A filosofia do direito sempre anda de mãos dadas, quando não se confunde completamente, com a filosofia moral. Em ambos os casos, lidamos com as reflexões filosóficas acerca de sistemas normativos (a moralidade e o direito), que somente ganharam autonomia a partir da modernidade. Portanto, é no estudo da ética que devemos buscar as categorias gregas que permanecem até hoje como elementos estruturantes da filosofia do direito.

Que diferença há entre o significado de bom e de justo?

Uma ação justa e um homem justo são bons. Porém, um bom vinho, não é um vinho justo. Assim como não são justos nem um bom cavalo ou nem bom médico. A exploração dessa ideia já estava presente na filosofia socrática, que deixava bem claro que um cavalo e um vinho são bons na medida em que eles realizam a finalidade que lhes é própria.

Um bom vinho para sobremesa pode ser um mau vinho para acompanhar carnes. E o vinho que uma pessoa acha ótimo, outra pode achar péssimo. Mesmo um médico ou um flautista somente são bons na medida em que têm a habilidade de realizar certas funções. Por isso mesmo, parece que não se pode pensar o bem senão com relação a um objetivo determinado. Nessa medida, o bem parece ser sempre relativo.

Porém, essa relatividade não se coaduna com o uso moral da palavra bem, na medida em que o Bem moral deve ser absoluto, no sentido de ser bom em si. Na República de Platão, Gláucon pergunta a Sócrates: “não te parece que há uma espécie de bem em si mesmo, que gostaríamos de possuir, não por desejarmos as suas conseqüências, mas por estimarmos por si mesmo?”(Aristóteles 357a). Este é o bem moral, que reivindica para si uma espécie de incondicionalidade, que o faz ser bom independentemente de suas conseqüências.

É essa mesma incondicionalidade que usamos ao apreciar a moralidade do estupro de uma adolescente, que não é considerado simplesmente como algo ruim para o seu desenvolvimento, mas com a violação de algo que deveria ser preservado. Quando um soldado americano estupra uma adolescente na África, poderíamos avaliar a situação afirmando que se trata de um ato bom para o combatente que realiza o seu desejo e ruim para a menina violentada. Esta, porém, não seria uma avaliação moral, na medida em que não aplicaria critérios de moralidade, mas de conveniência.

Assim, a palavra Bem, admite um uso condicional (em que a bondade é medida por critérios utilitários de conveniência), e um uso incondicional (em que a bondade é medida segundo parâmetros morais que transcendem a conveniência). É apenas nesse segundo uso que o sentido de bom se aproxima ao sentido de justo. Assim é que um vinho e um cavalo podem ser bons, mas não podem ser moralmente bons. E tanto um médico quanto um flautista podem ser habilidosos em suas respectivas artes, sem que isso signifique que eles sejam moralmente bons.

Porém, para serem moralmente bons, eles precisam ser justos, de tal forma que a justiça e o bem moral parecem ser a mesma coisa. E ambos se opõem à ideia de conveniência, que não se liga à concretização bem em si, mas a uma busca estratégica de realizar determinados interesses. E essa oposição entre conveniência e moralidade é justamente o centro do debate com que Platão inicia a República.

De um lado, estão Sócrates e os irmãos de Platão, que defendem o caráter incondicional da Justiça. Do outro está o sofista Trasímaco, que radicaliza a ideia de que não existe no mundo nenhuma espécie de bem incondicional. Nessa medida, o que os homens chamam de justo não é algo bom em si, mas algo que é adequado aos seus próprios interesses. E, como a definição do justo não é individual, por estar ligada ao que é justo em uma determinada sociedade, o que se chama de justiça não passa da conveniência daquele que tem força para impor aos outros os seus interesses. Portanto, a Justiça “não é outra coisa senão a conveniência do mais forte”.

Certamente que cada governo estabelece as leis de acordo com a sua conveniência: a democracia, leis democráticas; a monarquia, monárquicas; e os outros, da mesma maneira. Uma vez promulgadas essas leis, fazem saber que é justo para os governos aquilo que lhe convém, e castigam os transgressores, a título de que violaram a lei e cometeram uma injustiça. Aqui tens, meu excelente amigo, aquilo que eu quero dizer, ao afirmar que há um só modelo de justiça em todos os Estados - o que convém aos poderes constituídos. De onde resulta, para quem pensar corretamente, que a justiça é a mesma em toda parte: a conveniência do mais forte. (339a)

Esse discurso de Trasímaco é uma das mais célebres falas da ética, e até hoje muitos são os que trilham os caminhos que ele indica. Tal postura envolve normalmente um grande ceticismo acerca da possibilidade de determinar um bem em si, subordinando a questão da justiça à questão do poder. Algo é justo porque é definido como justo pelos poderes dominantes em uma determinada sociedade.

Nesse sentido, traçando um paralelo com a velha oposição entre jusnaturalistas e juspositivistas, podemos ver que a posição de Trasímaco aponta para o fato de que somente existe uma justiça positiva, e não uma justiça natural. Dessa forma, ele guarda coerência com a noção de que o homem é a medida de todas as coisas, pois sustenta que somente há no mundo os padrões de justiça determinados pelos poderes constituídos.

Dessa forma, Trasímaco opõe-se frontalmente ao idealismo platônico, que é muito consciente do fato de que a avaliação moral de uma sociedade somente pode ser feita com base em critérios metafísicos. No plano empírico, somente podemos identificar relações de poder e dominação, ameaças de violência, desejos, interesses.

Que é a justiça, além de um nome? Que é a justiça além da conveniência dos mais fortes? Se observarmos apenas as relações entre as pessoas, nunca identificaremos nada mais do que Trasímaco viu. Porém, como um observador, ele se limitou a descrever o que via, ou seja, uma pluralidade de relações de obediência. Foi justa a condenação de Sócrates? Trasímaco diria que sim, pois ela foi a voz das instituições.

Podemos nos revoltar, dizer que esse processo culmina na imensa injustiça de condenar um inocente. Podemos seguir com Gláucon e reafirmar que “o supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser” (361a). Porém, o que Trasímaco traz é o ceticismo de quem não afirma que essa crença de que existe uma justiça para além do poder é ingênua. A pretensão de que o poder se submeta à justiça não passa de uma utopia vã, pois simplesmente não existe justiça fora do poder dos homens, pois o critério institucional da justiça é o direito que organiza efetivamente a sociedade.

Com tudo isso, Trasímaco tenta mostrar que não se deve julgar moralmente o exercício do poder, na medida em que é o próprio exercício do poder que determina o que é a justiça e o bem. Esse tipo de ceticismo nega a possibilidade de haver um padrão de justiça por meio do qual se possa avaliar a própria percepção social do que é justo ou injusto. Com isso, nega a existência de um padrão de justiça externo à sociedade. Justo é quem a sociedade define como justo, não havendo outra medida da justiça senão o próprio reconhecimento social.

Dessa forma, o debate entre Trasímaco e Sócrates nos conduz a perceber a tensão entre uma perspectiva interna e de uma perspectiva externa acerca da moralidade. O que Platão e Sócrates sustentam é a existência de um critério moral que transcende a sociedade e que, portanto, é externo a um sistema moral específico. Somente a existência desse critério moral transcendente (o bem em si) é que permite a qualquer um de nós avaliar objetivamente a moralidade de uma determinada situação concreta. Se não houver esse ponto externo de observação, a nós restaria apenas entender, como Trasímaco, que as sociedades decidem chamar algumas coisas de justas e outras de injustas.

Para voltar à alegoria da caverna, é como se Trasímaco somente enxergasse as sombras projetadas na parede. Ele percebe que cada sociedade tem seus critérios de justo e injusto, e considera que o critério básico é a conveniência dos atores políticos mais fortes, que são aqueles capazes de definir a reação institucional a determinados atos. Assim, justo é o que se louva como justo e injusto é o que se pune como injusto. Portanto, Trasímaco termina por defender que são as conseqüências sociais que determinam a justiça de um ato.

O que Trasímaco nega é justamente o que Platão afirma: que existe uma realidade para além das sombras. Assim, justo não é o que a sociedade considera justo, pois não devemos confundir as sombras projetadas na parede com a realidade. A sociedade Ateniense considerou justa a condenação de Sócrates. A sociedade alemã da década de 1940 considerou justo o nazismo. A sociedade americana atual considera justa a intervenção militar no Afeganistão.

Seguir com Trasímaco nos leva apenas a fazer um catálogo de imposições de poder, sem que tenhamos qualquer critério para avaliar se essas posturas sociais são justas ou injustas. E o que Sócrates e Platão buscavam era justamente um critério moral que pudesse servir como parâmetro objetivo para avaliar condutas desse tipo.

2. Justiça e legitimidade

A perspectiva platônica defende a existência de um bem si que transcenda a moralidade dominante em uma determinada tradição, pois é justamente com base neste ponto externo que se pode aferir, inclusive, a validade moral dessa própria tradição. Trasímaco nos limita a descrever as tradições dominantes, sem poder julgá-las. Platão pretende nos permitir julgar as tradições vigentes, especialmente para que sejamos capazes de nos insurgir contra as injustiças e transformar a sociedade. Por isso ele escreveu a República, uma descrição da Cidade Ideal, que deveria servir como parâmetro para a organização das cidades reais que pretendessem ser justas.

Assim é que Platão permite que aflore a questão da legitimidade, que é o conceito que usamos para mediar as relações entre moralidade e política. Em um plano filosófico, a legitimidade é um atributo do poder, e o poder é legítimo na medida em que gera dever de obediência. No plano sociológico, a legitimidade não se apresenta assim, pois tipicamente os sociólogos chamam de legítimo o poder capaz de gerar obediência.

E, entre a mera obediência e o dever existe um grande abismo: o abismo entre ser obrigado e ter uma obrigação, que é uma diferença fundamental para a filosofia do direito.

A obediência é uma questão de fato, e pode ser observada empiricamente. Onde quer que certas normas ou ordens sejam devidamente observadas pelos seus destinatários, podemos identificar uma relação de obediência. E isso ocorre mesmo nas situações sociais em que não reconhecemos a existência de dever: cumprimos a ordem de um assaltante por medo, e negamos que essa obediência venha de alguma espécie de dever. Assim, o simples medo da punição ou da violência podem gerar obediência, mas não podem gerar dever.

O que gera o dever é a autoridade, ou seja, o fato de que a norma ou a ordem configuram exercício de um poder legítimo. Assim, a legitimidade é o conceito de que dispomos para questionar a validade de uma ordem, mesmo quando ela advém de uma pessoa ou instituição que tem potencialidade de gerar obediência.

Assim, na medida em que o direito se relaciona com o exercício do poder, o direito legítimo é aquele cuja autoridade se assenta em um poder legítimo. Mas quando um poder é legítimo? Podemos dizer, inspirados em Trasímaco, que a legitimidade é a conveniência do mais forte. Com isso, porém, terminamos por aniquilar as potencialidades críticas do conceito de legitimidade, na medida em que todo poder constituído seria legítimo pelos simples fato de ser constituído.

Portanto, se o conceito de legitimidade tem uma função crítica, ele precisa remeter a algo que não se confunde com a mera capacidade de gerar obediência, e que tampouco se confunde com o reconhecimento social da legitimidade. E isso ocorre justamente porque esse conceito é usado primordialmente para medir a validade dos poderes constituídos.

Nessa medida, a legitimidade, assim como a justiça, tem um conteúdo que precisa transcender os valores vigentes em uma sociedade. E aí se encontram esses dois conceitos, pois todo ato legítimo é justo, no sentido de que não admitimos que o poder político tenha legitimidade para praticar injustiças. E essa ligação entre legitimidade e validade projeta novas luzes na própria relação entre justiça e bem.

Quando dizemos que um ato é justo, normalmente não queremos com isso apenas fazer uma observação sobre o mundo (como ao dizer que a luz está acesa), pois temos um dever de praticar a justiça. Não temos nenhum dever de praticar atos eficientes, cabendo a nós escolher maximizar ou não a eficiência prática de nossas condutas. A eficiência pode falar aos nossos desejos, mas não fala ao nosso senso de dever. Já com a justiça ocorre o contrário: temos o dever de praticá-la, ainda quando ela seja contrária aos nossos interesses pessoais.

Assim, a noção de justiça, tal como a de legitimidade, relaciona-se com o exercício do poder. Na legitimidade, trata-se do poder político organizado. Na justiça, trata-se do poder em geral, pois, como Aristóteles bem identificou, a justiça está sempre nas nossas relações com o outro, nas nossas potencialidades de influenciar na vida das outras pessoas.

Então, por mais que legitimidade, justiça e bem não sejam termos propriamente sinônimos, todos eles apontam para os critérios de moralidade. E, nessa medida, uma reflexão filosófica sobre o direito precisa entrelaçar as ideias de justiça e de legitimidade, pois esses são os critérios fundamentais de avaliação moral dos atos jurídicos, tendo reflexos diretos sobre a sua validade.

3. A Ética aristotélica

Seguindo a trilha platônica, somos levados à posição de que é preciso haver um bem em si, para servir como padrão para avaliar se um ato ou sujeito é moralmente bom. Isso implica uma espécie de monismo moral, na medida em que implica a existência de um padrão único de moralidade (o Bem), aplicável a todas as situações concretas.

Contra esse tipo de perspectiva, levantou-se Aristóteles, que não vinculou a reflexão ética a um bem abstrato e único, mas a uma pluralidade de virtudes referentes a aspectos diversos da vida. Assim, não lhe parece adequado simplesmente considerar que a coragem e a prudência são virtudes por serem manifestações diversas de um critério ideal de bem. Um bem tão amplo seria absolutamente vazio e formal, não dizendo nada acerca do conteúdo moral de uma situação e sendo, portanto, inútil para diferenciar um ato corajoso de um covarde. Por isso mesmo é que Aristóteles diz que, se apenas a ideia platônica do bem for boa em si, então essa ideia seria inútil, pois é preciso buscar o que há de bom nas próprias ações concretas do homem (Aristóteles 1096b).

Assim, enquanto Platão atentava para a questão da unidade (na busca de uma categoria que possibilitasse pensar unitariamente as várias expressões do bem), Aristóteles introduziu um pensamento mais sensível à pluralidade da experiência moral, oferecendo categorias capazes de articular os vários modos pelos quais uma pessoa age de maneira boa.

Tal posicionamento não implica negar a existência de uma ideia geral de bem, que possa articular um pensamento unitário sobre a ética, mas apenas que não basta chegar a uma definição genérica de bem. E isso ocorre porque também é preciso aplicar tal definição “aos fatos particulares, pois entre as definições referentes à conduta, as mais gerais têm uma aplicação mais ampla, mas as particulares são mais verdadeiras, já que a conduta tem a ver com casos particulares.”(Aristóteles 1107a) Dessa forma, por mais exista uma forma abstrata do bem, Aristóteles articula uma avaliação geral do sentido do bem com uma reflexão minuciosa sobre os modos particulares como esse bem se revela relativamente aos vários modos do agir humano.

No plano geral, Aristóteles identifica que o senso comum considera que sempre atuamos com vistas à felicidade, pois a felicidade é algo que desejamos como um bem em si. Porém, ele não pode seguir a noção da maioria dos homens, que “identifica o bem, ou a felicidade, com o prazer”, especialmente porque “a humanidade, em massa se assemelha totalmente aos escravos, preferindo uma vida comparável à dos animais”(Aristóteles 1095b ). Isso deixa claro que ele não está buscando descobrir o que as pessoas normalmente chamam de felicidade, mas o que é a felicidade.

Portanto, a identificação aristotélica entre felicidade e bem não é um modo de identificar o bom a partir do que nos é agradável, mas uma forma de identificar felicidade e excelência, Isso porque, se fazer o bem é agir de modo excelente, então a felicidade (ou seja, a finalidade dos atos humanos) “é a atividade conforme a excelência”(Aristóteles 1098b). Dessa forma, a medida do bem não pode ser o prazer buscado ou alcançado, especialmente porque é “por causa do prazer que praticamos más ações, e é por causa do sofrimento que deixamos de praticar ações nobilitantes”(Aristóteles 1104b).

Assim definida, a felicidade não pode ser identificada com o que os homens normalmente buscam com os seus atos, mas com o que as pessoas deveriam buscar, para agir de modo excelente. Mas, entre as excelências que o homem pode alcançar, nem todas podem ser identificadas com o bem, pois somente algumas têm conteúdo moral. Por isso mesmo é que Aristóteles divide as excelências em intelectuais (como a inteligência e o discernimento) e morais (como a coragem e a prudência).

Essa diferença é importante porque as excelências intelectuais são uma espécie de desenvolvimento de aptidões inatas (como a inteligência), enquanto a excelência moral depende única e exclusivamente do hábito (ethos). Assim, ninguém é virtuoso por natureza, pois a excelência moral é fruto da educação e não do aprimoramento de habilidades naturais. Além disso, ninguém se torna virtuoso por conhecer o bem, pois a excelência moral não é saber distinguir o certo do errado, mas uma disposição da alma no sentido de realizar o bem.

Por isso mesmo, a educação moral de uma pessoa não significa o desenvolvimento de um saber, mas do desenvolvimento de uma disposição da alma para o agir excelente. Com essa distinção, Aristóteles também resolve o velho problema de distinguir uma ação realmente virtuosa de uma ação aparentemente virtuosa. Uma pessoa que faz caridade apenas para parecer virtuosa aos olhos dos outros, ou que diz a verdade apenas para obter proveito próprio, não está sendo caridosa nem sincera, pois ela não atua em função de uma disposição da alma para a excelência, mas apenas em decorrência de seus interesses pessoais. Assim, muitas ações são aparentemente virtuosas, mas no fundo não passam de ações egoístas, motivadas por interesses pessoais.

Mas que disposição da alma é uma excelência moral? Para Aristóteles, as deficiências morais são apresentadas como excessos, e a posição intermediária que anula esses excessos é a medida adequada de uma ação moralmente adequada. Com relação ao medo, por exemplo, uma pessoa pode ser covarde (quando o medo excessivo leva ao não enfrentamento dos riscos) ou temerária (quando a excessiva falta de medo faz com que os riscos sejam simplesmente desconsiderados). No meio termo, está o corajoso, que tem a dimensão adequada da ação, assumindo os riscos necessários.

Porém, o termo médio não é eqüidistante dos extremos, na medida em que a coragem se aproxima muito mais da temeridade que da covardia. Uma ação temerária pode até ser confundida com uma corajosa, mas uma ação covarde está muito distante desses dois pontos. Do mesmo modo, a liberalidade pode às vezes ser confundida com a prodigalidade, mas nunca com avareza. Assim, o homem excelente deve ser capaz de identificar em cada ação os extremos a que levaria uma deficiência moral, e ter uma disposição moral que aponte para a realização do meio termo justo, que se coloca entre eles.

Entre as diversas excelências morais, algumas se realizam com relação à própria pessoa (como a moderação no tocante ao prazer ou a realização de um ato corajoso para a satisfação de um interesse próprio) ou em relação às pessoas próximas (como uma liberalidade praticada para os amigos). Nesses casos, podemos falar de excelência, mas não podemos falar de justiça, pois a justiça é a excelência moral que busca o bem dos outros. Assim, em um sentido muito amplo, a justiça é a aplicação da excelência moral com relação às outras pessoas, de uma maneira irrestrita.

Existe, porém, um sentido mais restrito da palavra justiça, que não tem a ver com um objeto específico, que tem a ver com a convivência política do homem e que se relaciona a dois aspectos: a distribuição dos bens e a aplicação das penalidades. Para designar o primeiro aspecto, Aristóteles fala de justiça distributiva, reservando ao segundo o termo justiça corretiva.

Para ele, a justiça distributiva envolve a escolha de um critério para possibilitar a divisão dos bens que precisam ser divididos, tais como os prêmios e as honrarias. Nesse caso, cada pessoa deve receber segundo uma regra geral de proporcionalidade, pois cada um deve receber os bens de acordo com o seu mérito pessoal. Assim, embora o próprio conteúdo do mérito seja diferente em cada comunidade, a justiça distributiva é sempre uma questão de estabelecimento de critérios de aferição do mérito de cada um. Atualmente, podemos ver aplicações dessa divisão, por exemplo, nas regras de exames vestibulares e de concursos públicos, em que a atribuição das vagas disputadas é dada por critérios de mérito.

Diversamente da justiça distributiva, é a corretiva, que rege a imposição de penalidades pelo descumprimento de regras previamente estabelecidas. A principal característica dessa espécie de justiça é a sua impessoalidade, pois a punição a ser atribuída a uma pessoa depende apenas do ato praticado, e não de suas características pessoais. Assim, o dever de pagar uma dívida ou responder por um crime é idêntica para as pessoas justas e as injustas, de tal forma que o mérito pessoal de cada uma não deve entrar na definição da penalidade. Nesses casos, o juiz deve apenas restabelecer a igualdade rompida pelo ato do infrator, que impôs a outrem alguma espécie de prejuízo.

Portanto, ainda que esses tipos de ações tenham a ver com a justiça, não se trata de aplicar aos casos um mesmo critério, mas de aplicar a cada tipo de situação o critério de justiça adequado. Assim, Aristóteles estabelece categorias voltadas para pensar a diversidade dos padrões de justiça, sendo que esses conceitos são utilizados até os dias de hoje com o objetivo de refletir sobre as questões éticas contemporâneas. A ideia de justiça distributiva, por exemplo, ganhou especial relevo na sociedade contemporânea quando a implantação dos estados sociais gerou a necessidade de estabelecer critérios para a distribuição dos benefícios estatais.

Outra categoria relevante para o pensamento aristotélico é a oposição entre justiça legal e justiça natural, segundo a qual “são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio poderia ser determinado indiferentemente de maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente”(Aristóteles 1134b). Assim, Aristóteles traz para o campo da justiça a diferenciação sofística entre physis e nomos, ou seja, entre regras estabelecidas convencionalmente e regras derivadas da própria natureza, numa distinção que até hoje está na base das discussões sobre a oposição entre direito natural e positivo.

Porém, o principal ponto Aristotélico é justamente o tratamento da ética como uma questão de excelências morais, que se unificam na ideia geral de felicidade, mas que se revelam como modos adequados de conduta em face de cada tipo de situação vivida. Assim, a pessoa virtuosa é a que tem uma disposição de alma no sentido da prática do bem, disposição esta que nunca é natural, mas sempre estabelecida por meio de um processo educativo adequado.

Dessa forma, mesmo que Aristóteles admita que há certos valores éticos naturais, ele não supõe que exista uma tendência natural do homem para a realização do bem. Pelo contrário, se existe uma tendência natural, é para a realização do prazer, e é justamente a busca desenfreada dos prazeres que nos leva aos exageros que constituem as ações moralmente deficientes. Por isso mesmo é que a formação (paideia) não pode se limitar a ensinar o que é o bem, mas a moldar subjetividades que tendam a realizá-lo, em vez de buscar a vida amena e os prazeres imediatos. Assim, é necessário um processo educativo que molde cidadãos cuja ideia de felicidade não se esgote no gozo de prazeres, mas que envolva a busca da excelência. Portanto, existe aqui uma oposição à ideia socrático-platônica que a prática do mal é uma questão de ignorância, pois a deficiência moral não está ligada à ausência de um saber, mas à ausência do cultivo de uma disposição interna.

Outro ponto relevante é o reconhecimento explícito de que boa parte dos valores de justiça são positivos, e não naturais. Essa admissão implica o reconhecimento de que a excelência moral envolve a aceitação de valores culturalmente estabelecidos, o que reforça o sentido social da ética aristotélica. Assim, por mais que ele diga expressamente que existe apenas uma forma de governo que é a melhor por natureza, ele tenta oferecer uma teoria ética adequada a pluralidade de constituições por meio das quais as sociedades se organizam politicamente.

Essa dimensão social da ética, diretamente contraposta à idealização platônica de modelos abstratos, faz com que Aristóteles procure os padrões do agir excelente no âmbito das pessoas socialmente reconhecidas como excelentes. Esse passo crucial permite que ele eleja certos comportamentos como paradigmas do agir ético, em vez de buscar deduzi-los a partir de uma noção vaga e abstrata de bem. Tal concretude faz com que a ética aristotélica seja em grande parte uma análise da moralidade vigente, voltada para a perpetuação dessa própria moralidade.

Assim, a ética aristotélica é um estudo sobre o ethos grego, mas que não se limita a uma perspectiva externa, pois Aristóteles está vinculado aos valores que ele descreve. Com isso, não existe na teoria aristotélica a possibilidade de uma crítica ética aos valores de moralidade, na medida em que eles são morais justamente na medida do seu reconhecimento social. Como seria possível criticar, a partir do próprio ethos grego, a admissão natural da desigualdade entre os homens, que permite a escravidão e a submissão das mulheres aos homens?

Esse é o preço da concretude, que busca retirar das experiências práticas, por meio de um pensamento generalizador, as regras de sua organização. E é justamente esse o ponto fundamental do pensamento Platônico, que está comprometido desde o início com a garantia da possibilidade de uma avaliação ética da moralidade vigente. Assim, enquanto Aristóteles aproxima a ética da moral social, Platão se esforça por manter a distância entre as duas, de tal forma que a reflexão ética possa esclarecer a ideia de um bem em si, capaz de servir como parâmetro adequado para a crítica da moralidade vigente e sua transformação.

Nessa medida, é o idealismo platônico que funciona como elemento transformador, na mesma medida em que o realismo aristotélico adquire um caráter conservador perante os valores sociais hegemônicos. Assim, por mais que Aristóteles não possa concordar literalmente com Trasímaco que a justiça é a conveniência do mais forte, a sua teoria não oferece elementos adequados para a crítica dos valores hegemônicos, que não são dados pela autoridade política dominante, mas pela conformação cultural.

Com isso, por mais que os conceitos aristotélicos sejam esclarecedores de nossa própria vivência moral, a postura aristotélica não é capaz de responder às demandas da ética moderna, na exata medida em que ela problematizou as relações entre o indivíduo e a coletividade. Tanto para Platão quanto para Aristóteles, a ética é uma dimensão da política, pois o homem não é visto senão dentro da coletividade que ele integra. Assim, existe uma ligação imediata entre o bem comum e o bem pessoal, que estabelece uma subordinação natural do indivíduo à coletividade. Porém, quando os pensadores modernos questionaram a naturalidade dos vínculos entre as pessoas e suas comunidades, o problema ético precisou ser colocado de uma forma inovadora: por que cada indivíduo tem o dever de observar o bem comum e os valores morais tradicionais?