No século XVIII, as teses de David Hume colocaram em xeque tanto os discursos científicos como os discursos filosóficos.

Por um lado, Hume estabeleceu claramente o potencial dos raciocínios indutivos utilizados pelos cientistas, esclarecendo de maneira definitiva que o conhecimento de fatos empíricos isolados é incapaz de conduzir a afirmações objetivamente verdadeiras acerca de conjuntos de fatos. Depois de Hume, os cientistas tiveram de incorporar a seus modelos o reconhecimento de que tudo o que eles fazem é oferecer versões explicativas baseadas na crença dogmática de que a natureza é regular (uma crença que não é passível de verificação objetiva). Essa crítica parecia colocar um limite intransponível para uma ciência que estabelecia para si mesma um objetivo inviável: descrever o mundo tal como ele é.

Por outro lado, Hume também deixou claro que o objetivo fundamental da filosofia de matriz grega (descobrir as verdades últimas sobre o mundo) também era inviável. As verdades últimas não passavam de crenças e os valores objetivos nem eram valores (e sim crenças arraigadas) nem eram objetivos (porque dependiam dos contextos em que foram desenvolvidos). Essa crítica parecia colocar um limite intransponível para uma filosofia que pretendia esclarecer as verdades objetivas do mundo a partir de uma análise racional.

Depois de Hume, a ordem natural do mundo pareceu inacessível tanto para a filosofia quanto para a ciência. Nem o empirismo dos cientistas parecia capaz de explicar objetivamente a empiria, nem o racionalismo dos filósofos parecia capaz de explicar objetivamente os fundamentos valorativos do mundo. As críticas de Hume perturbaram tanto os filósofos como os cientistas, mas o impacto dessa crítica foi muito diferente nesses dois campos.

O terremoto humeano na filosofia

Para a filosofia, Hume representou um cataclisma. Reconhecidos os limites da nossa capacidade de identificar racionalmente valores e verdades em si, a partir de uma análise do mundo, a capacidade filosófica de explicar o mundo pareceu algo entre extremamente limitada ou simplesmente nula. Após séculos afirmando que o conhecimento mais importante não era o das coisas físicas, mas o da própria ordem metafísica do mundo, os filósofos foram desafiados a admitir que o projeto filosófico grego era falido, desde o início.

Devemos reconhecer que o próprio Hume não decretou essa falência, pois ele se dedicou a indicar que tanto a ciência como a filosofia eram inevitáveis, em decorrência da natureza humana. Dada a nossa própria natureza desejante e racional, não poderíamos escapar de certas crenças, que seriam para nós tão inevitáveis quanto o amor e o ódio. Mas essa resposta de Hume não convenceu muito os filósofos nem os cientistas, motivo pelo qual ela desencadeou uma busca de propostas alternativas, dentre as quais a mais célebre veio a se tornar a alternativa Kantiana: o homem não pode explicar filosoficamente o mundo (que lhe é inacessível), mas pode falar com segurança sobre a própria racionalidade humana (que ele conhece de modo direto, sem mediação pelos sentidos).

O kantismo buscou salvar o projeto filosófico estabelecendo um lugar de destaque para os valores objetivos, mas produziu um sistema filosófico deflacionado: as verdades racionalmente necessárias existiam, eram fundamentais, mas eram poucas e estavam muito longe de formar um sistema completo. O malabarismo retórico pelo qual Kant buscou extrair da sua racionalidade os valores puramente racionais conduziu a um sistema mirabolante e esotérico, abstrato demais para ser compreendido pelas pessoas que podiam viver sem uma fundamentação objetiva de seus valores (isso é, de quase toda a humanidade, que vivia imersa em suas preferências sem exigir delas uma fundamentação filosófica racional e objetiva).

As respostas que a filosofia pós-Hume poderia oferecer não pareciam úteis para a maioria dos seres humanos. Para as pessoas que demandavam um sistema completo de valores, a tradição e a religião ofereciam respostas mais completas que a filosofia deflacionada de Kant e seu imperativo categórico. Dentro de uma tradição religiosa, a ideia de que as verdades não passam de crenças soava estranha, quando não era considerada propriamente herética. Essas pessoas até poderiam ver com bons olhos o esforço kantiano de salvar os valores objetivos, mas o resultado alcançado por Kant parecia inútil: ele nem conseguia salvar os valores tradicionais como um todo e, mesmo quando conseguia, o resultado era um sistema de conceitos abstrato demais para ser compreendido fora do círculo esotérico dos filósofos.

A marola humeana na ciência

A crítica de Hume às bases filosóficas da ciência e a suas pretensões de veracidade foi tão sólida e tão contundente quanto a sua crítica à filosofia. Kant bem que tentou salvar a dignidade filosófica da ciência, mas parece que os cientistas não estavam de fato muito preocupados com os fundamentos filosóficos de sua atividade.

E ocorre que, diversamente da filosofia, cujo impacto na vida das pessoas foi pequeno no século XIX, o impacto da ciência foi gigantesco. A ciência não demanda uma justificação filosófica para que seja aceita e respeitada, ela demanda resultados práticos efetivos, que foram alcançados em demasia ao longo do século XIX, em vários campos diferentes. Assim como a religião tampouco demanda uma justificação filosófica, pois o seu sucesso depende de que os fiéis estejam efetivamente convencidos da veracidade das revelações.

É possível que somente a filosofia demande realmente uma justificação filosófica sólida, que o discurso filosófico pós-humeano não tinha como oferecer. A ciência, a religião e a astrologia podem passar muito bem sem filosofia alguma, no sentido de uma reflexão explícita e crítica sobre os seus próprios fundamentos. E o fato é que todas as disciplinas humanas podem passar muito bem sem uma filosofia de matriz grega: sem a ideia de que a verdade objetiva pode ser acessada por meio de uma reflexão racional, que evidencie as características da ordem natural imanente.

Em suma, a crítica de Hume à falta de solidez filosófica do conhecimento científico em nada limitou a confiança social na ciência e o reconhecimento quase universal dos seus resultados na medicina, na química, na engenharia e depois na biologia, na economia, na sociologia e na psicologia. Ao longo do século XIX, a filosofia ofereceu discursos pouco atraentes, que tentavam sem sucesso afirmar a relevância de uma verdade metafísica em um mundo cujo principal discurso de verdade dispensava esse tipo de justificação. Que sentido havia em insistir na inacessibilidade do mundo físico pela racionalidade quando os discursos sobre o mundo físico nos ofereciam os avanços da ciência moderna?

A importância social da filosofia foi radicalmente reduzida, e o principal signo disso é que, de meados do século XIX até meados do século XX, as grandes inovações conceituais não vieram dos filósofos, e sim dos cientistas. Antes disso, os cientistas formularam explicações empíricas geniais e inovadoras, mas a inovação conceitual era um campo dos filósofos. Galileu, Kepler e Newton foram grandes cientistas, mas não foram filósofos influentes. Francis Bacon, Descartes, Leibniz foram grandes cientistas e grandes filósofos, em um tempo no qual não havia oposição fundamental entre esses dois discursos, que se voltavam a compreender a ordem natural.

Para todos eles, a ciência era philosofia naturalis, ou seja, o conhecimento reflexivo aplicado ao campo da natureza (e não à moral, à política e a lógica, por exemplo). Até meados do século XIX, as grandes categorias do pensamento foram formuladas por filósofos: Hobbes, Locke, Rousseau, Hume, Kant, Burke, Montesquieu, Madison, Hamilton, Sieyès e Hegel e outros cunharam as categorias da filosofia política e moral da modernidade com base nas reflexões clássicas e renascentistas, inspiradas pelos ideais filosóficos da tradição grega.

O começo do século XIX assistiu a um divórcio crescente entre a filosofia e a ciência, em um contexto no qual a ciência ganhava espaço e a filosofia perdia. Essa divergência foi percebida e teorizada pelos pensadores de meados do século XIX, que formularam uma série de ideias francamente anti-filosóficas (mais precisamente, de uma filosofia anticlássica).

Um dos grandes filósofos dessa época foi Auguste Comte, cuja grande contribuição foi anunciar a necessidade de um reconhecimento de que somente as abordagens científicas oferecem bases sólidas para o conhecimento. A filosofia se torna uma filosofia cientificista, cética com relação à capacidade racional de apresentar as verdades absolutas. Comte chega ao limite de afirmar que a abordagem metafísica típica da filosofia faz parte de um momento histórico evolutivamente anterior, que precisa ser superado.

Outro influente filósofo de meados do século foi Stuart Mill, que fez uma crítica muito ácida ao kantismo e a sua tendência de encontrar resposta a todas as questões filosóficas na estrutura da própria racionalidade. O utilitarismo de Mill desenvolvia as ideias de Bentham, que se inspirava diretamente em Hume e na perspectiva britânica que se centrava na sensibilidade (e não em uma pura racionalidade).

Mais grave do que essa divergência interna me parece o fato de vários dos conceitos mais inovadores do século XIX não terem sido formulados por filósofos, mas por cientistas sociais (como a ideologia de Marx) e por cientistas naturais (como a evolução de Darwin) que tinham um viés nitidamente historicista. No começo do século XX, esse deslocamento do pensamento conceitualmente inovador para as ciências foi ainda maior: o conceito de tempo da teoria da relatividade, o princípio da incerteza da teoria quântica, o inconsciente freudiano, a legitimidade weberiana... a filosofia tinha deixado de ser o celeiro primordial dos novos conceitos.

Kant foi o campeão de uma filosofia impotente, consciente de sua incapacidade de realizar plenamente o projeto de esclarecer racionalmente a ordem natural do mundo. Nesse contexto, não é de se admirar que os filósofos novecentista que mais costuma encantar os ouvidos contemporâneos é o oposto absoluto de Kant: Friedrich Nietzsche realizou o projeto anti-kantiano de levar as críticas de Hume às últimas consequências: negar a existência de verdades fora da história, afirmar que o desejo por verdades absolutas é uma perversão da racionalidade e que todos os valores eram artificiais e criados pelas interações demasiado humanas.

Nietzsche é o herói da filosofia antifilosófica, no sentido de que ele recusa a abordagem grega como um grande equívoco do pensamento e busca assentar as bases para uma filosofia alternativa: assentada na história, na contingência, na genealogia das nossas formas de pensamento. Nietzsche abriu espaço para vermos nossos modelos filosóficos como modelos filosóficos e para tentarmos compreender como eles se estruturam internamente (quais são as suas articulações conceituais) e como eles se vinculam com o ambiente social em que foram formulados (quais são as suas condicionantes extra-filosóficas).

O ápice desse movimento ocorreu com o neopositivismo do século XX, no qual a filosofia que ainda fazia sentido desenvolver foi relegada ao papel de ser uma reflexão sobre a ciência. De um discurso principal, a filosofia foi passando a ser um discurso que passou a ter uma função menor, fixando-se como parte da reflexão conceitual. Um tipo de análise que era importante para garantir a solidez da ciência, mas que não poderia se equiparar com o discurso científico em rigor nem em importância, pois a filosofia somente poderia falar dos discursos, e não do mundo empírico.