1. Introdução

Todo trabalho acadêmico tem início com a elaboração de um projeto. Esse projeto pode ser desenvolvido de forma mais elaborada ou mais simples, pode ser escrito ou permanecer apenas como uma série de ideais alinhavadas na cabeça do pesquisador. Mas não há como iniciar uma investigação sem a definição de alguns pontos relevantes, nem como desenvolvê-la sem se fazer uma série de opções metodológicas.

O problema de muitas pesquisas é que essas opções são feitas de forma inconsciente e irrefletida, o que pode levar a deficiências variadas, como a indefinição do objeto, a contradição dos pressupostos, a vagueza das perguntas ou a inadequação entre objetivos e metodologia. Muitas vezes, tais problemas são percebidos apenas em um estágio muito avançado da dissertação, e resolvê-los envolve abandonar muito do trabalho feito, algo que ninguém faz sem uma sensação de ter perdido tempo precioso.

Por isso, ainda que todos saibamos que os projetos de pesquisa são alterados constantemente no elaborar da própria monografia, é importante que o pesquisador se posicione conscientemente acerca de alguns pontos fundamentais, e essa é a principal função da elaboração do projeto de monografia: tornar o pesquisador consciente das potencialidades e dificuldades do trabalho a ser feito, de modo a prevenir a ocorrência de uma série de problemas e de trabalho perdido.

É possível fazer uma pesquisa sem um projeto bem definido? Claro. Pode dar certo? Pode, especialmente para um pesquisador experiente, que realizou várias investigações, conhece a bibliografia e domina diversas formas de lidar com os dados disponíveis.

Mesmo sem partir de um projeto, o pesquisador pode definir um objeto e se valer de uma série de modelos de análise, que podem conduzir a resultados interessantes. Essa seria uma empreitada possível, mas demasiadamente arriscada, pois essa busca intuitiva tem grandes chances de levar o pesquisador a becos sem saída, que exigem retornar a pontos anteriores do trabalho, para explorar vias alternativas.

Esse movimento circular de idas e vindas é útil para várias atividades criativas, como a escrita de poemas ou a composição musical. Trata-se, inclusive, de uma estratégia comum para formular os problemas de pesquisa científica e as hipóteses explicativas, que mobilizam uma grande dose de originalidade e de intuição. Todavia, quando se trata de estabelecer estratégias para testar essas hipóteses, esse tipo de abordagem se torna muito arriscado, principalmente por causa de dois fatores:

  1. O viés de confirmação dos pesquisadores;
  2. Os limites de tempo e de recursos disponíveis para a pesquisa.

2. O projeto como gerenciamento de riscos

2.1 O risco do viés de confirmação

O primeiro risco é o de que a sua investigação se transforme em um simples instrumento de confirmação das suas intuições, o que esvaziaria a sua utilidade. Uma vez que o pesquisador desenvolve intuitivamente uma hipótese, ele pode ficar tão preso a suas convicções que passa a interpretar seletivamente os dados disponíveis para que o trabalho seja um argumento voltado a defender sua hipótese.

Os seres humanos têm uma tendência a serem muito rigorosos quando se trata de exigir comprovação de afirmações que contradizem suas intuições, e de exigirem poucos elementos para considerar demonstradas as teses que confirmam as suas crenças. A pesquisa científica precisa ter em mente que esse viés de confirmação é intenso, e as rigorosas metodologias da ciência estão ligadas à mitigação do risco de que o pesquisador se limite a colecionar fatos que corroboram suas convicções.

Sem um planejamento adequado, e sem a submissão do projeto a um olhar externo, os resultados de uma pesquisa se aproximariam perigosamente do parecer, que é o produto típico da atuação dos juristas. Em vez de seguirem o raciocínio indutivo da ciência, os juristas tendem a formular uma tese e a construir redes de fundamentação voltadas a defender a sua interpretação.

Sem um projeto bem refletido, você correrá sérios riscos de que sua atividade de pesquisa, que deveria testar hipóteses, se veja convertida em um parecer que apenas promove a defesa retórica de uma tese. Nesse caso, torna-se muito provável que o seu longo trabalho seja reduzido a uma pregação para os convertidos: convincente para quem comunga de suas convicções, mas sem capacidade de interagir com a visão de mundo de pessoas que partem de outras percepções.

Esse tipo de trabalho pode servir para que uma pessoa ganhe prestígio em sua própria bolha, mas ele tende a ser reconhecido como uma argumentação frágil pelas pessoas em geral, o que faz com que ele tenha uma relevância acadêmica baixa. Não é por acaso que a academia está repleta de "gênios incompreendidos", que somente são considerados "mitos" dentro dos círculos sociais que partilham das mesmas convicções e valores. Figuras como Olavo de Carvalho ou Steve Bannon repetem o velho papel social do "sábio", que é reconhecido como portador da verdade por determinado grupo cultural, mas que são considerados impostores por pessoas que não fazem parte desse círculo de convertidos.

A academia em geral, e a ciência em particular, são construídas como lugares de encontro de múltiplas visões de mundo. Felizmente, a universidade não é o Facebook e menos ainda é o WhatsApp: nela, não é possível fechar-se em grupos privados e compartilhar postagens que corroboram e reforçam as crenças de sua própria bolha. No ambiente plural das academias, o prestígio não decorre do reconhecimento dentro de sua própria bolha, mas da capacidade de oferecer argumentos capazes de atravessar múltiplas visões de mundo e de mobilizar sensibilidades plurais.

A ciência não é o lugar do sábio, nem dos juristas que escrevem pareceres a partir de sua experiência e prestígio. O conhecimento científico é focado na observação de fatos e na interpretação por métodos rigorosos, que tornam os argumentos mais propensos a serem aceitos pelos membros de uma comunidade científica, com religiões, ideologias e sensibilidades as mais diversas.

2.2 O risco da insuficiência dos prazos

Além das questões ligadas à mitigação do viés de confirmação, os projetos permitem o desenvolvimento de investigações que caibam nos prazos exíguos que marcam o mundo acadêmico atual.

Trabalhos iniciados sem planejamento adequado tendem a extrapolar os limites de tempo e de recursos disponíveis para a investigação, pois a busca intuitiva de soluções costuma exigir um esforço constante de reescrita.

O presente texto, por exemplo, não segue um plano rígido. Ele segue um planejamento geral, dado pela ementa do curso, mas não houve um planejamento claro de todas as etapas de escrita, antes da redação. Essa é uma escolha que faz com que vários trechos sejam escritos e revisados, com que muito trabalho tenha de ser feito várias vezes, o que alonga o processo de escrita, mas não compromete o resultado porque temos tempo para lidar com essas contingências.

Isso ocorre principalmente porque este é um trabalho técnico, como uma petição inicial. Ele não busca descobrir nada de novo, mas apenas ordenar conhecimentos estratificados em uma ordem adequada e com estratégias retóricas capazes de alcançar os objetivos didáticos a que o texto se propõe. No caso de uma pesquisa científica, a situação muda de figura, pois esse tipo de atividade normalmente exige a formulação de experimentos (nas ciências experimentais) ou extensos levantamentos de dados (nas abordagens empíricas observacionais), que precisam ser devidamente classificados e analisados (tanto nas abordagens empíricas como nas teóricas) para ser possível chegar a resultados sólidos.

Inclusive, devemos ter em mente que a pesquisa é uma atividade científica que concretiza projetos, mas os próprios "projetos de pesquisa" são trabalhos técnicos, que construímos a partir de modelos estabelecidos pelo costume e pela experiência. Não fazemos um "projeto de projeto", pois este é um texto de uma dezena de páginas, que precisa equilibrar alguns elementos bem conhecidos (problema, objetivos, metodologia, etc.).

Uma vez que você conheça o suficiente sobre metodologia (que é uma técnica e não uma ciência...), você poderá esboçar um projeto em um ou dois dias, pode passar uma semana fazendo uma revisão bibliográfica e mais uma semana reorganizando e aperfeiçoando os resultados. Em uma ou duas semanas, você pode elaborar um projeto de pesquisa excelente, o que faz com que não haja sentido prático em dedicar muito tempo ao planejamento prévio dessa atividade: você pode usar o sistema circular de escrever e reescrever, até ficar satisfeito, e isso não será um risco severo para a sua investigação.

Já a sua pesquisa é um empreendimento longo, custoso, que na melhor das hipóteses é medido em meses, e nunca em dias. Um mestrado envolve meses de estudo, meses de coleta de dados, meses de organização dos dados, meses de escrita. Nesse tipo de situação, boa parte dos pesquisadores não pode lidar com o risco de ter de fazer novamente um levantamento de dados, pelo fato de que essa complementação ultrapassaria tanto o orçamento disponível quanto o tempo disponível.

Os tipos de dados levantados dependem das metodologias de análise disponíveis, e estas decorrem do repertório de categorias utilizadas na classificação dos dados, mas essas classificações dependem fortemente das próprias informações coletadas, em uma relação circular. Essa circularidade da atividade de pesquisa faz com que, de antemão, todos os pesquisadores saibam que terão de redimensionar várias vezes as suas perguntas, as suas classificações, as suas conclusões.

Não há um caminho linear para a atividade de pesquisa, que atua constantemente equilibrando uma série de relações complexas entre os vários elementos que compõem um modelo explicativo do real. O risco de partir para a pesquisa sem um projeto claro é que sabemos que o tempo de pesquisa será alargado e que, em boa parte das vezes, teremos de fazer reduções dramáticas nas pretensões da nossa investigação para acomodar nossas conclusões às análises que podem ser feitas com os nossos dados.

No limite, podemos ter de refazer a coleta dos dados porque não levamos em conta, por exemplo, que era preciso diferenciar as decisões de procedência em que era utilizada a técnica da interpretação conforme. Uma distinção que poderia não parecer relevante no início dos trabalhos pode se transformar em uma diferenciação vital para ser possível identificar padrões decisórios estáveis.

Para garantir que os trabalhos acadêmicos não caiam nessas armadilhas, a academia oferece aos estudantes duas grandes estratégias de controle de riscos: o primeiro deles é o projeto. O projeto não evita completamente nossas idas e vindas, nossos redimensionamentos, nossas revisões de metas. Todavia, o projeto permite que realizemos uma espécie de protótipo da pesquisa, efetuando uma análise em abstrato da coesão entre os vários elementos.

O desenvolvimento do projeto que nos permite, entre outros pontos:

  1. analisar a clareza das nossas perguntas (limitando ambiguidades, circunscrevendo dúvidas);
  2. avaliar em que medida existem dados disponíveis capazes de responder a nossas perguntas;
  3. dimensionar o levantamento de dados necessário para ter alguma resposta;
  4. avaliar se as categorias de um certo modelo são capazes de orientar as nossas pesquisas ou se é preciso redimensionar esses conceitos.

A resposta a qualquer desses pontos é complexa e tem impacto nos outros pontos. Por isso, é muito conveniente que esse jogo de equilíbrios e reequilíbrios seja feito inicialmente em abstrato, projetando as dificuldades da pesquisa e resolvendo as incongruências variadas que podemos identificar nessa fase.

Os projetos são uma oportunidade de reflexão que, no fim das contas, poupam tempo precioso, na exata medida em que eles permitem que façamos ajustes variados antes do trabalho. Ele envolve muitas idas e vindas, muitas escolhas que serão revistas, muitas dúvidas e inseguranças, mas o fato de realizarmos essa reflexão de forma prospectiva, numa etapa de planejamento, permite que os custos desse movimento circular sejam baixos, se comparados a ter de refazer meses de pesquisa a cada vez que percebemos os limites de nossas intuições iniciais.

Ao lado dos projetos, o segundo elemento de proteção dos estudantes contra as armadilhas típicas da pesquisa é o orientador. Um dos pontos mais relevantes da presença do orientador é justamente servir como um leitor cuidadoso do projeto, capaz de ver os pontos cegos do estudante, de verificar as incongruências entre as várias partes do planejamento e de apontar ajustes que podem superar as dificuldades.

A pesquisa acadêmica é sempre uma pesquisa revista por pares. Parte relevante do trabalho da academia é avaliar os trabalhos dos outros pesquisadores, para definir quais são as contribuições que devem ser incorporadas ao conhecimento comum, e quais são as contribuições que devem ser consideradas pouco sólidas. A existência de um orientador possibilita uma supervisão contínua às várias etapas do trabalho, feita por um pesquisador experiente e comprometido com os resultados, pelos quais ele se torna corresponsável.

Muitos dos equívocos que o orientador é capaz de observar, a partir de seu conhecimento e experiência, não são perceptíveis por estudantes que podem ser técnicos especializados, mas que tendem a ser iniciantes na atividade de pesquisa.

Com um orientador experiente e a produção conjunta de um projeto adequado, a atividade acadêmica se torna mais rápida e mais segura para os estudantes.

3. Elementos do projeto de pesquisa

Os projetos envolvem diversos elementos, mas três deles aparecem como pontos centrais de planejamento, que determinam o desenho geral da pesquisa:

  1. Objeto de pesquisa
  2. Estratégias de abordagem
  3. Referencial teórico

Tais questões  precisam ser muito bem refletidas, pois os demais pontos do projeto decorrem das interações entre esses três elementos. O primeiro esboço do projeto de pesquisa é alcançado quando você consegue definir esses três elementos de forma bem concatenada.

Ao lado desses pontos, é fundamental você desenvolver um outro elemento, que é a justificativa, ou seja, a explicação da relevância teórica e social da pesquisa.  Note que a justificativa não integra o planejamento da pesquisa, mas ela é uma parte essencial do projeto porque ela apresenta os motivos pelos quais seria importante realizar a investigação.

A preocupação com a relevância social do trabalho precisa ser transversal e orientar todo o planejamento da pesquisa. Por mais que você somente escreva o texto da justificativa somente ao final, a escolha do tema, do problema e das hipóteses a serem testadas precisa levar em conta que a relevância dos resultados do trabalho deve ser claramente perceptível por terceiros, especialmente no caso de o seu projeto ser objeto de avaliação em um processo seletivo.

Além dos elementos obrigatórios, acima descritos, o seu projeto tem também alguns elementos normalmente optativos, mas que podem ser exigidos por alguns editais:

  1. Introdução
  2. Revisão de literatura
  3. Cronograma

4. Objeto de pesquisa: o que se pretende descobrir?

4.1 O tema da pesquisa

Costuma-se dizer que o primeiro passo para realizar a monografia é escolher o tema. Mas acontece que, na prática, muitas vezes iniciamos nossos trajetos a partir de outros lugares. Podemos começar definindo os textos com que gostaríamos de dialogar ou  os autores com quem queremos trabalhar ou  o tipo de impacto que o trabalho deve ter no mundo ou em nossa carreira.

Essa diferença de fatores decorre do fato de que o trabalho acadêmico desempenha um papel diferente na vida de cada pessoa. Para uns, é principalmente um momento de realização pessoal. Para outros, é principalmente uma oportunidade de crescimento profissional. Para as pessoas que querem exercer o magistério, é uma etapa necessária de formação. O tempo que cada pesquisador tem disponível é diverso, assim como é diferente o conhecimento prévio detido por cada um. O resultado é que a escolha do tema de pesquisa precisa equilibrar uma série de variáveis que mudam muito de pessoa para pessoa.

Entre essas variáveis, creio que a mais importante é o interesse pessoal. O professor Roberto Aguiar dizia que nenhum trabalho era bom se o pesquisador não havia chorado e rido sobre o tema acerca do qual ele se debruça. Vocês terão que passar muitas horas (mas muitas mesmo)  estudando a matéria escolhida e fazendo análises exaustivas de dados.

Chega um ponto em que você provavelmente se cansará do seu tema, mesmo que goste muito dele. Isso acontece com quase todo mundo, mas é pior quando você não tem uma especial atração pelo seu problema de pesquisa. É preciso um certo grau de paixão para que o trabalho seja bom, pois, se o autor não está engajado, ele poderá abandonar o trabalho no meio ou simplificar suas análises a ponto de comprometer a relevância dos resultados.

Se o próprio pesquisador não estiver convencido da importância do seu trabalho, dificilmente ele vai conseguir convencer a banca de que se trata de uma pesquisa relevante. Os membros da banca precisarão ler o seu trabalho e gastarão algumas horas fazendo isso, e eles serão plenamente capazes de identificar se o nível do seu engajamento na pesquisa foi intenso, ou se ela não passou de uma simples formalidade. Essa percepção faz com que muitos examinadores questionem durante a banca acerca dos motivos que levaram o autor a escolher o tema.

Por que eles perguntam isso? Porque a defesa de uma monografia não é simplesmente a apresentação de um trabalho, mas a apresentação de uma perspectiva de mundo, feita por uma pessoa que observa as coisas a partir de sua perspectiva, e a compreensão do local a partir de onde a pessoa fala é importante para compreender o próprio sentido do discurso.

Exercício 1. Elabore um texto de 5 a 10 linhas explicando os motivos pelos quais o você optou por realizar este curso. Entender bem as suas motivações pode facilitar a escolha do tema e a escrita da justificativa, pois normalmente os motivos que levam à opção pelo curso são relevantes na definição do tema da monografia.

O tema é normalmente definido por nossas preocupações pessoais, pelas questões que nos tocam, e é importante que seja assim pois é difícil que uma pessoa dedique dezenas de horas à pesquisa sobre temas que não lhe interessam muito. Esse relativo desinteresse pode decorrer do fato de que muitas vezes os temas nos são impostos externamente:

  1. pelos interesses do órgão em que trabalhamos e que oferece somente licenças para tratar de certas questões;
  2. por um orientador com o qual gostaríamos de trabalhar e que atua em uma área muito determinada;
  3. pela disponibilidade de bolsas acerca de uma temática que é trabalhada por um projeto de pesquisa estruturado
  4. por outras razões práticas que podem condicionar a viabilidade prática do trabalho.

Embora razões de ordem prática sejam de importância inegável, é preciso equilibrá-las com nossos interesses pessoais, pois não é incomum que concessões pragmáticas terminem por gerar grandes dificuldades na execução do trabalho. Mesmo quando temos bastante interesse em um tema, a exposição prolongada a ele pode gerar cansaço.

Começar um novo trabalho pode ser a única opção quando o desinteresse chega a tal ponto que o trabalho fica paralisado, ou que a sua qualidade seja muito comprometida. Por isso, quanto maior for o engajamento emocional com a temática escolhida, maiores serão as chances de o pesquisador dedicar seu esforço a um trabalho que costuma engolir horários antes destinados ao lazer, à família, ao trabalho e aos amigos.

O tema pode ser pensado em diferentes níveis de especificidade, inclusive porque o trabalho pode tratar de elementos bastante amplos (como dos julgamentos do STJ ou do Direito Tributário) ou elementos mais restritos (como certo grupo de julgamentos ou certos temas de direito previdenciário).

A definição final do tema somente será feita com uma definição final do problema: o tema será o campo de estudos em que o problema se insere.

Outro ponto é que muitos estudos exigem esforços interdisciplinares: estudar comportamento do STJ é, ao mesmo tempo, um estudo sobre instituições políticas e sobre processo decisório. Quando escolhemos um objeto de estudos concreto, nele se cruzam muitas temáticas possíveis, muitas abordagens. Uma boa pesquisa precisa utilizar instrumentos de várias áreas do conhecimento (sociologia, história, dogmática, etc.) para alcançar uma compreensão adequada do objeto.

De um modo ou de outro, um bom começo é entender qual é o campo em que se situam nossos interesses, visto que as metáforas que usamos para falar do tema são espaciais: campos ou áreas dentro dos quais gostaríamos de situar nossa pesquisa.

4.2 Título

A principal função do título do seu trabalho é servir como orientação para os mecanismos de busca na internet (Google, Bing, etc.), visto que futuras pesquisas dialogarão com a sua e é importante fazer com que os pesquisadores encontrem o seu texto com facilidade. Como o título tem especial relevância para os algoritmos das ferramentas de busca, ele deve ser pensado como uma maneira de chamar atenção para os pontos que você considera que devem atrair a atenção de potenciais leitores.

Títulos mais “poéticos”, com expressões mais literárias e figuras de linguagem, podem ser interessantes para estimular o leitor a se interessar pelo seu texto, especialmente se ele circular em ambientes nos quais é o estímulo da curiosidade que gera a abertura do arquivo (como Facebook ou WhatsApp). Porém, não vale a pena criar um título que seja atrativo, mas que não corresponda muito ao trabalho propriamente dito, o que seria uma forma de clickbait acadêmico.

Já os títulos mais “descritivos” tendem a oferecer elementos importantes para que o seu texto venha a ser encontrado por pesquisas feitas na internet, o que é fundamental, visto que de pouco adianta dar ao trabalho um título “instigante”, mas que o torna pouco visível para as ferramentas de busca. Uma estratégia de meio-termo é usar um título mais atraente e um subtítulo mais descritivo. Porém, não perca de vista que toda revista científica pergunta aos examinadores se o título do trabalho corresponde ao seu conteúdo, o que exige dos títulos que consigam descrever bem a pesquisa realizada.

Uma causa comum de problemas nesse campo é a escolha de um título no começo do trabalho, quando dizemos o que gostaríamos de alcançar com ele, e sua manutenção até o final, por desenvolvermos com ele uma relação afetiva. Depois que você escreve o resumo do seu trabalho (etapa necessária para toda publicação), é preciso analisar com cuidado se o título apresenta mesmo o que você realizou, ou se ele continua indicando quais eram as suas pretensões iniciais, que tipicamente são reduzidas no contato com a realidade e com a dureza dos prazos.

Uma estratégia normalmente útil é formular algumas alternativas e mostrar a outras pessoas, pois o fato de estarmos imersos na produção do trabalho faz com que percamos um pouco da perspectiva, o que pode comprometer a clareza do título. Pode ser uma boa alternativa pedir que alguém leia o resumo e avalie se o título corresponde bem a ele.

4.3 O problema de pesquisa

Fixado um campo de interesse, é preciso identificar nos nossos conhecimentos "sobre o tema" um ponto que você considere problemático, pois a sua investigação será voltada a contribuir para superar as deficiências que você diagnosticar em nossas formas de descrever e explicar os fenômenos relacionados à temática escolhida.

Numa pesquisa descritiva, partimos da identificação de que existe um ponto que não foi devidamente cartografado ou que já foi mapeado de uma maneira insuficiente.

Nesse caso, o objeto de pesquisa é um determinado campo a ser cartografado, como, por exemplo:

  1. Mapear as pesquisas empíricas contemporâneas sobre o STF, como em Arantes e Arguelhes, 2018.
  2. Traçar o perfil dos requerentes no controle concentrado de constitucionalidade, como em Costa e Costa, 2018.
  3. Identificar os tipos de ações julgadas pelo STF, como em Falcão, Cerdeira e Arguelhes, 2016.

Numa pesquisa explicativa, o mais comum é que o objeto de pesquisa seja traduzido por uma pergunta, que a investigação buscará responder. Pesquisas conclusivas são justamente aquelas que respondem às perguntas colocadas, na forma de um sim ou de um não.

Geralmente, as pesquisas descritivas não conduzem a respostas sim/não, pois elas respondem a questões de outro tipo: "Quantos", "Como?", "Qual?", "Em que medida?" e outras que não demandam um resultado binário afirmativo/negativo, mas a elaboração de uma narrativa, que descreva o modo como um objeto se estrutura ou se comporta.

Já as pesquisas correlacionais formulam suas perguntas questionando se um fenômeno ocorre (ou não) de determinada forma, o que demanda uma resposta do tipo Sim/Não. Essas questões admitem múltiplos formatos, entre os quais destacamos:

  1. Existe relação entre dois elementos?
    Por exemplo, podemos tentar descobrir se a intenção de votos em Bolsonaro é correlacionada com a renda ou a escolaridade das pessoas. Podemos tentar descobrir se tomar uma vacina diminui as chances de ter manifestações graves de uma doença. Hartmann, Ferreira e Silva escreveram um artigo buscando descobrir se as ADIs ajuizadas pelo Procurador-Geral da República tinham maior probabilidade de sucesso do que as ações propostas por outros requerentes (2016).
  2. Determinada crença é justificada?
    Essa é uma pergunta que parte da intuição de que determinada crença social deveria ser corrigida. Trata-se de um tipo de problema que gera pesquisas com grande relevância, na medida em que podem corrigir percepções equivocadas de uma comunidade. Henrique Fulgêncio, por exemplo, fez seu mestrado investigando se era correta a percepção, comumente defendida na doutrina jurídica, de que a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão não atinge seus objetivos porque inexiste a possibilidade de o STF suprir a omissão (Fulgêncio, 2018).
  3. Determinada categoria teórica é capaz de explicar um fenômeno melhor do que as abordagens existentes?
    Enquanto pergunta do tipo anterior tendem a realizar testes acerca da compatibilidade entre uma afirmação e os fatos, perguntas desse tipo tendem a gerar uma comparação, para avaliar qual tipo de teoria é mais adequada para organizar as nossas percepções.  Fabiana Luci de Oliveira fez uma influente investigação na qual avaliou se o comportamento decisório do STF seria melhor explicado como uma somatória dos votos individuais (abordagem comum, que é feita adotando como unidade de análise o voto dos ministros individualmente considerados) ou como a composição de coalizões temporárias e grupos constantes (o que apontaria para o desenvolvimento de pesquisas que adotassem como unidade de análise o grupo decisório, que ela chamou de "panelinha"). (Oliveira, 2012).

O problema de pesquisa corresponde, essencialmente, a essa pergunta, que define aquilo que será investigado. Não se trata apenas de um tema, mas de uma definição clara e precisa daquilo que pretendemos descobrir.

Falando assim, até parece fácil. Mas o fato é que boa parte dos pesquisadores dedicará um tempo muito grande (e angustiado) a essa que é a definição mais importante do trabalho, visto que guiará todos os esforços posteriores. Aqui, o pesquisador será guiado pelas suas intuições, projetará várias possibilidades, abandonará muitas vezes (mas muitas mesmo!) as suas ideias iniciais, no processo criativo circular, de fazer e refazer suas perguntas até chegar um ponto em que o resultado pareça satisfatório.

Nesse trajeto, é fundamental o auxílio dos colegas, pois eles servirão como olhar externo capaz de desafiar o rigor das construções que você fará, refará, aperfeiçoará e abandonará em busca de perspectivas mais interessantes. Esse é um momento em que muitas pessoas se sentem inseguras, e com razão, pois se trata de um exercício criativo no qual não existem balizas muito claras: é preciso cartografar terrenos inexplorados, projetar perguntas que não foram feitas, colocar em dúvida nossos pressupostos e as visões dominantes sobre um tema.

Os pesquisadores muitas vezes ficam insatisfeitos com os resultados que conseguem alcançar, e esta é uma hora na qual costuma ser importante a presença de um orientador experiente, que ajude a definir adequadamente as perguntas e, principalmente, a dar segurança de que o resultado obtido é adequado, apesar de nossas inseguranças, de nossos interesses voláteis, de nossas tentativas de dar passos maiores do que permitem nossos recursos e nosso tempo.

O orientador tipicamente atua para que o orientando possa ter os pés no chão e fazer projetos minimalistas, que cabem melhor na realidade do que no tamanho infinito das nossas aspirações. Esse papel de "âncora" é fundamental para que o trabalho chegue a resultados adequados, em um prazo viável, mas o exercício dessa função desgasta a relação com o orientando, visto que é sempre doloroso o processo de abrir mão dos nossos sonhos para chegar a um resultado em que o bom é sempre inimigo do ótimo.

No nível de pós-graduação, é comum que ao menos metade do tempo do curso esteja ligado a essa definição do objeto de pesquisa: as matérias obrigatórias expandem os horizontes do pesquisador e geram novos diálogos, com o objetivo de viabilizar a construção de problemas relevantes e atuais. As disciplinas de metodologia estão voltadas a capacitar os estudantes a fazer essas escolhas de maneira refletida e crítica.

Chega um momento no qual é preciso definir o problema de forma tão clara que seja possível dedicar o restante do tempo de curso à execução da pesquisa, e não ao seu planejamento. É comum que muitos estudantes fiquem presos nessa dinâmica de projetar problemas e abandoná-los, por considerar que eram insuficientes ou por perderem a motivação de realizá-los.

Essa dificuldade faz com que, nos cursos de doutorado, haja uma etapa específica de qualificação: um momento no qual o estudante precisa apresentar o seu problema de pesquisa e as estratégias metodológicas, para que essas estratégias sejam validadas por pesquisadores experientes, mas também para que o pesquisador fique definitivamente comprometido com a realização do projeto. Um projeto que passou por uma banca de qualificação não pode ser estruturalmente modificado, pois isso exigiria uma nova banca de qualificação, que é algo extremamente raro.

Essa importância central do problema de pesquisa faz com que ele precise ser muito bem pensado, visto que é necessário equilibrar os interesses que motivam o pesquisador a realizar a pesquisa (e que normalmente apontam para problemas complexos) e os imperativos práticos ligados ao planejamento de uma investigação factível (que apontam para recortes mais limitados).

Esse é um equilíbrio difícil e que, portanto, precisa ser bem refletido. Além disso, muitas vezes buscamos desenvolver nossos problemas de pesquisa e, no meio do caminho, descobrimos que não sabemos bem como formular as perguntas. Não sabemos se as perguntas são adequadas, se elas são respondíveis, se elas são relevantes. Nesses casos, é comum que nossa primeira providência seja a realização de estudos exploratórios: buscas dentro do conhecimento disponível de elementos que nos possibilitem formular os nossos projetos de pesquisa.

Estes estudos não são voltados a realizar os projetos, mas a adquirir os conhecimentos necessários para a sua formulação. Não devemos confundir estudos exploratórios, que são leituras voltadas a identificar o que já é sabido sobre um tema, com as pesquisas exploratórias, que são modalidades de investigação relativas a campos que não foram mapeados ainda e que, por isso, não contam com modelos descritivos e categorias teóricas suficientes para o desenvolvimento de pesquisas conclusivas. Exemplo desse tipo de pesquisa é o artigo de Hartman e Arguelhes intitulado "Disagreement on the Brazilian Supreme Court: An Exploratory Analysis" (2015), no qual os autores indicam que não há dados suficientes para guiar uma pesquisa conclusiva, mas que eles obtiveram resultados que sugerem a existência de certos fenômenos, cuja avaliação mais precisa demanda novas pesquisas.

4.4 Formulando perguntas

Um trabalho acadêmico é tipicamente a resposta a uma única pergunta, que compõe o problema de pesquisa.

Esse problema pode ser mais amplo ou mais restrito, a depender do tipo de trabalho a ser realizado. Monografias admitem perguntas mais amplas e complexas, divididas em várias partes e cuja resposta dependa de alcançar múltiplos objetivos: levantar vários tipos de dados, categorizá-los, compará-los, estudá-los sob uma perspectiva histórica antes de avaliar a sua configuração atual. Já os artigos, que são textos de dimensões reduzidas, exigem problemas mais focados, que possam ser devidamente enfrentados em 15 ou 20 páginas.

De toda forma, o trabalho que você elaborará a partir de sua pesquisa será  uma resposta a uma pergunta determinada. Se você estiver escrevendo uma dissertação ou uma tese, há espaço para você fazer duas (ou mais) perguntas articuladas, respondendo uma em cada capítulo. Inclusive, uma forma interessante de pensar uma dissertação de mestrado é a articulação de dois artigos, que se somam para responder à pergunta de pesquisa.

Uma tese de doutorado pode ser composta por três artigos, mas sugerimos que você não passe desse nível de complexidade, pois a multiplicação das perguntas tem uma capacidade muito grande de estender o horizonte temporal das investigações para além do prazo previsto. Um dos grandes riscos é começar pelo enfoque histórico ou pela análise de outros sistemas jurídicos, e consumir a maior parte do tempo disponível na realização desses estudos que são importantes como apoio para a sua investigação, mas que não constituem o núcleo do seu problema de pesquisa (exceto se você estiver realizando uma pesquisa especificamente de história do direito ou de direito comparado).

Para saber mais sobre modalidades de textos acadêmicos e suas peculiaridades, leia o post Modalidades de textos acadêmicos (Costa e Fulgêncio, 2020).

Em todas as áreas do conhecimento, a realização de pesquisas inovadoras exige o desenvolvimento da habilidade de fazer perguntas originais, relembrando a capacidade de estranhamento e de curiosidade de uma criança de sete anos. Essa é uma idade na qual todos nós perguntamos muitas coisas interessantes, mas esse ímpeto questionador é muitas vezes embotado pelas nossas experiências, que nos estimulam a deixar de fazer perguntas tolas e a aceitar as explicações do senso comum como respostas suficientes.

Essa tendência de assumir como válidas as crenças cotidianas e as afirmações de autoridade estão na contramão da sensibilidade acadêmica, que se nutre de curiosidade e de espanto. Aquilo que nos estranha se apresenta a nós como um problema, como uma pergunta que pede uma resposta. O desenvolvimento dessas respostas é justamente a realização das investigações que podem ampliar e renovar os nossos conhecimentos.

Exercício 2. Elabore uma lista de 5 perguntas sobre um determinado objeto. Se faltar inspiração, pense no que perguntaria sobre ele um economista, um sociólogo, um psicólogo, um jurista e um filósofo. Ou sobre o que perguntaria um juiz, um advogado, um promotor, um político e um administrador. Essa troca simulada de papéis pode estimular a criatividade para ver como as perguntas podem se multiplicar (e se relacionar).

O interessante do exercício de elaborar perguntas é que ele nos permite lidar, reflexivamente, com os nossos próprios interesses. Uma pessoa com inclinações históricas tende a valorizar investigações que tratem da evolução de um instituto ao longo do tempo, ou das implicações atuais de certas escolhas feitas no passado. Essa perspectiva diacrônica dos historiadores gera uma linha de tensão interessante, entre passado e presente (e futuro).

Um sociólogo tende a adotar uma perspectiva sincrônica, tratando do modo como determinados fenômenos podem ser lidos como resultados da interação de elementos diferentes de um sistema social. Em vez de pensar na evolução histórica, a sociologia se concentra na interação de subsistemas sociais.

Quando focamos no papel de certos agentes (grupos de pressão, classes, partidos), chegamos normalmente a descrições baseadas nos interesses dos agentes, que são típicas da ciência política. Quando deixamos de lado a questão da agência, e nos concentramos nos equilíbrios das interações sociais (modos de relação entre o judiciário e o legislativo, existência de normas), adotamos abordagens institucionalistas (menos focadas nas pessoas e seus interesses, mais focadas nos padrões efetivos de interação). Já o neo-institucionalismo busca produzir explicações que equilibrem o foco nos atores e o foco nas instituições.

As perspectivas filosóficas se concentram nas articulações conceituais. Os discursos efetivos dos ministros do STJ revelam que tipo de conceito de celeridade processual ou de acesso à justiça. O estímulo à autocomposição é uma questão de respeito à autonomia das partes ou é apenas uma defesa velada de redução das cargas de trabalho do judiciário? Que conceitos de legitimidade política estão inscritos nos discursos contemporâneos de valorização dos métodos autocompositivos?

E temos também as perspectivas dogmáticas, que perguntam sobre os modos corretos de interpretar, e que tipicamente não se articulam bem com as evidências (pois os seus critérios de validade passam longe da empiria).

Exercício 3. Cada perspectiva engendra suas próprias perguntas, cada pergunta carrega suas peculiaridades e nem sempre somos muito conscientes dos mecanismos que nos fazem preferir algumas abordagens. Para refletir sobre isso , analise as perguntas formuladas no Exercício 2 e identifique os tipos de abordagem que estão relacionados com cada uma delas.

É interessante notar que, embora não seja o tipo de trabalho mais frequente, há algumas modalidades de pesquisa científica que não partem de problemas de pesquisa bem delimitados. As já mencionadas pesquisas exploratórias, por exemplo, são voltadas a tornar o pesquisador mais familiarizado com fenômenos
relativamente desconhecidos. A identificação de problemas precisos pode corresponder, nesses casos, aos objetivos da investigação, e não ao seu ponto de partida. Como se verá mais à frente, a abordagem qualitativa de pesquisa científica admite, de forma geral, o desenvolvimento de perguntas e hipóteses antes, durante e depois das fases de coleta e análise de dados.

4.5 Abandonando perguntas

Precisamos ter em mente que não existem respostas boas para questões mal elaboradas. Mas também precisamos ter um certo controle sobre o nosso ímpeto questionador, pois a nossa capacidade de formular perguntas é muito maior do que a nossa possibilidade de obter respostas. Não basta elaborar muitas perguntas, mas é preciso escolher com muito cuidado as questões que abordaremos e aquelas de deixaremos de lado.

Deixar de lado uma pergunta interessante é um dos exercícios mais difíceis no planejamento da pesquisa. Quando o nosso interesse em descobrir coisas novas é muito elevado e passamos bastante tempo no exercício criativo de multiplicar as questões interessantes, podemos ficar tão apegados a nossas perguntas que se torna muito penoso optar por uma delas, em detrimento das outras.

A definição do problema de pesquisa é um exercício de liberdade normalmente acompanhado por certa angústia, pois a escolha de uma pergunta afasta da nossa investigação outras questões também muito originais e interessantes, que nos foi muito custoso formular. Vários pesquisadores fazem uma série de perguntas das quais gostam e têm dificuldade de ficar com apenas uma dela, o que os impele a fazer trabalhos voltados a responder todas elas ao mesmo tempo.

Este é um momento no qual os orientadores costumam precisar intervir, pois a sua experiência lhes mostra que, mais importante do que ter uma pergunta revolucionária e instigante, é ter uma pergunta viável. A multiplicação de perguntas é importante como exercício, mas será necessário abandonar várias das coisas que gostaríamos de saber, para focar naquelas que podemos descobrir no tempo disponível, com os recursos a que temos acesso.

Nesta etapa do planejamento, a fala típica do orientador é a de que os orientandos precisam reduzir o escopo da pesquisa, ou seja, que precisam focar em algumas questões e abandonar outras. Como raramente temos o desprendimento de abandonar nossas perguntas revolucionárias e ambiciosas, o olhar externo dos orientadores costuma ser tão necessário quanto gerador de tensões, pois acaba ficando em sua conta a frustração de um orientando que se vê instado a abandonar suas aspirações mais revolucionárias, para abraçar uma pesquisa menos impactante e mais realista em termos de prazo e de recursos.

Esse tipo de frustração muitas vezes azeda um pouco (ou nem tão pouco) a relação de orientação, mas os orientadores sabem que essa é a sua função específica na psicologia da pesquisa: assumir o peso de certas escolhas que são difíceis para os orientandos, mas também essenciais para que a investigação chegue a resultados adequados. Portanto, não se surpreenda com a constância e a ênfase com a qual seus orientadores (e os seus colegas mais interessados em te ajudar do que em ser simpáticos...) estimularão você a fazer recortes mais precisos e a escolher problemas menores e mais definidos.

4.6 Toda pergunta tem uma resposta?

Nem toda pergunta pode ser respondida, pois muitas vezes a própria pergunta é mal feita ou ela impõe desafios impossíveis.

  1. Qual o maior número inteiro?
  2. Com quantos paus se faz uma canoa?
  3. A constituição brasileira objetivamente permite o casamento de pessoas do mesmo sexo?

Algumas perguntas podem até ser respondidas, mas sem que isso envolva a articulação de evidências. Uma coisa é estudar mitologia hinduísta para descobrir quais são as características atribuídas a Ganesha ou a Shiva. Outra coisa é tentar descobrir quais são as verdadeiras características desses deuses. Uma coisa é estudar a jurisprudência do STJ para entender qual é o sentido atribuído ao princípio da proporcionalidade. Outra coisa é supor que existem sentidos objetivos para princípios constitucionais (ainda mais para os que são apenas implícitos).

As pesquisas propriamente ditas são investigações sobre evidências, com o objetivo de construir modelos descritivos ou explicativos. Porém, há perguntas que somente se tornam respondíveis quando pressupomos a adesão do investigador a certos parâmetros não empíricos, como as crenças religiosas ou dogmáticas. Os limites do que se pode descobrir a partir de uma investigação dos fenômenos são os limites das nossas atividades de pesquisa.

Podemos ir além desses limites, mas isso nos leva a terrenos diferentes da pesquisa e da ciência: no direito, essa tentativa está normalmente ligada ao desafio dogmático de identificar interpretações objetivamente válidas.

Exercício 4. Elabore uma pergunta que não pode ser respondida por meio de uma pesquisa e explique os motivos pelos quais isso ocorre.

Algumas perguntas são passíveis de resposta, mas para isso ser possível, elas precisam de  esclarecimentos adicionais. Se eu pergunto “chove?”, preciso esclarecer a pergunta, pois tenho que esclarecer onde, quando, e possivelmente o conceito de chuva (diferenciando, por exemplo, de garoa).

Tais esclarecimentos conceituais fazem parte da própria elaboração da pergunta, que precisa ser feita de forma a que o interlocutor possa entender o questionamento que é feito.

As perguntas condicionam as respostas. “Os refugiados X são políticos ou de guerra”. Pode-se partir de uma determinada concepção, que diferencie conceitos e a pergunta que parte desses conceitos somente pode ser respondida com base neles. Portanto, é preciso ter consciência da base conceitual que está por trás da pergunta, inclusive porque somente com base nela se pode compreender a resposta.

5. Justificativa: por que se deve pesquisar?

A justificativa é um elemento que inserimos nos nossos planejamentos para apresentar argumentos que  justifiquem a relevância de dedicar tempo e recursos para o enfrentamento do problema de pesquisa definido no projeto. Em projetos com impactos muito evidentes, a justificativa pode ser resumida.

Porém, há contextos nos quais a justificativa se torna crucial, especialmente quando se trata de trabalhos puramente teóricos. Nesses casos, é possível que seja necessário esclarecer bem quais são os potenciais impactos da pesquisa, pois é possível que o pesquisador enxergue certas conexões e implicações que não são perceptíveis pelas pessoas que vão examinar o projeto, sejam os professores de metodologia, sejam os orientadores ou mesmo seus próprios colegas.

Também é importante a justificativa quando não for evidente a ligação entre o projeto e a capacidade de orientação instalada no programa de pós-graduação. Além disso, quando há linhas de pesquisa definidas, um elemento relevante da justificativa é a demonstração de que o projeto se encaixa nas linhas e projetos de pesquisa existentes.

No caso de cursos de pós-graduação institucionais, a justificativa tende a ser especialmente relevante para marcar a ligação entre o projeto de pesquisa e os objetivos da organização que financia a realização do curso.

Um equívoco comum, a ser evitado, é fazer uma escolha de objetos de pesquisa apenas por causa de interesses ou conveniências particulares do investigador. Uma situação típica é a proposta de um estudo de caso sobre uma situação que o pesquisador conhece bem e considera relevante por causa de sua própria vivência, e não pelos impactos sociais e acadêmicos do evento a ser estudado.

Outro problema comum é propor a comparação de duas autoras (por exemplo, Hanna Arendt e Chantal Mouffe), pelo simples fato de que o pesquisador se interessa pela obra delas ou estudou anteriormente seus trabalhos. Uma comparação de abordagens (ou entre instituições ou países) precisa ser justificada pelos resultados que se pretende obter, e não pela facilidade do pesquisador em realizar o trabalho.

A justificativa é um elemento extremamente plástico, cujo conteúdo depende do modo como se projeta que as pessoas perceberão a relevância (teórica e empírica) da pesquisa e sua inserção nos objetivos específicos de cada programa. Quanto maior a possibilidade de que as pessoas não compreendam a importância e os impactos potenciais do projeto, maior a necessidade de oferecer argumentos suficientes para justificar que o projeto planeja uma pesquisa bem acoplada aos objetivos que ela deve cumprir (e que variam de programa a programa).

Uma vez formulada a primeira versão do problema, vale a pena pensar desde logo na justificativa, pois a ausência de argumentos sólidos para justificar a relevância do trabalho faz com que não valha a pena sequer pensar nos outros elementos do planejamento da pesquisa.

Como exemplos de justificativas para a realização de uma pesquisa científica, o autor do projeto pode apontar a relevância social do seu objeto; sua aptidão para resolver problemas concretos; sua capacidade de contribuir para o aprimoramento, reforço, reformulação ou substituição de uma teoria; e sua
inovação ou utilidade metodológica, decorrente do desenvolvimento de novos procedimentos ou desenhos de pesquisa ou da sua adaptação contextos diferentes daqueles em que já foram utilizados.

6. Procedimentos de pesquisa: como a pesquisa será feita?

A metodologia é uma questão central em todo projeto de pesquisa, pois ela esclarece as estratégias de abordagem que serão utilizadas com o objetivo de enfrentar o problema definido. Uma metodologia clara e precisa garante que as pessoas possam avaliar a solidez das conclusões.

Esses procedimentos precisam indicar o modo como os pesquisadores lidarão com as evidências empíricas: que tipo de dados pretendem produzir ou observar, como esses dados serão analisados, que tipo de conclusão se espera obter dos diferentes resultados possíveis.

Um tratamento mais específico dessa temática pode ser encontrado no texto Estratégias de Abordagem (Costa e Fulgêncio, 2020). Neste momento, convém observar que essas estratégias precisam ser pensadas para cada um dos objetivos da pesquisa e que elas se relacionam fundamentalmente com as informações que você pretende coletar e analisar.

6.1 Objetivos

Definido o problema e justificada a sua relevância, chega a hora de fazer uma descrição dos objetivos, que servem como mediação entre problema e metodologia.

Um equívoco típico é apresentar os objetivos que o pesquisador pretende alcançar com a pesquisa: contribuir para a compreensão de um objeto, participar do esforço de redução da corrupção, propiciar formas mais eficientes de realizar uma atividade, etc. São muito relevantes esses objetivos sociais da pesquisa, esses impactos que se pretende alcançar, essas finalidades que movem o pesquisador a mobilizar seus esforços. Mas o lugar desse tipo de finalidade é a justificativa, que indica os motivos pelos quais a pesquisa é relevante.

No tópico dos objetivos da pesquisa, trata-se de esclarecer quais são as metas que devem ser alcançadas pela própria pesquisa, motivo pelo qual os objetivos são centrados nos verbos que indicam o que o pesquisador precisa fazer para poder responder à pergunta formulada: identificar, medir, analisar, avaliar, descrever, explicar.

Os objetivos dizem o que fazer, e eles são diretamente conectados com as estratégias de abordagem, que indicarão como realizar os objetivos. Quanto mais objetivos são definidos, mais específicos deverão ser os procedimentos metodológicos, que precisam mostrar como cada um deles pode ser alcançado.

Uma lista concisa de objetivos permite uma metodologia também concisa. Inclusive, um dos erros típicos é ser muito ambicioso nos objetivos, multiplicando as metas as serem realizadas, sem que a metodologia acompanhe essa complexidade.

Uma deficiência grave (e infelizmente comum) dos projetos é apresentar metas grandiosas (indicando que desejamos realizar pesquisas altamente complexas) e uma metodologia genérica, que não está à altura dos objetivos do trabalho. Não se pode querer medir a eficiência de uma política pública por meio de um estudo bibliográfico. É impossível mapear o comportamento de um Tribunal analisando meia dúzia de decisões.

Todo objetivo inserido precisa estar devidamente conectado tanto com o problema quanto com a metodologia, o que deveria ser um estímulo a que sejamos econômicos com os objetivos, especialmente nos trabalhos em que o tempo é restrito: monografias de fim de curso ou de especialização não oferecem um cronograma compatível. Por outro lado, uma tese de doutorado precisa ter objetivos compatíveis com essa complexidade.

Não é preciso multiplicar infinitamente os objetivos, sendo conveniente que eles sejam mantidos em um número suficientemente amplo para que sejam capazes de desdobrar o problema em seus elementos principais (dados a serem levantados, descrições a serem feitas, relações a serem explicadas, etc.).

No caso de artigos, que são mais concisos, os objetivos podem ser ainda mais restritos. Bons artigos podem ser feitos com poucas ações, como: levantar certos dados, criar uma base de dados unificando os dados levantados com outros, classificar alguns desses dados, descrever um fenômeno complexo a partir das informações resultantes da pesquisa.

Pense sempre em qual deve ser a sequência efetiva de atividades que você pretende realizar. Por exemplo:

  1. Realizar estudos preparatórios e uma revisão bibliográfica, capaz de contextualizar o problema e avaliar se ele está corretamente dimensionado;
  2. Coletar dados sobre um conjunto de processos, o que corresponderá, na metodologia, à indicação do tipo de abordagem documental que será usada;
  3. Levantar dados sobre certas percepções, sendo que a metodologia deverá trazer os procedimentos que se pretende utilizar para alcançar esse objetivo: questionários, entrevistas, grupos focais, etc.
  4. Analisar os dados levantados, e a metodologia deverá indicar os tipos de análise que serão realizados.
  5. Avaliar se os dados levantados refutam a hipótese, sendo que a metodologia deverá especificar os testes de hipótese que serão utilizados.

Observe que todos os objetivos se ligam a outros elementos do projeto, notadamente a metodologia e a hipótese, o que faz com que seja necessário começar fazendo uma projeção dos objetivos (que determinará a amplitude da metodologia), mas a redação final dos objetivos deverá ser feita em conjunto com essas outras partes, para que elas sejam devidamente equilibradas.

Se o número de objetivos crescer, é útil distinguir objetivos gerais de objetivos específicos, desdobrando cada objetivo geral (como descrever ou compreender) em verbos mais específicos (identificar, medir, analisar, por exemplo), de forma que cada grupo de objetivos não fique muito grande (algo como três objetivos gerais, desdobrados cada um em dois ou três objetivos específicos).

A fase de coleta de dados envolve a definição de um plano, que pode ser mais ou menos estruturado, contendo os procedimentos para compilar os dados reputados necessários para a pesquisa. Esse plano pode levar em conta, dentre outros aspectos: a população-alvo da pesquisa, cujos dados são de interesse para sua realização; as fontes disponíveis para a obtenção desses dados; os métodos e procedimentos de coleta; e a definição da quantidade necessária de dados a serem reunidos.

O nível de detalhamento do plano de coleta depende, especialmente, da abordagem utilizada na investigação. As pesquisas quantitativas caracterizam-se pela utilização de dados representados por números, de modo que a coleta se faz por métodos padronizados e se fundamenta na medição de variáveis. Um exemplo típico de instrumento ou método de coleta de dados quantitativos é a aplicação de questionário com perguntas fechadas aos participantes, em que as categorias de respostas possíveis já são previamente especificadas. Nesse tipo de abordagem, um instrumento adequado reveste-se das características de objetividade (independência da subjetividade do pesquisador), confiabilidade (capacidade de reproduzir o mesmo resultado em várias medições de um mesmo objeto) e validade (ou acurácia, que diz respeito à extensão em que uma medida realmente reflete o objeto que está sendo mensurado).

Já nas pesquisas qualitativas, a coleta de dados não envolve, tipicamente, medições numéricas e os métodos de coleta não são padronizados como nas pesquisas quantitativas. O instrumento de coleta de dados é o próprio pesquisador, que busca captar os pontos de vista dos próprios participantes a partir de métodos tais como as entrevistas abertas e observação não estruturada. Em relação às pesquisas qualitativas, os critérios de adequação utilizados são diferentes: costuma-se levar em conta, dentre outros critérios, a credibilidade da pesquisa (aptidão para captar os significados atribuídos pelos próprios participantes, o que depende da minimização da interferência do pesquisador e da utilização de fontes variadas) e sua consistência lógica (similaridade entre os resultados obtidos por diversos pesquisadores a respeito dos mesmos dados ou do mesmo ambiente de pesquisa).

6.2 Estratégias de coleta de dados

Para a coleta de dados, há muitas formas de abordagem, cuja capacidade de contribuir para a sua investigação depende muito do tipo de informação que está ligada com a sua pergunta.

Se você pretende mapear as crenças ou percepções de um grupo de pessoas (como intenções eleitorais ou a apreciação dos juízes acerca de uma política), serão úteis abordagens ligadas à identificação desse tipo de informação, como entrevistas, questionários ou grupos focais.

Todavia, se você pretende levantar dados sobre como os fenômenos ocorrem (e não sobre como eles são percebidos), você deverá escolher formas de observação direta dos fenômenos ou alguma forma de pesquisa documental, na qual você possa ter dados que evidenciem os padrões existentes nos fatos.

6.3 Estratégias de análise de dados

Uma vez que você tenha coletado e organizados os dados, você precisará de utilizar estratégias de análise, que permitam tirar conclusões a partir deles. Por exemplo, você pode observar os andamentos processuais levantados a partir de análise documental, para tentar verificar se existem padrões que podem ser explicados a partir da comparação de algumas variáveis.

Um dos problemas típicos dos projetos em direito é indicar como método apenas a forma pela qual as informações serão coletadas (por exemplo, o caráter bibliográfico ou documental do levantamento das informações), sem indicar nada acerca do modo como os dados serão analisados, na busca de evidenciar que existem neles padrões que podem ser identificados.

Uma das abordagens típicas de análise dos dados é o teste de hipóteses: o pesquisador precisará indicar em que condições as hipóteses que foram formuladas serão consideradas como refutadas ou corroboradas pelos dados a serem obtidos.

Essa combinação de estratégias de coleta de informações e de análise de dados será a parte metodológica do seu projeto. Esse é um ponto fundamental, pois ele indica como a sua investigação pode responder ao problema de pesquisa, e permite que as pessoas contribuam para que você desenvolva abordagens adequadas a formular respostas adequadas.

6.4 Formulação de hipóteses

Uma das formas mais comuns de fazer a análise dos dados é realizar um teste de hipótese.

Nas ciências empíricas, o pesquisador formula intuitivamente uma hipótese (no que se convencionou chamar de contexto de descoberta) e desenvolve um teste empírico que consiga confirmar ou refutar a hipótese (no que se convencionou chamar de contexto de justificação).

Observe que a operação de testes de hipóteses implica alterações muito pontuais no nosso conhecimento. Não se trata de reescrever uma teoria, não se trata de modificar toda a nossa percepção dos fatos. Trata-se apenas de testar se uma determinada hipótese explicativa é compatível ou não com os fatos.

No direito, é comum que juristas escrevam um tratado de direito civil ou de direito processual, em abordagens que demonstram muita erudição e muito estudo, mas que não decorrem de pesquisa. Esses grandes tratados, tais como os livros de metodologia científica, são construídos por meio da compilação sistematizada de um grande esforço de estudo, e não de uma pesquisa original.

A pesquisa original caminha em passos mais lentos, com avanços extremamente discretos. A produção de conhecimentos novos só é viável quando damos passos pequenos, que podem ser rigorosos e seguros. Pesquisas muito abrangentes, com um número muito grande de temas e variáveis, geram complexidades tão imensas que os seus resultados não serão conclusivos.

Quanto maior a quantidade de variáveis, de elementos a serem explicados e de fatores explicativos, maior é a quantidade possível de explicações plausíveis. Por isso, trabalhos muito ambiciosos, que querem explicar o funcionamento de muitos fenômenos ao mesmo tempo, têm uma grande chance de gerar resultados inconclusivos. No caso das ciências, a busca de resultados conclusivos normalmente exige a formulação de hipóteses simples e comedidas, para elas poderem ser avaliadas com o rigor necessário.

Tenha em mente que a formulação da hipótese é uma atividade criativa, mas que a hipótese de pesquisa não é simplesmente um palpite. Frente a uma situação qualquer, cada um de nós pode projetar soluções possíveis, a partir de suas vivências e opiniões. Opinião, cada um tem a sua, mesmo sobre temas que conhecemos muito pouco.

Quando falamos em hipóteses de pesquisa, não se trata apenas de um palpite intuitivo, mas da combinação de um palpite intuitivo com um sólido apoio na literatura preexistente e com método de testagem. Sem uma ancoragem na teoria e um método capaz de testar a compatibilidade da hipótese com as observações empíricas, não teremos uma hipótese de pesquisa, mas apenas um palpite.

No caso das pesquisas em direito, é muito comum que os estudantes tenham uma tese a ser defendida, e não uma hipótese a ser testada. Se você faz uma investigação voltada a  demonstrar que a Constituição de 1988 consagra um direito implícito ao aborto, ou voltada a provar que o direito à vida impede qualquer discussão acerca da legalização do aborto, a sua vinculação a tais posicionamentos impedirá que o seu trabalho formule um teste empírico, cujo resultado decorra de algum tipo de observação.

O discurso jurídico não é baseado em testes de hipóteses, mas na defesa de pareceres, por meio de argumentos retóricos. Não faz parte da prática dos advogados, nem dos juízes, a criação de testes que avaliem a solidez de suas posições. O que esses profissionais constroem são discursos de justificação que tentam persuadir outras pessoas de que a sua interpretação dos fatos, ou do direito, é a mais adequada.

Se você pretente realizar uma pesquisa, e não um parecer, é preciso que você submeta as suas intuições a alguma forma de teste, que possa ter como resultados possíveis tanto a corroboração quanto a refutação das suas opiniões iniciais.  Portanto, você precisa sempre formular as hipóteses de forma concatenada com os métodos que servirão para testá-las.

Se você não tiver um método de teste, não formule hipóteses. Pesquisas descritivas não partem necessariamente de hipóteses porque não precisam corroborar ou refutar intuições explicativas. Pesquisas exploratórias não precisam ser conclusivas e, portanto, podem operar sem a formulação de hipóteses.

Mesmo no caso das pesquisas conclusivas, você pode organizar a sua investigação por meio de objetivos que digam o que você pretende alcançar, de modo que objetivos sejam acoplados a métodos capazes de realizá-los. A formulação de uma hipótese a ser confirmada/refutada é uma abordagem típica das ciências, mas não é a única abordagem possível.

Em suma, você pode dispensar a formulação de hipóteses, desde que tenha objetivos claros acoplados a métodos capazes de realizá-los. O que você não pode fazer, de modo algum, é comprometer o seu trabalho de pesquisa com a defesa de uma tese predeterminada, pois isso significaria converter a investigação em um parecer, que é um discurso tipicamente dedutivo e que não se relaciona com a busca de gerar novos conhecimentos. O objetivo das pesquisas é descobrir coisas novas, enquanto o objetivo dos pareceres é persuadir certas pessoas de que a sua opinião deveria prevalecer sobre outras.

7. Referencial teórico: que repertório de categorias será utilizado?

O referencial teórico deve indicar o repertório de conceitos que você utilizou na formulação do problema e na definição da metodologia.  O marco teórico não é um autor, pois pessoas não são teorias e, além disso, vários filósofos passam por fases diversas.

Um dos erros básicos é afirmar que o marco teórico é Habermas, Dworkin ou Kelsen, como se uma pessoa pudesse ser um referencial. O que interessa, de fato, é estabelecer qual é a teoria que você usa (no caso de você usar uma teoria específica), ou esclarecer o sentido em que você usa os conceitos aplicados nos seus argumentos.

Quando você se pergunta sobre a existência de um fenômeno (por exemplo, da monocratização das decisões), você normalmente usa categorias cujo sentido precisa ser explicitado (como monocratização e decisões). Quanto maiores as implicações avaliativas (e não meramente descritivas) dos seus conceitos (por exemplo, ao avaliar a eficácia de uma política ou a taxa de sucesso da defensoria pública), maiores serão as necessidades de explicar o sentido dos conceitos que você usou.

Em um mundo ideal, você até poderia se dedicar a desenvolver conceitos próprios, explicando o sentido no qual você usa todas as categorias referidas no seu trabalho e as suas perspectivas de abordagem. Porém, esse desenvolvimento teórico é uma construção difícil e trabalhosa, que envolve uma análise conceitual complexa e demorada. Além disso, o desenvolvimento de novos conceitos exige estudos muito amplos, análise das categorias teóricas já desenvolvidas, das metodologias utilizadas em outros trabalhos, das implicações mais amplas das escolhas conceituais.

7.1 Perspectivas teóricas das pesquisas empíricas

Quando falamos de teoria de base, não nos referimos ao repertório conceitual específico que você usa, mas tratamos de um elemento mais geral: o tipo de abordagem teórica que será usado. Mais do que uma teoria específica, trata-se do tipo de perspectiva que será adotada, no plano das estratégias conceituais ligadas à caracterização do seu objeto e das estratégias de abordagem.

Creswell (2007) chama de concepção filosófica ou perspectiva teórica o conjunto de crenças básicas que guiam a ação do pesquisador e identificam sua percepção geral sobre o mundo e sobre a natureza da pesquisa.

Entre as principais perspectivas teóricas que podem ser utilizadas, podemos destacar as abordagens descritas a seguir, que não designam teorias específicas, mas gêneros que podem englobar várias teorias diferentes. Note que elas definem a perspectiva geral de abordagem, mas dentro delas há várias teorias, que podem oferecer o repertório específico de categorias que serão mobilizadas em sua pesquisa.

7.1.1 Positivismos

De fato, Creswell fala em pós-positivismo, termo que evitaremos aqui porque o sentido jurídico dessa expressão é muito diverso do sentido que ela adquiriu em outros campos, como o da educação, que é a área de conhecimento da qual Creswell parte. Desde Auguste Comte, positivismo é uma palavra relacionada com as abordagens científicas, que buscam identificar padrões a partir da observação empírica da realidade.

Utilizaremos aqui a palavra positivismos, no plural, para realçar o fato de que são múltiplas as teorias que se encaixam nesse gênero, que envolve a busca de explicar a natureza e as sociedades a partir da identificação de relações de causalidade.

As limitações do positivismo clássico, demasiadamente confiante nas possibilidades de uma observação neutra da realidade, foram posteriormente mitigadas por abordagens neopositivistas que incorporaram o elemento linguístico, reconheceram o caráter provisório de todo saber científico e incorporam estratégias para mitigar os vieses que distorcem nossa percepção dos fatos e nossa interpretação dos fenômenos.

As abordagens de matriz positivista compreendem a pesquisa como uma observação cuidadosa dos fatos, a partir de métodos bem definidos, que têm como objetivo explicar os fenômenos a partir da identificação de relações de causa e efeito. Essa é uma postura que impele os pesquisadores a uma abordagem científica, no sentido de construir hipóteses explicativas e testá-las, especialmente por meio de experimentos criados para essa finalidade.

Esta é uma abordagem que tende a diferenciar claramente o contexto de formulação de hipóteses (que seguem a intuição do pesquisador) e o contexto de testagem dessas hipóteses (que precisam seguir procedimentos claramente definidos, para gerarem resultados confiáveis). A base do positivismo é a suposição de que uma observação cuidadosa sobre o mundo é capaz de servir como critério adequado para avaliar a solidez das hipóteses que o pesquisador elabora.

A fragilidade dessa abordagem é que ela se concentra nas relações de causa e efeito entre fenômenos empíricos, o que faz com que ela ofereça melhores resultados em pesquisas experimentais. Nos campos em que é muito difícil (ou impossível) o isolamento de variáveis, como na história, é difícil adotar uma perspectiva centrada na categoria de causa e efeito. Quando os fenômenos estudados são muito complexos e interagem de forma múltipla, as abordagens positivistas se mostram pouco adaptadas.

7.1.2 Construtivismos

O construtivismo é uma abordagem desenvolvida especialmente para lidar com fenômenos complexos, nos quais as abordagens causalistas do positivismo não oferecem resultados adequados.

As sociedades humanas são entidades muito complexas, formada por um tecido de relações múltiplas e por uma série de elementos simbólicos que organizam as nossas crenças e interações. O papel central desses elementos simbólicos para o agir humano faz com que várias perspectivas sociais se concentrem em compreender o modo como nossas culturas determinam o que percebemos como realidade.

Em vez de se concentrar em relações factuais de causa e efeito, o construtivismo tem por foco compreender as relações simbólicas a partir das quais damos sentido a nossa própria experiência, o que gera abordagens hermenêuticas, ligadas à interpretação do significado das condutas e das relações sociais. Esse tipo de abordagem tende a utilizar outros repertórios de análise, complementando as noções de causalidade com outras categorias como funções ou finalidades, que não são relações entre fatos, mas são elementos dos sistemas simbólicos que utilizamos para cartografar o mundo e nos relacionar com ele.

No construtivismo, que informa boa parte das construções históricas e sociológicas, o papel do pesquisador é apreender ou interpretar os significados que os outros atribuem ao mundo. Essa centralidade da hermenêutica faz com que essas perspectivas estejam ligadas a abordagens tipicamente qualitativas, modeladas para a consideração da complexidade de objetos que não podem ser tratados devidamente por meio de abordagens centradas no isolamento de variáveis e no teste de hipóteses de causação.

Essas são abordagens que adotam normalmente um marco historicista, reconhecendo que os universos simbólicos que habitamos são construídos dentro da história e que se modificam ao longo do tempo. Mesmo que se adote uma abordagem sincrônica, que analisa a conformação social em um momento determinado, o construtivismo ressalta o fato de que é preciso encarar os objetos estudados como envolvidos em um processo de constante transformação.

7.1.3 Institucionalismos

Uma perspectiva ligada ao construtivismo são os diversos institucionalismos, que são abordagens amplamente utilizadas em abordagens sociológicas e de ciência política, nos quais é comum que os trabalhos se vinculem a uma dessas perspectivas:

  • centrada no comportamento individual, partindo da ideia de que a explicação dos modos de atuação dos diversos agentes permite uma compreensão das interações sociais que eles estabelecem;
  • centrada nas explicações institucionais, partindo da ideia de que a ação individual não explica bem fenômenos coletivos, mas que eles podem ser compreendidos a partir da organização e da interação de instituições sociais;
  • que opta por uma combinação desses elementos, unindo explicações sobre os tipos de atuação dos agentes individuais e as estruturas institucionais existentes.

Estratégias institucionalistas se diferenciam de estratégias centradas na atuação individual dos agentes porque estas se baseiam em comportamentos observados no nível do indivíduo para tentar compreender fenômenos sociais a partir da atuação das pessoas, guiadas por seus interesses individuais. São perspectivas inspiradas na ideia de que a atuação coletiva só se explica como um aglomerado de atuações individuais, e que estas podem ser explicadas a partir de uma análise dos modos como as pessoas se comportam.

Abordagens institucionalistas estão centradas nos comportamentos sociais, explicados por critérios que não se concentram no indivíduo, mas em elementos das estruturas: organização das leis, estratégias administrativas, modelos de controle de constitucionalidade, inovações legislativas, etc.

Já o neoinstitucionalismo está ligado a uma tentativa de equilibrar essas duas estratégias, indicando que importam tanto a estrutura institucional quanto os interesses dos agentes. Em especial, há várias formas de neoinstitucionalismo que podem ser usadas, especialmente o neoinstitucionalismo histórico, que confere valor explicativo especial a elementos de história institucional, que são típicos das abordagens jurídicas.

7.1.4 Teorias críticas

As teorias críticas partem da percepção de que a abordagem descritivo-explicativa das perspectivas positivistas e construtivistas normalmente envolvem um caráter "conservador". A tentativa de compreender o modo como a realidade se organiza e descrever as interações observadas pode conduzir a narrativas que contribuem para a naturalização dos fenômenos observados, que passam a ser compreendidos como realidades inevitáveis.

Ocorre que vários desses fenômenos, especialmente no campo do estudo das sociedades, envolvem uma série de elementos que podem ser compreendidos como ilegítimos: concentração de renda e de poder, tratamentos preconceituosos, opressão a grupos minoritários, etnocentrismo, etc.

Uma das principais inspirações para esse tipo de abordagem é a afirmação de Karl Marx em sua XI tese sobre Feuerbach (1845):

Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.

O reconhecimento de que tanto a filosofia como a ciência podem ter um caráter implicitamente conservador é um dos elementos que inspirou vários teóricos a adotar uma perspectiva crítica, ou seja, engajada em movimentos de transformação, tipicamente descritos como movimentos emancipatórios.

Essas abordagens são chamadas por Cresswell e concepções reivindicatórias ou participatórias, marcadas pelo engajamento das pesquisas com uma agenda política, de transformação das práticas sociais, com o objetivo de emancipar as pessoas marginalizadas em relação às estruturas injustas que as limitam (2007) .

O reconhecimento de que não existe neutralidade científica estimula um engajamento explícito, que tem a vantagem de ser claro com relação a seus pressupostos valorativos, mas que também exige um cuidado especial na mitigação do viés de confirmação dos pesquisadores, que (como todas as pessoas) tendem a ser pouco exigentes com as necessidades de justificar as afirmações que convergem com suas intuições.

Atualmente, além das teorias críticas de viés marxista (ligados à garantia de uma divisão mais igualitária dos meios de produção), há várias outras perspectivas que mobilizam esse tipo de engajamento: teorias feministas, teorias ligadas ao movimento negro, teorias vinculadas à garantia da democracia. Em contextos especialmente tradicionalistas, mesmo concepções jusnaturalistas ligadas aos direitos liberais podem ser consideradas críticas, por se contraporem à naturalização conservadora das relações sociais hegemônicas.

7.1.5 Pragmatismos

Abordagens pragmatistas partem do reconhecimento de que são muito limitadas as noções de verdade envolvidas no positivismo e no construtivismo. O pragmatismo radicaliza o reconhecimento neopositivista de que as pesquisas científicas não conduzem a uma descrição objetivamente verdadeira do mundo e adotam um outro critério para analisar a validade dos modelos explicativos propostos: não devemos adotar os modelos mais sistemáticos ou verdadeiros, mas aqueles capazes de resolver problemas práticos.

O pragmatismo é um desenvolvimento das abordagens utilitaristas, que nos conduzem a abordagens consequencialistas: os objetos de pesquisa e métodos empregados são eleitos a partir do problema que se pretende resolver e das consequências que se busca alcançar. Essa abordagem tende a modificar radicalmente a noção de "verdade", que deixa de ser entendida como uma relação de compatibilidade entre enunciados e fatos: verdade é o que funciona em determinado contexto e momento.

Prestigia a liberdade do pesquisador e a utilização de múltiplos métodos, técnicas e procedimentos de pesquisa, conforme se ajustem às suas necessidades e propósitos.

A escolha entre essas perspectivas permite que não seja tão difícil você se posicionar nesse campo, o que oferece para você uma teoria de base, ou seja, a perspectiva geral que informa a sua abordagem.

7.2 Marco teórico

Uma vez definido o enfoque geral, você pode partir para uma identificação de qual é a sua unidade de análise e quais são os atributos que você mapeará a partir delas. Você pode levantar dados sobre processos, o que exige que você utilize um repertório de classificações: simples/complexo, penal/administrativo, procedente/improcedente, etc.

Toda classificação implica uma simplificação relativamente arbitrária dos fenômenos, e o marco teórico é justamente um esclarecimento sobre os principais conceitos, especialmente sobre as categorias que você usa para classificar os objetos observados. A definição da teoria de base e do repertório de categorias está ligado às questões metodológicas, visto que todo método opera dentro de sistemas conceituais específicos, que definem as unidades de análise a serem observadas e as possíveis relações entre os fenômenos.

A definição do marco teórico, que é operada conjuntamente com a dos métodos, especificará os objetos que serão observados (processos, instituições, decisões, votos, etc.), as relações que você pode mapear (relações de poder, relações de causalidade, correlações, imputação, etc.) e os tipos de conclusões que serão possíveis.

Uma vez que você defina uma perspectiva geral (que dirá que tipo de relações sociais você enfocará) e um marco teórico específico (que dirá o tipo de categorias que você utilizará no seu estudo), você terá um referencial teórico robusto. Para fazer esse tipo de escolha, é preciso ter um conhecimento amplo da área e das várias abordagens teóricas e metodológicas possíveis. Isso faz com que a fixação definitiva do marco teórico seja uma atividade em que é normalmente imprescindível a participação dos orientadores, que conhecem um repertório de abordagens diversas.

Quando uma pesquisa empírica demanda escolhas conceituais muito complexas, é muitas vezes necessário dar um passo atrás e realizar pesquisas teóricas amplas, grandes revisões de literatura, análises teóricas minuciosas em busca de garantir que a pesquisa estará baseada em um repertório sistemático de categorias consistentes.

Por isso mesmo, o mais comum é que você não desenvolva as categorias usadas no seu trabalho, mas que você se aproprie de categorias desenvolvidas por outros pesquisadores, que já as analisaram e testaram. Em vez de construir uma teoria (que é uma rede sistematizada de categorias), é mais frequente (e eficiente) que você estude os trabalhos existentes e utilize (com a devida citação) uma teoria.

Se você optar por uma combinação de teorias, há o risco de mesclar conceitos cujo acoplamento é problemático, ou cair em armadilhas (como usar duas teorias que têm um mesmo conceito, mas os empregam em sentidos diversos).

Teorias são perspectivas, e nem todas as perspectivas (para dizer o mínimo) são compatíveis entre si. Por exemplo, a mescla de teorias sociológicas (modelos explicativos baseados em uma análise externa de sistemas sociais) com teorias dogmáticas (modelos normativos comprometidos com os pressupostos internos de um sistema e com sua capacidade de gerar decisões) pode ser desastrosa.

Quanto mais descritivo o trabalho, menos complexa é a questão teórica envolvida. É claro que as descrições envolvem categorias, mas elas são menos controvertidas, e podem ser suficientes alguns esclarecimentos para evitar indefinições e mal-entendidos. Quanto mais avaliativo for o trabalho (seja ele de cunho explicativo ou mesmo normativo), mais a teoria precisa de critérios claros, para saber o que é uma interpretação correta, uma decisão válida, uma política eficaz. Quando não se busca apenas uma descrição, mas uma explicação causal, é preciso adotar teorias capazes de indicar as relações de causalidade e de proporcionar metodologias capazes de medi-las.

No campo do direito, como as perspectivas dogmáticas tendem a gerar perguntas sobre a interpretação correta do direito, o referencial teórico ganha muito relevo, sendo necessário esclarecer os critérios de correção que serão utilizados para avaliar as interpretações normativas.

O problema é que, muitas vezes, a pesquisa jurídica é circular, pois os resultados dependem mais dos pressupostos teóricos (e ideológicos) do pesquisador do que da própria pesquisa: se partimos do pressuposto que as interpretações corretas são aquelas que maximizam a proteção dos réus em processo penal, concluiremos que certas interpretações serão corretas ou incorretas, independentemente de qualquer análise dos fatos. Uma pesquisa cujo resultado não depende dos fatos observados, mas depende fortemente da ideologia do observador, dificilmente merece ser chamada de pesquisa, mas é isso que fazemos constantemente nos nossos discursos dogmáticos.

Essas complexidades teóricas fazem com que, normalmente, o desenvolvimento de novas teorias e metodologias seja um objeto de pesquisadores mais experientes e que elas surjam em pesquisas mais amadurecidas, mais tipicamente nos doutorados.

No caso de pesquisadores iniciantes, é mais seguro trabalhar com perspectivas mais descritivas (em que as questões teóricas tendem a ser menos dramáticas) ou com a aplicação de métodos e teorias desenvolvidas em outros trabalhos (buscando identificar os resultados da aplicação de uma teoria sólida a objetos novos). Nesses casos, o referencial teórico pode ser resumido a uma identificação das categorias relevantes e dos esclarecimentos necessários para a sua devida compreensão.

8. Elementos optativos

8.1 Introdução do projeto

A introdução não faz parte do planejamento da pesquisa em si, mas consiste em uma apresentação que tem por objetivo contextualizar o projeto, nos casos em que a compreensão do problema exige esclarecimentos prévios.

Não se trata de um texto que o pesquisador escreva para si próprio, como forma de traçar um plano, mas que serve para auxiliar os leitores a compreender o problema de pesquisa, sendo desnecessário (ou pouco útil) quando a pesquisa trata de objetos já bastante conhecidos, que dispensam maiores explicações. Assim, ele deve ser pensado como uma espécie de esclarecimento prévio, bastante conciso.

A introdução tem como público-alvo os leitores do projeto, seja o orientador que avaliará o planejamento propriamente dito, seja o professor da disciplina de metodologia (quando se trata do trabalho final de uma disciplina), seja uma eventual banca (quando se trata de processo seletivo ou de uma etapa de qualificação, típica dos doutorados).

Quando não for necessária uma introdução, pelo fato de o tema ser conhecido, os elementos introdutórios podem ser inseridos na Justificativa. Quando o tema for pouco conhecido, é razoável começar o projeto com um tópico de introdução e justificativa, que já apresente o trabalho e as razões de sua relevância.

Todo projeto de pesquisa lida com uma limitação no conhecimento disponível, e esse é um ótimo momento para explicar qual é essa deficiência (conceitos inadequados, descrições imprecisas, lacunas na literatura, interpretações equivocadas dos fatos, etc.), pois ela dá uma dimensão clara da contribuição que o seu trabalho pode dar para o campo.

A introdução também serve para descrever elementos do contexto do projeto, mas que se ligam com ele de forma um pouco indireta. Pode servir para narrar como surgiu a ideia, contar um pouco do contexto social no qual está inserido o problema de pesquisa. Pode servir para falar do problema social que inspirou o pesquisador a desenvolver a pesquisa.

Entretanto, é bem comum que as questões que podem ser tratadas na introdução sejam inseridas na parte da justificativa, que é onde se espera um desenvolvimento argumentativo dos impactos possíveis da pesquisa.

Na ordem textual, porém, a justificativa vem depois da definição do problema, o que pode causar uma dificuldade nos casos em que a própria compreensão do problema exige alguns esclarecimentos prévios.

Com isso, optar por uma introdução autônoma é uma escolha do pesquisador, que está normalmente ligada à percepção de que a compreensão do problema exige (ou, ao menos, é bastante impactada por) esclarecimentos conceituais prévios ou por uma rápida contextualização do objeto de pesquisa (o que pode ser importante quando se tratar de um objeto ou temática pouco conhecida pelas pessoas em geral ou pelas pessoas específicas que avaliarão o projeto).

Nos casos de processos seletivos, a introdução pode ser usada como estratégia para chamar a atenção do leitor (por exemplo, narrando uma história interessante), de forma a gerar uma identificação mais imediata da relevância do projeto, que será posteriormente desenvolvida na justificativa.

8.2  Revisão de literatura

Na revisão de literatura, você deve apresentar um mapeamento da produção existente sobre o seu objeto específico, e também da produção acadêmica conexa, com a qual você pode dialogar. Essa revisão é, de fato, menos um elemento do projeto do que uma explicitação dos resultados de seus estudos preparatórios, que são vitais para que você entenda as limitações do conhecimento existente e as ideias com as quais você precisa dialogar.

Para os leitores (especialmente para os avaliadores) do seu projeto, essa parte serve para mostrar o quanto você domina a literatura acerca do seu tema e se os estudos preparatórios foram suficientes para que você tenha conseguido definir um problema de pesquisa relevante.

A revisão não é uma lista de obras (as referências das obras citadas aqui virão ao final, nas referências bibliográficas), mas uma descrição do estado da arte da produção existente, indicando os principais trabalhos, as inovações recentes, as pesquisas em curso que você conseguiu localizar. Você precisa organizar a produção que você encontrou: os principais autores, textos (livros, artigos e outros) que você tenha identificado e cuja leitura e análise serão relevantes para situar e desenvolver o trabalho.

Essa revisão bibliográfica mostrará a sua capacidade de identificar os interlocutores relevantes, os textos centrais e o tipo de literatura com a qual você vai trabalhar nas suas análises. Além disso, vai demonstrar a sua capacidade de encontrar as ausências, as lacunas no conhecimento existente, que demandam novas pesquisas para que aprimoremos nossas descrições e explicações sobre determinados fenômenos.

Uma boa revisão, assim, mostra que seu trabalho buscará de alguma forma se somar a essa produção recente, suprindo uma lacuna na literatura – seja respondendo a uma questão que segue em aberto, seja utilizando uma abordagem inovadora, seja tratando um problema pouco explorado, seja propondo uma nova questão.

Consideramos útil que a revisão bibliográfica venha entre o problema e a justificativa porque a revisão faz uma boa mediação entre esses dois pontos fundamentais do projeto, esclarecendo muitas vezes quais são as lacunas nos conhecimentos existentes e, com isso, mostrando as potenciais contribuições da pesquisa.

Para facilitar o trabalho de redação, e evitar um retrabalho constante, sugerimos que a revisão bibliográfica já seja feita usando algum software de gestão de bibliografias, como o Mendeley e o Zotero (que são gratuitos) ou o EndNote (que é pago). Uma vez que os textos mapeados estejam nas bases de dados do seu programa, será muito mais simples inserir as citações, mudar a formatação das citações e, principalmente, será possível compor as referências bibliográficas do trabalho de modo automático, pois o próprio programa localiza os textos citados e produz a lista de referências bibliográficas. Nesses programas, há um trabalho um pouco custoso de inserir os dados (que muitas vezes são extraídos de forma automática dos textos lidos em formatos digitais), mas esse custo se paga rapidamente pelo tempo economizado ao longo do trabalho. Uma comparação deles pode ser encontrada no site de apoio ao pesquisador da USP.

A revisão de literatura muitas vezes vem combinada com outros tópicos. É comum que ela se siga à definição do problema, como forma de contextualizá-lo, mas ela pode vir junto com a justificativa (em que a revisão é usada para indicar que o tema é tão relevante que existe um debate contemporâneo sobre ele) ou com o referencial teórico (em que a revisão é usada para indicar que há vários repertórios de conceitos que podem ser utilizados).

8.3 Cronograma

O cronograma é parte do planejamento para que o pesquisador consiga garantir que o trabalho necessário caiba nos prazos disponíveis e também para que estabeleça metas temporais.

Uma forma típica de apresentar o cronograma é desenhar uma tabela em que o tempo constitua as colunas (medido em meses, trimestres ou semestres, a depender do prazo) e cada linha seja um dos objetivos (incluindo também pesquisas exploratórias, quando necessário, e redação do texto final). Você pode chegar a resultados como:

Nesse exemplo, marcamos com um 'x' os períodos em que se planeja realizar cada atividade, lembrando que várias atividades podem ser realizadas concomitantemente. Um cronograma linear com objetivos sucessivos normalmente não é muito factível e soa como demasiadamente artificial.

9. Modelo de projeto de pesquisa

Para facilitar a escrita do projeto, criamos um Modelo de Projeto de Pesquisa que pode ser usado como base para você fazer o seu planejamento.