O polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) foi um filósofo e sociólogo que se tornou famoso pelas suas análises da sociedade do fim do século XX, que ele classificou como uma fase líquida da modernidade. Seus livros escritos no século XXI se concentram nessa metáfora que aponta para a insegurança que afeta a todas as pessoas na contemporaneidade: Liquid love (2003), Liquid Life (2005), Liquid Times (2006), Living in a liquid modern world (2011) são livros cujo título mostra a centralidade que Bauman conferia a esse conceito.

Sugerimos iniciar a leitura de Bauman por um livro publicado em 1997, no qual ele dialoga com a clássica obra O mal-estar na civilização de Sigmund Freud, para diagnosticar um novo tipo de ma-estar, ligado especialmente aos tempos que ele veio posteriormente a designar como modernidade líquida.

BAUMAN, Zygmut. O mal estar da pós-modernidade.

Trechos escolhidos

Em 1930, foi publicado em Viena um livro chamado, inicialmente, Das Unglück in der Kultur (A infelicidade na cultura) e depois rebatizado como Das Unbehagen in der Kultur (O mal-estar na cultura). O autor era Sigmund Freud. Quase simultaneamente foi publicada a tradução inglesa — para a qual Freud sugeriu o título Man’s Discomfort in Civilization (O mal-estar do homem na civilização). Como nos informa o editor inglês de Freud, James Strachey, a tradutora inglesa do livro, Joan Riviere, por algum tempo trabalhou, em vez disso, com o conceito de malaise, mas finalmente escolheu o título Civilization and its Discontents (que ficou consagrado em português como O mal-estar na civilização). É sob esse título que o provocador desafio de Freud ao folclore da modernidade penetrou em nossa consciência coletiva e, afinal, modelou o nosso pensamento a propósito das conseqüências — intencionais e não-intencionais — da aventura moderna. (Sabemos, agora, que era a história da modernidade que o livro contava, ainda que seu autor preferisse falar de Kultur ou civilização. Só a sociedade moderna pensou em si mesma como uma atividade da “cultura” ou da “civilização” e agiu sobre esse autoconhecimento com os resultados que Freud passou a estudar; a expressão “civilização moderna” é, por essa razão, um pleonasmo.)
Você ganha alguma coisa mas, habitualmente, perde em troca alguma coisa: partiu daí a mensagem de Freud. Assim como “cultura” ou “civilização”, modernidade é mais ou menos beleza (“essa coisa inútil que esperamos ser valorizada pela civilização”), limpeza (“a sujeira de qualquer espécie parece-nos incompatível com a civilização”) e ordem (“Ordem é uma espécie de compulsão à repetição que, quando um regulamento foi definitivamente estabelecido, decide quando, onde e como uma coisa deve ser feita, de modo que em toda circunstância semelhante não haja hesitação ou indecisão”). A beleza (isto é, tudo o que dá o sublime prazer da harmonia e perfeição da forma), a pureza e a ordem são ganhos que não devem ser desprezados e que, certamente, se abandonados, irão provocar indignação, resistência e lamentação. Mas tampouco devem ser obtidos sem o pagamento de um alto preço. Nada predispõe “naturalmente” os seres humanos a procurar ou preservar a beleza, conservar-se limpo e observar a rotina chamada ordem. (Se eles parecem, aqui e ali, apresentar tal “instinto”, deve ser uma inclinação criada e adquirida, ensinada, o sinal mais certo de uma civilização em atividade.) Os seres humanos precisam ser obrigados a respeitar e apreciar a harmonia, a limpeza e a ordem. Sua liberdade de agir sobre seus próprios impulsos deve ser preparada. A coerção é dolorosa: a defesa contra o sofrimento gera seus próprios sofrimentos.
“A civilização se constrói sobre uma renúncia ao instinto.” Especialmente — assim Freud nos diz — a civilização (leia-se: a modernidade) “impõe grandes sacrifícios” à sexualidade e agressividade do homem. “O anseio de liberdade, portanto, é dirigido contra formas e exigências particulares da civilização ou contra a civilização como um todo.” E não pode ser de outra maneira. Os prazeres da vida civilizada, e Freud insiste nisso, vêm num pacote fechado com os sofrimentos, a satisfação com o mal-estar, a submissão com a rebelião. A civilização — a ordem imposta a uma humanidade naturalmente desordenada — é um compromisso, uma troca continuamente reclamada e para sempre instigada a se renegociar. O princípio de prazer está aí reduzido à medida do princípio de realidade e as normas compreendem essa realidade que é a medida do realista. “O homem civilizado trocou um quinhão das suas possibilidades de felicidade por um quinhão de segurança.” Por mais justificadas e realistas que possam ser as nossas tentativas de superar defeitos específicos das soluções de hoje, “talvez possamos também familiarizar-nos com a idéia de que há dificuldades inerentes à natureza da civilização que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma”.
Dessa ordem que era o orgulho da modernidade e a pedra angular de todas as suas outras realizações (quer se apresentando sob a mesma rubrica de ordem, quer se escondendo sob os codinomes de beleza e limpeza), Freud falou em termos de “compulsão”, “regulação”, “supressão” ou “renúncia forçada”. Esses mal-estares que eram a marca registrada da modernidade resultaram do “excesso de ordem” e sua inseparável companheira — a escassez de liberdade. A segurança ante a tripla ameaça escondida no frágil corpo, o indômito mundo e os agressivos vizinhos chamados para o sacrifício da liberdade: primeiramente, e antes de tudo, a liberdade do indivíduo para a procura do prazer. Dentro da estrutura de uma civilização concentrada na segurança, mais liberdade significa menos mal-estar. Dentro da estrutura de uma civilização que escolheu limitar a liberdade em nome da segurança, mais ordem significa mais mal-estar.
Nossa hora, contudo, é a da desregulamentação. O princípio de realidade, hoje, tem de se defender no tribunal de justiça onde o princípio de prazer é o juiz que a está presidindo. “A idéia de que há dificuldades inerentes à natureza da civilização que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma” parece ter perdido sua prístina obviedade. A compulsão e a renúncia forçada, em vez de exasperante necessidade, converteram-se numa injustificada investida desfechada contra a liberdade individual.
Passados sessenta e cinco anos que O mal-estar na civilização foi escrito e publicado, a liberdade individual reina soberana: é o valor pelo qual todos os outros valores vieram a ser avaliados e a referência pela qual a sabedoria acerca de todas as normas e resoluções supraindividuais devem ser medidas. Isso não significa, porém, que os ideais de beleza, pureza e ordem que conduziram os homens e mulheres em sua viagem de descoberta moderna tenham sido abandonados, ou tenham perdido um tanto do brilho original. Agora, todavia, eles devem ser perseguidos — e realizados — através da espontaneidade, do desejo e do esforço individuais. Em sua versão presente e pós-moderna, a modernidade parece ter encontrado a pedra filosofal que Freud repudiou como uma fantasia ingênua e perniciosa: ela pretende fundir os metais preciosos da ordem limpa e da limpeza ordeira diretamente a partir do ouro do humano, do demasiadamente humano reclamo de prazer, de sempre mais prazer e sempre mais aprazível prazer — um reclamo outrora desacreditado como base e condenado como autodestrutivo. Como se incólume — talvez mesmo fortalecida por dois séculos de concentrados esforços para conservá-la na luva de ferro das normas e regulamentos ditados pela razão —, a “mão invisível” recobrou a verdade e está uma vez mais prestigiada. A liberdade individual, outrora uma responsabilidade e um (talvez o) problema para todos os edificadores da ordem, tornou-se o maior dos predicados e recursos na perpétua autocriação do universo humano.
Você ganha alguma coisa e, em troca, perde alguma outra coisa: a antiga norma mantém-se hoje tão verdadeira quanto o era então. Só que os ganhos e as perdas mudaram de lugar: os homens e as mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais.
Qualquer valor só é um valor (como Georg Simmel, há muito, observou) graças à perda de outros valores, que se tem de sofrer a fim de obtê-lo. Entretanto, você precisa mais do que mais falta. Os esplendores da liberdade estão em seu ponto mais brilhante quando a liberdade é sacrificada no altar da segurança. Quando é a vez de a segurança ser sacrificada no templo da liberdade individual, ela furta muito do brilho da antiga vítima. Se obscuros e monótonos dias assombraram os que procuravam a segurança, noites insones são a desgraça dos livres. Em ambos os casos, a felicidade soçobra. Ouçamos Freud, novamente: “Estamos supondo, assim, que só podemos extrair intenso deleite de um contraste, e muito pouco de um estado de coisas.” Por quê? Porque “o que chamamos felicidade (…) vem da (preferivelmente repentina) satisfação de necessidades represadas até um alto grau e, por sua natureza, só é possível como fenômeno episódico”. Sem dúvida: liberdade sem segurança não assegura mais firmemente uma provisão de felicidade do que segurança sem liberdade. Uma disposição diferente das questões humanas não é necessariamente um passo adiante no caminho da maior felicidade: só parece ser tal no momento em que se está fazendo. A reavaliação de todos os valores é um momento feliz, estimulante, mas os valores reavaliados não garantem necessariamente um estado de satisfação.
Não há nenhum ganho sem perda, e a esperança de uma purificação admirável dos ganhos a partir das perdas é tão fútil quanto o sonho proverbial de um almoço de graça — mas os ganhos e perdas próprios a qualquer disposição da coabitação humana precisam ser cuidadosamente levados em conta, de modo que o ótimo equilíbrio entre os dois possa ser procurado, mesmo se (ou, antes, porque) a sobriedade e sabedoria duramente conquistadas nos impedem, aos homens e mulheres pós-modernos, de nos entregar a uma fantasia sobre um balanço financeiro que tenha apenas a coluna de créditos.