1. A ordem natural e o governo
O elemento da filosofia do direito com raízes mais antigas é a ideia de que existe uma "ordem" que subjaz ao mundo, conferindo-lhe uma organização própria. A concepção de que as relações sociais estão inscritas nessa ordem nos acompanha desde a antiguidade, fomentando a noção de que os padrões de organização social devem espelhar as formas naturais de organização.
A equivalência entre ser legítimo e ser natural é um dos núcleos das ideologias conservadoras, que buscam justificar a existência de diferenças sociais e privilégios estratificados com base em estratégias de naturalização. Em várias culturas, tanto antigas como atuais, a identificação de que certos traços culturais são naturais permite a construção de narrativas voltadas a conferir valor objetivo a nossos modelos de organização social. Quando inscrevemos a ordem social em uma ordem natural, que deve ser espelhada em nossas sociedades, criamos a ideia de que certas relações humanas têm um caráter necessário e que toda tentativa de alterar essas configurações constitui uma violação das leis da natureza. Além disso, nas culturas que entendem que as leis da natureza foram instituídas por uma divindade, a ordem natural se confunde com a ordem sagrada, cuja violação caracteriza uma ofensa aos deuses.
Esse processo de naturalização não é um monopólio das abordagens conservadoras, pois a mesma identidade está na base de uma série de ideologias revolucionárias, que adotam abordagens também naturalizantes, mas que buscam indicar que a ordem política hegemônica está baseada em uma corrupção dos padrões naturais, cuja recomposição exige uma forma de retorno à verdadeira natureza.
Essa identidade é um elemento tão repetido em várias culturas que é razoável pensar que houve um tempo no qual não havia sequer uma oposição entre ordem natural e social: havia apenas a ideia geral de uma ordem sagrada dentro da qual a vida se desenvolvia. A organização das sociedades era apenas uma das dimensões dessa grande ordem imanante, não havendo uma fronteira clara que distinguisse esses elementos. Nas culturas em que existe essa equivalência, as relações socialmente instituídas (ou parte delas) podem ser vividas como se elas representassem uma realização da ordem sagrada.
A continuidade indiferenciada entre a ordem social e a ordem natural parece ter sido rompida pela emergência dos governos, diferenciando os membros de uma sociedade em clãs governantes e governados, o que introduz a possibilidade de uma tensão efetiva entre a ordem política (centrada nos governos) e a ordem natural (permeada pelos valores tradicionais).
Existem traços dessa cisão nos textos de diversas tradições antigas, especialmente na China, na Índia e na Grécia. Nessas culturas, categorias que apontam para a ordem natural (Tao, Rta e Physis) parecem ganhar importância simultaneamente à percepção de que os seres humanos estão submetidos a duas ordens que podem entrar em contradição: aquela formada por suas obrigações tradicionais e aquela formada pelos comandos dados pelos governantes.
O modo tradicional de compreender essas tensões é promover uma tentativa de unificação: a relação governante/governado costuma ser apresentada como parte da própria ordem natural, que estabelece a necessidade de que existam, em cada grupo humano, certas pessoas investidas de autoridade política. Essa inscrição da hierarquia política (artificialmente criada) na própria ordem natural é condizente com as percepções tradicionais, que colocam o governo como garante e promotor dos valores que compõem a própria tradição.
A função dos governantes não seria criar o novo, não seria legislar ou promover transformações na sociedade: seria apenas o de garantir a estabilidade social. Sua função política era baseada na intuição de que as sociedades humanas dependem de uma coordenação entre seus membros que somente é viável quando existe alguma forma de domínio, ou seja, uma submissão de muitos governados a alguns governantes. Sem uma autoridade política capaz de garantir a observância da ordem natural, as narrativas tradicionais indicam que as sociedades tendem a se dissolver: seja pela conquista externa de uma nação enfraquecida, seja pela desagregação decorrente de uma guerra civil.
Essa combinação faz com que, nas narrativas tradicionais, a organização social seja apresentada como parcialmente natural e parcialmente política, sendo que o papel primordial da autoridade política seria garantir a coerência entre esses dois elementos, por meio do exercício de um governo feito em nome da ordem sagrada e que tem o objetivo (ao menos declarado) de reforçar e proteger a ordem natural.
Uma velha ideia, ainda presente nas sociedades contemporâneas, é a de que a ordem social está sob constante ameaça de pessoas que tentam afastar-se dos valores corretos, o que exige um processo constante de restauração da sociedade, de purificação dos valores e das pessoas corruptas, para que a sociedade permaneça estável e sã.
Tudo estaria bem equilibrado se não fosse o fato de que os próprios governantes são muitas vezes os primeiros a se afastar da lei natural (ou seja, dos deveres impostos pela própria ordem natural) e a impor a sua vontade, mesmo quando ela é injusta. O grande fantasma dos governos antigos era a tirania, ou seja, o governo exercido por uma autoridade que busca o seu bem pessoal em vez de promover a observância da lei natural.
O pensamento político tradicional é organizado em torno desse caráter paradoxal da autoridade política, que é necessária para promover a ordem social, mas que representa também um grande risco para essa própria ordem. Em várias culturas, são desenvolvidas narrativas que reforçam a existência de um poder natural legítimo (do pai, do monarca, da cidade, do profeta), mas que deve ser exercido em estrita observância da ordem natural. Essa tensão entre natureza e autoridade política é a forma pela qual essas sociedades percebem e descrevem a tensão subjacente entre os interesses dos governantes e os valores tradicionais, visto que o que uma sociedade chama de lei natural não são leis existentes na natureza, mas são deveres tão importantes para uma cultura que ela os considera sagrados (e, portanto, naturais).
Uma das expressões clássicas dessa tensão está na tragédia Antígona, escrita pelo dramaturgo grego Sófocles (~496 a.C. a ~406 a.C). Na tragédia Édipo Rei, Sófocles conta como Laio, rei de Tebas, entregou seu filho para ser morto quando recebeu o vaticínio de que o destino dele era matar o próprio pai. O bebê foi deixado para morrer, mas foi resgatado por um pastor e posteriormente adotado pelo rei de Corinto. Quando se tornou adulto, Édipo (que não sabia de sua real origem) recebeu o vaticínio de que era seu destino matar o pai e esposar a própria mãe, o que fez com que ele abandonasse Corinto. Em suas andanças, terminou por matar um homem com o qual ele discutiu na estrada (e que era seu verdadeiro pai, Laio) e por se tornar rei de Tebas quando ele conseguiu livrar a cidade da Esfinge, onde terminou se casando com Jocasta (que era sua verdadeira mãe).
Édipo teve com Jocasta quatro filhos (os homens Polinices e Etéocles e as mulheres Antígona e Ismênia) e, quando soube de sua verdadeira história, furou os seus próprios olhos e partiu em exílio. Além disso, amaldiçoou os filhos varões, afirmando que eles morreriam às mãos um do outro. Essa maldição veio a cumprir-se no cerco de Tebas, quando os irmãos lutaram entre si pelo trono e terminaram por matar um ao outro na batalha.
Com a morte dos dois herdeiros de Édipo, o governo da cidade passou a Creonte, irmão de Jocasta, e é nesse ponto que começa a Antígona de Sófocles. Creonte editou um decreto dispondo que Etéocles, que havia defendido a cidade, fosse enterrado com todas as honras e que Polinices, que havia atacado a cidade para tomá-la, permanecesse insepulto. E, para garantir o cumprimento dessa ordem, determinou que quem enterrasse Polinices seria condenado à morte. Ao tomar conhecimento desse decreto, Antígona procura Ismênia, afirmando que procederia aos ritos funerários de Polinices e convidando a irmã a ajudá-la. Frente a essa proposta, Ismênia responde que:
É preciso lembrarmo-nos de que nascemos para ser mulheres, e não para combater com os homens; e, em seguida, que somos governadas pelos mais poderosos, de modo que nos submetemos a isso, e a coisas ainda mais dolorosas. Por isso eu rogo aos que estão debaixo da terra que tenham mercê, visto que sou constrangida, e obedeço aos que caminham na senda do poder. Atuar em vão é coisa que não faz sentido. (Sófocles 2005)
Apesar da negativa da irmã, Antígona realiza sozinha o funeral de Polinices, sendo presa logo em seguida e levada à presença de Creonte, que a interroga:
Creonte: Sabias que fora proclamado um édito que proibia tal ação?
Antígona: Sabia. Como não havia de sabê-lo? Era público.
Creonte: E ousaste, então, tripudiar sobre estas leis?
Antígona: É que essas não foi Zeus que as promulgou, nem a Justiça, que coabita com os deuses infernais, estabeleceu tais leis para os homens. E eu entendi que os teus éditos não tinham tal poder, que um mortal pudesse sobrelevar os preceitos, não escritos, mas imutáveis dos deuses. Porque esses não são de agora, nem de ontem, mas vigoram sempre, e ninguém sabe quando surgiram. Por causa das tuas leis, não queira eu ser castigada perante os deuses, por ter temido a decisão de um homem. Eu já sabia que havia de morrer um dia —como havia de ignorá-lo? —, mesmo que não tivesses proclamado este édito. E, se morrer antes do tempo, direi que isso é uma vantagem. Quem vive no meio de tantas calamidades, como eu, como não há de considerar a morte um benefício? E assim, é dor que nada vale tocar-me este destino. Se eu sofresse que o cadáver do filho morto da minha mãe ficasse insepulto, doer-me-ia. Isto, porém, não me causa dor. E se agora te parecer que cometi um ato de loucura, talvez louco seja aquele que me condena. [...]
Antígona: Intentas algo mais do que prender-me para me matar?
Creonte: Eu não. Com isso me dou por satisfeito.
Antígona: Então por que hesitas? Assim como das tuas palavras não me vem nenhum deleite, nem poderá jamais vir, assim também o meu parecer te é desagradável por natureza. E, contudo, onde podia eu granjear fama mais ilustre do que dando sepultura ao meu próprio irmão? Todos os que aqui estão diriam também como aprovam este ato, se o medo não lhes travasse a língua. Mas é que a realeza, entre muitos outros privilégios, goza o de fazer e dizer o que lhe apraz. (Sófocles 2005)
Apesar da defesa de Antígona, Creonte decide prendê-la em uma caverna. Logo em seguida, Tirésias, um célebre adivinho, procura Creonte e o alerta que seus atos trariam para Tebas grandes desgraças. Temeroso do destino que os deuses lhe reservariam, Creonte decide soltar Antígona e enterrar Polinices. Todavia, já era tarde, pois Antígona havia-se matado. Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona, ao ver morta a amada, mata-se aos olhos do pai. E Eurídice, esposa de Creonte, ao ver o cadáver do filho, também comete suicídio. Assim, o castigo dos deuses é deixá-lo vivo.
Na tragédia Antígona, o enredo criado por Sófocles gira em torno do dilema existente entre obedecer aos mandamentos da tradição religiosa e obedecer às ordens impostas pelo rei. Essa tensão é muitas vezes descrita como um choque entre o direito natural, representado pelas regras religiosas, e o direito positivo, representado pelas ordens do rei.
Porém, creio que essa caracterização nos conduz a enganos, pois temos um choque entre as obrigações impostas a Antígona por dois dos papéis que ela desempenha: enquanto irmã, ela tinha um dever natural de promover o sepultamento de Polinices; enquanto cidadã, ela tinha o dever natural de obedecer às ordens do rei. E é justamente dessa impossibilidade de cumprir simultaneamente os dois papéis que vêm o caráter trágico da história de Antígona.
Embora Antígona afirme a prioridade das regras estabelecidas por Zeus, com relação às regras estabelecidas por Creonte, não existe uma argumentação clara no sentido de que as regras impostas pelo rei de Tebas seriam inválidas. Mesmo Tirésias não afirma que as regras seriam ilegítimas, mas apenas que o Rei atrairia desgraças na medida em que tinha estabelecido leis que colidiam com os deveres impostos pelos Deuses.
No pensamento grego clássico, a submissão de um tebano a Tebas (e a seu governante) fazia parte da ordem natural, assim como a necessidade de seguir os ritos religiosos. Não havia como evitar o choque entre essas duas ordens e, por isso, Antígona não tinha como evitar descumprir uma delas e de arcar com consequências terríveis de qualquer de seus atos. Essa inviabilizada havia sido criada por Creonte, quando editou uma lei contrária aos deveres religiosos, que é algo do qual ele deveria se restringir, para não gerar consequências nefastas. Porém, Sófocles não se coloca em dúvida a autoridade de Creonte para estabelecer essa lei: ele apenas explora o fato de que o choque entre essas ordens conduz a resultados trágicos.
O romancista Milan Kundera chama atenção para o fato de que a peça Antígona foi encenada repetidas vezes no século XX como se Creonte fosse um vilão e Antígona fosse uma heroína, lutando contra a opressão imposta por um governante que impõe obrigações ilegítimas. Essa luta do bem contra o mal reduz o caráter humano das tensões entre Creonte e Antígona e proporciona a leitura da história como um drama (a luta de Antígona contra a opressão) e não como uma tragédia. Contra essa interpretação, escreveu Kundera:
After painful experiences, Creon, a ruler of a Greek city, understood that personal passions not brought under control pose a mortal danger to that city; convinced of this, he confronts Antigone, who wishes to bury her brother and who is protecting the no less legitimate rights of the individual. She dies, and Creon, shattered by his guilt, determines "never to see another day". The story of Antigone inspired Hegel to his magisterial meditation on tragedy: two antagonists face to face, each of them inseparably bound to a truth that is partial, relative, but, considered in itself, entirely justified. Each is prepared to sacrifice his life for it, but can only make it prevail at the price of total ruin for the adversary. Both are at once right and guilty. Being guilty is to the credit of great tragic characters, Hegel says. Only a profound sense of guilt can make possible an eventual reconciliation.
Freeing the great human conflicts from the naive interpretation of a battle between good and evil, understanding them in the light of tragedy, was an enormous feat of mind; it brought forward the unavoidable relativism of human truths; it made clear the need to do justice to the enemy. But moral manicheism has an indestructible vitality. I remember an adaptation of Antigone I saw in Prague shortly after the second world war; killing the tragic in the tragedy, its author made Creon a wicked fascist confronted by a young heroine of liberty.
Such political productions of Antigone were much in fashion then. Hitler had not only brought horrors upon Europe but also stripped it of its sense of the tragic. Like the struggle against nazism, all of contemporary political history was thenceforth to be seen and experienced as a struggle of good against evil. Wars, civil wars, revolutions, counter-revolutions, nationalist struggles, uprisings and their repression have been ousted from the realm of tragedy and given over to the authority of judges avid to punish. Is this a regression? A relapse into the pre-tragical stage of humankind? But if so, who has regressed? Is it history itself? Or is it our mode of understanding history? Often I think: tragedy has deserted us; and that may be the true punishment. (Kundera 2003)
Essa leitura maniqueísta está ligada a uma concepção moderna, inspirada na visão dos antigos filósofos de que seria possível diferenciar a Verdade do Simulacro: no embate de Creonte e Antígona, somente um dos lados poderia ter razão, e deveria ter toda a razão (por estar do lado de uma ordem natural sistemática e cognoscível).
Porém, seguindo a intuição de Kundera, creio que a construção trágica de Sófocles nos retrata um ponto mais interessante de nossa vida social: o fato de que não é possível unificar todos os papéis que compõem uma sociedade complexa. A divisão da sociedade em governante e governado gera uma tensão inevitável entre o governo e a tradição. Essa tensão é lida como uma forma de limitação ao poder dos reis, que deveriam respeitar as tradições, sob pena de gerarem consequências sociais adversas. A ideia de que os reis devem respeitar as tradições e não devem buscar modificá-las é uma tônica do pensamento oriental, que é focada no respeito à ordem natural.
No pensamento antigo, a autoridade dos governantes não é apresentada como absoluta, porque a ordem natural que justifica o poder do governo também serve como um limite ao seu exercício. De fato, aos monarcas não se reconhece um grande poder legislativo, visto que se espera deles que governem as sociedades a partir das leis naturais. Eles decidem impor penas e declarar guerras, mas não são os governantes que estabelecem as obrigações religiosas, os deveres dos filhos com relação aos pais, as regras de herança, o papel dos homens e das mulheres e todas as outras relações fundamentais que organizam uma sociedade. Tal como os pais devem exercer seus poderes nos limites da tradição (sem ter o poder de modificá-la), os antigos monarcas não eram legisladores, mas garantes da ordem social, cuja autoridade decorre da própria lei natural.
2. Categorias ligadas à tensão entre ordem natural e autoridade política
2.1 Li e Fa
No pensamento político chinês clássico, a diferença entre a ordem natural e a autoridade política é mediada pela distinção entre o li (as obrigações impostas pela tradição) e o fa (as obrigações impostas pelo governante).
Surya Sinha aponta que o conceito central do pensamento político chinês não era o de lei, mas o de li, que foi desenvolvido bem antes do surgimento da filosofia grega (1993). Originalmente, li era uma palavra que indicava os "ritos", mas que aos poucos foi sendo utilizada como sendo o "comportamento devido", no sentido do comportamento requerido de cada pessoa, dentro da ordem natural. Nas palavras de Sinha:
The origins of li are found in a 350–year period that began with the early years of the Western Chou dynasty (1122 B.C.) and moved through the Book of History (Shu Ching), the Book of Poetry (Shih Ching, 1122–600 B.C.), and the Spring and Autumn Annals (Tsao Chuan, 770–464 B.C.). Li acquired its full meaning through the Analects (Lun Yu) of Confucius (551–479 B.C.). It was further developed in the works of his successors and followers during the period of Warring States (463–222 B.C.) and was compiled in the Book of Li (Li Chi) during the early part of the former Han dynasty (206 B.C.-A.D. 8).
In the Book of History, li had the meaning of ceremonies or religious rituals. It indicated sacrifices usually associated with ancestor worship and it partook of magical powers. This meaning changed in the Book of Poetry to correct and proper behavior. It pointed to man’s proper way of life that was essential to man himself and to his relation with others. Man’s way of life had to be harmonized with the totality of cosmic events represented in the concept of heaven (t’ien). The king’s primary concern was to conform to the appointment of heaven (t’ien-ming). Cultivation of virtue or excellence of character (te) promoted harmony between heaven (t’ien) and earth (ki). What was crucial, therefore, was not the belief in the supernatural but the belief in interdependence of nature and human behavior. It was up to man to follow a conduct that would maintain harmony between him and nature. Filial piety (hsiao) was that virtue which maintained harmony in the family and, as its ultimate result, between man and nature’s events. The imperative of li required aligning human order with nature’s order. Therefore, while appointment of heaven (t’ien-ming) issued directives concerning various matters, there was no all-powerful personal lawgiver in control of man’s destiny. (Sinha 1993)
Assim, a ideia de li está ligada ao reconhecimento da existência de uma ordem natural que envolve uma série de papéis sociais que devem ser desempenhados por cada pessoa. Na concepção chinesa, essa ordem estava baseada em cinco relações sociais básicas, chamadas de wu lan: as relações entre pai e filho, governante e governado, marido e mulher, irmãos mais velhos e mais novos e entre amigos (Sinha 1993).
A noção de li, portanto, faz essa mediação entre a ordem natural e os deveres individuais, apontando para a busca de uma harmonia com os princípios naturais, que deve regular a conduta de todas as pessoas, mas com especial razão a conduta dos governantes. Monarcas que atuam contra o li conduziriam o reino à desordem, de tal forma que era reconhecido que os governantes deveriam atuar em consonância com o li (Sinha 1993).
As regras impostas pelos governantes, chamadas de fa, deveriam servir como uma forma de preservar a sociedade por meio da punição a atos criminosos e à regulação da burocracia por meio do qual o governo se exercia. Não havia uma regulação governamental de outros campos (como a família ou os negócios), que eram organizados a partir das prescrições tradicionais. Por isso, o fa não era percebido como "uma regulação da atividade econômica privada nem como uma forma de impor valores religiosos, mas como um instrumento de impor políticas e garantir a ordem pública"(Glenn 2000:322). Esse caráter repressivo do direito legislado fazia com que ele fosse normalmente editado em períodos conturbados, o que fazia com que a edição de novas leis fosse signo de que havia algum desequilíbrio social, que exigia esse tipo de intervenção.
Fa (laws, regulations, statutes) laid down the procedure for enforcing punishment. It was regarded with suspicion and antipathy. The practice of li in a spirit of benevolence and harmony was preferred to fa and hsing. Therefore, new enactments (chih) were seen as an omen that the state was about to perish. Li was preserved orally and transmitted through example and education.
Li, then, is something internal to human conduct, not something imposed from above by a human divine agency. Its practice is internally enforced as a demonstration of man’s personal ability to contribute to the maintenance of universal harmony and the cultivation of his being and his society.
Essa desconfiança com relação ao fa consolidou-se nos ensinamentos de Confúcio, cuja concepção afirmava que uma sociedade bem organizada deveria ser fundada na valorização do li, e não em inovações sociais introduzidas pelo fa.
With Confucius, li became a principle of social organization and control. Filial piety (hsiao) was the moral essence of li, whose effectiveness derived from the moral impetus of virtue or excellence of character (te). Te was directed toward the expected cultivation of benevolence or humaneness (jen), righteousness in the sense of that which is right to do as one’s duty (i), wisdom or practical knowledge (chih), and confidence (hsin). Law (fa) was considered hideous. Insistence was put upon a positive motivation of the people to avoid detrimental conduct, conform to li, and avoid litigation (sung).
The Book of Li (Li Chi) gave a fully developed expression of li. The Book contains 3,300 rules of behavior which are made concrete in customs, habits, and ceremonies. They are devised to maintain an all-embracing social harmony in accordance with valued ways of life.
One’s failure to perform his duty in accordance with li invites a socially agreed sanction or moral education, including exhortation and punishment, in order to secure proper conduct in the future. Similar is the case with non-criminal matters as well, wherein the self-regulating procedures of li are relied upon and prevention of litigation is preferred over taking recourse to law.
Essa preponderância do li foi colocada à prova no período de intensos conflitos sociais ocorridos entre 475 a.C. e a consolidação imperial da dinastia Qin, ocorrida em 221 a.C. Nesse período, os vários reinos existentes na China foram formando alianças ou sendo conquistados, transformando-se em unidades maiores, até que todo o território foi unificado sob o domínio de Ying Zheng, que instituiu a dinastia Qin e se tornou o primeiro imperador a governar efetivamente toda a China.
A dinastia Qin foi erguida sobre o fa e não sobre o li, pois ela decorre de um "radical programa de reestruturação" concebido por um dos ministros do reino de Qin: Shang Yang, que ficou conhecido como um dos grandes nomes da escola legalista, que advogava uma utilização ampla do fa como instrumento de reorganização social. A partir 356 a.C. foram introduzidas várias de inovações na organização do reino, que viabilizaram a construção do poder centralizado que veio a unificar o "Reino do Meio" em um prazo de pouco mais de cem anos.
The ‘county’ system of direct administration was introduced, weights and measures standardised, trade heavily taxed, agriculture encouraged with irrigation and colonisation schemes, and the entire population registered, individually taxed and universally conscripted. ‘Mobilising the masses’ was not a twentieth-century innovation.
The carrot in all this was an elaborate system of rankings, each with privileges and emoluments, by which the indvidual might advance according to a fixed tariff; in battle, for instance, decapitating one of the enemy brought automatic promotion by one rank. But more effective than the carrot was the stick, which took the form of a legal code enjoining ferocious and indiscriminate punishments for even minor derelictions. Households were grouped together in fives or tens, each group being mutually responsible for reporting any indiscretion by its members; failing an informant, the whole group was mutually liable for the prescribed punishment. In battle this translated into a punitive esprit de corps. Serving members of the same household group were expected to arrest any comrade who fled, to deliver a fixed quota of enemy heads, and to suffer collective punishment if they failed on either count. (Keay 2009)
O resultado dessa centralização radicalizada de poder foi muito efetivo e permitiu uma utilização extremamente eficiente dos recursos disponíveis ao reino Qin, que expandiu rapidamente a sua força e submeteu ao longo dos próximos 120 anos os outros 6 reinos que compunham o território chinês, e criou assim a rápida dinastia Qin, que durou apenas 14 anos.
Os Qin foram derrubados pela dinastia Han, que optou pelo confucionismo como concepção básica e produziu uma narrativa oficial que tende a ressaltar que o legalismo do primeiro imperador (Qin) tinha um caráter tirânico e que o exercício do poder deveria seguir a estrutura teórica do confucionismo, que indicava a necessidade de um governo pela virtude.
Todavia, uma leitura mais cuidadosa dos fatos mostra que, apesar do discurso oficial de matriz confucionista, a estrutura jurídica do legalismo foi mantida na dinastia Han, especialmente as inovações que contribuíram para a concentração do poder político nas mãos do imperador e para a ruptura do sistema feudal da época dos Zhou.
Assim, a história da China antiga traz vários indícios relevantes sobre a relação entre centralização do governo, consolidação do império e a fixação de um sistema jurídico baseado em uma legislação criada com o objetivo explícito de reforçar a sustentação dessa forma política.
No campo da filosofia política, um ponto que mantém sua relevância é a clássica tensão entre legalismo e confucionismo, que lida com uma tensão que nunca perdeu atualidade: até que ponto o governo pode alterar a sociedade com a finalidade de reforçar os mecanismos de governamentalidade? Por um lado, parece que certas inovações podem ser necessárias para manter a prosperidade de uma nação e garantir a eficiência de um governo. Por outro, várias teorias contemporâneas (como o liberalismo e o constitucionalismo que ele engendra) insistem na tese confucionista de que é preciso respeitar as estruturas tradicionais (descritas como direito natural) para que o governo possa ter legitimidade e manter sua estabilidade no longo prazo.
2.2 Rta e Dharma
Mais ou menos na mesma época que a cultura chinesa desenvolvia sua noção de ordem natural baseada no conceito de li, a cultura indiana desenvolveu um pensamento político expressamente baseado em uma naturalização que sacralizava a divisão das sociedades em estamentos. Nessa cultura, chama-se de Rta a ordem natural imanente ao mundo, e chama de Dharma a ordem normativa que estabelece os deveres de cada pessoa, seus papéis sociais, seus comportamentos desejáveis para que todas as pessoas atuem em conformidade com a Rta.
The concept of rta, or the universal cosmic order, presented an order that was immanent, pre-existent, and independent of any other force. Dharma was that which upheld or sustained. Rta apprehended man’s phenomenal surroundings and structured irregular phenomena into a form of regularity. Gods gave examples of dharma to uphold that which existed in order (rta). The purpose was to make man conscious of his own active, though ordered, way of life.
The sacred literature of Vedas (1500–900 B.C.) gave an expression to dharma as a complex of action, conduct, ordinance, and principle of regularity in various existential situations. [...] The subsequent literature of Upanishads (900–500 B.C.) accepted dharma as the supreme force of the world but it related dharma intimately to practical necessities of everyday life in all its aspects. (Sinha 1993)
Embora a ideia de Dharma esteja profundamente ligada à Rta, trata-se de um conceito que opera em um nível mais concreto e que, por isso, tornou-se o principal conceito a partir do qual a cultura indiana apresenta os vários deveres que se impõem a cada pessoa, especialmente a pertinência de cada uma delas a sua casta.
The essential principle of individual and communal life of most Indians is dharma, a term which experts agree is untranslatable, but whose concept is certainly not of law in the Western sense. Dharma originated in the Aryan tribal community at the very beginning of the present Indian civilization, 47i.e., about 2000 B.C. The community allocated the governmental leadership to the king (raja) and the spiritual leadership to the priest (brahman). By the end of the Rg Vedic period (1500–900 B.C.), a fourfold division of society came to prevail along the lines of the four varnas, which formed four classes of society, namely, the priest (brahman), the warrior (kshatriya), the peasant (vaishya), and the serf (shudra). [...]
All these various teachings of dharma are concerned with the issue of how a man can follow a way of life in conformity with dharma. Dharma is of three kinds: svadharma, sadharana dharma. and purushartha. Svadharma calls for performance of one’s duty as determined by his class (varna) and by his stage of life (ashram). Its breach is a social offense, since its performance serves social solidarity for the present generation as well as for the future generations. Sadharana dharma guides one’s conduct for the benefit of the community as a whole. This, in turn, benefits his own being as a part of the whole. Purushartha assists man in achieving his ends, which are dharma, artha (wealth or material possession), kama (pleasure), and moksha (salvation). (Sinha 1993)
A noção central de Dharma é complementada pelo conceito de Karma, que indica que todas as coisas que acontecem a uma pessoa decorrem de sua capacidade individual de seguir (ou não) as obrigações que lhe são impostas pelo Dharma. Se alguém cumpre as suas funções, ele obtém um bom karma, o que leva a pessoa a ter benefícios em sua próxima vida e, no limite, permite alcançar o moksha, que é a libertação da alma do ciclo de vida, morte e reencarnação.
Essa prevalência do Dharma, como uma expressão normativa do Rta, acentua uma continuidade entre a ordem natural e a ordem política, que foi problematizada em culturas nas quais processos de centralização política conduziram a um tensionamento maior entre os princípios tradicionais (lidos como naturais) e a busca dos governantes de introduzir inovações na organização social mediante exercício de um poder legislativo.
2.3 Physis e Nomos
Na cultura grega, uma série de conceitos foi desenvolvido para lidar com as complexidades de articular uma ordem natural imanente com a percepção de que tanto os deuses como os governantes poderiam editar comandos intencionais. Sinha indica que o conceito desenvolvido pelos gregos para unificar todas essas percepções foi o de Nomos: uma ordem normativa imanente, que se impunha aos homens e aos deuses, e que era a base de organização de toda comunidade política. Com o tempo, porém, esse conceito passou a ser utilizado para tratar das regras vigentes em uma comunidade, o que acabou por fazer com que ele englobasse também as regras impostas pelos governantes.
Essa mudança de significado permitiu que os sofistas remodelassem o sentido desse conceito, propondo uma nova divisão entre Physis, que significa natureza e era usado para fazer referência à ordem natural imanente, e Nomos, palavra que passou a designar as regras convencionais criadas pelo exercício da autoridade política.
Essa é a distinção conceitual que está na base da distinção contemporânea entre um Direito natural (a própria ordem do mundo) e um Direito positivo (criado pelas unidades políticas). Por mais que haja semelhanças entre essa distinção e e a divisão chinesa entre li e fa, um desenvolvimento próprio da filosofia grega marca uma distinção entre esses pares conceituais.
O li indica um conjunto de ritos tradicionais, cujo respeito deveria representar uma observância da ordem natural, mas essa ordem natural somente é acessível pelo reconhecimento da autoridade do li. Em outras palavras, não há uma distinção possível entre a tradição e a natureza, termos cuja distinção é decisiva para o pensamento grego.
No caso da filosofia grega clássica, a ordem imanente do mundo seria acessível por meio do logos, ou seja, por meio de nossas faculdades intelectuais. Enquanto o li é ligado diretamente ao respeito das tradições chinesas, a Physis dos gregos não podia ser equacionada diretamente com a tradição, pois o exercício intelectual dos filósofos era justamente o de diferenciar a tradição que correspondia efetivamente à Physis (e que por isso deveria ser respeitada) e as tradições que ofendiam à Physis (e que por isso deveriam ser abandonadas).
O que a filosofia grega inaugura é uma instância crítica da tradição, o que gera um novo sentido para a ordem natural: ela não mais servia apenas como base de sustentação para as distinções tradicionais (justificadas por serem naturais), mas servia como argumento voltado para afastar instituições tradicionais percebidas como incompatíveis com os mandamentos inscritos na ordem natural.
3. Filosofia x Tradição
Na tradição grega, a filosofia política nasce das reflexões ligadas à contestação de que a ordem tradicional pode ser considerada como uma ordem natural. Isso não ocorre em outras sociedades antigas, nas quais houve uma manutenção social da equivalência entre tradicionalidade e naturalidade. As tragédias do teatro grego indicam que a cultura grega percebia o caráter paradoxal que decorria do fato de que a obediência aos governantes (entendida como natural) poderia entrar em choque com a observância dos deveres tradicionais (também entendida como natural).
Essa dupla pretensão de naturalidade somente poderia garantir harmonia (um valor importante em toda sociedade antiga) se esses três polos fossem cuidadosamente harmonizados, ao ponto de serem percebidos como manifestações de um mesmo sistema: a ordem natural, os deveres tradicionais e a ordem política. Na Grécia, esse equilíbrio se desfez cerca de 500 a.C., o que estimulou um experimentalismo na organização das cidades, que passaram por várias reformas em busca de criar condições para a sustentação do modelo da pólis em um ambiente no qual a força dominante vinha sendo conquistada pelos Impérios: maiores, mais fortes, mais centralizados e mais desiguais.
O fortalecimento da política gerou uma situação peculiar: a tentativa dos filósofos de justificar a legitimidade política diretamente na ordem natural, sem precisar da mediação de uma ordem tradicional. A filosofia grega, inclusive a sua filosofia política, era baseada na ideia de que os filósofos poderiam conhecer a ordem natural e, por isso, poderiam governar com vistas à justiça natural. Como afirma Miroslav Milovic, os filósofos gregos não pensavam o mundo a partir das sombras que constituíam as percepções dominantes, pois "pensar o mundo não se identifica com pensar as aparências e sim os seus fundamentos" (2017).
No discurso filosófico, não havia um papel de destaque para as tradições, que eram apresentadas como um empecilho para a reorganização das cidades e não como um elemento relevante para sua estabilização. Milovic indica que os sofistas tinham a percepção de que "as leis são criadas por convenção, não pela Natureza", mas os filósofos contestaram explicitamente esse tipo de percepção, afirmando que "as leis não podem ser pensadas a partir da contingência" (2017).
Foi nesse contexto que surgiu a noção de Direito Natural que nos foi legada pelos filósofos gregos: a tese de que existem padrões normativos na natureza, que podem ser conhecidos pelo uso cuidadoso das nossas faculdades intelectivas. O caráter objetivamente válido do direito natural permitia que ele fosse usado como um elemento para a crítica simultânea dos programas de governo e dos valores tradicionais.
Não se tratava mais apenas de exigir o equilíbrio entre os poderes centralizados do governo e os valores tradicionais (algo que estava presente na tradição chinesa, com seu equilíbrio entre li e fa). Tratava-se de justificar a capacidade inovadora dos governos, desde que eles estivessem movidos pela realização dos valores objetivos de justiça inscritos na própria ordem natural.
A filosofia política dos gregos representava uma libertação da política das amarras da tradição, uma tentativa de justificar projetos de renovação social tão radicais como os que foram apresentados por Platão na sua República. Mas não se tratava de uma libertação completa da política, e sim a substituição do ideal do rei sábio (ou seja, do rei que atua em conformidade com o li) pelo rei filósofo (um rei que renova o li a partir do conhecimento direto da Justiça, do Bem e da Verdade). A utopia política dos gregos apontava para um governo exercido a partir da razão, e não para um governo exercido a partir do culto da tradição.
Essa racionalidade rompia o equilíbrio anterior, que buscava harmonizar três polos que, na prática política grega se tornou impraticável: política, tradição e ordem natural. Na China, a centralização política foi conquistada pela adoção de posturas legalistas que justificavam a introdução legislativa de inovações na ordem social (baseadas em escolhas estratégicas e não na afirmação racional de um bem), mas esse afastamento da tradição durou pouco tempo, visto que não foi capaz de estabilizar o império legalista dos Qin. O confucionismo da dinastia Han conseguiu um equilíbrio mais durável, com um retorno simbólico da tradição, mas sem perder vários dos elementos que foram introduzidos pela onda renovadora dos Qin.
No caso da Grécia, por maior que fosse a capacidade dos governantes e a abertura para um experimentalismo na organização das cidades, o objetivo final desse movimento se mostrou inatingível: a criação de uma ordem baseada na união de esforços de repúblicas independentes para manter seu modo de vida frente ao poder crescente dos impérios. Porém, se a ordem política descentralizada dos gregos não foi capaz de sobreviver ao ataque dos Macedônios, várias sociedades posteriores valorizaram a sua filosofia: a tese propriamente grega de que os governos poderiam renovar amplamente as tradições, desde que estivessem de acordo com a ordem natural.
Desde então, um dos pilares das reflexões sobre a política e o direito é justamente a distinção entre a ordem natural imanente (a ser conhecida racionalmente) e as tradições obscurantistas de um povo, que reproduzem preconceitos e precisam ser constantemente superadas por meio do exercício de uma política inspirada pela razão. A filosofia grega nos apontou a possibilidade de sair da caverna formada por nossas tradições, que distorcem o mundo e nos apresentam apenas simulacros, inaugurando um embate franco e aberto entre a racionalidade e a tradição, que competem entre si como critérios para o acesso à ordem natural que está na base de ambas as perspectivas.