para essas pessoas, a filosofia muitas vezes é sentida como uma espécie curiosa de erudição: um conhecimento que tem importância simbólica, mas que não têm relevância na prática jurídica efetiva.

Reconhecemos intuitivamente que é preciso saber um pouco de filosofia porque os textos e as falas de juristas de prestígio, sejam eles magistrados ou advogados, dialogam com algumas referências de autores de filosofia. Toda pessoa que deseja se inserir nos discursos jurídicos precisa ser capaz de compreender referências a uma concepção platônica, a uma lógica cartesiana, ao imperativo categórico de Kant ou à norma fundamental de Kelsen.

Existe uma erudição mínima que possibilita aos juristas compreender as referências filosóficas contidas nas decisões judiciais. Felizmente, o discurso jurídico contemporâneo é menos rebuscado do que costumava ser, com uma valorização crescente da clareza, da simplicidade e da concisão. Além disso, cada vez mais o direito se reproduz por meio de referências a precedentes judiciais, o que torna dispensáveis as citações doutrinárias que eram inevitáveis na argumentação jurídica do século passado. Entretanto, nas decisões de casos difíceis, que envolvem construções argumentativas mais elaboradas, ou nos casos em que os juízes buscam modificar linhas jurisprudenciais estáveis, são comuns as referências doutrinárias e filosóficas, usadas como argumento retórico de autoridade (Rodriguez, 2013). O mínimo que se espera de um jurista é a capacidade passiva de compreender essas citações, mas espera-se de um jurista bem formado que tenha a capacidade ativa de produzir e de contestar argumentos desse tipo.

Inclusive, não é raro que as referências filosóficas sejam usadas de maneira inconsistente, por juristas que não as compreenderam bem, mas que se limitam a reproduzir alguns lugares-comuns. A capacidade de mostrar a fragilidade desse tipo de argumentação pode ter um peso retórico relevante em várias situações, pois uma referência filosófica incorreta pode gerar situações ridículas como quando promotores de justiça acusaram o ex-presidente Lula de praticar condutas que envergonhariam “Marx e Hegel”, em uma evidente confusão entre Hegel e Engels, que teve ampla repercussão nas redes sociais e na imprensa brasileira (Bedinelli, 2016). Embora esse fosse um argumento absolutamente secundário na petição, a tentativa frustrada de usar a erudição para construir uma figura retórica tornou-se nacionalmente conhecida como signo de uma falsa erudição.

Tais referências filosóficas funcionam repetidas vezes como marcadores de “capital cultural” (Bourdieu, 1979), pois reforçam o peso retórico dos argumentos e manifestam uma erudição que somente pode ser desenvolvida com longos estudos. Juristas de prestígio precisam ser capazes de manejar referências filosóficas (e não apenas compreendê-las), assim como também precisam se apropriar de uma série de outros elementos da cultura clássica e contemporânea: é preciso saber também um pouco de poesia, de literatura, de mitologia grega, de história. Inclusive, devem saber algo de sociologia para ligar Pierre Bourdieu à noção de capital cultural.

É nesse sentido de erudição mínima que o conhecimento filosófico foi incorporado, desde 2013, ao programa do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Desde então, 2 das 80 questões dessa prova são dedicadas a conteúdos de filosofia do direito, o que significa que acertá-las confere ao examinando 5% dos pontos necessários para a aprovação. Embora pareça pouco, trata-se de uma matéria com peso semelhante ao de várias outras disciplinas dogmáticas, já que a amplitude do programa impede que sejam alocadas muitas questões para cada ramo do direito. Inobstante, a possibilidade de cobrar apenas dois tópicos exige dos examinadores que fiquem circunscritos aos conceitos filosóficos mais conhecidos.

A prova tem seguido um padrão: logo após as questões sobre o estatuto da ordem, são feitas duas questões que trazem pequenos trechos de filósofos renomados e depois fazem uma pergunta sobre as suas concepções. Nos últimos anos, foram abordados trechos de Aristóteles, Bobbio, Dworkin, Hart, Ihering, Kant, Kelsen, Locke, Montesquieu, McCormick, Stuart Mill e Platão. A alternativa correta normalmente vem ao lado de uma alternativa plausível e de duas afirmações desconectadas do texto apresentado, o que mostra cuidado na elaboração dos itens, que têm um nível de dificuldade mediano e não se focam em um aprendizado puramente mnemônico.

São todas questões acerca de história da filosofia, que não medem a capacidade analítica e crítica dos candidatos, mas o seu conhecimento acerca de algumas das principais correntes filosóficas, especialmente o utilitarismo e o neopositivismo. Apesar dessa limitação, parece-me difícil fazer melhor em uma prova com a estrutura do Exame de Ordem e devemos reconhecer que essa abordagem é bem alinhada com o fato da maior parte do conteúdo de filosofia do direito é mesmo de história da filosofia.

Nesse contexto, são vários os estudantes que entendem que o estudo da filosofia é demasiadamente custoso para que valha a pena o benefício que ele oferece, especialmente aos alunos de graduação. Ou que somente vale a pena uma dedicação mínima a essa disciplina, tendo em vista que o que se exige dos operadores do direito é apenas um leve verniz filosófico, um conhecimento panorâmico das ideias dos poucos filósofos do direito que são normalmente conhecidos pela maioria dos juristas e que, por isso, podem ser referidos em peças jurídicas sem que o argumento soe pretensioso e podem ter suas cobradas no Exame de Ordem e em outras provas.

Entretanto, é preciso levar em conta que, se os juristas práticos podem se contentar com uma erudição filosófica mínima, um conhecimento razoável de filosofia do direito é indispensável para qualquer pessoa que tenha pretensão de ingressar na academia jurídica, como pesquisadores ou professores.

Dentro da academia, diversamente do que ocorre na prática judicial ou advocatícia, mesmo as questões dogmáticas precisam ser tratadas com densidade teórica. Diferente de uma sentença ou de um parecer, uma monografia é um trabalho que não pode ser apenas uma opinião pessoal, pois ela precisa esclarecer devidamente os seus pontos de partida e as perspectivas utilizadas, elementos que somente se tornam claros para quem desenvolveu uma reflexão filosófica.

Um dos pontos mais típicos da filosofia contemporânea é o reconhecimento de que não existem verdades universais e imutáveis a serem descobertas e que, portanto, toda visão de mundo adota uma determinada perspectiva. Sob que perspectiva você enxerga o direito? Quais são os pressupostos em que se assentam os conceitos que você usa? Quais são os pontos que você não pode comprovar, mas ainda assim continuam acreditando neles? De que maneira o seu modo de ver o mundo condiciona aquilo que você chama de realidade e, portanto, a sua maneira de interpretar as normas e de decidir questões jurídicas?

O modo como você responde a essas perguntas define o seu marco teórico, que é justamente a perspectiva a partir da qual se constrói um discurso acadêmico. Um curso contemporâneo de filosofia deve ser capaz de auxiliar cada estudante a identificar as linhas filosóficas com que têm mais afinidade, para que com isso você possa ter uma consciência mais reflexiva acerca dos elementos estruturam os seus discursos sobre o direito e que, com isso, definem o horizonte da sua prática.

Creio que a avaliação comum de que um estudo aprofundado de filosofia não vale a pena é verdadeira, quando o que se estuda é uma descrição panorâmica das tentativas clássicas de descobrir os princípios últimos, os valores absolutos e os conceitos objetivamente verdadeiros. A filosofia que segue o legado dos gregos me parece ter pouca utilidade prática nos dias de hoje, na medida em que ela se propõe a descrever um mundo objetivo, e não a compreender a estrutura e o sentido de nossas atividades reflexivas. Além disso, alcançar essa erudição mínima em filosofia não exige que os cursos ofereçam uma disciplina específica de “filosofia do direito”, pois esses conhecimentos básicos podem ser suficientemente abordados nas matérias introdutórias e nas notas de rodapé das disciplinas dogmáticas.

Se existe um sentido em uma disciplina dedicada à filosofia do direito, não é o de auxiliar os estudantes a conhecer a verdade, nem é o de fomentar um verniz erudito que eles costumam ter ao final de seus cursos. O que tem sentido, na contemporaneidade, é compreender as estruturas de nossos modelos teóricos, é entender os elementos linguísticos que organizam nossas práticas, é desenvolver uma sensibilidade reflexiva que possibilite que os estudantes se tornem conscientes dos modelos teóricos que eles usam e se tornem capazes de avaliar criticamente essas concepções.

Essa habilidade me parece vital porque o ofício dos juristas não é apenas o de produzir petições e sentenças, mas o de desenvolver argumentos que reinterpretam e redefinem as teorias da dogmática jurídica. Os juristas realizam uma atividade prática que é diretamente impactada por suas crenças teóricas e, por isso, eles precisam de uma sensibilidade reflexiva apurada. Isso faz com que o desenvolvimento de uma reflexão filosófica amadurecida ajude os juristas a compreender melhor a estrutura das teorias que eles manejam e redefinem em cada interpretação. Um jurista com uma consciência teórica desenvolvida é mais capaz de compreender sua própria atividade e de produzir discursos mais efetivos.

Por mais que a ideia de filosofia dominante no senso comum ainda seja a das filosofias que seguem o legado metafísico dos gregos, o que se mostra relevante para os dias de hoje é uma compreensão adequada da filosofia contemporânea, que lida com os desafios da atualidade. Os juristas podem simplesmente adotar as concepções filosóficas e metodológicas dominantes na cultura jurídica (e que Warat chamava de “senso comum teórico dos juristas”) (Warat, 1994), mas eles também podem fazer escolhas mais sofisticadas e conscientes acerca dos modelos teóricos que eles desejam utilizar.

O conhecimento filosófico, como uma teoria das teorias, é fundamental para que sejamos capazes de renovar a teoria do direito, construindo modelos explicativos e normativos que consigam organizar melhor as nossas práticas sociais. Essa não é uma tarefa fácil, pois as estruturas de nossa compreensão são complexas, nossos mapas conceituais são sobrepostos, nossos contatos com o mundo empírico são indiretos, os significados de cada termo são fugidios e as perspectivas são tão variadas que a melhor metáfora para a filosofia não é a de uma pirâmide, mas um labirinto (Castoriadis, 1992, p. 10).

Por tudo isso, convém reconhecer que o estudo da filosofia é menos a transmissão de um conjunto de conhecimentos do que um processo pelo qual analisamos as nossas certezas, em busca de compreender como se estruturam os nossos modelos de compreensão do mundo.

A filosofia pode ser um conjunto de discursos, mas aprendi com Luis Alberto Warat que a educação para a filosofia precisa ser um desenvolvimento da sensibilidade (Warat, 2000, 2004). O estudo da filosofia deveria nos tornar sensíveis ao modo como articulamos nossas explicações acerca do mundo: às categorias utilizadas, à densidade dos argumentos, às armadilhas retóricas, aos valores implícitos, ao modo insidioso como as nossas preferências ideológicas condicionam nossas avaliações. Seguindo a velha estratégia socrática, os filósofos tendem a começar suas análises por meio do que Derrida veio a chamar de desconstrução: não se trata de destruir, mas de compreender o modo como nossas crenças foram construídas, para que elas possam ser transformadas (Derrida, 2007).

A capacidade dos discursos filosóficos de promover essa transformação é limitada. Warat, por muitos anos, promoveu uma desconstrução dos discursos dogmáticos, denunciando os mitos entremeados nas teorias pseudocientíficas que organizam a interpretação do direito (Warat, 1979). Ele me disse que, em certo ponto, entendeu que os juristas têm uma habilidade retórica e linguística muito desenvolvida o que torna muito difícil acessar a sua sensibilidade por essa via, visto que eles são extremamente capazes de (re)construir narrativas que justifiquem suas visões de mundo. Quando aprendem novas teorias filosóficas, os juristas não alteram a sua sensibilidade, mas passam a justificar a sua forma de ver o mundo com os instrumentos que lhe foram dados pela nova linguagem. Lampedusianamente, mudam os discursos para que as estruturas permaneçam inalteradas.

Na busca de instrumentos mais eficazes para promover uma renovação nas práticas jurídicas, Warat explorou as conexões do direito com a psicanálise (Warat, 2000), do direito com a arte (Warat, 2004) e do potencial transformador da mediação (Warat, 2001). Entendo que ele buscou nessas várias estratégias uma forma de contribuir para a formação de juristas sensíveis, capazes de compreender os conflitos para além das lides e de contribuir para uma transformação produtiva das relações sociais envolvidas submetidas a um processo jurídico de solução de controvérsias. No seu último ciclo produtivo, que acompanhei de perto entre 2001 e 2008, Warat defendia que só a experiência nos modifica, e que a multiplicação de discursos sobre a experiência vivida tende a limitar o seu poder transformador.

A incorporação dessa ideia não precisa ser feita por uma passagem completa dos livros aos eventos, pois é possível construir os cursos de filosofia como experiências a serem vividas. Existem informações a serem transmitidas, basicamente sobre história da filosofia, mas a maneira como abordamos esse conhecimento pode representar uma experiência (trans)formadora. É preciso aprender sobre os filósofos e suas ideias contrapostas, sobre como as ideias são influenciadas por seus contextos históricos e políticos, mas creio que o curso de filosofia deve propiciar o desenvolvimento de uma sensibilidade para a dúvida e para as variadas formas de organizar um sistema simbólico que dê sentido a nossa experiência.

É preciso tratar de história da filosofia, abordar as várias teorias e seus conflitos, mas sempre com a consciência de que existe um grande risco de que esse tipo de estudo nos conduza a uma erudição vazia: um conhecimento acerca da filosofia que não estimula uma postura reflexiva. Como aponta Duncan Kennedy, o curso de direito pode ser lido como um processo voltado a acostumar os estudantes às hierarquias sociais do campo jurídico e ao modo de pensar dos juristas, que são reproduzidos de forma acrítica e adotados para viabilizar que os alunos sejam admitidos nos círculos jurídicos (Kennedy, 1998).

Para minimizar esse risco de transformar o ensino jurídico em uma domesticação das subjetividades, que Warat chamava de pinguinização (Sousa e Costa, 2021), é preciso estarmos atentos para evitar as armadilhas de um conhecimento mecânico, que acumule informações ao invés de conectá-las em uma rede: é o esforço hermenêutico para estabelecer ligações entre as informações novas as antigas, formando sistemas mais complexos de significação, que nos força a reinterpretar constantemente nossos próprios quadros conceituais.

Nossa aposta é a de que, quanto mais rico for o conjunto das novas informações, quanto maiores as necessidades de o estudante precisar de um esforço hermenêutico para estabelecer conexões significativas entre elas, maior a possibilidade de que cada um dos alunos possa utilizar os vários modelos filosóficos como uma espécie de espelho, no qual consiga ressignificar parte dos seus próprios conjuntos de crenças e de valores, de tal forma que a experiência deste curso seja (trans)formadora e não apenas informativa.

Referências