Nota do co-autor. O presente texto foi escrito originalmente por Miroslav Milovic como prefácio para o livro Sociedade e Diferença, escrito pelo Grupo de Pesquisa Pensamento Social e organizado pelos autores deste texto, em conjunto com Maia Sprandel e Wanderson Nascimento. Esta versão é uma adaptação do texto original (acessível aqui), feita por Alexandre Costa, para tornar o texto mais acessível a estudantes de direito, que tipicamente não têm o repertório de categorias filosóficas necessário para uma melhor compreensão dos argumentos desenvolvidos por Miroslav. Esses desenvolvimentos buscaram não alterar substancialmente a estrutura argumentativa, mas inserir novos elementos, que facilitassem a compreensão das reflexões do Miro, que permanecem absolutamente atuais, mesmo passados 15 anos da publicação original e frente a um contexto global imensamente diverso.
Para apresentar aqui o trabalho do nosso Grupo de Pesquisa Pensamento Social, o melhor caminho seria articular duas questões: do pensamento e do social. Parece-me que a filosofia kantiana poderia ser uma saída ilustrativa para as duas perspectivas. Entendo que a importância epocal da filosofia kantiana se encontra, primeiro, na radicalização da compreensão cartesiana da modernidade e, segundo, na nova compreensão da filosofia. Este segundo aspecto inclui também a pergunta sobre o direito. Segundo Hegel, o cartesiano “Eu penso” determina a nova perspectiva moderna. A adoção o pensamento do indivíduo como certeza inicial mudou a perspectiva da metafísica.
Mas será que essa alteração não teria ocorrido muito antes? Agostinho já havia modificado a perspectiva da metafísica quando colocou a questão sobre o mundo e o divino dentro da interioridade humana. Assim começou a metafísica da experiência interior: não se tratava de compreender a ordem natural por meio da observação dos fatos do mundo, mas por meio de uma reflexão acerca a própria vida interior.
Apesar dessa proximidade entre Agostinho e Descartes, que iniciam seus percursos a partir da certeza subjetiva (e não da verdade objetiva), seria incorreto afirmar que a modernidade teria começado já com o cristianismo porque o interesse central de Agostinho é a questão sobre a existência de Deus. Para Descartes, Deus não é mais a certeza básica do indivíduo, a partir da qual serão construídos os seus outros conhecimentos. No centro do sistema cartesiano está o cogito, o eu pensante, que é a evidência fundamental e o ponto de partida para toda reflexão.
A divindade entra no sistema cartesiano em um segundo momento: ela é necessária somente para mostrar a existência do mundo além do próprio sujeito. A existência de Deus serve como garantia de que nossas percepções não sejam apenas delírios individuais, fechados dentro de nossa própria interioridade. Tal como Platão, Descartes percebeu que uma pessoa, em sua vida interior, não tem critérios adequados para diferenciar o que é sonho do é realidade. Cada um de nós vive seus próprios delírios como se fossem objetivamente reais, de tal forma que uma abordagem centrada na reflexão individual poderia resultar no engano de tomar por verdade o que não passe de sonho, especialmente quando se trata de uma ilusão compartilhada pelas pessoas que vivem em uma mesma cultura.
É preciso ter um critério que sirva como ponte entre a certeza subjetiva e a verdade objetiva, que nos permita diferenciar os fatos do mundo das sombras da caverna. Somente a existência de um Deus serviria como garantia de que os nossos sentidos não estão sendo constantemente enganados por um gênio maligno, pois a presença de um deus onisciente garante que exista um mundo objetivo a ser observado, uma verdade invariável a ser conhecida. Enquanto o delírio individual nos apontaria para a possibilidade de múltiplas percepções meramente subjetivas, o sonho de um Deus onipotente e perfeito constituiria a própria realidade imutável do mundo.
Para os antigos, Deus funcionava como uma espécie de alma do mundo: eles não eram capazes de explicar o movimento das coisas sem fazer referência a uma forma de intencionalidade. A diferença entre os seres vivos e os seres sem vida é que os primeiros tinham alma (anima), enquanto os segundos eram inanimados. Quando uma pessoa morre, ela perde algo, e esse algo é um princípio vital, que é visto como a origem de seus movimentos, de suas transformações. Para entender o mundo todo como um grande organismo, era preciso inserir nele um princípio vital e uma intencionalidade, e os cristãos batizaram de Deus essa alma do mundo.
O giro cartesiano faz com que Deus deixe de ser parte da estrutura ontológica do mundo e se torne uma necessidade epistemológica, um requisito para que o mundo exista de maneira objetiva e que, portanto, seja possível observá-lo de forma impessoal. Com a certeza sobre a existência de Deus, podemos nos dedicar a pesquisa sobre o mundo sem ter de nos preocupar com a possibilidade de que nossas percepções sejam meramente delírios individuais.
Para Descartes, o mundo aparece como o interesse básico e a existência de Deus é uma garantia de que o mundo seja cognoscível. Contudo, entender o mundo, diferenciando a verdade do simulacro, já era também era o interesse da filosofia grega. Se Descartes coloca a mesma pergunta de Platão, por que ele pode ser visto como fundador da modernidade filosófica?
Porque que o mundo grego e o mundo cartesiano não são a mesma coisa. Descartes inclusive tentou liberar a imagem do mundo da metafísica aristotélica e tradicional: a estrutura do mundo não era mais teleológica, mas era mecânica e quantitativa. A linguagem do mundo é a linguagem da ciência, que observa os fatos e mensura os fenômenos e explica todas as ocorrências em termos de causalidade. O que é propriamente moderno no pensamento cartesiano não é seu interesse pelo mundo, mas é a secularização do pensamento e um específico desencantamento do mundo.
Nesse caminhar, cada vez mais a ciência se afirma. A questão do mundo, no último momento, não é mais a questão da filosofia, mas da ciência. A virada da perspectiva moderna é, desse modo, uma específica perda espiritual: o mundo fica destituído de alma, de princípio intencional, de finalidade constitutiva. Os fatos empíricos devem ser explicados exclusivamente a partir de suas causas mecânicas e consequências materiais, e não a partir de seus princípios e de suas finalidades.
Olhando por esse prisma, podemos afirmar que Kant é muito mais moderno do que Descartes, pois o desencantamento que ele operou em sua filosofia foi ainda maior. Eu diria que Kant é o primeiro filosofo moderno. Claro, essas determinações não são tão importantes. A Modernidade se manifesta de modos muito diferentes. Descartes é moderno ao falar sobre a autoridade do nosso pensamento, Maquiavel é moderno ao abordar a autonomia da política, Vico é moderno ao discutir a história como perspectiva humana, etc. A questão importante é por que Kant radicaliza a perspectiva cartesiana e por que Kant está criticando um específico dogmatismo cartesiano. Na verdade, Kant fala sobre isso saindo de uma discussão sobre Hume na Crítica da Razão Pura. Vamos tentar explicar isso.
A questão do próprio Hume também é moderna: "como pensar a certeza?". Nesse contexto, a certeza vem com os juízos da lógica e da matemática, isto é, com os juízos analíticos que não precisam do apoio da experiência e, por isso, se chamam a priori. Sabemos que a reta é a menor distância entre dois pontos sem precisar fazer medidas no mundo. Essa convicção não decorre de uma observação empírica de fatos, mas de uma reflexão acerca da própria ideia de espaço, descrito a partir dos conceitos de pontos, retas e planos. Isso é diferente do que ocorre nos juízos a posteriori, que dependem da experiência, como saber qual é o tempo que Marte demora para dar uma volta em torno do Sol. Esse tipo de afirmação somente pode ser feita a partir de observações empíricas, ou seja, posteriormente à obtenção de informações por meio dos sentidos.
Hume colocou a pergunta sobre o mundo, sobre como os fenômenos podem ser conhecidos e explicados. É esse o interesse moderno. Mas ele fez isso com muito mais cuidado que Descartes. Ele considerava que o conhecimento do mundo tinha de seguir a natureza e percebia que somos guiados mais pelo hábito do que pela razão. Aparece, assim, a certeza científica dos juízos sintéticos a posteriori, baseados na experiência.
Sem dúvida, Hume é um filosofo moderno. Ele também eliminou a metafísica tradicional, composta por juízos que o nosso conhecimento não pode verificar. Porém, parece que o modelo ficou o mesmo. Tanto na tradição antiga como no começo da modernidade, o mundo é concebido como a fonte do conhecimento. Os gregos, afinal, também entendiam que o conhecimento tinha que seguir o caminho da natureza, ou seja, que era necessário compreender a ordem natural das coisas, a partir de uma observação cuidadosa do mundo.
Nesse âmbito das perguntas sobre o conhecimento do mundo, Kant foi o primeiro a "acordar do sonho dogmático", para usar uma expressão que ele próprio cunhou. Se não podemos chegar até o conhecimento universal a partir da observação do mundo pelo sujeito, temos que pensar outra alternativa: o sujeito pode observar-se a si próprio, de modo reflexivo, conhecendo o mundo a partir da própria estrutura da sua subjetividade. Kant denominou juízos sintéticos a priori as afirmações que fazemos sobre nossa própria estrutura, o que os torna muito peculiares: eles são ao mesmo tempo um conhecimento novo sobre o mundo (porque nós fazemos parte do mundo), mas que não depende dos sentidos (porque depende apenas da reflexão interior).
Os juízos sintéticos a priori provêm de uma experiência, mas não se trata de uma observação mediada pelos sentidos: trata-se de uma experiência puramente intelectual, e não empírica. Com essa nova pergunta sobre os juízos sintéticos a priori, com a qual começa a primeira crítica kantiana, chegamos até a ideia da subjetividade constitutiva. Assim se abre a modernidade filosófica: sujeito como a base do conhecimento e não mais o mundo. O sujeito se torna a parte do mundo que pode ser conhecida de modo objetivo.
A palavra sujeito ainda não apareceu em Descartes. A virada para o sujeito ainda não aconteceu com a filosofia cartesiana. Já em Kant, a estrutura comum da subjetividade humana, compartilhada por todas as pessoas, ocupou o lugar que o Mundo das Ideias tinha na teoria platônica e que Deus veio a ter na concepção cartesiana: a garantia de que há um mundo objetivo a ser observado e de que nossas percepções individuais (sobre nossa própria subjetividade) podem ser fonte de um conhecimento objetivo.
Kant entendia, inclusive, que essa virada aconteceu já na própria ciência natural. Os laboratórios científicos são os exemplos da possibilidade do conhecimento sem o apoio da experiência. Os experimentos científicos são situações artificialmente criadas, voltadas a testar certas intuições, o que faz com que eles operem de forma muito diversa de uma observação direta dos fatos naturais. Parece que Descartes não só deixou de entender a filosofia, como tampouco entendeu a ciência. A ciência, segundo Kant, já afirma a subjetividade constitutiva e, por isso, ela se tornou seu guia na primeira crítica.
A ciência era um interlocutor tão sério para Kant que cabe perguntar por que Hegel não estabeleceu nenhum diálogo com ela. Mas a resposta a essa questão exigiria outra perspectiva, que escaparia aos limites deste texto. Nesta abordagem, queria apenas relacionar Kant com a articulação da subjetividade moderna e constitutiva. Ele nos mostrou que a questão sobre o mundo inclui a questão sobre o sujeito. Poderíamos mesmo dizer que a compreensão do mundo exige uma forma específica de auto-reflexão do sujeito. Isso, porém, não é tudo, visto que a perspectiva kantiana traz algo ainda mais importante, que poderíamos chamar de uma nova compreensão da filosofia.
Para entender a alternativa kantiana, convém retornar aos gregos, que se perguntavam sobre o mundo e pensavam que ele não se abre somente para ciência, para uma observação de fatos empíricos, como a que existe na física. Para o pensamento grego, a verdade do mundo é mais profunda e se abre para a metafísica. A filosofia, propriamente dita, seria a metafísica: um conhecimento dos princípios últimos, das verdades imanentes, da finalidade das coisas, de uma série de elementos do mundo que não são conhecidos pela simples observação dos fatos.
É esta a herança grega: a metafísica que supera a ciência. É um desafio pensar sobre isso em nosso mundo dominado pela ciência. Quando os gregos falavam sobre a diferença entre a filosofia e a ciência e sobre a superioridade da filosofia, eles tratavam ambas como formas diferentes do conhecimento. A filosofia era a afirmação do teórico, da contemplação, da compreensão dos princípios que estão além dos fatos.
Os cristãos transformaram essa perspectiva porque defenderam que nosso mundo não é só o mundo do conhecimento. O conhecimento nos liga com as coisas dadas, mas o humano não está apenas nas coisas dadas, nos fatos empíricos, nas relações mecânicas de causalidade. O ser humano – poderíamos nos lembrar de Agostinho – foi criado para que fosse possível o novo no mundo. Porém, diferentemente dos gregos, os cristãos não ligam essa possibilidade criadora de novas relações sociais com a filosofia. Para eles, a filosofia é ainda o conhecimento humano (e portanto imperfeito), que precisa ser superado pela fé, visto que as "verdades" bíblicas não são acessíveis pela razão, apenas pela revelação.
Vimos que, com Descartes, a filosofia continuou sendo vista como uma forma de conhecimento observacional do mundo. Ele separou a filosofia da religião, mas rapidamente a ligou com a ciência. Descartes teve a oportunidade de ligar a filosofia apenas com “ego cogito”, com a auto-reflexão do sujeito, mas isso não ocorreu. Por esse motivo, nas Meditações Cartesianas, Husserl afirmou que Descartes não entendeu a ideia da subjetividade. Poderíamos dizer também que, ao vincular a filosofia com a observação dos fatos, Descartes não entendeu propriamente a filosofia.
A filosofia como experiência do sujeito, e não como um conhecimento do mundo, poderia ser o caminho para uma outra modernidade, que não foi desenvolvida no pensamento cartesiano, mas que ganhou corpo nas reflexões de Kant. Immanuel Kant começou a própria filosofia discutindo os assuntos teóricos. Ele não se confrontou imediatamente com a ideia da filosofia como conhecimento, sendo que a ciência serviu como modelo para todo o caminho da Crítica da Razão Pura. Porém, nas últimas paginas deste livro, ao identificar os limites de sua abordagem, Kant colocou a questão decisiva: podemos pensar teoricamente sobre tudo?
A questão da liberdade, por exemplo, é uma questão teórica? A resposta kantiana é negativa. Sobre a liberdade não temos nenhuma certeza teórica. Nem a observação do mundo, nem a auto-observação do sujeito nos esclarecem sobre a liberdade e sobre os deveres que a conformam. Pensar a liberdade no contexto da teoria nos deixa com ainda mais dúvidas, o que fez com que Kant deslocasse a questão da liberdade do campo do teórico, para o âmbito do prático. Aqui começa a segunda crítica kantiana, a Crítica da Razão Prática, que trata especificamente dos paradoxos da liberdade.
Esse é um passo importante porque transforma a posição da teoria, antes ligada somente com o conhecimento teórico da realidade. Para Kant, a filosofia não envolvia (só) a teoria, só a observação do mundo, mas também a experiência do prático: a filosofia é o pensamento da liberdade. Pela primeira vez na história da filosofia, afirma-se a primazia do prático. Essa será a grande inspiração para Marx. O mundo não é apenas o mundo do dado (por exemplo, do sistema capitalista), mas é a possibilidade do novo. A questão do novo é a questão da liberdade humana.
Nesse contexto, a teoria do direito deve responder, pelo menos, à pergunta que continua em aberto, a saber, o problema da determinação das condições da liberdade exterior. Que tipos de constrangimentos podem ser impostos, de forma legítima, ao exercício da liberdade? A Primeira Crítica de Kant discutiu a relação entre natureza e liberdade, a Segunda Crítica determinou a liberdade em relação ao sujeito mesmo e a Terceira Crítica colocou a questão da mediação entre liberdade e natureza. Então, tornou-se possível uma Quarta Crítica – exposta no livro Metafísica dos Costumes –que tenta responder à questão da possibilidade da determinação da liberdade em relação aos outros – e não apenas em relação ao indivíduo isoladamente. Aqui está a tentativa kantiana de fundar o conceito de direito baseado na lei moral, ou seja, na estrutura transcendental das faculdades espirituais.
Na determinação do direito, encontra-se novamente a ideia da liberdade, assim como o projeto de identificar uma conduta prática universalmente exigível, pois esta é a condição necessária para todas as condutas pertencentes à legalidade. Na linguagem de Kant, uma lei é um enunciado deôntico geral (que impõe um dever abstrato a todas as pessoas abrangidas pela regra) e uma máxima é um enunciado particular, que justifica a prática de um ato concreto.
Por exemplo, imagine que, no contexto da pandemia atual, uma pessoa apresente um atestado falso para comprovar uma comorbidade e, com isso, ter um acesso antecipado à vacina contra a COVID-19. Esse fato ocorreu várias vezes, praticado por pessoas movidas por máximas diferentes, tais como "eu posso apresentar um atestado falso para furar a fila da vacina, pois a minha vida está em risco por causa da pandemia" ou "o meu medo de morrer é tão grande que justifica que eu apresente um atestado falso" ou "o Estado não coibiu essa prática, o que significa que é socialmente aceitável a apresentação de atestados falsos".
Kant notou que ele não podia avaliar moralmente os próprios comportamentos (como a apresentação do atestado falso), mas tinha de avaliar a validade da justificativa contida na máxima que guiou a ação. Pessoas diferentes podem praticar atos idênticos, por motivos (máximas) muito variadas, e a licitude ou moralidade do ato somente pode ser avaliada a partir da máxima que orientou o comportamento.
Para Kant, uma modalidade particular da conduta prática somente pode ser considerada válida se, segundo sua máxima, a liberdade de um puder existir concomitantemente com a liberdade dos outros, todas baseadas na lei universal. Com esse raciocínio, Kant estendeu o imperativo categórico ao âmbito do direito, criando uma exigência mínima para que determinadas regras fossem válidas, exigência essa que tornaria inválidas todas as prescrições jurídicas que não observassem adequadamente a igualdade entre as pessoas.
Essas reflexões fizeram com que Kant ingressasse no acirrado debate sobre as condições de legitimação da política. Parece que ele é foi primeiro a propor uma resposta à questão deixada em aberto por Rousseau. Na abordagem de Rousseau, o contrato social servia como fundamentação da integração social, servindo como base de legitimidade para a atuação de governos que limitam a liberdade das pessoas. Porém, a legitimidade do contrato não foi devidamente tematizada, visto que a autonomia para contratar foi entendida simplesmente como natural. Porém, não há uma resposta específica à pergunta: o que legitima o contrato?
A resposta de Kant é simples e se encontra nos princípios a priori. O contrato é válido porque atuar em obediência ao contrato é uma máxima que decorre de uma lei geral e que pode ser universalizada. Assim, Kant não interpreta o contrato como um fato dado, mas como uma norma que se torna critério para determinar a sociedade civil. Tal resposta afasta Kant da teoria de Hobbes, para quem a validade do contrato poderia ser pressuposta porque a sua grande utilidade faria com que todo ser humano racional desejasse a celebração desse pacto.
Afastando-se das considerações utilitaristas de Hobbes, Kant construiu uma proposta diversa, em que o resultado do contrato não é a constituição do Leviatã, mas a proposta de uma aliança de cidadãos. A noção kantiana de contrato social posiciona-se claramente em contraste com a ideia hobbesiana do contrato como subjugação. Embora Kant não tenha desenvolvido completamente suas perspectivas sociais, são importantes as indicações, contidas em seus últimos trabalhos, sobre o cosmopolitismo e sobre uma paz mundial baseada na liberdade.
A união dos dois motivos da filosofia kantiana – a questão da compreensão da modernidade e a questão da compreensão da filosofia –, nos conduz a concluir que a questão sobre o mundo inclui a questão sobre o sujeito. Seguindo Kant, Hegel e Marx ampliaram essa conclusão e afirmaram que a questão sobre o mundo inclui também o social.
Os gregos não encontraram o sujeito atrás do mundo, e pode ter sido esse o seu erro. Mas o desenvolvimento de uma perspectiva como essa exige muitos pressupostos que não estavam presentes na Grécia antiga. Nós, os modernos, seguindo a herança kantiana e marxista, poderíamos dizer que a incapacidade de ver o sujeito além do mundo, o sujeito que constitui a realidade, não é apenas um erro, mas, sim, ideologia. Não ver o que poderia ser visto é o signo da ideologia.
Kant nos deixou importantes argumentos para nos confrontarmos com a ideologia. Em última análise, a pergunta da Crítica da Razão Prática é como pensar a liberdade no mundo moderno, capitalista. E a questão da autonomia não é outra coisa senão a questão da liberdade.
Todavia, Hegel alega que Kant, mesmo afirmando o caráter constitutivo do sujeito, ainda permaneceu dentro da relação cartesiana entre sujeito e objeto, que ele se propunha a criticar, porque o sujeito kantiano, tal como o cartesiano, ainda está fora do objeto. Hegel defende que essa posição não afirma a verdadeira perspectiva do sujeito, isto é, a possibilidade dele se realizar no mundo, motivo pelo qual ele considera insuficientes a Primeira e a Segunda Críticas kantianas. A dignidade do sujeito e da nossa razão ainda não se encontrariam no mundo kantiano. Hegel acredita que, quando Kant aborda a nossa liberdade, ele cometeu um erro ao ligar a liberdade apenas a nossa interioridade e não ao mundo mesmo.
Hegel acreditou ter participado, como testemunha, de um acontecimento político singular – a Revolução Francesa – que mostrava a sua ideia de que a razão já se realizou no mundo. Segundo ele, a Revolução mostrava a razão no mundo, o mundo governado pela razão. Um mundo que não era apenas repetição, mas que envolvia a criação do novo.
Entretanto, Hegel ainda não chegou a formular as dúvidas que Marx colocava sobre a própria Revolução Francesa. Marx escreveu várias vezes sobre a grandeza da filosofia hegeliana, que afirmava a ideia do trabalho. Poderíamos compreender a tarefa de Marx dizendo que ele queria desenvolver essa ideia hegeliana, mas liberando-a da metafísica do espírito que ela possuía em Hegel. Trabalho sem metafísica – essa poderia ser, em poucas palavras, a consequência que Marx quer tirar da filosofia de Hegel.
Seguindo o idealismo alemão, Marx pensava a classe operária como o sujeito constitutivo, que já havia aparecido na filosofia kantiana. Ele procurou romper com a metafísica do passado, esclarecendo as condições da constituição do nosso pensamento e da nossa vida social. “Destruição da metafísica econômica” poderia ser, então, o título do projeto marxista. O sistema capitalista não deveria ser pensado como uma realização necessária da natureza humana, como uma consequência inevitável da estrutura de nossa subjetividade. Nossas formas de organização política dependem de condicionantes histórias e nossas formas de pensar a política são construídas dentro dos constrangimentos impostos pelos modelos hegemônicos de organização social.
Não podemos pensar o mundo sem levar em conta as condições do social. Seguindo a filosofia como o pensamento da liberdade, Marx chegou até a filosofia como pensamento da revolução: não se trata apenas de formular novos conceitos, mas de forjar novas práticas e novas instituições. Enquanto Descartes e Kant buscavam conhecer o mundo por meio de uma reflexão individual, por meio do exercício de uma razão objetivamente constituída (e portanto, dada), Hegel e Marx acentuaram que a questão da verdade não pode ser desconectada das condições sociais. Para ambos, não é possível separar o pensamento humano das estruturas sociais e do contexto histórico que as determina.
Por fim, vamos indicar algumas das perspectivas que se abrem a partir dessa discussão. Voltando para a filosofia kantiana, Deleuze disse que Kant foi o primeiro filosofo que introduziu a questão da diferença na filosofia, no sentido da diferença transcendental. Todavia, essa diferença ficou, por assim dizer, contaminada pela própria subjetividade, que só articulava as perspectivas da Identidade. O projeto Kantiano dependia dessa identidade, para que uma verdade acessada por meio de uma reflexão realizada no interior de um indivíduo pudesse almejar erguer-se como uma verdade objetiva. A ideia de universalização depende dessa pressuposição de que cada indivíduo é autônomo, mas de que todos eles compartilham uma mesma estrutura, que os torna estruturalmente idênticos.
Liberar o pensamento da Identidade é uma referência pós-kantiana na filosofia. Mesmo falando sobre a inspiração kantiana, Heidegger defendeu a destruição da Identidade: ele inseriu uma diferença ontológica que acentuava a questão da diferença entre as pessoas, e não o compartilhamento de uma racionalidade idêntica. Sua forma de recolocar a questão sobre o ser, sobre o que significa a nossa experiência de estar no mundo, exigia uma destruição da metafísica tradicional e sua defesa da existência de uma ordem valorativa imutável, inscrita na própria natureza das coisas.
Heidegger buscou retomar a questão do ser, que havia caído em esquecimento. A modernidade se concentrou em outras questões, especialmente em um saber técnico que indicava como fazer coisas com eficiência, como maximizar a utilidade. Para Heidegger, parece que a questão sobre o ser tem que ser colocada de novo, agora como a questão sobre o próprio ser humano. O que dá sentido à nossa experiência de seres que interpretam o mundo, que compreendem a realidade? O sentido do mundo não se apresenta como algo a ser descoberto, mas como algo a ser produzido. Mas quem produz o sentido?
Em Heidegger, a questão sobre a diferença, sobre a criação do novo e a invenção dos sentidos do mundo, ainda não era a questão sobre os Outros. Sair dessa perspectiva heideggeriana para pensar os Outros na própria racionalidade veio a ser o núcleo de algumas abordagens que se apoiaram em Heidegger e na primazia da existência sobre a essência: o projeto hermenêutico de Gadamer, a pragmática universal de Habermas, o projeto ético de Lévinas e a perspectiva política da Hannah Arendt. Todas essas abordagens acentuaram o caráter produtivo (e não contemplativo) de nossas tentativas de compreender o mundo, que passam pela produção de significados novos (e não pela identificação de significados inscritos na ordem natural).
O próprio Deleuze entendeu a pergunta heideggeriana sobre a diferença como a pergunta sobre a dinâmica da diferença que não cria os novos lugares privilegiados na filosofia. Isso é o ponto comum entre Deleuze e Derrida. O pensamento pós-metafísico articula-se, assim, como o pensamento da diferença. Pensar significa articular o Novo. Pensar quer dizer criar. O pensamento aparece como potência e, não, como a representação do mundo dado. E inclui não só a crítica das formas tradicionais e modernas da filosofia da identidade, mas também as formas do social.
O Capitalismo – já para Marx – é a forma da metafísica moderna, da paralisação econômica e política do mundo que hoje se chama globalização. A dinâmica que o capitalismo cria é só um simulacro para não ver a paralisação do sistema, poderia dizer Marx. O capitalismo é uma forma de organização social que privilegia as estruturas economicamente mais eficientes e, portanto, mais concentradoras de renda e poder. A realização absoluta do capitalismo conduz a uma apropriação total dos bens por uma pequena parcela da população, o que fecha as portas para a política e para a avaliação moral desses processos de concentração de capital.
O liberalismo cria as alternativas só dentro da Identidade, dentro da metafísica da economia. Metafísica da economia? A palavra parece fora do discurso econômico, político, sociológico… Desse modo, estamos chegando até um certo paradoxo atual. O que é o essencial, para o sistema capitalista, desaparece do olhar teórico. Em especial, não há espaço para a compreensão de que a eficiência econômica dos processos capitalistas é proporcionada por uma certa estrutura social, que viabiliza esse tipo de concentração. Não é natural que a função da política seja garantir a liberdade dos mercados, ou seja, a possibilidade de que os sistemas de concentração de capital sigam seu curso inexorável a uma sociedade privada da política, que representa sempre um risco para a acumulação capitalista.
O sistema não vê ou não quer ver, juntamente com a própria ciência, os próprios pressupostos. É o sinal, acompanhando Marx mais uma vez mais, de uma nova forma da ideologia do social? O pensamento social tem que incluir este tipo da reflexão.
Ele também precisa, em conjunto com Hannah Arendt, discutir as condições da reificação do social na Modernidade de onde, segundo ela, não estão saindo as alternativas para o pensamento. Que tipo do social articula a diferença e o novo? Onde aparece a diferença na teoria, na economia, política ou direito? Repensar ou, melhor dizer, inventar o mundo seria o projeto para um novo pluralismo e um novo cosmopolitismo.