Introdução: filosofia como política cultural

Se tivéssemos a imortalidade e a onipotência dos deuses, poderíamos desenvolver um conhecimento exaustivo de cada objeto do mundo. Porém, como os seres humanos têm vida curta e capacidades cognitivas limitadas, precisamos utilizar abordagens compatíveis com o fato de que a quantidade de informações que podemos armazenar e processar é muito restrita. Não contamos com o tempo necessário para investigar as peculiaridades de cada ser e de cada acontecimento.

Nosso desafio cognitivo sempre foi o de otimizar nossos saberes, realizando atividades complexas com o mínimo de conhecimento possível. Podemos nos tornar exímios pescadores, sem conhecer a fundo o metabolismo dos peixes. Os melhores remadores podem ser ignorantes sobre as leis da física que organizam a interação entre a canoa, o remo e a água.

Estamos sempre imersos em ambientes mais complexos do que conseguimos perceber e descrever conscientemente. Todavia, embora não possamos escapar da condição de animais que precisam tomar decisões com base em conhecimentos limitados, tampouco somos seres que refletem constantemente sobre a ignorância que nos é própria. Dedicamos nossa atenção consciente ao desafio de tomar decisões adequadas a partir do horizonte estabelecido pelos saberes que aprendemos ao longo de nossa vida. Somos seres “dedutivos”: buscamos inferir o máximo de conclusões particulares, a partir dos conhecimentos gerais que compõem nossos repertórios individuais e coletivos.

A maioria de nós não gasta o seu tempo no mundo questionando a validade de seus próprios saberes e valores. Já temos problemas suficientes em nossa constante tentativa de adotar comportamentos condizentes com eles. Uma pessoa que pergunta demais tende a não alcançar a eficiência de quem segue os parâmetros cristalizados em sua cultura. Parece mais adequada uma coletividade em que os indivíduos seguem as tradições consolidadas, em vez de tentar reinventar a roda a cada passo. Com isso, talvez consigamos dedicar nossas capacidades ao enfrentamento dos problemas novos, que fogem ao repertório dos saberes compartilhados.

A economia cognitiva das sociedades tradicionais estimula que os indivíduos sejam pouco reflexivos no exercício de suas atividades cotidianas: cozinhar, cuidar dos filhos, redigir mandados de segurança, etc. Nesses âmbitos práticos, cada ser humano se comporta como se tivesse imensas certezas sobre si próprio e sobre o mundo que o cerca. A justificada segurança de uma pessoa que acumulou experiência e conhecimento pode ser facilmente confundida com a confiança temerária daqueles que não compreendem os limites de suas próprias capacidades. A maioria de nós se equilibra entre esses extremos, pois fazemos nossas escolhas com razoável segurança, mesmo que não dominemos todos os conhecimentos que se relacionam com as atividades que praticamos.

Jogamos futebol sem saber exatamente o que é a gravidade. Usamos computadores sem saber como eles funcionam. Vemos a lua nascer imensa e amarela sem entender bem por que ela se torna menor no decorrer da noite. Todavia, enfrentamos imensas dificuldades para explicar coisas que deveriam ser simples, caso essas certezas fossem assim tão sólidas. Quais são os meus verdadeiros desejos? Que é o tempo? De onde veio o universo?

Não temos explicação para tudo, nem precisamos ter. Podemos viver sem muitas explicações, desde que a combinação de nossas subjetividades com nossos poucos saberes consiga produzir comportamentos percebidos como eficientes. Precisamos de modelos suficientemente eficazes, e não de conhecimentos exaustivos. Quanto mais simples são as situações vividas, mais podemos recorrer irrefletidamente a nossas intuições. Porém, frente a situações complexas, dedicamos muito tempo a ponderar sobre as possíveis consequências de nossos atos: quais serão as consequências de uma separação, do uso de certo argumento ou do recurso à violência física?

Em muitos casos, temos dúvidas. Essa capacidade duvidante é salutar porque ela mobiliza nossa reflexão consciente, para avaliar cuidadosamente os fatos: suas características, suas particularidades, suas implicações. A filosofia é movida por esse tipo de dúvida, que não se contenta com as intuições e sensibilidades coletivamente partilhadas, mas exige explicações minuciosas, fundadas em um conhecimento rigoroso da natureza e das sociedades. Por esse motivo, a matéria-prima da filosofia não é o saber, mas a ignorância.

Não é por acaso que o principal atributo do filósofo é ser consciente de sua ignorância. Ao reconhecer os limites do seu próprio saber, a pessoa com sensibilidade filosófica trilha caminhos que mitigam seus desconhecimentos. Um dos grandes motores para essa percepção é a capacidade que os filósofos têm de se espantar com o fato de as coisas serem exatamente como são. Essa perplexidade constante gera um moto-contínuo de questões: para cada situação vivida, podemos nos perguntar: por que o mundo é assim, e não de outra forma? A sensibilidade dos filósofos faz com que eles não consigam olhar para as coisas concretas e apreciá-las como são. Eles nunca podem falar como Alberto Caeiro, no poema O guardador de rebanhos:

Creio no Mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
(Pessoa, 1990)

Diversamente de Caeiro, a filosofia observa a realidade em busca de explicações que dependem de entidades fantasmagóricas: razões ocultas, essências imanentes, princípios últimos. Essa doença dos olhos não contamina apenas as perspectivas filosóficas. Os religiosos também observam fatos concretos em busca de descobrir a ordem invisível que os conecta e dirige. Já os cientistas analisam fenômenos empíricos em busca de compreender as leis subjacentes, cujo conhecimento permitiria explicar as regularidades da natureza e prever as consequências de um acontecimento. Todos esses personagens tentam explicar o mundo, em vez de meramente contemplá-lo.

Na Grécia Antiga, não havia uma diferenciação clara entre discursos religiosos, científicos e filosóficos. Essa distinção foi construída ao longo do tempo, e somente se consolidou no século XIX (Rorty, 1995), especialmente na distinção proposta por Auguste Comte entre três modelos distintos: os mítico-religiosos (que explicam as regularidades da natureza em termos da intencionalidade divina); os filosófico-metafísicos (em que as regularidades naturais são explicadas como a realização de uma natureza impessoal) e aos propriamente científicos, ou positivos, que se utilizam apenas de explicações mecânicas e causais, construídas a partir da observação de fatos empíricos (Comte, 1982).

Até o século XIX, o projeto dos filósofos era o de conferir a suas reflexões o mesmo grau de rigor que havia sido atingido pela física newtoniana, capaz de evidenciar os padrões eternos de uma ordem natural imutável. Nessa época, o conceito de ciência era usado para designar um saber rigoroso sobre o mundo, composto por afirmações com validade universal. Chamando de filosofia o conjunto geral dos saberes, Kant considerava que os gregos tinham razão em dividi-la em três ciências: a Física, a Ética e a Lógica. A lógica seria uma ciência formal, pois trata das regras do pensamento em geral, enquanto a física e a ética seriam ciências igualmente materiais, pois tratariam de objetos determinados por leis universais: de um lado, as leis da natureza, de outro as leis da liberdade (Kant, 1996).

Ao longo da modernidade, cientistas como Isaac Newton ainda chamavam a sua própria disciplina de “filosofia natural” (Smith, 2008). O mesmo rigor matemático buscado pelos cientistas também inspirava muitos filósofos, como Descartes, Espinosa ou Pascal. Os pensadores modernos entendiam que a racionalidade humana era capaz de descobrir a verdade tanto sobre os fenômenos empíricos quanto sobre as dimensões éticas, políticas e valorativas de nossa existência. Não havia uma distinção clara de métodos entre o conhecimento geral da filosofia e os conhecimentos das várias ciências particulares: todas elas eram investigações sobre a estrutura da ordem natural.

Essa indiferenciação também estava presente nos primeiros pensadores modernos que colocaram em dúvida os limites de nossa racionalidade, como David Hume. As reflexões de Hume foram realizadas dentro de suas investigações sobre o entendimento humano (human understanding) e se voltavam especialmente para a validade das inferências indutivas, que são as estruturas argumentativas fundamentais dos discursos científicos (Hume, 1975).

A tese humeana de que raciocínios indutivos não possibilitam um conhecimento objetivo da verdade teve grande eco entre filósofos que, como Kant, buscaram defender o caráter objetivo de parte dos saberes empíricos e dos valores morais. A resposta kantiana a Hume foi delineada na Crítica da Razão Pura, que buscava realizar uma análise rigorosa “da faculdade da razão em geral, com respeito a todos os conhecimentos que pode aspirar” (Kant, 2001). Kant fala repetidas vezes que a filosofia deveria seguir o caminho da ciência, transformando-se em um conhecimento rigoroso da ordem natural, tal como a física newtoniana.

No século XIX, a Revolução Industrial atropelou as pretensões da filosofia de se afirmar como um conhecimento tão rigoroso como o científico. Como observou um economista da época, “a crença em verdades filosóficas saiu tanto de moda que nem o público, nem os acadêmicos se dispõem a receber mais obras desse tipo, exceto como produtos de puro academicismo ou curiosidade histórica” (apud Hobsbawm, 2009). Segundo o historiador britânico Eric Hobsbawm, as principais tendências filosóficas europeias se inspiravam pelo discurso científico e se opunham frontalmente à herança metafísica dos gregos. A imensa confiança depositada na solidez do conhecimento científico fazia com que a busca filosófica das essências parecesse um esforço inútil (Hobsbawm, 2009).

É nesse contexto que emergiu a concepção que Comte chamou de positivismo, que é um nome alternativo para cientificismo. Essa abordagem enfatizava as proximidades entre religião e ciência, pois essas duas abordagens não se contentam com a identificação cuidadosa das regularidades observáveis nos fenômenos. A partir daquele momento, cristaliza-se a percepção de as decisões políticas e individuais não deveriam se pautar nas orientações metafísicas dos filósofos ou dos religiosos, mas nos conhecimentos empíricos desenvolvidos por ciências como a física, a medicina ou a sociologia.

O positivismo não se limitava a afirmar que determinadas concepções filosóficas estavam equivocadas e deveriam ser substituídas por teorias mais aptas a revelar a natureza íntima das coisas. Tratava-se de uma rejeição da própria abordagem filosófica, entendida como uma forma ultrapassada de conhecimento: uma tentativa injustificada de compreender o mundo a partir de análises abstratas e não por meio de observações de fenômenos concretos. Como era de se esperar, muitos filósofos se contrapuseram a esse tipo de crítica, defendendo que a filosofia ainda podia ser uma forma rigorosa de conhecimento, capaz de revelar o próprio modo de ser do homem, que não poderia ser desvelado por meio do enfoque naturalista da ciência.

Enquanto os cientistas acentuavam a inviabilidade de um conhecimento que transcendesse nossas observações empíricas e históricas, filósofos como Edmund Husserl, defendiam que o naturalismo da ciência a tornava cega para uma dimensão da natureza que não era perceptível por nossos sentidos: o próprio Ser dos homens, que somente poderia ser acessado por meio de uma intuição direta de nossa consciência (Husserl, 1989). Husserl é uma das principais vozes que retoma a tese clássica de que, para além das aparências observáveis pelos cientistas, temos uma essência natural que nos é própria e que somente pode ser percebida pelas faculdades inteligíveis de nossa consciência.

A redução da psique humana a um fenômeno empírico, explicável pelas abordagens mecanicistas da ciência, conduz a uma abordagem monista, incompatível com o dualismo típico das perspectivas filosóficas tradicionais e do senso comum contemporâneo. Ao tratar nossas capacidades intelectuais como meras decorrências do funcionamento do sistema nervoso, a ciência se contrapõe à consolidada estratégia de explicar as questões humanas a partir da combinação de elementos materiais, ligados a nossa corporeidade, com uma dimensão imaterial, que pode ser caracterizada como espiritual, psíquica ou anímica.

As sensibilidades assentadas sobre uma divisão mente/corpo tendem a considerar incompletas abordagens científicas que se restringem à observação empírica do comportamento humano, pois elas nada têm a dizer sobre essa dimensão imaterial dos homens, tradicionalmente considerada aquela que é propriamente humana. São recorrentes afirmações, como a do filósofo Eric Voegelin, de que a falta de uma abertura para a transcendência impede que os seres humanos se realizem plenamente, visto que essa dimensão espiritual é um elemento constitutivo da natureza humana (Voegelin, 1989). A redução da consciência humana ao resultado do funcionamento cerebral desafia a percepção cartesiana de que o nosso pensamento é algo que existe fora do mundo físico, visto que se trata de uma manifestação de uma consciência que se radica em nossa alma, e não em nosso corpo (Descartes, 1973).

O dualismo mente/corpo continua sendo uma concepção bastante difundida no mundo contemporâneo, sendo que boa parte das pessoas acredita que a natureza humana é definida pela combinação de uma dimensão física (dada por nossa corporeidade) com uma dimensão metafísica (de nossa mente, alma ou consciência). Para as abordagens tradicionais da filosofia, os filósofos seriam capazes de analisar reflexivamente as propriedades de nossa consciência, o que lhes possibilitaria ultrapassar os limites do conhecimento empírico que a ciência nos oferece.

Embora as implicações religiosas da distinção alma/corpo tenham reduzido a sua presença no discurso público, referências a uma consciência imaterial continuam sendo percebidas como explicações plausíveis para os fenômenos humanos. Isso fez com que o filósofo e cientista Daniel Dennett afirmasse que a consciência passou a ser, na cultura atual, “o último bastião das propriedades ocultas, epifenômenos e estados subjetivos imensuráveis” (Dennett, 1998). Todavia, a consolidação entre os cientistas de uma perspectiva monista e empírica estimulou o diagnóstico, ao longo do século XX, de que a filosofia havia se tornado irrelevante, pois insistia em tratar de fantasmas: essências naturais eternas, acessíveis por algum tipo de faculdade puramente intelectiva, radicada em nossa mente. Uma das afirmações mais radicais desse esvaziamento foi a enunciação pelo célebre cientista Stephen Hawking de que a filosofia havia morrido.

Como podemos compreender o mundo em que nos encontramos? Como o universo se comporta? Qual é a natureza da realidade? De onde é que tudo isto veio? O universo precisou de um criador? A maioria de nós não despende muito tempo a preocupar-se com estas questões, mas quase todos nós dedicamos algum tempo a elas.
Tradicionalmente, estas são questões da filosofia, mas a filosofia está morta. A filosofia não acompanhou os desenvolvimentos modernos da ciência, nomeadamente da física. Os cientistas tornaram-se os portadores da tocha da descoberta na nossa busca de conhecimento. (Hawking, 2010)

O argumento de Hawking seria plausível, caso a filosofia continuasse a representar uma tentativa de responder às questões naturalistas dos velhos filósofos gregos, que se questionavam sobre a estrutura do cosmos. De fato, a filosofia ocidental se desenvolveu durante milênios a partir da intuição platônica de que era preciso supor a existência de entidades imateriais imutáveis (ideias, essências, substâncias, etc.), para que o mundo pudesse ser descrito como a realização de uma ordem natural imanente. Platão notou que admitir a existência de uma ordem natural significa pressupor que os elementos imateriais que a compõem deveriam ser tão existentes como os fenômenos empíricos. A longa permanência dessa intuição nos discursos filosóficos fez com que Whitehead caracterizasse a filosofia ocidental como uma série de notas de rodapé à obra de Platão (Whitehead, 1978).

O projeto filosófico construído sobre os alicerces do pensamento grego começou a definhar quando a modernidade se deu conta de que as sociedades não podiam ser descritas como realizações de uma essência imutável e universal. Ao longo dos últimos duzentos anos, a busca por identificar uma verdade absoluta tem cedido espaço às perspectivas construídas sobre o pressuposto de que as práticas sociais e os modelos conceituais que usamos para descrevê-las “não são naturais nem inevitáveis” (Rorty, 1993).

A filosofia que emerge desse tipo de enfoque não mais se apresenta como um estudo rigoroso da realidade, capaz de produzir um conhecimento objetivo do mundo. Por esse motivo, torna-se difícil compreender que um autor contemporâneo, como Hawking, argumente que a filosofia está morta porque ela não é capaz de explicar rigorosamente os fenômenos empíricos que constituem o mundo em que estamos. Stephen Hawking construiu um espantalho para atacar e, previsivelmente, ele se sagra vencedor nessa batalha.

Todavia, o conhecimento filosófico contemporâneo não se apresenta como uma alternativa ao conhecimento científico. A atividade dos cientistas é realizar investigações capazes de produzir modelos explicativos adequados acerca dos modos como os fenômenos se relacionam. A atividade dos filósofos é muito diversa: trata-se de uma análise dos discursos sociais em geral (e não apenas dos filosóficos), na busca de identificar suas estruturas e promover uma gestão das transformações necessárias para aprimorar os modelos conceituais disponíveis em uma sociedade. Nas palavras de Rorty, a filosofia é uma espécie de “política cultural”, voltada a determinar “quais construtos sociais devem ser mantidos ou substituídos” (Rorty, 1993).

De fato, quando os cientistas identificaram a morte da filosofia, enquanto perspectiva capaz de produzir conhecimentos confiáveis, esse já era um tema recorrente no debate filosófico. A principal referência desse diagnóstico é a defesa feita por Friedrich Nietzsche, no final do século XIX, da morte simultânea da teologia cristã e da tradição filosófica ocidental. Em seu livro mais célebre, Nietzsche conta a história de Zaratustra, um pensador que se isolou nas montanhas por vários anos, até que decidisse voltar à cidade para compartilhar as reflexões que ele havia realizado. Os ecos platônicos desse eterno retorno à cidade dos homens indicam que, apesar de todas as transformações, os filósofos contemporâneos continuavam decididos a compartilhar seu conhecimento com pessoas que prefeririam que eles mantivessem silêncio. No caminho de volta, Zaratustra se encontrou com um velho eremita dos bosques, que também se havia distanciado do mundo e continuava firme na sua disposição de isolamento, sob a justificativa de que ele não amava mais aos homens, somente a Deus: “o homem é, para mim, uma coisa demasiado imperfeita. O amor aos homens me mataria” (Nietzsche, 2011).

Por um lado, esse santo idoso encarnava o ceticismo cristão quanto à capacidade humana de conhecer a verdade por seus próprios meios. Suas palavras ecoam o profeta Jeremias, para quem seria “maldito o homem que confia no homem” (Jeremias, 17:5), vez que a sabedoria absoluta da divindade não pode ser alcançada por meros mortais. Mas ocorre que esse desejo por uma verdade transcendente absoluta, que supera as possibilidades humanas, é compartilhado também pela filosofia grega. Ambas as perspectivas anseiam pelo que Rorty chamava de verdade redentora: “um conjunto de crenças que colocariam fim, de uma vez por todas, ao processo reflexivo sobre o que deveríamos fazer de nós mesmos” (Rorty, 2007). Tal identidade faz com que o diagnóstico de Zaratustra seja aplicável tanto para a teologia quanto para a filosofia: o desejo da verdade absoluta parece completamente fora de lugar para uma sensibilidade radicalmente historicista. Como Richard Rorty diagnosticou em outro texto, “a maior parte dos intelectuais de nossos dias descarta alegações de que nossas práticas sociais exigem fundações filosóficas, com a mesma impaciência que têm com alegações semelhantes postas pela religião” (Rorty, 2005).

As perspectivas filosóficas contemporâneas se construíram a partir de um historicismo incompatível com a noção clássica de que caberia à filosofia desenvolver um conhecimento rigoroso acerca sobre as essências imutáveis e das verdades objetivas. O giro linguístico promoveu uma reinterpretação do debate sobre as essências: em vez de entender que a atividade filosófica poderia desvendar o sentido íntimo das coisas, radicado em sua essência, as abordagens contemporâneas se concentraram em compreender os modos como a atividade cognitiva humana atribui sentido às coisas que observamos. Desde o início do século XX, o sentido deixou de ser entendido como um atributo de objetos observáveis e passou a ser compreendido como um elemento que faz parte dos sistemas linguísticos que utilizamos para descrever a realidade.

Durante muito tempo, a filosofia se apresentou como uma investigação sobre a verdadeira ordem do mundo, constituída pelos atributos essenciais da natureza e dos homens, pela verdade que se encontra além das sombras projetadas na parede da caverna. Foi somente no século XX que se consolidou a percepção traduzida por Jean-Paul Sartre em uma de suas frases mais conhecidas: “a existência precede a essência”. Não é que existam essências no mundo, que a filosofia pode desvendar de alguma forma. O debate sobre as essências é uma decorrência de nossa condição de atores que operam uma linguagem repleta de pressupostos metafísicos. Nossa própria forma de existir no mundo é que nos leva a produzir discursos metafísicos, em que atribuímos às coisas uma essência que lhes seria própria. Nossa forma linguística de estar no muno é que engendra a própria noção de “essência”, a partir da qual podemos falar da humanidade dos homens ou da liticidade das pedras.

Este livro constitui o primeiro volume de uma trilogia voltada a explicar as características e limites da atividade filosófica, entendida como um discurso reflexivo sobre nossas formas de compreender o mundo. O essencialismo metafísico é apenas uma dessas maneiras. Trata-se da perspectiva mais tradicional, que herdamos dos autores clássicos, mas ela está longe de ser a única abordagem disponível. Este livro tenta dobrar a filosofia sobre si mesma: realizar uma análise filosófica dos discursos filosóficos produzidos no ocidente. Se voltamos às abordagens clássicas, não é para traçar a maneira pela qual somos companheiros de Platão ou Tomás de Aquino, na eterna busca pela verdade última das coisas. Nosso objetivo é compreender o modo pelo qual os discursos filosóficos se estruturam, para poder avaliar as potencialidades contemporâneas da filosofia.

Sustento que maior parte da filosofia é tão relevante e atual como a física newtoniana e a medicina hipocrática: são modelos que nos inspiram, mas que não utilizamos em nossas práticas atuais. A importância histórica de autores como Aristóteles, Hobbes ou Kant é inegável. A engenhosidade de suas reflexões não cessa de nos impressionar. Eles nos ofereceram alguns dos sistemas de pensamento que melhor articularam os conhecimentos e sensibilidades das pessoas que viviam nos contextos culturais em que eles produziram as suas reflexões. Entretanto, a valorização excessiva do pensamento filosófico clássico me parece fruto do curioso pressuposto de que os pensadores antigos e modernos falam da mesma coisa: a ordem imutável do mundo.

Esse é um pressuposto bastante compatível com a intuição fundamental dos primeiros filósofos: a ideia de que as imagens que desenvolvemos sobre o mundo podem não corresponder efetivamente à realidade. A onipresença do mito da caverna (Platão, 1996) pode nos dar a impressão de que a característica particular da filosofia seria justamente a denunciar a grande distância que pode existir entre a realidade objetiva do mundo e as falsas imagens que usamos para descrevê-la.

O problema dessa abordagem é que a alternativa oferecida às dificuldades decorrentes do uso de imagens distorcidas é justamente a utilização de uma imagem objetivamente verdadeira das coisas. Nesse ponto, os discursos filosóficos convergem com os discursos religiosos, dos quais eles não chegam a se diferenciar: tanto os filósofos como os profetas se apresentam como portadores de uma verdade superadora dos equívocos que integram as percepções hegemônicas de uma sociedade.

A oposição dos filósofos gregos aos mitos religiosos pode estimular a percepção de que a filosofia se opõe às explicações religiosas, quando ela se contrapõe apenas às narrativas míticas. Os mitos falam de como a atuação dos deuses e heróis definiram a organização do mundo que enxergamos hoje. O que chocava os filósofos não era o caráter religioso dessas narrativas, mas a sua historicidade: os mitos tratam a ordem do mundo como se ela tivesse um começo e como se ela fosse decorrência das escolhas de determinados atores. Já os filósofos gregos consideravam que a ordem era eterna e imutável, cabendo a nós esclarecer a estrutura dessa ordem subjacente ao mundo.

A herança platônica está menos ligada à afirmação do caráter enganoso das imagens socialmente partilhadas do que ao mito de que existe uma verdade objetiva acessível para qualquer indivíduo que se proponha a observar o mundo a partir de suas faculdades racionais. A particularidade da filosofia clássica europeia é justamente a de defender que a racionalidade inscrita na alma de cada ser humano possibilita que todo indivíduo possa descortinar, mobilizando apenas seus próprios meios, a efetiva “ordem natural”.

A trilogia que este livro integra tem como fio condutor a análise do conceito de “ordem natural”, que herdamos do antigo pensamento religioso e que os gregos transformaram no conceito central de sua filosofia. Neste primeiro volume, chamado Filosofia, Direito e Linguagem, objetivo é caracterizar a atividade filosófica e mostrar como ela pode ser descrita a partir de uma alternativa à utopia platônica: a tese de que não existe uma realidade simbólica exterior à caverna. Prefiro seguir a metáfora alternativa de Castoriadis: a filosofia não é uma via para fora da caverna, mas o exercício reflexivo que fazemos no interior do labirinto sem saída de nosso universo simbólico (Castoriadis, 1999).

Essa é uma descrição que redefine o papel da filosofia, que passa a ser encarada como um exercício reflexivo voltado a elucidar as formas como nossos conceitos influenciam nossas percepções e interações sociais. Toda comunidade é construída a partir de relações sociais linguisticamente mediadas. A ação conjunta de vários indivíduos depende de parâmetros de coordenação cuja existência não é física, mas simbólica. Essa interação é realizada por meio de referências a valores, crenças, narrativas e outros elementos que somente existem nas linguagens.

Esses elementos são transformados todas as vezes que pensamos reflexivamente sobre eles. Quando uma mulher pensa sobre a condição feminina, ela opera uma espécie de dobra: a condição feminina é, ao mesmo tempo, a perspectiva a partir da qual ela se percebe e o objeto de sua percepção. Simultaneamente, a condição feminina é o objeto a ser interpretado (pela mulher que reflete) e o contexto de interpretação (onde a reflexão se insere).

O resultado dessa operação circular é que uma mulher não pode pensar sobre a condição feminina sem alterar o modo como ela define essa própria condição. Portanto, quando ela chega a descobrir algo sobre o seu próprio ser, ela se torna diversa do que era, o que revela ser utópica a expectativa de que poderíamos nos conhecer objetivamente quando nos olhássemos cuidadosamente no espelho. Da mesma forma, um homem que reflete sobre seus próprios valores termina por ressignificá-los e, com isso, alterar o seu próprio universo simbólico.

Em suma, no universo simbólico vale um correlato do princípio da incerteza: a observação do imaginário fatalmente transforma o imaginário observado. Como os elementos simbólicos existem apenas enquanto padrões que organizam nossas sensibilidades, eles somente podem ser investigados por meio de atividades reflexivas que terminam por alterar o objeto de análise. Tematizar nossa própria subjetividade nos conduz a criar situações vivenciais que tendem a modificar a subjetividade que se busca compreender.

Esse fenômeno faz com que, embora sejamos incapazes de decidir acerca de nossa sensibilidade, nós podemos escolher cursos de ação que podem desencadear mutações em nossos universos simbólicos. Nossas crenças nos constituem e não podem ser alteradas por mera escolha: ninguém escolhe ser racista ou misógino, ninguém escolhe deixar de ser ateu ou de ser cristão. Todavia, há certas atividades por meio das quais somos levados a tematizar nossas próprias crenças, e a experiência dessas vivências pode conduzir a uma alteração (discreta ou revolucionária) das formas como percebemos os elementos simbólicos que nos constituem.

A filosofia é uma dessas atividades reflexivas que nos colocam frente aos limites de nossas formas de produzir imagens do mundo. Sua particularidade é a de tematizar diretamente as categorias que usamos na produção de nossas descrições sobre a realidade, abrindo espaço para que nosso universo simbólico seja transformado por meio da adoção de novas categorias, seja pela criação original de novos conceitos (que desdobramos com base naquelas que já temos, como a distinção entre gênero e sexo), pela ressignificação dos sentidos tradicionais de um termo (como justiça ou igualdade) ou pelo abandono de conceitos que se tornam desacoplados do restante de nosso imaginário (como a distinção entre senhores e escravos).

No desencadeamento desses processos transformadores (cujo resultado é sempre imprevisível, por depender da sensibilidade própria de cada pessoa...), o estudo da história da filosofia tem o importante papel de abrir nossos horizontes para a multiplicidade de arranjos conceituais possíveis e para a inserção histórica das crenças que vivenciamos como naturais. Todavia, não podemos perder de vista que as informações não têm, por si mesmas, um caráter transformador: elas somente adquirem essa potencialidade quando uma pessoa se deixa interpelar pelas radicais diferenças entre os conceitos desenvolvidos no passado (que ressaltam a historicidade dos sistemas valorativos em que estamos imersos) e pela multiplicidade de percepções que atravessa as complexas sociedades de hoje em dia.

Por esse motivo, um curso de filosofia que se volta a estimular uma sensibilidade reflexiva e uma consciência acerca das próprias categorias não pode se limitar a transmitir conhecimentos: ele precisa ser modelado para equilibrar a proposição de novos processos reflexivos com os estudos que dialoguem com a experiência acumulada pelas pessoas que enfrentaram desafios reflexivos similares, ao longo dos últimos milênios. Não é um desafio fácil, mas poucos estudos têm mais impacto potencial sobre a nossa vida do que uma reflexão cuidadosa acerca dos nossos modos de inventar os mundos simbólicos que habitamos.

...

Todo livro é uma produção coletiva. A forma atual deste livro decorre de uma infinidade de diálogos, especialmente com as centenas de estudantes da UnB que cursaram minhas disciplinas de filosofia nos últimos 20 anos e os muitos amigos com quem convivi nos grupos de pesquisa que integrei ao longo desse tempo.

Agradeço especialmente a Pedro Duarte Blanco, pela cuidadosa revisão, e também a Aislan Arley Pereira de Alvarenga e Felipe Justino de Farias, pelos vários comentários feitos a versões anteriores desta obra.

Agradeço também à Universidade de Brasília, pela concessão da licença que permitiu a minha atuação como pesquisador convidado no Laboratoire de Théorie du Droit da Aix-Marseille Université (2022/2023), onde o presente trabalho foi consolidado, bem como à FAPDF, pela concessão da bolsa que financiou a realização desse pós-doutorado.

Dedico este livro a meu amigo e professor Luis Alberto Warat (1941-2010). Todas as minhas aulas são tentativas de seguir o seu exemplo, criando ambientes em que a circulação de afetos estimule a emergência de novas sensibilidades.

1. O que é filosofia?

Resumo: Este ensaio apresenta uma definição de filosofia que contesta a ideia tradicional de que ela se trata de um conhecimento acerca dos princípios primeiros, das essências naturais ou das estruturas atemporais da sociabilidade humana. Desenvolvendo uma intuição de Wittgenstein (1922), afirmo que o a filosofia não deve ser considerada um saber, mas uma atividade que produz determinados tipos de discursos: reflexões sobre os conceitos que utilizamos para construir nossos universos simbólicos.

1. Filosofia e sabedoria

1.1 Sabedorias risíveis

Ninguém nasce filósofo. Também não se nasce médico, cozinheiro ou dentista. Toda profissão exige um certo percurso formativo, em que desenvolvemos as habilidades que nos qualificam como padeiros, professores ou advogados.

Eu, por exemplo, sou filósofo. Mas devo confessar que demorei muito para falar de mim nesses termos. Creio que minha resistência a assumir tal designação decorria do imenso peso agregado a esse título. Apresentar-me como filósofo me parecia um ato ridículo, na medida em que implicava a reivindicação de pertinência a uma casta especial, formada por indivíduos com uma profundidade intelectual superior. Como sintetizou Kwame Appiah, a filosofia é “o rótulo de maior status no humanismo ocidental” (1997), o que faz soar pedante uma pessoa designar a si própria como filósofa.

Esse tipo de reivindicação nobiliárquica, ainda que involuntária, mostra os descaminhos da filosofia ocidental. Como toda revolucionária vitoriosa, ela se converteu rapidamente em uma nova encarnação do inimigo contra o qual ela lutava: a sabedoria. Quando dizer-se filósofo se converte em uma forma de qualificar-se como sábio, é porque a filosofia se transformou em uma palavra vazia.

Torna-se digno de riso quem se apresenta como sábio ou como célebre, pois essas designações não indicam o que uma pessoa é (como ser mãe) nem o que ela faz (como ser artista), mas revelam a maneira como as outras pessoas a reconhecem. O rótulo de sábio só faz sentido quando é atribuído por uma coletividade. Porém, quando disseram de Sócrates que ele era sábio, ele percebeu que essa designação conduzia a uma armadilha. Segundo Paul Silbert, ele teria pensado algo assim:

Que outros me chamem de sábio, por reconhecerem meu conhecimento ou minha prudência, vá lá! Chamam de sábios gente que sabe ainda menos do que eu. Porém, o que não teria cabimento seria eu mesmo me chamar de sábio, pois cada um de nós é péssimo juiz de seus próprios méritos. Se eu posso assumir uma designação que trate de minha relação com a sabedoria, somente poderia ser um nome que fale de algo que eu realmente sou e que faço: alguém que deseja conhecer, que valoriza o conhecimento, mas nunca alguém que teria a verdade, como se a verdade fosse uma garrafa de vinho ou um cavalo. (Silbert, 2222)

Essa consciência fez com que Sócrates desenvolvesse o curioso título de filósofo: um rótulo que ele poderia atribuir a si próprio, sem soar ridículo. Com essa astúcia, Sócrates escapava do ridículo da designação, bem como da prisão implícita num papel social que, para ser preservado, exige dos sábios que se esforcem constantemente para manter sua posição de porta-voz dos discursos que fazem eco em sua comunidade.

1.2 A insustentável leveza do saber

Apesar desse início autocrítico e promissor, os herdeiros da tradição socrática logo passaram a reivindicar o lugar do sábio, com sua especial capacidade de diferenciar a Verdade de seus muitos simulacros. A ideia de que o filósofo é capaz de um conhecimento objetivamente verdadeiro desnaturou o sentido original da palavra filosofia, convertendo-a em um tipo específico de saber institucionalizado. Daí a reticência que eu tinha em me chamar de filósofo, mesmo após ter me aventurado a escrever um livro em que trato das nossas formas de conhecer, um tema que sempre foi matéria de filosofia (Barros, 2013a). Eu tinha começado esse livro assim:

Eu não sou filósofo. Aliás, nem acho que o título filósofo signifique alguma coisa relevante, porque ele faz parecer que existe um certo grupo de pessoas que produzem aquilo que chamamos comumente de filosofia.

A sincera inverdade contida na primeira frase ressalta que é preciso sempre duvidar dos filósofos, assim como dos poetas. O filósofo “é um fingidor, que finge tão completamente” (Pessoa, 1990), que chega a se convencer de que são verdadeiras as coisas que ele gostaria de dizer. Tal convergência de sensibilidades raramente foi reconhecida pelos filósofos, tanto que Platão tratou de excluir terminantemente os poetas de sua República (1996), para que eles não defendessem publicamente teses tão perigosas como a de que “desaprender oito horas por dia ensina os princípios” (Barros, 2013b).

O status diferenciado dos filósofos depende da crença social de que existe uma ordem imanente das coisas, a ser desvendada pela inteligência desses seres reflexivos e profundos. Mas os poetas nunca levaram a sério os filósofos, como ilustra a descrição que Aristófanes fez de Sócrates como uma pessoa que defendia as maiores sandices. A pós-sabedoria dos filósofos carregou desde sempre algo de risível, visto que a filosofia precisa revestir-se de uma sobriedade, uma seriedade e uma objetividade que ninguém pode buscar sem parecer ridículo.

As pessoas que tiveram a alegria de ler Milan Kundera certamente pensaram em seus livros quando viram as “peso” e “risível” utilizadas no mesmo texto. Kundera escreveu romances (Kundera, 1985, 1987) em que explorou a paradoxal relação entre peso e leveza, assim como o caráter disruptivo das várias formas de humor. Em sua literatura, aprendi mais sobre o mundo do que na maioria das obras filosóficas que eu li. Posso dizer o mesmo sobre poetas como Pessoa e Belchior, assim como de filósofos que se utilizaram extensamente de narrativas literárias, como Nietzsche, Sartre e Camus.

Na República imaginada por Platão (Platão, 1996), os artistas foram quase todos relegados a um silêncio obsequioso, devido ao justificado receio de que suas obras promovessem ilusões tão atraentes que poderiam deslocar a atenção dos cidadãos para longe das verdades. Somente escaparam os músicos, dada que a abstração de sua arte não era capaz de multiplicar crenças infundadas.

Como era previsível, a estratégia platônica não funcionou. Continuamos insistindo em colocar os poetas e os filósofos lado a lado, reconhecendo que ambos estão envolvidos em uma “didática da invenção” (Barros, 2013b), voltada a criar discursos capazes de mobilizar a sensibilidade de seus concidadãos. Esse reconhecimento me fez considerar mais adequado defender explicitamente que pessoas que escrevem livros de filosofia sejam qualificadas como filósofas, mas isso não implica reconhecê-las como uma aristocracia do pensamento.

Não há mais saber no existencialismo filosófico de Heidegger que no existencialismo poético de Caeiro. Não há mais verdade no pragmatismo filosófico de Rorty que no pragmatismo cantado por Belchior. A potência criativa do pensamento de Simone de Beauvoir não se apresenta menor em suas obras literárias que em suas reflexões teóricas. A filosofia não é um discurso sobre a obra dos filósofos, mas sobre os conceitos que organizam as práticas sociais. Estes conceitos são criados e desenvolvidos tanto por filósofos como por escritores, músicos, cientistas e vários outros atores que produzem narrativas inovadoras acerca do mundo e das pessoas. Afastadas as pretensões nobiliárquicas da filosofia, eu devo ser capaz me admitir filósofo com a mesma tranquilidade que acompanha minha identificação como professor, como brasileiro e como admirado leitor de Kundera.

2. Filosofia e política

2.1 O insustentável peso da filosofia

Até aqui, o objetivo foi deflacionar a noção de filosofia, tentando retirar dela a crosta de sabedoria que foi se acumulando na palavra ao longo do tempo. Os filósofos fingiram não ser sábios, para logo em seguida tentarem assumir a função social que os sábios detinham: serem os guardiães do verdadeiro sentido das coisas. O que levou a essa impostura não foi a má-fé dos filósofos, que procuraram incessantemente a verdade com as melhores intenções, ou seja, com um desejo sincero de desvendar o sentido íntimo das coisas (Pessoa, 1990). O que os levou a seguir esse caminho foi justamente a crença de que existia esse tal sentido íntimo das coisas, a ser descoberto.

Foi somente no século XIX que começamos a duvidar seriamente da existência de uma ordem valorativa intrínseca à natureza. Desde então, desenvolvemos gradualmente a consciência de que a história humana não é um processo em que as nossas essências se realizam no mundo. Pelo contrário: por meio dela, construímos e desenvolvemos nossos universos simbólicos.

A consciência histórica destrona a velha pretensão filosófica de encontrar as essências imutáveis de uma natureza eterna. Nietzsche chegou a afirmar que o que caracteriza os filósofos é justamente a falta de sentido histórico e a tentativa de pensar as coisas imutáveis, eternas, que serviriam como fundamentos para um conhecimento verdadeiro das essências.

A morte, a evolução, a idade, tanto quanto o nascimento e o crescimento, são para eles não só objeções, como até refutações. O que é não se torna, não se faz, e o que se torna ou se faz não é. [...] Resultado: mister se faz desprender-se da ilusão dos sentidos, do devir, da história, da mentira. Consequência: negar tudo o que supõe fé nos sentidos, negar todo o resto da humanidade. (Nietzsche, 2006)

O único conhecimento sólido, na tradição filosófica, está na descoberta das formas imortais que subjazem aos movimentos do mundo, esses pontos arquimedianos em que podemos apoiar com segurança as alavancas do nosso conhecimento. Nada que muda na história pode ser objeto de um conhecimento seguro, para essa tradição metafísica.

O historicismo do século XIX torna ridículas as pretensões da filosofia grega, e com isso abre espaço para podermos inventar um sentido novo para a própria ideia de filosofia, que passa a ser descrita como uma forma específica de trabalho intelectual.

Entretanto, devemos tomar cuidado para que a deflação do peso da palavra filosofia não nos conduza para uma dissolução completa desse conceito. Esse caminho poderia nos levar a considerar todas as pessoas como filósofas porque cada um de nós tem a sua “filosofia de vida”. Isso seria tão equivocado como considerar que os advogados são escritores porque passam a vida a redigir petições iniciais e recursos. A simples habilidade de produzir textos escritos não permite qualificar uma pessoa como “escritora”.

Todos contamos histórias, mas isso não nos torna historiadores. Alguns de nós se interessam por entender como certos acontecimentos se passaram, mas isso tampouco nos torna historiadores. Isso nos torna interessados na história, e foi o reconhecimento de um interesse desse tipo que estava contido na formulação socrática do termo filo+sofia, designando um particular interesse pelo conhecimento verdadeiro.

Eu também canto, de vez em quando, com a família e os amigos. Também cheguei a tocar pandeiro no Samba do Peleja, mas isso não me torna um músico. Reservamos o nome de historiador e de músico para quem produz narrativas históricas ou discursos musicais com habilidade e constância.

A atividade que exerço como maior regularidade é a de professor. A docência não envolve a produção de discursos propriamente filosóficos, mas a de textos pedagógicos, voltados a facilitar a compreensão das estruturas conceituais que permeiam os variados discursos que meus leitores encontram ao longo da vida. Um professor de filosofia não é necessariamente um filósofo, mas um cartógrafo que mapeia os modos de pensar, com o objetivo de auxiliar seus leitores e ouvintes a compreender melhor o que nós fazemos quando tentamos explicar o mundo.

2.2 A invenção dos sentidos

Não é incomum que os professores de filosofia contribuam efetivamente para o campo, desenvolvendo uma leitura particular do mundo, que possibilita que os qualifiquemos também como filósofos. Mas a filosofia não é fruto do trabalho dos professores de filosofia, assim como a língua não é o resultado do trabalho dos linguistas. Os linguistas são estudiosos das linguagens, que produzem descrições sobre os modos pelos quais os seres humanos se comunicam por meio de códigos linguísticos. Os linguistas produzem a linguística, eles não produzem a língua.

Muito antes de haver linguistas, existiam múltiplas línguas, faladas por milhares de pessoas e constituídas pelo esforço comum de criar modos de compreensão recíproca. E, antes de haver línguas, havia linguagens mais simples: pictóricas, gestuais, sonoras. Tudo tem sempre um antes, e as coisas que não tem antes são mistérios que desafiam nossa compreensão. Deixemos os mistérios para depois.

Muito antes de haver filósofos, existiram discursos estruturados a partir de categorias complexas, conjuntos de narrativas que tentavam converter o mundo em um lugar compreensível. Antes de haver filósofos, havia essa postura que veio a ser chamada de hermenêutica: observar a realidade como se ela fosse um texto, como se ela portasse um sentido a ser descoberto. Além disso, devemos esclarecer que as ideias filosóficas que os professores organizam e apresentam não estão contidas apenas nos livros de filosofia. Foi com o poeta Fernando Pessoa que melhor aprendi que os filósofos estão doentes dos olhos porque não veem o mundo como ele é, mas atribuem sentidos a coisas que não têm valores nem significado, apenas existência.

Somente as coisas que têm sentido são passíveis de compreensão. Na tentativa de entender o mundo, partimos do pressuposto de que podemos descobrir um sentido intrínseco nas coisas que observamos. Ocorre que esse sentido não está lá, para ser descoberto: ele é produzido por nós mesmos, durante o processo que descrevemos como sendo o de sua busca.

As coisas não precisam ter um sentido para que nos dediquemos interpretá-las: nosso olhar pode reconhecer em uma nuvem a forma de um dragão ou de um elefante, mas dragão e elefante são modelos que estão em nossa mente, e não nas próprias nuvens. Somos nós (observadores, leitores, intérpretes) que estabelecemos relações de semelhança, de consequência ou de finalidade, com as quais podemos reduzir a complexidade do mundo a certas formas recorrentes, elaborando modelos explicativos capazes de dar sentido unificado a uma multiplicidade de objetos e acontecimentos.

O objetivo deste livro é o de contribuir para que você reflita sobre algumas articulações possíveis (antigas, modernas, pós-modernas, etc.) sobre essas questões, para avaliar em que medida as suas perspectivas se identificam com esses modelos explicativos. Como dizia Carlos Nejar, “a razão que não me dais, eu crio” (Nejar, 2003), e assim nós inventamos múltiplos universos simbólicos que povoam o mundo com significados, valores, direitos naturais e sentidos objetivos.

2.3 A mutação simbólica

Esses modelos de compreensão do mundo não são a filosofia, porque eles são muito mais amplos. Eles são as culturas, universos criados pela sedimentação de múltiplas camadas históricas, nos quais cada indivíduo se encontra desde seu nascimento. Nenhum de nós cria a cultura, porque ela surge por um longo processo de decantação, no qual se cruzam as percepções de inúmeras pessoas. Cada um de nós observa o mundo como se ele tivesse uma ordem intrínseca e, previsivelmente, produzimos múltiplas descrições dessa ordem.

Uma realidade ordenada é um lugar habitável dentro do qual podemos nos mover com mais previsibilidade e segurança. Nosso cérebro é uma máquina de produzir ordem, de criar padrões que permitam adaptar-nos ao mundo, mesmo que contemos apenas com informações fragmentárias. Uma ordem inventada acalma nossas angústias e permite o estabelecimento de relações sociais estruturadas simbolicamente, constituindo um artefato cultural que nos permitiu viver em grupos de centenas de milhões de pessoas.

As primeiras ordens sociais que emergiram nas comunidades humanas eram muito efetivas para transmitir certos padrões de comportamento entre gerações. Essas formas de organização são baseadas no estabelecimento de uma cultura, combinada com uma série de mecanismos de socialização que garantem a estabilidade das formas de interação social inscritas na tradição cultural: papéis sociais (mãe, filho, marido, etc.), competências (como a habilidade de fazer barcos, partos e armas), narrativas (mitológicas, religiosas, históricas) que moldam a identidade das pessoas que vivem nessa comunidade. Quando uma tradição se cristaliza, ela pode se tornar um mecanismo demasiadamente efetivo, estabilizando comportamentos de forma tão rígida que a sociedade passa a enfrentar dificuldades para se adaptar às mudanças ambientais.

Por mais que a estabilidade seja fundamental para a sobrevivência de uma sociedade, as sociedades que sobreviveram aos últimos milênios são aquelas que mostraram o maior grau de rigidez. Com o fim da última era glacial, por volta de 10.000 anos atrás, o meio ambiente mudou de forma acelerada e muitos espaços se abriram para as espécies que conseguiram ocupar esses novos nichos ecológicos, em que o clima mais ameno tornava pouco adaptadas as populações de animais e vegetais que se consolidaram na era do gelo. Naquele contexto de aquecimento global, tiveram mais sucesso evolutivo os grupos humanos que desenvolveram elementos culturais capazes de acelerar os processos adaptativos, servindo como filtros para definir quais aspectos de cultura seriam mantidos e quais elementos deveriam ser transformados.

No âmbito das relações sociais, esse filtro de transformações é o governo: inventamos que as decisões de um grupo de pessoas vinculariam toda a sociedade, o que possibilitava (e possibilita) transformações sociais rápidas, movidas por razões de natureza estratégica. O governo opera no âmbito dos comportamentos sociais, definindo as formas de atuação de uma sociedade e seus indivíduos. Porém, no âmbito dos nossos universos simbólicos (que envolvem crenças, convicções, valores), não é possível a criação de um governo, pois nenhuma pessoa ou sociedade decide sobre seus próprios valores, convicções e significados.

A transformação dessa ordem simbólica não se dá por meio de uma decisão. Ninguém simplesmente decide acreditar em um deus ou superar um estado de luto. As práticas psicoterápicas contemporâneas, por exemplo, atuam justamente nesse abismo que existe entre desejar ser (mais paciente, menos preconceituoso ou mais feliz) e efetivamente estar à altura de seus próprios desejos. Uma pessoa pode decidir submeter-se a um processo terapêutico, mas as alterações subjetivas que decorrem da psicoterapia não são causadas diretamente pela decisão de se transformar, e sim pelas formas como a vivência do processo interfere na constituição subjetiva do indivíduo.

As decisões incidem diretamente sobre o comportamento, mas elas operam de forma indireta sobre nossas crenças: não nos é dado decidir acerca de nossas convicções, mas o ato de refletir sobre nossos universos simbólicos pode desencadear mudanças em nossas formas de ver o mundo. No âmbito social, uma sociedade pode vedar os processos argumentativos por meio dos quais refletimos sobre nossas tradições, o que contribui para reforçar a estabilidade de uma cultura. As sociedades também podem tolerar (ou até mesmo estimular) o desenvolvimento de processos argumentativos que evidenciem as incongruências existentes em nossas formas de ver o mundo e, nessa medida, sirvam de impulso para o estabelecimento de interações sociais que proporcionem uma paulatina reorganização de nossos universos simbólicos.

Tradições mais dogmáticas vedam essa reflexão direta sobre os valores sociais, cuja simples tematização pode levar a processos transformadores. Tradições mais abertas à crítica possibilitam o desenvolvimento de dinâmicas de interação social que conduzam a transformações na ordem simbólica. Uma dessas dinâmicas é a filosofia, que se baseia no desenvolvimento de um discurso reflexivo, que coloca em questão as convicções e valores cristalizados no senso comum. Existem, porém, outras dinâmicas, inclusive mais antigas que a própria filosofia: os profetas, por exemplo, são personagens que alteram as ordens religiosas, promovendo rupturas. A arte, em seus exercícios criativos, contribui para modificar nossas formas de descrever a realidade, oferecendo narrativas e representações inovadoras. A filosofia faz parte desse processo de mutação simbólica, mas sua atividade é concentrada na revisão explícita de nossos conceitos: um discurso que tematiza diretamente as explicações vigentes, perguntando se eles devem ser mantidos ou transformados.

3. A reflexividade filosófica

3.1 Filosofia como atividade

No item 4.11 do Tractatus Logico-Philosophicus, Wittgenstein afirmou que a filosofia não é uma teoria, mas uma atividade voltada a elucidar o significado dos enunciados sobre os fatos, diferenciando aquilo que pode ser pensado e dito claramente daquilo que, por não poder ser enunciado com clareza, deveria ser calado (Wittgenstein, 1922). Proponho que não atribuamos à filosofia um objeto tão estreito quanto o naturalismo do Tractatus sugeriu, mas que adotemos a tese de Wittgenstein no sentido de que a filosofia deve ser vista como uma atividade reflexiva sobre nossos conhecimentos, e não como um saber.

Sugiro chamar de filosofia a atividade reflexiva que tem por objeto o modo como nós pensamos sobre todos os temas abrangidos por nossa linguagem e não apenas sobre os fenômenos empíricos, como sugeriu Wittgenstein (Wittgenstein, 1922). Além disso, proponho reconhecer que ela não tem uma atividade meramente elucidativa, visto que o discurso filosófico promove uma crítica voltada ao desenvolvimento de critérios para diferenciar o que deve ser mantido e o que deve ser transformado em nossas ordens simbólicas. Por esse motivo, a filosofia é uma atividade que sempre se exerce no presente: não faz sentido decidir o que deve ser modificado ou mantido em universos simbólicos do passado, nem do futuro.

De fato, muitas das pessoas que consideramos filósofos são apenas pessoas eruditas, que estudaram textos filosóficos, mas nunca se dedicaram realmente a fazer essa reavaliação de suas próprias ideias. Os próprios professores de filosofia, muitas vezes, são compendiadores dedicados de ideias alheias, mas que têm um baixo nível de reflexividade sobre suas próprias concepções. Um filósofo ortodoxo, dedicado a converter outras pessoas a suas próprias convicções, é uma figura que, além de triste, é inútil: somente podemos mudar nossas crenças a partir de dentro, o que faz com que a filosofia precise ser um diálogo aberto, e não uma pregação missionária. Com relação a um desses pseudofilósofos, Dmitri Karamázov deu uma resposta curiosa: “todos os russos de verdade são filósofos e tu, embora tenhas estudado, não és um filósofo, mas um smierd [um camponês simplório]” (2008, p. 764). A marca da filosofia não é a erudição nem a defesa intransigente de um ponto de vista: somente uma reflexividade autêntica e dialógica pode gerar discursos filosóficos sólidos.

Embora a filosofia muitas vezes se apresente como um tipo de conhecimento (das essências, das causas, dos princípios, de si mesmo, etc.), essa é uma caracterização enganosa, porque, como afirmava John Dewey, a filosofia não é uma forma de conhecimento, mas um programa de ação (Rorty, 2007). A questão da filosofia é sempre a de orientar nossas decisões: que ideias devemos abandonar e que outras ideias devemos incorporar a nossas descrições de mundo? Essa percepção fez com que Rorty inserisse a filosofia no âmbito do que ele denominou “política cultural”: uma atividade voltada a definir “quais construtos sociais devem ser mantidos ou substituídos” (Rorty, 1993).

A citação preferida de Miroslav Milovic, meu grande professor de filosofia, era a última tese de Marx sobre Feuerbach: “filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas o que importa é transformá-lo” (Marx, 1982). A ideia de que a filosofia é uma atividade voltada a interpretar o mundo está ligada ao pressuposto de que ela é um tipo específico de conhecimento: mais verdadeiro, mais profundo, mais essencial. Pensada como atividade, a filosofia deixa de ser a busca de uma pretensa verdade e passa a ser inscrita entre as estratégias de transformação social, voltadas a (re)constituir nossos universos simbólicos e nossas organizações políticas.

3.2 Filosofia e paradoxos

A pretexto de entender como o mundo verdadeiramente é, a filosofia forja novas formas de ver o mundo, que alteram nossas percepções e, consequentemente, nossas formas de agir. Essa vocação prática da filosofia, tão acentuada por Miro e por Rorty, faz com que ela seja uma atividade altamente contextual: não podemos filosofar senão a partir de nossa própria visão de mundo.

Nas Cidades Invisíveis, Marco Polo conta a Kublai Khan sobre várias cidades de seu vasto império, mas um dia o governante apontou que faltava falar de uma: Veneza, a cidade natal do célebre mercador. Marco sorriu e respondeu: “E de qual julgavas que eu te falava? […] Sempre que descrevo uma cidade digo qualquer coisa de Veneza. […]” (Calvino, 1990). E assim sempre fazemos nós, falando do mundo a partir de nossa mirada particular, composta pela interação de nossa personalidade com as diversas realidades que nos interpelaram ao longo da vida.

Eu nasci em um mundo sem internet. Cresci em uma sociedade em que telefones celulares eram pensados como algo tão distante quanto as viagens interestelares. Eu me tornei adulto imerso em relações sociais que se processavam sem WhatsApp, sem Instagram, sem Facebook, sem Tinder. Se eu tiver a fortuna de uma vida longa, serei ainda testemunha das catástrofes ambientais decorrentes da mudança climática e dos abalos sísmicos que a inteligência artificial causará nos mercados de trabalho.

Com sorte, essas mesmas coisas serão vistas também por meu pai, que quando criança viajava a cavalo para passar férias na casa do meu bisavô, no interior da região norte do Brasil. Meu pai nasceu em 1951, quando os EUA tinham escolas segregadas (Brown v. Board of Education é de 1954), havia mais de 20 colônias europeias na África, as mulheres casadas no Brasil somente podiam trabalhar com autorização prévia do marido (o Estatuto da Mulher Casada, que muda essa situação, é de 1962) e a homossexualidade era crime na Inglaterra (é de 1967 o Sex Offence Act, que legalizou relações homossexuais praticadas entre maiores de 21 anos).

Foi nesse mundo tão diferente do nosso que a maioria dos atuais ministros do STF nasceu e foi educada. Juristas que foram socializados em um contexto tão diverso, que desenvolveram valores e sensibilidades adequadas ao ambiente em que estavam inseridos há 50 anos, julgam questões que muitas vezes desafiam esses valores e desbordam dos conceitos com os quais eles se acostumaram a observar a realidade.

Esse vertiginoso ritmo de mudanças faz com que, muitas vezes, a sensibilidade de uma pessoa guarde distância com relação às percepções típicas de uma geração mais antiga (ou mais nova). Essas diferenças nos interessam porque a filosofia se desenvolve, a cada momento, discutindo os limites das percepções sociais hegemônicas.

A filosofia é útil quando nos desafia, especialmente quando explora as tensões internas que existem nas nossas visões de mundo. Cada um de nós tem uma sensibilidade construída a partir de fatores heterogêneos, que não formam um sistema unificado, e sim um mosaico repleto de incongruências que nos passam despercebidas porque cada peça do mosaico nos é familiar. O estudo da filosofia tende a nos tornar mais conscientes desses elementos paradoxais, a perceber que existem fraturas em nossos modelos explicativos, que os conceitos que usamos são vagos, que nossa indignação moral é seletiva, que acreditamos em fatos distorcidos e que todo mundo se acha mais justo e mais objetivo do que se é.

Essas incongruências não são um objeto exclusivo da filosofia: tratam delas os artistas, os psicólogos, os religiosos, cada um a seu modo. Os filósofos normalmente lidam com essas questões a partir de uma análise dos conceitos: observamos os repertórios conceituais que recebemos das gerações anteriores (a tradição, no sentido mais literal daquilo que é transmitido) e avaliamos em que medida esses modelos explicativos são adequados ao contexto atual.

Ocorre que esses critérios de análise são muito díspares: cada perspectiva filosófica tem seus padrões e eles não são compatíveis entre si. Apesar de toda essa disparidade, ou melhor, justamente por causa de toda essa disparidade, é importante que cada um de vocês identifique os modelos explicativos que tende a usar, e que se torne consciente das potencialidades e dos limites desses repertórios conceituais.

O exercício dessa reflexividade é a própria filosofia, que segue colocando em dúvida as verdades que nos são mais caras. Não se trata de uma atividade monopolizada pelos escritores de livros de filosofia, nem pelos professores de filosofia e, menos ainda, pelos bacharéis em filosofia. Não são os linguistas que produzem a língua e, tal como os idiomas são fruto da ação coordenada de todos os falantes, a filosofia é fruto do diálogo de todas as pessoas envolvidas nesse tipo de reflexão, que tem caráter transformador sobre as pretensas verdades que constituem o senso comum.

4. A atualidade da filosofia

4.1 A modernidade

Será o discurso filosófico capaz de oferecer contribuições relevantes para os processos sociais que definem a manutenção, transformação ou rejeição das categorias linguísticas a partir das quais construímos nossos universos simbólicos?

Nos últimos séculos, consolidou-se a ideia de que as escolhas políticas e individuais deveriam ser pautadas por um conhecimento objetivo e rigoroso dos fatos, que não nos é dado pela filosofia, e sim pela ciência. Em um ambiente polarizado, como aquele em que vivemos hoje, a filosofia tende a ser percebida como irrelevante, visto que o questionamento das verdades que deveriam ser respeitadas é entendido como simultaneamente subversivo e inútil. Subversivo porque faz perguntas que deveriam ter sido silenciadas, mas inútil porque as pessoas são pouco propensas a modificar sua posição mediante um exercício reflexivo.

Neste período pós-moderno, tornou-se lugar-comum apontar os limites das crenças sociais dos nossos adversários: as pessoas afirmam que seus opositores vivem em uma caverna, incapazes que são de enxergar a verdadeira realidade das coisas. Todavia, em vez de oferecer um caminho reflexivo e dialógico que possa esclarecer as percepções equivocadas, esse diagnóstico conduz a uma desqualificação dos opositores, o que justifica a utilização de estratégias de imposição violenta dos valores que eles são incapazes de reconhecer de forma autônoma.

Esta postura missionária se aproxima da sensibilidade que Tomás de Aquino demonstra na Summa contra Gentiles, na qual buscou demonstrar que certos elementos do cristianismo poderiam ser justificados diretamente pela razão, sem a necessidade de argumentos baseados na revelação bíblica (Davies, 2016). Por esse motivo, judeus, muçulmanos e outros povos de cultura não cristã incorreriam em erro ao não reconhecerem as verdades cristãs demonstráveis por meio da razão natural, que todos os seres humanos compartilham.

Uma vez que os povos não-europeus se mostravam incapazes de reconhecer as verdades objetivas e os valores calcados na racionalidade universal dos europeus, era legítimo que os colonizadores atuassem como tutores dessas populações incultas, que dependiam de uma condução adequada para que adotassem as formas civilizadas de organização social, política e moral. Nos embates tipicamente modernos, a crítica das posições tradicionais era realizada por meio de uma postura iluminista, que pressupunha a existência de uma verdade objetiva para além das crenças tradicionais, que poderia ser alcançada por meio do exercício de uma reflexão racional. A modernidade europeia, baseada na ideia de que as estruturas sociais desenvolvidas na Europa eram decorrências naturais da racionalidade humana, tinha como desenvolvimento previsível um movimento colonial por meio do qual essas verdades fossem impostas legitimamente a outras populações, visto que a colonização era percebida (pelos colonizadores, evidentemente) como um movimento civilizatório e emancipador.

4.2 Filosofia em tempos de polarização política

No final do século XIX, filósofos como Nietzsche se deram conta que os filósofos modernos apontavam a historicidade das perspectivas tradicionais, sem se dar conta da historicidade de seus próprios conceitos (Nietzsche, 2006). No início do século XX, essa consciência histórica se desdobrou no reconhecimento por Hans Kelsen de que tal embate deveria ser percebido como uma competição entre diversas versões do jusnaturalismo, defendidas por pessoas plenamente convencidas da validade objetiva de seus valores religiosos, liberais ou socialistas (Kelsen, 1992).

A afirmação por Kelsen de que não há critérios racionais para afirmar que um valor é objetivamente válido foi mal-recebida tanto à esquerda como à direita. Na linguagem coloquial contemporânea, o posicionamento kelseniano foi criticado por ser uma espécie ideologia de “isentões”, que não se alinhava com nenhum dos polos discursivos da época. Em meados do século XX, o que o senso comum exigia dos juristas não era o reconhecimento crítico de que todo sistema de governo implica a imposição violenta de certos valores, mas o comprometimento com a tese de que certos valores deveriam ser percebidos como objetivamente corretos, o que justificaria a sua imposição pelo Estado, inclusive por meio de decisões judiciais.

No ideário do constitucionalismo liberal, o século XX vivenciou uma ampliação do rol dos direitos fundamentais (igualdade racial, igualdade de gênero, liberdade de orientação sexual, direitos ambientais, etc.), que foram lidos em uma perspectiva jusnaturalista: esses direitos não são invocados como decorrências históricas de uma transformação social, mas como avanços no reconhecimento de uma natureza humana eterna e imutável, mas que não é totalmente reconhecida pelo senso comum.

No contexto missionário da modernidade, toda teoria dialógica soa como um simulacro, pois trata-se de um diálogo cujo resultado legítimo somente pode conduzir à imposição do verdadeiro bem. Assim como o colonialismo e a colonialidade (Quijano, 2011) não são descaminhos de uma modernidade distorcida, mas realizações do projeto político moderno. A polarização contemporânea é o resultado previsível do avanço de modelos políticos comprometidos com a imposição de um determinado sistema de valores, operação que somente pode ser feita pelo embate, e não pelo diálogo.

A convicção dos liberais sobre os seus valores não é menor do que a convicção conservadora acerca de seu ideário. Este é um tipo de conflito que não aponta para uma solução pacífica, visto que os dois lados são movidos por uma mentalidade missionária, pouco disponível ao diálogo com as diferenças. A grande certeza que cada um de nós tem acerca do caráter objetivo de seus valores fundamentais faz com que poucos estejam abertos a rediscuti-los.

Quando a diferença pode ser simplesmente cancelada nos ambientes virtuais contemporâneos, que sentido existe em retomar a antiga tradição filosófica do diálogo e da argumentação, como formas de lidar com as questões humanas mais controvertidas? Quando podemos votar nos candidatos com os quais nos identificamos e que mobilizam nossos afetos, que sentido existe em discutir publicamente as políticas públicas? Nossa forma política é uma ritualização da guerra, que possibilita a imposição dos valores majoritários a uma minoria que aspira se converter em maioria, no contexto de novas eleições.

O conflito ritualizado me parece efetivamente melhor do que uma guerra conflagrada, como a que acontece hoje no Iêmen, na Síria e na Ucrânia. Mas talvez devamos ouvir com mais cuidado as advertências de Hobbes, para quem esse tipo de ajuste ritualizado manteria vivas tensões sociais que fatalmente nos conduziriam a uma guerra civil (Hobbes, 2014). Se a terapêutica hobbesiana do governo soberano nos parece um pesadelo, devemos ser sensíveis para o fato de que um governo em que o poder é dividido entre múltiplos atores pode gerar configurações instáveis. Em tais ajustes poliárquicos (Dahl, 2005), precisamos de muito cuidado e sensibilidade para evitar que as inevitáveis divergências nos conduzam à tentação de contornar as dificuldades do diálogo político por meio da imposição autoritária do “bem”.

No contexto atual de polarização e fechamento em bolhas, perdem atratividade as perspectivas teóricas que descrevem a sociedade em termos de processos decisórios racionais, informados por um discurso livre. Em contraposição, ganham espaço abordagens que tratam das interações sociais em termos de poder, de imposição e de conquista. No lugar do universalismo iluminista, assistimos ao surgimento de neotribalismos (Maffesoli, 1996) que desafiam nossa capacidade de estabelecer uma sociedade capaz de articular as diferenças existentes entre seus vários grupos.

4.3 Filosofia e crítica

Quando a questão da verdade parece definida por critérios de identidade política, que lugar pode haver para a filosofia? O mesmo velho lugar que ela tem ocupado desde os gregos: um espaço em que cada indivíduo pode articular dúvidas sobre as crenças sagradas de uma sociedade. As primeiras sociedades não tinham abertura para essa dimensão autocrítica, em que os elementos sagrados pudessem ser tematizados diretamente, em termos argumentativos. Com relação aos valores sociais fundamentais, o que se espera dos cidadãos é o respeito e a reverência, motivo pelo qual a filosofia sempre foi percebida como uma forma de impostura.

A filosofia sempre se coloca como um exercício crítico acerca dos conceitos dominantes em uma sociedade, no sentido de contribuir para definir quais são as concepções que devemos manter e reforçar, e quais são aquelas que compõem a nossa cultura, mas que deveriam ser abandonadas. Mas qual é a utilidade de realizar esse tipo de exercício, que viola o princípio básico de que, em time que está ganhando, não se mexe. Parece conveniente e democrático reconhecer que uma ideia que conquistou assentimento generalizado deve ser respeitada, seja porque ela faz parte de uma tradição respeitável (para os conservadores), seja porque ela é a expressão majoritária de uma coletividade (para os liberais).

Por que deveríamos permitir que sejam colocados em xeque os valores que nos são mais caros? Para uns, as diferenças naturais entre homens e mulheres e os valores religiosos. Para outros, a igualdade de gênero e a liberdade de orientação sexual. Para outros, ainda, a distribuição de renda e a garantia de patamares mínimos de acesso à saúde, à moradia e à educação. O problema é que desejamos coisas muito estranhas ao esperar que sejam respeitados simultaneamente valores conflitantes. A solução moderna sempre foi empurrar essa diversidade radical para debaixo do tapete, por meio da fixação de um certo conjunto de pautas políticas que seriam objetivamente corretas e, portanto, politicamente imponíveis. Somente parece possível a integração das diferenças conciliáveis: é permitido ser católico ou protestante, desde que todos professem um monoteísmo de origem judaica; é permitido ter ideias exóticas, desde que elas sejam mantidas na órbita privada.

Em suma, é permitido questionar a tradição, mas não ao ponto de rompê-la. A experiência sugere que a forma mais eficiente de atuação individual ou coletiva é avaliar os exemplos de sucesso e tentar mimetizar o comportamento dos indivíduos ou coletividades que se destacam. Seguir a tradição é uma forma de aprender com os erros dos outros, o que de fato parece uma estratégia razoável.

De fato, as estratégias de imitação são vitais para que certos traços culturais permaneçam como parte de uma cultura. A mentalidade conservadora parece bem alinhada com essa necessidade de produzir coletividades harmônicas, guiadas por culturas claras e estáveis. Porém, vivemos em sociedades dinâmicas, imersas em contextos complexos, cujas constantes alterações tendem a comprometer a efetividade das abordagens consolidadas e dos saberes do senso comum.

Inclusive, temos dúvidas cada vez mais severas acerca da ideia de que as sociedades poderiam ser estabilizadas por meio de eleições periódicas, em que a expectativa de sucesso tornasse estrategicamente vais vantajoso para as várias facções o engajamento na guerra ritualizada pelo sufrágio. O recesso democrático que muitos países têm vivido, inclusive o nosso, sugere que alguns grupos sociais entendem que têm mais chances de sucesso político por meio de uma escalada autoritária que por meio de uma estratégia eleitoral. Quando temos dúvidas acerca da solidez de elementos tão básicos de nossas organizações sociais, amplia-se a relevância da reflexão crítica sobre nossas formas de enxergar e avaliar o mundo, que chamamos tipicamente de filosofia.

2. Os labirintos da linguagem

Resumo: Este ensaio apresenta aos leitores uma cartografia para que eles possam percorrer os labirintos linguísticos em que estamos encerrados. Nele, examino as relações entre linguagem e filosofia, defendendo que os discursos filosóficos não têm por objeto fenômenos empíricos nem entidades metafísicas, mas as construções linguísticas formuladas por uma cultura. Apoiado no existencialismo de Alberto Caeiro (Pessoa, 1990), ressalto que a filosofia não é um caminho rumo ao desvelamento do ser nem uma via de acesso privilegiado às verdades íntimas do mundo. Defendo também que o fato de a filosofia ser uma linguagem que fala de outras linguagens, inclusive de si própria, gera autorreferências que conduzem o discurso filosófico a paradoxos que não podem ser evitados, apenas administrados.

1. Cartografias linguísticas

1.1 Objetos e conjuntos

Teoria, filosofia, empiria. Física e metafísica. Ética e política. Estas antigas palavras gregas designam conceitos desenvolvidos em nosso esforço de compreender a complexidade do ambiente que nos envolve, conhecendo o universo e seus habitantes. Lidar com tal complexidade é um desafio que enfrentamos diariamente, pois dele depende a nossa sobrevivência, tanto como indivíduos quanto como espécie.

Nossas percepções nos apresentam uma multiplicidade de seres radicalmente individuais: cada pedra tem uma forma particular, cada pessoa é única, cada planta é diversa de todas as outras que já existiram. A tarefa de conhecer cada um dos inumeráveis seres existentes ultrapassa nossas capacidades cognitivas e nossa curta vida. O conhecimento completo de cada objeto particular é uma tarefa impossível para os seres humanos. Se uma pessoa pudesse conhecer um mundo de possibilidades infinitas, ela precisaria ter a onipotência e a imortalidade dos deuses.

Tentamos contornar a limitação das capacidades cognitivas humanas por meio de estratégias de classificação: em vez de acumular conhecimentos sobre cada um dos inumeráveis objetos que existem, nós agrupamos esses objetos em classes. Isso permite que produzamos conhecimentos gerais sobre cada um desses grupos, e não apenas sobre cada elemento individual.

Um dos primeiros passos para compreender o funcionamento de nossa linguagem é perceber que os nomes comuns (casa, peixe, ponte, etc.) não designam objetos específicos, mas conjuntos. A formulação de uma frase tão simples como “eu vi uma casa” implica o exercício de uma capacidade abstrata de classificação, pois esse enunciado indica: eu vi um objeto no mundo, que identifico como sendo uma casa. Falar de uma casa implica tratar um objeto concreto (a minha residência, por exemplo) como parte de um conjunto abstrato (composto por todas as casas do mundo).

Essa operação classificatória subjacente aos enunciados mais simples faz com que estrelas e árvores, por exemplo, não figurem em nosso conhecimento apenas como seres singulares (cada árvore ou cada estrela particular), mas também como ocorrências particulares de um gênero, ou seja, de uma “categoria” de objetos.

Atividade 1. Identifique três nomes que usamos para designar categorias de objetos, tal como: “contrato”, “pessoa” ou “direito fundamental”. Neste momento, convém utilizar preferencialmente um nome no singular, o que facilita a compreensão de que, por exemplo, a categoria “contrato” faz referência ao “conjunto dos contratos”.

O processo de categorização permite fazer afirmações abstratas como: “árvores precisam de água”, “contratos podem ser bilaterais ou unilaterais” ou “reinos são organizações sociais com ao menos três níveis hierárquicos”. Esses enunciados não tratam de características de objetos concretos, mas das propriedades de categorias abstratas.

Cada uma dessas frases relaciona uma categoria (como árvore, contrato e reino) a outras (como água, bilateralidade, hierarquia). Assim, a devida compreensão dos enunciados linguísticos exige o domínio da rede de significações que são estabelecidas por essas referências mútuas. Com efeito, as categorias linguísticas não existem isoladamente: elas existem na forma de uma rede integrada de significações, que integram o código linguístico em que elas são expressas.

Atividade 2. Faça duas afirmações sobre uma das categorias que você escolheu no Exercício 1. Identifique, nos seus enunciados, as categorias que você precisa conhecer, para poder compreender esses enunciados. Você notará que algumas palavras implicam uma categorização (substantivos comuns, adjetivos, verbos) e outras atuam apenas na integração desses conceitos (como as preposições e os artigos). Tanto faz se uma categoria tem um nome simples (como “contrato”) ou composto (como “contrato de adesão” ou “ato administrativo”): o que a define como uma categoria não é o seu nome, mas a existência de critérios que permitam aos falantes identificar os objetos que integram o conjunto designado.

Quando nos deparamos com objetos desconhecidos (um novo peixe, um novo terremoto, uma nova árvore), a percepção de que eles se assemelham a objetos já conhecidos permite abordá-los a partir do nosso repertório de saberes. Tratar objetos parecidos como integrantes de uma mesma classe nos permite utilizar os conhecimentos de que dispomos para abordar eventos que nunca enfrentamos antes.

É evidente que essas extrapolações envolvem o risco de produzirmos inferências falsas, que nos levem a comer cogumelos venenosos, acariciar cachorros bravos, ou nos preparamos para chuvas que não caem, apesar das nuvens carregadas. Na vida social, os exemplos de enganos se multiplicam exponencialmente, em vista das dificuldades que temos em prever os comportamentos humanos. Aplicamos estratégias pedagógicas desenvolvidas com nosso primeiro filho a seu irmão mais novo, mas os resultados são diversos, pois cada criança é singular. Pior ainda: repetimos com a mesma criança as estratégias que deram certo no passado, mas as pessoas mudam com o tempo, tornando inúteis abordagens que já foram eficazes para fazer uma criança se acalmar ou dormir.

Por maiores que sejam os perigos envolvidos nessas extrapolações, os benefícios são compensadores. Cada ser humano é particular, mas também apresenta muitos comuns com as outras pessoas. Quando observamos os comportamentos de vários indivíduos, podemos identificar certos elementos que são muito variáveis (como a preferência por certas comidas), mas outros atributos nos parecem compartilhados, como o metabolismo celular e os vieses cognitivos. Essas zonas de convergência fazem com que seja possível generalizar certas experiências, por meio de um raciocínio indutivo: a formulação de enunciados gerais, construídos a partir da acumulação de observações de fenômenos singulares.

A indução é uma das ferramentas cognitivas mais importantes para a nossa sobrevivência individual e coletiva. Ela nos permite produzir conhecimentos acerca de uma classe de objetos, a partir da expectativa de que os fatos novos sigam os mesmos padrões das situações que já conhecemos. Com base nesse procedimento, podemos formular e aperfeiçoar estratégias para tratar doenças, educar crianças ou cultivar alimentos.

Estratégias eficientes tendem a ser repetidas e ensinadas para as próximas gerações, em um processo que podemos designar como um processo de “acumulação cultural” (Abrantes e Portela, 2018): a manutenção de certos padrões de comportamento, por meio de um sistema de reprodução de conhecimentos e sensibilidades. Essa capacidade parece estar ligada à estrutura de nossas linguagens, cujos processos de categorização nos permitem construir os enunciados abstratos que utilizamos para dialogar e para ensinar (Dean et al., 2012).

1.2 Categorias errantes

O estabelecimento de interações linguísticas constantes nos faz desenvolver um repertório compartilhado de referências, a partir dos quais podemos agir de forma coordenada e acumular o conhecimento obtido com as experiências do passado. Todavia, as categorias linguísticas que fazem parte de nossa cultura nem sempre nos oferecem as classificações mais adequadas para enfrentar os desafios impostos pela constante transformação dos ambientes sociais e naturais em que vivemos. Por esse motivo, uma sociedade deve ser capaz tanto de acumular cultura quanto de rever constantemente as categorias que fazem parte de sua tradição.

Tomemos, por exemplo, as categorias que foram desenvolvidas ao longo do tempo para falar dos pontos luminosos que enxergamos no céu. Houve um tempo em que todos esses pontos luminosos pareciam integrar três categorias, que eram suficientes para tratarmos dos objetos celestes: sol, lua e estrelas. O objeto “estrela” parece suficientemente diferente do objeto “lua” e do objeto “sol”, de modo que se justificava dar nomes diferentes a cada um deles.

Tínhamos três categorias para falar de objetos celestes e este sistema parecia suficiente. Mesmo quando observamos que algumas das estrelas tinham um comportamento diferente, podíamos estabilizar nossas descrições a partir do reconhecimento de dois subgrupos: as estrelas estacionárias, cuja posição parecia fixa com relação aos demais corpos celestes, e um pequeno conjunto de estrelas errantes (asteres planetai, em grego, de onde vem o nome planeta). Assim como as pessoas podem ser tímidas ou corajosas, é possível descrever as estrelas como fixas ou errantes, sem que isso exija o estabelecimento de um novo gênero.

Observações mais cuidadosas indicavam que essas estrelas errantes tinham também algumas particularidades, como o fato de terem uma luz constante, em vez de piscarem como as demais estrelas. Todavia, o número de atributos compartilhados (tamanho, brilho, estar no céu) parecia justificar o seu agrupamento dentro de um mesmo gênero, tornando pouco prática a criação de uma nova categoria.

Estrelas fixas e asteres planetai pareciam girar em torno da Terra, seguindo padrões recorrentes, o que possibilitou que a sua observação fosse relevante para uma série de atividades complexas. De fato, parecia haver mais utilidade na observação das estrelas fixas, que serviam como pontos de referência para a identificação do período do ano em que se estava (a partir das constelações visíveis) ou para que os antigos navegadores pudessem atravessar os mares sem perder a direção.

A existência de algumas estrelas anômalas não comprometia a utilidade prática da observação astronômica. De fato, no tempo de Copérnico, poderia parecer razoável classificar a lua e o sol como astros errantes, diversos dos atros fixos, mesmo que as suas particularidades em termos de tamanho e brilho justificassem que eles fossem chamados pelos seus nomes próprios. Lua e Sol não eram categorias, mas palavras que designavam objetos concretos, como a própria Terra.

Porém, a combinação das observações possibilitadas por novas tecnologias (como telescópios mais potentes) e a acumulação de observações minuciosas sobre a trajetória dos planetas permitiram a formulação de uma teoria heliocêntrica, que reinterpretou radicalmente o significado da errância dos asteres planetai e propiciou um trânsito categorial imenso: os planetas passaram a ser vistos como objetos que giravam em torno do sol, o que fazia com que a sua semelhança com as estrelas fosse percebida como algo apenas superficial.

Porém, a mudança mais radical foi a de considerar a Terra como um planeta. Ela não era mais simplesmente o objeto singular que habitamos, mas um integrante de uma categoria pela qual designávamos os astros que víamos como errantes pela combinação dos movimentos de suas órbitas com a própria órbita terrestre. A ideia de que vivemos em um planeta, como vários outros, era radicalmente nova.

Também foi radicalmente nova a descrição que considerou o Sol como um objeto do tipo “estrela”, bem como o reconhecimento de que as estrelas fixas estariam a distâncias muito diferentes de nós. Elas não eram mais pontos em um firmamento esférico, mas objetos massivos, distribuídos em um espaço tridimensional gigantesco, cujo caráter estacionário também era ilusório.

Esse pequeno exemplo do modo como se alteraram as categorias “planeta” e “estrela” nos sugerem que todos os nossos repertórios conceituais podem ser reformulados, a partir de observações que desafiam os mapas que usamos para compreender os céus, nossa cognição ou nossa sexualidade. Toda revolução categorial envolve discussões imensas, nas quais os defensores de novos conceitos debatem com os defensores das categorias hegemônicas, que podem ter motivos razoáveis para rejeitar as inovações propostas. Apesar de Copérnico ter partido de intuições que se mostraram corretas, o sistema que ele propôs precisou ser longamente maturado e desenvolvido, antes que fosse capaz de representar uma alternativa viável ao sistema geocêntrico. As intuições copernicanas precisaram ser rigorosamente testadas, para que pudéssemos adotá-las como partes de nosso conhecimento comum sobre a realidade.

1.3 Cognição e categorização

A ciência moderna pode ser compreendida como um grande processo de testagem das inferências que formulamos intuitivamente. A formulação de hipóteses explicativas não é feita apenas pelos cientistas, mas também por astrólogos, religiosos e artistas. A marca específica da ciência está na forma rigorosa com a qual os cientistas testam as suas intuições, para tentar medir a sua correspondência com os fatos.

A pesquisa científica consiste em formular claramente uma generalização e submetê-la a testes empíricos, para selecionar as hipóteses que nos oferecem os modelos explicativos mais robustos. Os cientistas formulam hipóteses sobre as relações causais entre os fatos (como, por exemplo, sobre os efeitos de um fármaco ou de uma vacina) e desenvolvem estratégias voltadas para avaliar se essas explicações são compatíveis com os fenômenos que podemos observar.

O cientista não é alguém que sabe, mas alguém que pesquisa. A atividade científica depende de uma improvável mistura de inquietação intuitiva (para formular explicações inovadoras) e rigor analítico (para ser muito exigente com relação ao resultado das intuições). Essas duas habilidades raramente se concentram na mesma pessoa e, mesmo quando isso ocorre, todo ser humano é um mau juiz sobre suas próprias intuições. Por isso, somente há boa ciência quando existe uma comunidade científica que produz e dialoga intensamente, de tal forma que a intuição criativa de cada um seja contrabalançada pelo rigor com que analisamos as hipóteses explicativas que nossos colegas apresentam (e não as nossas próprias ideias, sempre “geniais”).

A ciência envolve uma abordagem muito rigorosa, mas cara e demorada, o que a torna pouco adaptada para a maior parte dos nossos problemas cotidianos. Normalmente, utilizamos abordagens menos confiáveis, mas também mais rápidas e acessíveis. Nossa capacidade linguística de categorizar os eventos nos oferece uma maneira simples de fazer raciocínios indutivos, na medida em que nossas formas de falar das coisas que observamos envolve uma classificação em cascata: enunciar a frase “eu vi um papagaio” implica tratar um certo objeto como pertencente ao grupo das aves, que são tipos de animais, que por sua vez são tipos de seres vivos.

Nossas culturas dispõem de conhecimentos sobre seres vivos, sobre animais e sobre aves, que nos permitem inferir várias coisas sobre um objeto que nos é apresentado como pertencente a essas categorias. Esses saberes não foram desenvolvidos por uma pessoa singular, mas decorrem de um longo processo de seleção e desenvolvimento, no qual se torna evidente uma habilidade que torna a espécie humana singular: a acumulação cultural (Abrantes e Portela, 2018).

Os primatas têm uma inteligência e uma criatividade muito altas, que lhes possibilita aprender coisas novas, a partir da observação do mundo. A linguagem abstrata dos humanos amplifica essa dinâmica porque nós aprendemos imensamente uns com os outros, na medida em que podemos falar do mundo por meio de uma linguagem abstrata. A capacidade classificatória que a língua nos oferece é especialmente importante porque, ao tratar de categorias abstratas, nós nos tornamos uma espécie dotada de uma alta capacidade não apenas de aprender, mas de ensinar.

Com isso, não aprendemos somente com nossas experiências, mas também com as experiências de outras pessoas. Inclusive, aprendemos com pessoas que já morreram, já que a linguagem possibilita uma longa cadeia de transmissão, em que os saberes se propagam muito além do contexto temporal e espacial em que eles foram desenvolvidos. Cada vez que um conhecimento é aplicado (sobre partos, sobre agricultura, sobre retórica, etc.), as consequências dessa aplicação representam uma forma de teste. Somente saberes que se mostram muito robustos são capazes de permanecer no repertório comum de conhecimentos: o senso comum.

Os conhecimentos que se mostram especialmente aptos a promover a nossa sobrevivência e o nosso bem-estar tendem a se manter estáveis no conjunto de narrativas que atravessam cada sociedade: eles passam a integrar uma tradição, que é ensinada e aprendida por todos os membros de uma comunidade. Essa dinâmica social de transmissão de saberes permite um processo rigoroso de seleção, pois um mesmo conhecimento (sobre caçar, cozinhar ou tratar doenças) pode ser testado em múltiplos contextos de uso.

Não deve causar espanto que as sociedades contem com sistemas de proteção desses repertórios, cuja contestação é muitas vezes proibida: formas de organização são consideradas sagradas, interdições adquirem força divina, modos de vida são considerados como imposições de uma ordem natural. A principal dessas proteções é justamente a nossa imensa capacidade de não as perceber como categorias: nossa linguagem trata essas classificações como objetos tão reais como as coisas do mundo, o que nos faz considerá-las como parte de uma ordem natural da qual não podemos escapar.

Tendemos a perceber nossas funções sociais como decorrências diretas da natureza, e não como classificações sociais que nos definem como mulheres, escravos, nobres, estrangeiros ou professores. Cada um desses papéis conforma nossa experiência e nossa sensibilidade, mas as abordagens tradicionais raramente os tomam como meras classificações. Por esse motivo, o primeiro esforço da filosofia é justamente desnaturalizar as categorias cristalizadas em uma cultura, revelando o que existe de arbitrário e contingente nas classificações que tomamos como naturais, eternas e inescapáveis.

A estratégia categorizadora não parece ter sido invenção de uma cultura humana particular, pois ela parece integrada na forma como os nossos cérebros processam a linguagem. Nosso córtex cerebral não processa informações sensoriais de forma autônoma, para depois agrupá-las em classes, tratando diferentemente as coisas observadas e os critérios de categorização. A identificação de padrões é feita simultaneamente ao processamento dos dados produzidos por nosso sistema sensorial, de modo que as nossas próprias percepções acoplam conteúdos empíricos e categorias de análise: gritos de medo, cheiro de comida, sabores de infância.

Os sensores de nosso sistema nervoso interagem fisicamente com o ambiente: o sistema visual capta radiações eletromagnéticas, o sistema olfativo capta moléculas, o sistema auditivo capta ondas sonoras que se espalham pelo ar. Nosso cérebro organiza as percepções por meio do estabelecimento de relações variadas entre elas: similaridade, diferenças, proximidade, regularidade, etc. Assim, o funcionamento do nosso sistema nervoso envolve a identificação de padrões (Mattson, 2014; Sparkes, 1969), que não estão nos fatos, mas nas relações que nossos processos cognitivos estabelecem entre as percepções, nossas memórias e nossos conhecimentos. Nossas operações cognitivas não percebem fatos individuais e os conectam em modelos: elas já percebem os fenômenos como modelos.

Um dos exemplos mais claros desse tipo de processamento é a percepção de movimento que temos quando assistimos a um filme: sabemos que o projetor exibe vários quadros parados por segundo, mas esse conjunto é percebido inevitavelmente pelo cérebro como se se tratasse de um movimento. Um gosto que nos remete à infância desencadeia memórias esquecidas. Um grito de dor nos causa medo e ansiedade. Em suma, o cérebro reage a novos influxos produzindo uma série de interações com suas propriedades atuais, de tal forma que o resultado desse tratamento nunca é uma pura observação de fatos isolados.

O funcionamento do nosso córtex cerebral dificulta uma formulação clara da diferença entre objetos empíricos e modelos de compreensão. Uma pessoa que observa um filme com cuidado, refletindo sobre os seus modos de percepção, não se torna capaz de diferenciar movimento real de movimentos ilusórios, pois ambos são percebidos do mesmo modo (Engelmann, 2002). Diferenciamos com tanta naturalidade as pedras dos peixes que somos facilmente levados a pensar que nossa mente, de alguma forma, sabe distinguir essas duas categorias de forma automática e inata. Inclusive, vivemos nossos próprios processos cognitivos de tal modo que não os percebemos como uma atividade corpórea (como suar ou digerir), mas como o funcionamento de uma parte intangível de nós mesmos: a mente.

Cada vez que observamos uma árvore, parece que nossa mente percebe, ao mesmo tempo, um objeto singular e uma ocorrência de um gênero mais amplo. Tal como enxergamos movimento em uma sucessão muito rápida de eventos, enxergamos pertinência a uma categoria no modo automático como classificamos um tubarão como um peixe. A integração entre perceptos e modelos é tão estreita que tipicamente nos parece razoável descrever nossos próprios modelos classificatórios (movimento, peixe, pedra) como se fossem objetos observáveis: nós vemos um ato justo como uma expressão da própria justiça; vemos o céu azul da Provença como uma realização do “azul”.

Com efeito, parece que essa é a forma pela qual nosso cérebro nos apresenta esses elementos, na medida em que reagimos de forma semelhante a qualquer dos objetos que são percebidos como integrantes da mesma classe. Essa indistinção se transfere também para o plano das nossas linguagens, pois utilizamos substantivos que operam de forma idêntica tanto para nomear seres individuais (a estrela da manhã, o ipê-amarelo do meu jardim) quanto classes de seres. Nossas línguas tratam da justiça ou da beleza como se fossem entidades autônomas, e não como se fossem critérios de categorização.

A distinção entre o elemento e a classe não decorre de nossa percepção direta nem de nossas categorias linguísticas. Ela exige uma operação analítica, que examina os nossos modos de conhecer e de construir discursos. Esse tipo de análise pode nos conduzir à compreensão de que palavras como “peixe” ou “azul” não são nomes próprios de um ente particular, mas rótulos que nos permitem fazer referência a determinados conjuntos de seres. Chamaremos de “categorias” as classes criadas por meio de um processo de categorização (divisão em classes) que nos permite tratar globalmente de um determinado conjunto objetos. O nome da classe pode variar de acordo com o código linguístico utilizado (azul, bleu, 蓝色的), mas não devemos confundir a categoria (definida por certos critérios classificatórios) com as palavras que usamos para nos referirmos a ela.

Atividade 3. O cruzamento entre definições e objetos foi sublinhado artisticamente pela instalação “uma e três cadeiras”, de Joseph Kosuth (Kosuth, 1965). Compare a instalação de Kosuth com a pintura “A traição das imagens”, de Rene Magritte (Magritte, 1929), com a qual a obra de Kosuth evidentemente dialoga. Reflita sobre o que elas nos dizem sobre objetos, representações e categorias.

1.4 O arco e as pedras

A elaboração de categorias faz com que possamos interagir com o mundo sem depender de um conhecimento exaustivo dos seres individuais. Segundo Taylor, “a categorização serve para reduzir a complexidade do ambiente” (Taylor, 2002), permitindo que as nossas interações com os diversos fenômenos complexos sejam mediadas pela forma como descrevemos os fenômenos.

Quando inventamos a categoria “pássaro”, podemos falar de todos eles ao mesmo tempo. Na categoria “comestível”, podemos agrupar nela seres tão diversos como a maioria dos peixes e certos cogumelos. A categoria “perigo” nos permite tratar de forma unificada situações muito diversas, mas que precisam ser enfrentadas com especial cuidado. A categoria “proibido” permite indicar que condutas que nada tem em comum são igualmente vedadas em uma cultura.

Necessitamos de mapas que simplifiquem a realidade por meio de classes, definidas por certos atributos, para podermos traçar um mapa manejável por nossas capacidades cognitivas finitas. A linguagem nos oferece a possibilidade de multiplicar nossos mapas: sabemos muitas coisas específicas sobre a casa em que moramos, mas também sabemos várias coisas sobre casas em geral. Assim, a casalogia, a astrologia, a arvorelogia e qualquer outro conhecimento não é um saber sobre entidades específicas, mas sobre classes de objetos.

Dependemos fortemente dessas generalizações para podermos interagir com o mundo de modo significativo e eficaz, mas não devemos confundir as coisas: cada árvore tem existência empírica, mas a classe árvore somente tem existência linguística. O escritor Italo Calvino descreveu essa relação com muita precisão em um diálogo de Marco Polo com Kublai Kahn.

Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. –
Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? —pergunta Kublai Khan.
– A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra — responde Marco —, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo.
Depois acrescenta:
– Por que falar em pedras?
Só o arco me interessa. Polo responde:
– Sem pedras, o arco não existe. (Calvino, 1990)

O arco não existe. Entretanto, sem a ideia de arco, não podemos falar de como é possível fazer uma ponte de pedras que permaneça estável. Embora as pedras sejam o único elemento material de uma ponte, um conjunto de pedras somente constitui uma ponte quando elas estão dispostas de uma maneira singular.

Atividade 4. Se as pontes são pedras organizadas de uma forma específica, podemos dizer que essa forma existe?

A resposta de Marco Polo ao exercício acima seria negativa, pois ele argumenta que, “sem pedras, o arco não existe”. Essa afirmação indica que, para ele, a palavra “ponte” não passa de uma classificação que utilizamos para nos referirmos a objetos que têm uma forma específica de organização. Os filósofos que se alinham com o pensamento de Marco Polo são chamados de nominalistas: para eles, “ponte” é apenas um nome, que designa um conjunto de objetos dotados de propriedades comuns. Para eles, a “ponticidade” das pontes não é uma dimensão do modo de ser desses objetos, mas um critério linguístico, que define o sentido da palavra “ponte” nos discursos que formulamos para nos comunicarmos uns com os outros.

2. Os paradoxos da significação

2.1 O aprendizado impossível

Para Marco Polo, não faz sentido falar do verdadeiro conceito de ponte, pois o signo tem uma função pragmática: classificar os objetos. Dizer que “peixes têm guelras” parece uma forma simplificada de afirmar que todos os elementos do conjunto “peixes” possuem guelras. Mas não é só isso. Quando dizemos que “o tubarão é um peixe”, não afirmamos apenas que cada tubarão é um elemento do conjunto que chamamos arbitrariamente de “peixe”. Com essa frase, buscamos dizer que cada tubarão tem os atributos que qualificam certos objetos como peixes.

Isso ocorre porque, ao contrário de outros conjuntos, as categorias não são formadas pela simples indicação dos membros que a integram: seus limites são fixados pela definição de um critério objetivo de pertinência.

Atividade 5. “O Castelo”, de Kafka, faz parte do conjunto dos livros que eu pretendo ler este ano?

Essa é uma pergunta que imagino que você não saberá responder, pois nem eu mesmo sei quais objetos fazem parte desse conjunto. Mesmo se eu tivesse feito uma lista dos 10 livros que pretendo ler nos próximos meses, ela dependeria de critérios totalmente subjetivos, como o meu desejo, o meu conhecimento (que nada sabe de muitos livros fantásticos) e a minha memória (que esqueceria de colocar na lista algumas das obras mais interessantes que eu conheço).

Atividade 6. A obra “O Castelo”, de Kafka, é um livro?

Essa pergunta é totalmente diferente porque a categoria “livro” faz parte da nossa linguagem e, nessa medida, permite que você aplique os critérios de pertinência que objetivamente estão vinculados a esse nome. Por isso, a construção de categorias não constitui um processo qualquer de elaboração de listas de objetos: trata-se de uma classificação realizada com base em critérios objetivos, que possam ser conhecidos e aplicados por qualquer pessoa. Este caráter objetivo e comunicável dos critérios de pertinência sempre causou problema aos filósofos, pois ele conduz a paradoxos.

Já dissemos antes que o significado de uma categoria é definido a partir de outras categorias, o que faz com que as linguagens operem como uma forma de rede de significação. Esse entrelaçamento faz com que a linguagem adquira a forma de um sistema fechado, em que os significados fazem referências uns aos outros. Platão percebeu que essa descrição gerava uma incongruência: o aprendizado de uma linguagem parece depender do domínio de categorias da própria linguagem; todavia esse aprendizado somente parece possível quando já conhecemos as categorias que deveríamos aprender. Inobstante, nós sabemos que é possível o aprendizado das linguagens, pois nós mesmos somos falantes hábeis. Como explicar, então, essa capacidade paradoxal?

Atividade 7. Como é possível aprender uma linguagem, se tal aprendizado parece supor que as pessoas já têm conhecimentos linguísticos prévios?

Uma das principais respostas contemporâneas a esta questão envolve a tese de que nosso processamento cerebral é capaz de reconhecer padrões, inclusive os padrões linguísticos envolvidos na comunicação verbal. Essa via permite explicar o aprendizado linguístico sem a existência de um conhecimento prévio, mas precisa supor a existência de uma capacidade prévia de reconhecimento de padrões, que nos leva de volta ao ponto de partida. Como é possível reconhecer padrões, sem que contemos inicialmente com alguns padrões de reconhecimento? As respostas modernas, tal como as respostas antigas, terminam por postular a existência de uma capacidade inata de reconhecimento.

O fato de que os discursos científicos contemporâneos ligam essas capacidades com modos de operação cerebral concreta, e não com modos de funcionamento de uma mente intangível, não altera o fato de que ambos os discursos tentam descrever um modo específico de cognição, que seria próprio aos seres humanos. Inclusive, uma das explicações contemporâneas mais influentes acerca dessa questão postula que os cérebros humanos contam com certas estruturas inatas que permitem o aprendizado de uma língua a partir da observação de uma quantidade relativamente restrita de interações linguísticas.

Trata-se da hipótese da “gramática gerativa” de Noam Chomsky, que parte da observação de que as crianças aprendem uma língua por meio da vivência de interações linguísticas que não são suficientemente complexas para que seus cérebros sejam capazes de identificar os padrões linguísticos que estão sendo utilizados pelos falantes hábeis da linguagem. Essa incongruência entre a complexidade das observações e a complexidade do padrão compreendido levou Chomsky a propor a existência de uma capacidade cerebral especialmente desenvolvida para identificar e reproduzir padrões linguísticos (Cowie, 2017).

Como os antigos gregos não contavam com as descrições modernas do funcionamento cerebral, parece razoável que eles tratassem da cognição de um modo mais abstrato, correspondente à maneira intangível com a qual observamos nossos próprios pensamentos. Para eles, o pensamento era uma propriedade de nossas faculdades intelectuais: nossa racionalidade.

A descrição desse paradoxo remonta às reflexões de Platão, que formulou uma teoria do conhecimento e da linguagem voltada a superar tal incongruência. Parecia-lhe absurda a tese de que seria impossível aprender a linguagem, tendo em vista que mesmo as pessoas sem qualquer conhecimento especializado eram falantes hábeis da língua em que foram socializados. A resposta que ele formulou envolveu a negação de um enunciado que o presente texto apresentou como trivial: o caráter classificatório das categorias linguísticas.

Contrapondo-se ao nominalismo de Marco Polo, Platão poderia reconhecer que as palavras “ponte” e “bridge” podem ser apenas um nome, mas esses nomes não apontam diretamente para um conjunto heterogêneo de objetos, mas para uma “essência”: um conjunto de propriedades que seriam compartilhadas por todos os elementos que podem ser corretamente qualificados como pontes.

2.2 Conceitos

Dentro de uma abordagem essencialista, as palavras “pont” e “橋” seriam signos diferentes, que compartilhariam o mesmo significado. Tais palavras não se referem diretamente ao conjunto das pontes, mas para o modo de ser específico compartilhado por aqueles objetos que nossa cultura nomeia como “ponte”. A linguagem, portanto, não teria uma função meramente classificatória: os signos linguísticos não devem decorrer de um processo de categorização dos objetos do mundo, mas devem apontar para a essência que é própria dos objetos designados. Esse tipo de perspectiva indica que termos como “peixe”, “azul” e “justiça” não são categorias que uma cultura pode redefinir da forma que ela desejar, tendo em vista que os termos que usamos devem corresponder aos verdadeiros conceitos de um objeto.

De forma alinhada com as visões de mundo de sua época, Platão constrói a sua teoria fazendo uma oposição entre pensamento e linguagem. O conceito seria uma forma de representação mental das essências, operada pelas nossas faculdades racionais. A linguagem pode nomear o conceito de “ponte”, mas esse próprio conceito é um objeto de nosso pensamento e não de nossa linguagem. Para os gregos, como para boa parte das pessoas de hoje, o pensamento é entendido como um campo muito particular. Por um lado, a sua existência no mundo parece evidente, porque pensamos (Descartes, 2001). Por outro lado, a atividade intelectual não é empiricamente observável, o que faz com que ela seja interpretada como exercício de uma racionalidade que transcende nossa corporeidade.

As pessoas pensam concretamente, mas o próprio pensamento parece ser algo intangível, o que é uma combinação desconcertante. Tal estranhamento, contudo, se desfaz por meio da clássica percepção de que o pensamento é uma atividade da nossa alma (psique), que seria nossa parte intangível. Com isso, o binômio pensamento/alma possibilita uma mediação entre o mundo sensível que nossos corpos habitam e o mundo inteligível composto pela própria ordem do mundo, que é visível para as capacidades racionais envolvidas em nossa própria cognição. Dentro dessa perspectiva, o pensamento deve espelhar sempre a própria natureza, pois a racionalidade humana é justamente a capacidade de perceber as coisas como elas são. Não se trata apenas de perceber sensivelmente os fenômenos observáveis, mas de perceber os vários elementos que compõem a ordem natural subjacente.

Uma vez que a racionalidade nos permite captar diretamente os modos de ser das coisas, nós nos tornamos capazes de fazer uma representação mental dessas essências, que chamamos de conceitos, formas ou arquétipos. Essa representação integra nosso pensamento, que é simultaneamente real e abstrato. A existência real dos modos de ser que nossa racionalidade percebe no mundo termina por dissolver o caráter paradoxal do aprendizado da linguagem: as categorias linguísticas não seriam definidas em termos de outras categorias (o que levaria a uma circularidade paradoxal), mas em termos de sua correspondência a algo que transcenderia a linguagem: a essência das coisas, que seria um objeto do mundo.

Quando olhamos as variadas pontes de pedra, nós enxergamos em todas elas um arco e supomos que esse arco exista. O arco nos parece tão real quanto as pedras, embora ele somente se mostre à nossa racionalidade. A crença na existência das categorias promove uma transição do campo linguístico (dos significados) para o campo ontológico (dos modos de ser), que é uma das marcas compartilhadas pela filosofia grega, por vários sistemas religiosos e pelo senso comum. Essa é uma operação tão comum que os filósofos deram um nome específico para ela: hipostasiar, ou seja, tratar coisas abstratas como se fossem concretas.

Atividade 8. Identifique três conceitos que são hipostasiados nos discursos contemporâneos.

Nossas culturas nos educam para hipostasiar os esquemas usados para descrever as coisas, tratando como existentes as categorias abstratas que integram nossas linguagens: justiça, validade, direito. Indivíduos contemporâneos muitas vezes tratam a existência de uma invisível força da gravidade com a mesma irreflexividade que os gregos falavam das almas. Essa mesma acriticidade costuma atravessar vários dos discursos atuais que falam dos direitos humanos universais, da soberania do povo e da interpretação correta da constituição. Isso quando não fazem uma oposição entre atividades psíquicas e corpóreas que atualizam a distinção grega entre alma (psique) e corpo, ou mesmo referência direta aos espíritos e demônios que habitavam os discursos mitológicos que eram criticados pelos filósofos de 2.000 anos atrás. Nossa tendência a hipostasiar categorias descritivas não parece ter diminuído ao longo dos últimos milênios.

2.3 Pensamento e linguagem

Uma vez que estamos convencidos da existência do arco subjacente, chegamos ao ponto de observar uma ponte reta de concreto e a entender que o “arco” da ponte reta está ali presente: trata-se de um segmento de um círculo de raio infinito. Uma vez que estejamos convencidos de que a realidade opera segundo equações matemáticas predefinidas, podemos dedicar nossa vida a encontrar um sistema simples e elegante de equações, com as quais possamos explicar todos os fenômenos observáveis, seja na escala astronômica ou microfísica. Não é por acaso que os antigos pitagóricos não viam o estudo da matemática como uma linguagem para falar de quantidades, e sim como uma investigação sobre a própria natureza das coisas.

No mundo antigo, Pitágoras não era conhecido pelas suas descobertas matemáticas mas porque ele apresentou um cosmos estruturado de acordo com princípios morais e relações numéricas entendidas como significativas (Huffman, 2018). A identificação de proporções matemáticas nos fenômenos observados não era vista apenas uma descrição correta do mundo, mas uma evidência do caráter perfeitamente ordenado do universo. Um ponto relevante das narrativas antigas sobre a natureza das coisas, que atravessava tanto a noção grega de cosmos quanto os conceitos orientais de tao e dharma, era o fato de que a ordem natural era compreendida como simultaneamente física e moral.

Atividade 9. Você considera que a proibição da escravidão é uma regra natural, universalmente válida?

A mesma ordem definia tanto o movimento dos astros como as obrigações familiares, pois todas elas faziam parte da mesma natureza. Esse cruzamento entre regularidades empíricas e valores morais engendra a noção tradicional de que a natureza é sagrada: ordem das coisas não deve ser apenas conhecida, mas também adorada e obedecida, devido ao fato de que ela foi estabelecida pela autoridade fundante dos deuses. Mitos de culturas variadas nos revelam que toda tentativa de romper a ordem natural/divina das coisas conduz à catástrofe. A crença nessa ordem imanente atravessava os modelos antigos de pensamento e, portanto, não devemos nos surpreender com o fato de que os primeiros filósofos se conceberam como pessoas dedicadas à compreensão direta da ordem natural das coisas.

Voltado às cidades invisíveis de Calvino, a ordem natural é o arco que sustenta a ponte da realidade, e as culturas antigas julgavam que esse arco não apenas existia, mas que ele era a realidade última de um universo. Para essas culturas, existe uma precedência do arco sobre a ponte: como as pontes concretas são uma espécie de realização transitória de arcos que são eternos. Por isso, o conhecimento mais fundamental e mais respeitável é aquele que tem por objeto os próprios arcos (a ordem natural), e não a multiplicidade de pontes individuais.

Uma vez que os pensadores antigos (filósofos, religiosos, artistas, etc) observavam o mundo na busca de compreender a ordem subjacente às coisas, é previsível que eles não considerassem que as variadas culturas poderiam classificar os fenômenos observados da maneira como melhor lhes aprouvesse. O pressuposto dessa visão de mundo é que o caráter organizado da realidade envolvia o fato de que cada elemento do universo (pessoas, pássaros, cidades, etc.) tinha um “modo de ser” que lhe era próprio e que definia o seu lugar na grande ordem. Nesse tipo de perspectiva, a essência é um “modo de ser” que é próprio a cada objeto.

Esse “modo de ser” não integra o próprio objeto empírico. Por um lado, a essência não é uma propriedade concreta e, portanto, não pode ser parte de objetos concretos. Por outro, a essência é um elemento compartilhado por todos os objetos de um mesmo gênero, o que faz parecer absurdo que ela seja entendida como um atributo de cada elemento particular. Não é que cada ponte tenha uma essência particular: a essência é justamente aquilo que todas as pontes partilham, o que faz com que ela nunca possa estar em qualquer das pontes concretas.

Atividade 10. Quais são as propriedades que definem a essência ligada ao conceito de gato?

Esse é um tipo de abordagem que faz com que os conceitos não sejam parte das próprias linguagens. Os objetos existem no mundo e a sua ontologia é determinada por um conjunto de atributos essenciais, que lhes são conferidos pela própria ordem natural. A racionalidade humana deve ser capaz de observar a complexidade do mundo e desvelar, para além da radical multiplicidade dos seres individuais, as essências que correspondem a cada classe de seres: peixes, pontes e arcos.

A concepção que opõe linguagem e pensamento supõe que o conhecimento do mundo é uma função de nossa racionalidade, enquanto a linguagem tem função meramente instrumental: trata-se de um instrumento para transmitir pensamentos. O fato de as linguagens usarem termos vagos e classificações imprecisas não altera nem os objetos, nem os conceitos, que devem poder ser percebidos diretamente pela nossa razão. Dentro desse modelo, os conceitos são produtos de nossa racionalidade e não devem ser confundidos com os signos linguísticos que os designam.

Atividade 11. O conceito de gato permaneceria o mesmo se os gatos fossem extintos?

Em nossas culturas, quando uma pessoa pergunta “o que é a justiça?”, ela não quer saber o que uma cultura chama de justiça, nem se interessa por saber qual é o conjunto de atos considerados injustos em determinado momento. Esse tipo de pergunta não manifesta uma dúvida sobre o “o que chamamos de justiça”, mas sobre “o que a justiça realmente é”. Os filósofos gregos não inventaram a pergunta sobre o verdadeiro significado de “bem” ou de “coragem”. Eles apenas criaram um modelo que torna explícito que esse gênero de indagação envolve uma pergunta sobre os “atributos essenciais de um objeto”, e não sobre os “critérios de pertinência a uma categoria”.

Com isso, o nome “justiça” não apontaria diretamente para um conjunto de objetos (os atos justos), mas para a própria essência que é compartilhada por esses objetos. Assim, a análise filosófica clássica nos indica que os vários nomes que podemos ter para justiça (justice, justicia, 正義) se referem ao conceito “justiça”, que deve ser uma descrição adequada dos atributos que todo objeto precisa ter para que se constitua como ponte. Essa descrição é realizada por nosso pensamento, de tal forma que o conceito de justiça permanece o mesmo, ainda que os signos que se referem a ele mudem de acordo com a língua utilizada.

3. A gestão dos paradoxos

3.1 A justiça existe?

Marco Polo poderia responder que a justiça existe como elemento de um sistema simbólico, tal como os unicórnios, os espíritos e os deuses. A categoria justiça pode fazer referência a essas crenças compartilhadas, mas isso não quer dizer que exista no mundo algo como a verdadeira essência da justiça.

Essa redução de todos os conceitos a categorias linguísticas classificatórias está em franco conflito tanto com as nossas culturas quanto com a filosofia clássica, pois esses sistemas consideram que os conceitos devem refletir a ordem imanente das coisas. A marca particular da filosofia grega é a de indicar que cada pessoa tem uma capacidade racional que lhe é própria e que integra a “essência” dos seres humanos, que é a sua própria “humanidade”. Essa racionalidade possibilita que cada indivíduo reconheça os padrões organizativos da natureza, identificando os verdadeiros conceitos de justiça, de beleza ou de azul.

O conceito é um produto do pensamento e o pensamento é uma função da nossa psique, ou seja, de nossa alma. Se a alma consegue apreender a ordem do mundo é porque ela também é abstrata e racional: cada ser humano tem em si um pouco da eternidade que marca a ordem imanente. Na interpretação cristã de Tomás de Aquino, a racionalidade humana é uma forma de participação na racionalidade divina (Tomás de Aquino, 1980): nosso intelecto é uma espécie de fagulha do intelecto absoluto de um deus absoluto.

Não deve causar estranhamento que uma cultura que descreve o elemento mais específico dos seres humanos é uma psique simultaneamente real, imaterial e eterna, considere que a essência de todos os objetos do mundo seja também real, imaterial e eterna. Cada uma dessas homologias reforça a percepção de um universo ordenado e coeso, cujas regularidades atravessam tanto os seres empíricos como as entidades imateriais. Para esse tipo de abordagem, o conceito não é uma classificação linguística: trata-se da representação mental de uma essência, ou seja, dos atributos que definem o modo de ser dos diversos seres que observamos.

Nos discursos atravessados pela crença em uma ordem subjacente, existe uma primazia do ontológico sobre o linguístico: eles consideram que há diversos entes no universo, sendo que o modo de ser de cada um deles é naturalmente definido. Os vários seres que compartilham a mesma essência formam uma espécie de “classe natural”, que o nosso intelecto pode identificar e representar por meio de um “conceito”. Essa representação mental ocorre por meio do puro pensamento, que opera no ambiente intangível de nossa alma cognoscente, esse curioso espaço em que os acontecimentos são simultaneamente reais e intangíveis. Nós conhecemos este plano inefável porque somos habitados por uma alma que nos capacita a sair da caverna e enxergar as coisas como elas verdadeiramente são.

Tal perspectiva pode ser chamada de “realismo”, por entender que as entidades abstratas (almas, sentidos, essências, etc.) devem ser compreendidas como objetos reais, apesar de não terem existência física. O realismo considera que o mundo somente se torna compreensível quando reconhecemos como reais as entidades abstratas necessárias para explicar os fenômenos observáveis.

Os antigos viam o movimento dos animais e se espantavam com o fato de que, em dado momento, eles morriam. Essa passagem era explicada por meio do conceito de alma: uma entidade intangível que os seres vivos tinham e que os seres mortos não tinham mais (Lorenz, 2009). O conceito de psique (alma) fazia parte do repertório mínimo de signos linguísticos que eram necessários para a produção de modelos descritivos razoáveis do mundo. As almas não eram observadas no mundo empírico, mas ninguém duvidava de sua existência, visto que ela podia ser racionalmente inferida a partir de nossas observações: como não havia explicações alternativas, admitir a existência das almas se impunha como um imperativo de racionalidade.

Os cientistas modernos fazem algo semelhante com a gravidade. Observamos vários fenômenos (queda de maçãs, órbitas dos astros, pedras que rolam numa montanha) e inferimos que eles somente podem ser explicados sob a suposição de que existe uma misteriosa “força da gravidade”. A força da gravidade é como o espírito do mundo: uma entidade quer não é observável, mas que se mostrou durante muito tempo como a explicação mais plausível para oferecer uma descrição razoável de muitos fenômenos naturais.

A potência da metafísica está justamente no fato de que nossos modelos explicativos tipicamente fazem referências a objetos não-empíricos, sem os quais nos tornamos menos capazes de compreender os fenômenos que nos cercam nem organizar sistemas sociais bem acoplados com eles. Tendo em vista que nossos universos simbólicos se enriquecem com a multiplicação de entidades abstratas (como almas, deuses, forças gravitacionais ou tempo), torna-se tentadora a proposta do realismo, de tratar esses elementos como se eles fossem dotados de uma existência autônoma.

3.2 Existem categorias verdadeiras?

O pensador realista arquetípico é Platão, que reconheceu explicitamente que nossa linguagem fala das formas das coisas como se tais formas tivessem uma existência autônoma. Platão entendia que somente podemos observar empiricamente a concretude das pedras, mas sustentava que a observação das pedras que formam uma ponte, feita por uma alma dotada de racionalidade, seria capaz de nos mostrar os atributos próprios do arco elas formam.

Frente à demanda de Kublai Khan, Platão teria feito um discurso sobre os atributos essenciais dos arcos que caracterizam uma ponte. De fato, Platão não se interessava muito pelas pedras, que não passavam de elementos empíricos transitórios. Mais importante era a própria ideia de ponte, um modelo abstrato e eterno como a alma que o observa, uma essência que transcende as pedras, as madeiras e os metais. Platão argumentava que, se somos capazes de reconhecer pontes, árvores e peixes, é porque nosso intelecto já deveria dispor de “modelos inatos”, sem os quais fatalmente confundiríamos uma ponte com uma torre ou com uma estrada.

A resposta de Marco Polo ao Khan sugere que a palavra “arco” seria uma categoria abstrata que designaria uma certa forma de organização das pedras de uma ponte. Essa posição é incompatível com a existência de um conceito objetivamente verdadeiro (ou falso) de arco ou de ponte. Para que seja possível analisar a veracidade de um conceito, é preciso que ele faça referência a algum objeto existente, motivo pelo qual Platão entendia que a veracidade objetiva de uma proposição (como “tubarões são peixes”) dependeria da existência de modelos reais tanto de “tubarão” quanto de “peixe”.

Saindo da biologia e ingressando na política, podemos nos perguntar como é possível identificar um governo justo ou uma decisão legítima. Para Platão, a possibilidade de uma argumentação sólida sobre o bem exige que a palavra justiça não seja apenas um conceito linguístico usado para categorizar os atos humanos: é preciso que exista uma “ideia de justiça”, enquanto objeto abstrato.

Marco Polo poderia retorquir: “sem atos, a justiça não existe”. “Justiça” não passa de um nome usado para designar um conjunto de atos, a partir de atributos que eles compartilham. “Direito” não passa de uma categoria que usamos para fazer referência a conjunto de enunciados normativos. Em resposta, os platônicos acentuariam que a compreensibilidade do mundo exige a existência tanto dos atos avaliados como dos critérios de avaliação. Para que haja critérios objetivos de justiça (como a vedação da escravidão ou da tortura), é preciso que esses parâmetros sejam dotados de uma existência autônoma, com relação aos fatos que eles designam.

Marco Polo provavelmente concordaria com o argumento platônico, mas acentuaria que não existe um conceito objetivamente correto de ponte, de direito ou de justiça. No universo, entre várias coisas, existem animais, comportamentos e crenças. Para que um valor fosse objetivamente correto, os critérios que o definem deveriam existir, tal como as pedras e os peixes. Por isso, o resultado das posições de Marco Polo é um relativismo, que trata todas as categorias a partir dos seus conteúdos linguísticos.

O relativismo do comerciante veneziano não é compatível com o realismo moral das nossas culturas, para as quais tem muito mais apelo as teses platônicas de que existem conceitos corretos de direito, de pessoa e de propriedade. Para que exista algo como uma categoria verdadeira, é preciso existir no mundo uma classe natural, para que possa haver uma correspondência entre a linguagem e o mundo descrito. Categorias não podem ser baseadas em critérios de conveniência classificatória, mas devem corresponder a um modelo natural de organização das coisas: as categorias verdadeiras não são critérios linguísticos artificias, mas classificações que respeitam as essências compartilhadas pelos próprios objetos.

Quando falamos em categorias verdadeiras, em valores objetivos de justiça e em conceitos universais de direito, assumimos o lado de Platão. Querendo ou sem querer, o uso desse tipo desse repertório categorial implica a adoção de uma perspectiva essencialista, que considera existentes certos objetos abstratos.

3.3 As palavras e as coisas

Considerando que nossas formas de processamento cerebral tratam percepções, memórias e conhecimentos de maneira integrada, devemos reconhecer que Platão tinha razão em notar que a nossa linguagem opera como se os padrões de organização (como os arcos das pontes) fossem efetivamente objetos autônomos. O equívoco platônico foi o de extrair consequências ontológicas a partir de uma observação dos modos como nós construímos nossos modelos linguísticos. Todavia, para fazer justiça com Platão, é preciso ter em vista que ele vivia em uma sociedade que compreendia o funcionamento cerebral como a operação de uma alma cognoscente, que habitava um corpo perceptual e instintivo. Se a própria cognição era explicada a partir da referência a uma entidade abstrata tida como real (a alma), não deve causar espanto que Platão supusesse que o mundo real fosse estruturado a partir de certos modelos abstratos.

De Platão a Kant, os filósofos supuseram a existência de uma alma, onde se radicava a nossa racionalidade. A explicação kantiana de que nós temos a obrigação de observar as conclusões de nossa racionalidade é a de que nossa alma intelectual se submete naturalmente aos ditames da razão, pelo fato de ela ser essencialmente racional. Kant avançou com relação a Platão, visto que ele compreendeu que nos nossos modos de cognição definem nossas percepções do mundo. Enquanto Platão supunha que nós conseguimos observar diretamente a realidade de um universo essencialmente racional, Kant entendeu que nossas descrições dependem da integração de formas humanas de sensibilidade e de cognição (Kant, 2001).

Kant intuiu que nossa cognição e nossa sensibilidade operam de maneira integrada, mas não havia em sua época conhecimentos biológicos que pudessem acoplar essa intuição a uma descrição científica. Depois de Kant, tornou-se incomum falar de alma, mas consolidou-se a ideia de que haveria uma forma de “consciência”, que não poderia ser reduzida ao funcionamento material dos nossos corpos.

Os atuais debates sobre Inteligência Artificial conferem renovado interesse a esse antigo debate, sendo comum a crença dualista de que os seres humanos, diferentemente das máquinas, têm uma dimensão consciente (ou espiritual) que transcende o simples funcionamento de nosso sistema nervoso central. A construção da subjetividade moderna se assenta sobre a intuição cartesiana de que nossos processos mentais não podem ser identificados com os processos físicos subjacentes: o autorreconhecimento do sujeito (de acordo com o célebre “penso, logo existo”) não é apenas um reconhecimento de sua corporeidade, mas do fato de que algo em nós pensa e que esse algo deve ser uma substância imaterial. Embora os nossos corpos sejam radicalmente diferentes e individuais, as nossas mentes são elementos imateriais, que devem ser idênticas para todos os seres humanos.

A separação mente-corpo reflete a intuição (não apenas moderna) de que a nossa atividade intelectual se assenta sobre uma consciência que, por ser imaterial, não se deixa conhecer pelas abordagens observacionais da ciência. No século XX, o filósofo Edmund Husserl foi o principal defensor de que o caráter imaterial de nossas atividades cognitivas exigia uma abordagem que transcendesse a própria ciência (Husserl, 1989). Frente à incapacidade dos métodos científicos para descrever os processos de uma “consciência” que não se mostrava à observação empírica, deveríamos seguir a abordagem que ele chamou de fenomenológica: uma compreensão da consciência humana a partir de uma análise reflexiva. A fenomenologia deveria ser um conhecimento da consciência, a partir da autopercepção imediata da própria consciência. Esse tipo de perspectiva deveria ser capaz de nos mostrar as “essências” dos seres: a observação cuidadosa dos fenômenos deveria ser capaz de evidenciar sua estrutura interna racional, suas essências imanentes e universais.

Ao longo do século XX, alcançamos um conhecimento biológico que rompeu com a dualidade alma/corpo e passou a investigar nossa cognição como expressão de nossos modos específicos de funcionamento cerebral. Observar as conclusões de pensadores tão sagazes como Platão, Kant e Husserl nos sugere que os seres humanos não conseguem, a partir de uma reflexão sobre seus próprios modos de pensar, diferenciar o que são percepções e o que são modelos construídos a partir delas. Com efeito, é compreensível que os seres humanos tendam a considerar que os modelos criados por seus processos cognitivos sejam materialmente existentes, uma vez nosso processamento cerebral nos sugere que nós observamos esses padrões diretamente no mundo.

Tal dificuldade de separar os objetos empíricos dos nossos modelos de compreensão faz com que precisemos estar sempre atentos para a radical diferença entre as palavras e as coisas. Em especial, precisamos levar em conta que a palavra “ponte” designa objetos que têm determinadas características (formas, funções, dimensões), mas essa palavra não tem as mesmas qualidades dos objetos que ela designa. Palavras podem ser precisas, ambíguas, podem ter histórias longas ou curtas, podem ter etimologias diversas. As coisas podem ser verdes, pesadas e venenosas.

Esse distanciamento tão grande entre a palavra-ponte e os objetos-ponte pode nos causar estranhamento, especialmente porque vivemos em uma cultura que parece pressupor que as palavras têm uma relação mais estreita com as coisas. Se existe uma ordem no mundo, então deveria haver uma relação direta entre os objetos e as classes: deveríamos conseguir chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes. Para isso ser possível, deveríamos ser capazes de diferenciar os nomes verdadeiros, que revelam os atributos essenciais dos objetos, e os falsos nomes, que obscurecem a nossa percepção das coisas.

Platão percebeu essa necessidade e tentou superá-la reconhecendo que, para que os verdadeiros nomes sejam conhecidos, eles devem ser objetos observáveis, e não apenas rótulos: essas categorias devem ser tratadas como objetos abstratos, que existem em um mundo particular, sob pena de não podermos alcançar um conhecimento objetivo sobre a justiça, sobre o bem ou sobre a verdade (Balaguer, 2016). Se essas palavras forem meras classificações, o conhecimento moral seria impossível, algo que soa absurdo para a episteme clássica, para usarmos um conceito que Michel Foucault apresenta no livro que inspirou o título deste item (Foucault, 1989).

Segundo Foucault, cada época desenvolve uma série de condições de verdade, que determinam o que é aceitável ou não de ser dito na arena pública. Na época dos gregos, não era concebível uma explicação do mundo que não se estruturasse sobre a ideia de uma ordem natural imutável e de uma racionalidade humana capaz de desvelá-la. Dentro desse contexto, era razoável que Platão considerasse que os sentidos dos nomes teriam existência real, para que fosse possível distinguir os nomes verdadeiros dos nomes falsos.

Já para os nominalistas, a justiça não é um objeto abstrato, mas é uma categoria linguística. “Pássaro” não é um rótulo que designa um conceito que aponta para objetos que compartilham a mesma passaridade essencial. Trata-se apenas um recorte, um agrupamento de coisas diversas, realizado por razões instrumentais. Para os nominalistas, não faz sentido esperar que existam classes que correspondam às coisas.

O enfrentamento entre nominalistas e realistas é um debate recorrente na filosofia ocidental, o que denota uma dificuldade em integrarmos aquilo que a linguagem parece fazer (possibilitar classificações abstratas) com aquilo que a filosofia grega esperava da nossa racionalidade (diferenciar as categorias falsas daquelas verdadeiras categorias, que guardam conformidade com a própria ordem do mundo).

3.4 Filosofia e paradoxos

O discurso filosófico se nutre dos paradoxos que os filósofos percebem nas narrativas, inclusive filosóficas, produzidas pelas culturas que eles analisam. O pressuposto da filosofia de matriz grega é a existência de uma natureza perfeitamente organizada, a partir de uma combinação de princípios ordenadores que regem tanto o mundo físico como o mundo social, o que envolve a definição das funções de cada pessoa e das estruturas de governo.

Esse não é um traço particular da cultura grega ou europeia: trata-se de uma característica transversal que ocorre em vários modelos de pensamento do mundo antigo, tanto no ocidente como no oriente. Existem indícios, inclusive, de que esse tipo de perspectiva tem raízes na forma pela qual o nosso cérebro processa as informações que ele capta do mundo, integrando-as em sua própria rede de memórias e conhecimentos.

A suposição de que existe uma ordem coerente por trás dos fenômenos empíricos faz com que os vários atores sociais tendam a observar o mundo em busca de compreender os princípios de sua organização. Previsivelmente, os discursos que são produzidos nas variadas culturas mostram certas incongruências, especialmente em virtude de seu engajamento dogmático na reprodução de valores e narrativas dominantes em uma cultura.

A filosofia emerge nos lugares em que se torna legítimo, e não herético, que os indivíduos questionem publicamente a solidez das narrativas tradicionais, o que faz com que os temas filosóficos clássicos sejam aqueles com relação aos quais a linguagem comum não oferece respostas coerentes: os critérios de verdade e de bem, a origem do movimento, os limites do nosso conhecimento.

Uma das questões que sempre abismou os filósofos foi o caráter paradoxal do conhecimento. Por um lado, parece evidente que nós conhecemos o mundo, ainda que de forma imperfeita: cada um de nós observa os fenômenos, faz deles uma representação mental e se comunica sobre eles a partir da linguagem. A evidência de que somos capazes de conhecer se choca com a percepção racional de que o conhecimento deveria ser impossível, pois a mera observação dos fenômenos empíricos não nos conduziria a percebê-los como uma totalidade ordenada.

A pura observação dos fatos somente produz fragmentos: vemos uma árvore particular, sentimos um tremor de terra específico, saboreamos um peixe singular. Os filósofos gregos perceberam claramente que a singularidade dos eventos observados não permitiria a sua integração em uma totalidade de sentidos. Muitos de nós não ficariam espantados com essa situação: a falta de um sentido intrínseco nas coisas tem permeado os discursos filosóficos e científicos dos últimos duzentos anos, o que faz com que ela não seja propriamente uma novidade. Porém, muitos dos sujeitos contemporâneos sentem o mesmo desconforto de Platão perante um universo em que cada objeto não tenha um modo de ser específico, incluindo suas funções e finalidades.

Na base desse mal-estar está a nossa crença na existência de uma ordem natural subjacente, cujas origens e estruturas dessa convicção serão tratadas no segundo livro deste curso. As respostas de todos os filósofos sempre foram calcadas nas episteme de suas épocas, entendida foucaultianamente como o conjunto de critérios que define o que pode ser chamado de verdade. Desde a antiguidade, as pessoas que acreditam firmemente na existência de uma ordem natural tendem a produzir discursos que indiquem que essa ordem abrange tanto o mundo físico como o mundo social, com suas normas, valores e finalidades.

Essa crença conduz a uma percepção particular das relações entre as palavras e as coisas. No plano da linguagem, a filosofia grega percebeu que não seria possível descrever perfeitamente a ordem natural, visto que toda descrição linguística tem certas imprecisões. A tradução do pensamento em linguagem é necessária para a comunicação, mas ela nunca consegue ser perfeitamente executada.

Nessa tensão entre as palavras e as coisas, os gregos adotaram uma terceira via. Não acreditaram demasiadamente nas palavras, mas tampouco podiam crer que o mundo seria totalmente revelado aos nossos sentidos falíveis. O acesso à realidade íntima das coisas deveria ser dado por uma outra faculdade humana: uma racionalidade capaz de desvelar as verdades eternas inscritas na ordem natural. Essa abordagem implicava uma distinção entre o pensamento (atividade abstrata por meio do qual a psique exerce sua própria racionalidade) e a linguagem (atividade por meio da qual tentamos expressar os nossos pensamentos).

Atividade 12. Você acredita na existência de capacidades psíquicas que não são resultados de atividades corporais? Você considera que “mente” é uma palavra genérica para tratar de nossas atividades cerebrais ou que existe uma dualidade mente/corpo?

A crença nessa ordem dissolve o paradoxo do conhecimento, quando ela é acoplada à crença em uma racionalidade capaz de observar diretamente os princípios naturais de organização: os modos de ser de cada coisa, que são tipicamente chamados de essência. O conjunto de características que a natureza atribui a cada objeto é a sua essência: pedridade das pedras, a humanidade dos homens, a juridicidade do direito. Uma vez que as essências existem e podem ser observadas, o conhecimento deixa de ser paradoxal.

Essa construção tem um custo ontológico: ela precisa afirmar a existência autônoma de certas entidades abstratas. O mundo não pode ser meramente físico. O universo precisa ter simultaneamente objetos físicos (como planetas e jacarés) e objetos abstratos (como os conceitos de justiça e de validade), cuja existência é metafísica. A existência autônoma de entidades metafísicas é um elemento necessário para que a filosofia grega, as religiões e o senso comum contemporâneo fundamentam a sua convicção na existência de uma ordem natural subjacente, na qual as sociedades devem se espelhar.

A linguagem teria como objeto imediato os pensamentos (pois tentaria traduzi-los de uma maneira comunicável). Seriam os próprios pensamentos que teriam como objeto as coisas como elas são: o pensamento operaria mediante conceitos, que seriam uma espécie de representação mental das coisas. Os conceitos seriam uma parte de nosso pensamento e, por isso, poderiam ser verdadeiros ou falsos, em virtude de sua correspondência com o modo de ser das coisas descritas.

O verdadeiro conceito de peixe ou de justiça dependeria do seu grau de correlação com a essência dos peixes ou da própria justiça. Como os conceitos são formas de pensamento, eles existem de forma autônoma, fora da linguagem. Platão chegou a explicar essa autonomia pela indicação de que há um plano puramente arquetípico, habitado pelos modelos abstratos (porém reais) que participam da própria ordem subjacente à natureza.

Em oposição a essa concepção realista dos conceitos e das essências, tomadas como objetos dotados de existência autônoma, construiu-se uma abordagem que rompeu a dualidade pensamento linguagem. Considerando que a cognição humana opera por meio de operações linguísticas, vários pensadores construíram uma teoria alternativa à filosofia clássica e ao senso comum, baseada na afirmação de que as categorias linguísticas eram apenas formas de classificação dos fenômenos, a partir de critérios predefinidos. Nessa percepção, os signos linguísticos são meros rótulos, que apontam para certos conjuntos de objetos (peixes, direitos reais ou governos), por meio da fixação de um critério de pertinência a esse conjunto.

Nas perspectivas nominalistas, os conceitos são apenas categorias e, portanto, não correspondem a nada que tenha existência autônoma no mundo. O universo não é percebido como um conjunto de objetos dotados de modos de ser (finalidades, funções, significados, etc.) definidos pelos princípios organizadores de uma ordem subjacente. As coisas têm apenas existência: não têm significação, não têm deveres, não têm uma teleologia naturalmente definida. Essa abordagem não é comprometida com a descoberta da ordem imanente do mundo, mas com a construção de modelos linguísticos que sejam capazes de oferecer uma compreensão adequada de fenômenos empíricos.

O resultado de uma abordagem nominalista é a impossibilidade de falar de “conceitos verdadeiros”, pois os conceitos não correspondem a nada. Referir-se a conceitos verdadeiros (de justiça, de direito ou de política) seria tão estranho como falar de sabores verdadeiros de sorvete ou de formas literárias verdadeiras. Esse tipo de linguagem trata certos critérios classificatórios (escolhidos de forma evidentemente seletiva) como se fossem essências naturais eternas e predefinidas: a essência da prosa, o romance arquetípico ou o verdadeiro sabor do sorvete de chocolate.

O presente texto sugere que as teorias de tipo realista e nominalista são vias alternativas para gerir o paradoxo do conhecimento, constituído pela aparente impossibilidade de descobrir a essência das coisas a partir de uma observação do mundo. Os realistas descrevem o paradoxo de um modo particular (as observações empíricas não nos mostram os padrões metafísicos subjacentes) e o dissolvem por meio da afirmação de que temos uma capacidade racional de enxergar diretamente os princípios abstratos de organização. Do lado realista, o paradoxo é dissolvido pelo simples abandono da ideia de que haveria uma ordem de significados objetivos a ser apreendido. Se os únicos significados que existem são aqueles que atribuímos às coisas, por meio das categorias que usamos para classificá-las, essa operação não conduziria a paradoxos, mas tampouco nos levaria a um conhecimento objetivo dos padrões de organização do mundo.

Atividade 13. Você se sente mais próximo da sensibilidade dos realistas ou dos nominalistas?

3. Os discursos e as coisas

Resumo: Este ensaio consiste em uma introdução à filosofia da linguagem, com foco nas contribuições de Gottlob Frege, que contribuíram decisivamente para a nossa compreensão dos modos como a linguagem humana opera. Nele, avalio as potencialidades e limites das abordagens filosóficas centradas na análise da linguagem. Sustento que, frente à inevitabilidade dos paradoxos que emergem de nossas categorias linguísticas, não devemos abandonar a reflexão filosófica, mas construir uma abordagem que nos permita transitar com desenvoltura dentro dos labirintos da linguagem.

1. Categorias paradoxais

1.1 A dissolução dos pseudoproblemas

A maioria dos discursos filosóficos contemporâneos indica que o conceito de peixe não existe no mundo. Somente os peixes concretos existem. O conceito de peixe é entendido um artefato linguístico, uma distinção formulada por algumas culturas em nosso esforço para falar do mundo. A artificialidade de todos os conceitos não é uma tese aceita pelas perspectivas filosóficas clássicas, que se dedicam à identificação da natureza ontológica das coisas. Tal essencialismo ainda está presente em várias abordagens utilizadas contemporaneamente, como as correntes neokantianas e fenomenológicas, que rejeitam as concepções linguísticas e naturalistas e dão continuidade à tradicional busca de essências imanentes.

Nós podemos indagar: o que é um peixe? Uma abordagem ontológica deveria perguntar qual é a essência dos peixes, determinação que seria necessária para saber, por exemplo, se os golfinhos fazem parte dessa categoria. Já uma perspectiva linguística observa os discursos sociais que utilizam a palavra “peixe” para identificar as regras implícitas nesse uso. Tal ponto de vista faz uma inversão das questões filosóficas clássicas, que não buscam compreender as estruturas das práticas sociais, mas analisar em que medida elas correspondem à própria natureza das coisas.

Se classificarmos os animais pelo seu habitat, as baleias e os tubarões poderiam ser incluídos na mesma categoria. Entretanto, não seria tão fácil saber se os cavalos-marinhos ou as moreias são efetivamente peixes, ou se elas integram outras categorias de animais marinhos. Para os realistas, esse tipo de dificuldade teria uma dimensão ontológica, pois ela seria entendida como uma dificuldade na identificação precisa da essência dos peixes, fundamental para a definição precisa desse conceito. Já para os nominalistas, esta seria simplesmente uma imprecisão nos critérios de pertinência definidos para a categoria linguística “peixe”.

Em um primeiro momento, esse diagnóstico fez com que os filósofos da linguagem se dedicassem ao desenvolvimento de categorias mais rigorosas, capazes de reduzir as imprecisões dos nossos discursos (Carnap, 2003). A intuição que inspira tal movimento é a de que muitas das questões ontológicas ligadas à filosofia não passam de perguntas mal formuladas, especialmente porque utilizam os sistemas conceituais assistemáticos produzidos pelas diversas culturas.

A plasticidade de nossa linguagem permite perguntar coisas estranhas, tais como: “qual é a cor do quadrado redondo?”. Embora seja linguisticamente compreensível, a pergunta causa estranhamento, pois utiliza categorias inadaptadas aos objetos descritos. Um quadrado não pode ser redondo porque a definição de quadrado é incompatível com um formato circular. Um quadrado redondo não é uma categoria ontológica paradoxal, mas apenas uma expressão mal construída.

Em vez de nos espantarmos com a densidade filosófica do paradoxo envolvido na existência dos quadrados redondos, deveríamos apenas excluir de nossa linguagem a possibilidade de fazer esse tipo de atribuição de qualidades. Não há relevância alguma em discutir qual é a cor de um quadrado: esta não é uma questão filosófica, mas um pseudoproblema. Como quadrados são entes bidimensionais abstratos e cores são atributos de entes concretos e, deveríamos reconhecer que a afirmação “existem quadrados amarelos” não é falsa nem verdadeira: é simplesmente absurda.

Construções linguísticas absurdas podem ser muito importantes para a literatura, mas não oferecem bases sólidas para um conhecimento rigoroso do mundo (Wittgenstein, 1922). O poeta Manoel de Barros nos disse, com razão, que a poesia envolve uma espécie de delírio da linguagem, como aquele que acontece quando uma criança afirma que “ouviu a cor dos passarinhos” (Barros, 2010). A filosofia da linguagem reconhecia plenamente a força poética dos paradoxos e a importância social da arte, mas tentou diferenciar claramente os discursos científicos e artísticos.

A ciência busca se constituir como um conhecimento rigoroso do mundo e, nessa medida, precisa utilizar uma linguagem tão precisa quanto possível. Para a poesia, é importante poder utilizar figuras paradoxais e surpreendentes, como o intenso azul dos quadrados redondos. Já o discurso científico não pode recorrer a tais figuras, pois todos os seus enunciados devem ser claramente definidos e empiricamente testáveis. Os primeiros filósofos da linguagem perceberam que os discursos científicos eram permeados de expressões imprecisas e de referências essencialistas, que geravam proposições cuja correspondência com os fatos era difícil de avaliar. Para superar esse problema, foi desenvolvida uma abordagem analítica que impunha aos discursos científicos uma exigência particular de clareza: uma ciência rigorosa exigia uma linguagem rigorosa, que precisa impedir (tanto quanto possível) o surgimento de ambiguidades e imprecisões.

Os primeiros filósofos da linguagem, como Bertrand Russell (Russell, 1905), mapearam as formas pelas quais o caráter impreciso das linguagens naturais (como o português e o francês) conduzia à produção de enunciados paradoxais, como a afirmação de que “os quadrados redondos são azuis”. Para essa primeira geração de filósofos da linguagem, esse tipo de incongruência poderia ser evitado nas linguagens artificialmente criadas, como as matemáticas e as linguagens de programação de computadores.

Em Python ou em Java Script, não é possível fazer afirmações paradoxais, pois todo tipo de imprecisão gera uma mensagem de erro: somente são admissíveis enunciados que não geram paradoxos. Já nas linguagens naturais, podemos falar do “primeiro motor imóvel”, dos “deuses onipotentes” ou da “validade objetiva” de certas normas de direitos humanos. Para os filósofos nominalistas, esse tipo de expressão é apenas uma decorrência do caráter pouco rigoroso das linguagens naturais, que permitem fazer enunciados absurdos sobre o peso atômico dos círculos triangulares. Já os realistas acreditam que existe uma homologia entre a linguagem e o mundo (Conti, 2020), de tal forma que os enunciados paradoxais tendem a se converter em questões ontológicas complexas:

· Poderia um deus onipotente criar uma pedra tão grande que ele não fosse capaz de levantá-la?
· Como podemos identificar as normas objetivamente válidas?
· Normas objetivamente válidas teriam um caráter eterno ou poderiam se modificar ao longo do tempo?

Os realistas não reduzem os paradoxos a dificuldades linguísticas. Para eles, a função da linguagem é espelhar adequadamente o mundo real, indicando os verdadeiros atributos dos objetos descritos. O fato de que o uso do conceito “deus onipotente” conduz a paradoxos não indicaria que a própria categoria “deus onipotente” é absurda, por ser incompatível com nossas observações do mundo. As dificuldades em falar coisas razoáveis sobre um deus onipotente não é percebida como um problema intrínseco a esse conceito, mas uma limitação de nosso conhecimento acerca da efetiva realidade dos “deuses onipotentes” (ou constituições soberanas, ou sentidos corretos da lei).

O paradoxo não é visto como indício de uma categoria mal formulada (como os quadrados redondos), mas como indicativo de que nossos conhecimentos e repertórios conceituais não são suficientes para captar com precisão as complexidades desses objetos particularmente complexos. A filosofia tradicionalmente encara esse desafio atribuindo a si mesma o papel de desenvolver um conhecimento mais aprofundado das qualidades essenciais dos objetos tratados, gerando descrições capazes de superar as aparentes contradições que afloram nos discursos de senso comum.

Por exemplo, a reflexão filosófica acerca do conceito de “causa” indica que essa categoria nos leva a problemas aparentemente insolúveis. Por um lado, admitimos tranquilamente a noção de que todos os acontecimentos têm uma causa. Explicar os fenômenos do mundo implica buscar as razões de sua ocorrência, dentro de um modelo explicativo que vincula causas e efeitos. Todavia, quando procuramos a causa da causa da causa, somos levados a uma longa cadeia de causas e efeitos que aponta para a existência necessária de algum fenômeno que não tenha sido causado. Existe uma contradição no fato de afirmarmos que “todos os fatos têm causa” e, simultaneamente, admitirmos que é preciso existir uma “primeira causa incausada”. Como resolver esse paradoxo?

A solução tradicional é realizar uma distinção ontológica, diferenciando duas classes de objetos: a maioria dos seres faria parte da classe objetos com causa, mas que certas entidades muito específicas deveriam entrar em outra classe: a dos objetos sem causa, como deuses onipotentes e o primeiro motor imóvel. Essa distinção ontológica (entre dois grupos de seres, essencialmente diversos) permite sustentar que o paradoxo era somente aparente.

Não haveria contradição entre as duas afirmações anteriormente citadas porque não existe incongruência em enunciar que todos os fenômenos causados têm causa e que todos os fenômenos de tipo incausado não têm causas. O paradoxo tinha sido gerado pela confusão gerada ao tratar essas duas classes como se elas formassem um único grupo: os objetos do mundo. Tal conclusão nos conduz a reconhecer que não havia contradição na própria ordem natural e que tampouco era necessário abandonar a ideia de deuses onipotentes, desde que eles fossem devidamente compreendidos como elementos de uma classe sui generis.

A filosofia produzida dessa maneira pode ser entendida como um projeto de desparadoxalização, visto que o reconhecimento da verdade última das coisas permitiria qualificar as contradições e aporias contidas em nossos saberes como incongruências aparentes, que seriam dissolvidas por uma percepção mais adequada da realidade. No caso dos juristas, por exemplo, a afirmação de que todas as normas constitucionais têm hierarquia máxima exige tratar os conflitos existentes entre disposições de uma mesma constituição como se elas fossem contradições meramente aparentes, superáveis por meio de uma interpretação que as integre em uma ordem unitária de sentidos.

Para os filósofos da linguagem, essa tentativa de negar os paradoxos por meio de uma multiplicação de ficções constituiu uma estratégia improdutiva Ela faz com que cada paradoxo (como a existência de hierarquia entre as normas de máxima hierarquia) seja resolvido por meio da introdução de novos paradoxos (como a afirmação de que toda contradição entre normas constitucionais é necessariamente ilusória). Parece-lhes mais produtivo reconhecer que certos enunciados (como a impossibilidade de estabelecer uma hierarquia entre normas constitucionais ou a existência de deuses onipotentes) conduzem necessariamente a resultados paradoxais, que somente podem ser evitados caso a produção desses tipos de declaração seja vedada pelas próprias regras da linguagem.

Bertrand Russell identificou que a fonte mais comum dos paradoxos era a autorreferência, que ocorre quando um enunciado linguístico fala de si próprio, como na famosa sentença: “Esta frase é falsa” (Bolander, 2017). Se a frase for verdadeira, ela é falsa. Se ela for falsa, será verdadeira. Como é absurdo que uma afirmação possa ser simultaneamente verdadeira e falsa, não temos critérios adequados para classificá-la. De forma semelhante, o paradoxo do deus onipotente somente se revela quando aplicamos essa onipotência com relação a ele próprio: teria ele poderes para estabelecer limites a seu próprio poder?

Uma vez reconhecido que certas estruturas linguísticas geram paradoxos, entendeu-se que elas não geram propriamente “problemas ontológicos”, mas apenas “pseudoproblemas”: trata-se de perguntas construídas de forma confusa, que fazem referência a entidades metafísicas. A solução proposta por Carnap foi a de reconhecer que boa parte da filosofia ocidental correspondia a uma tentativa de contornar as limitações da linguagem disponível (inclusive seus paradoxos e suas limitadas categorias), por meio da formulação de teorias ontológicas tão arbitrárias como a distinção entre objetos causados e incausados (Carnap, 2003).

Esses pseudoproblemas não poderiam ser resolvidos com referência ao mundo, visto que eles eram consequências de certos pressupostos ontológicos (como a existência de deuses onipotentes) inscritos nos sistemas conceituais disponíveis para que as pessoas organizassem suas percepções de mundo. A filosofia analítica não se propôs a resolvê-los, mas propôs que eles fossem eliminados do discurso científico, tendo em vista que faziam referência a objetos que não poderiam ser empiricamente acessados. Que conhecimento empírico pode haver acerca de um espírito imaterial do mundo, de uma consciência imaterial dos homens ou de atributos paradoxais?

Platão responderia que Carnap estava correto, pois é mesmo impossível um conhecimento empírico das essências. Porém, os seres humanos tinham a sua disposição outros tipos de conhecimentos e de raciocínios. Platão nunca disse que ele tinha visto o mundo das ideias ou tinha tocado no arquétipo de Bem. O que ele disse é que nossas observações empíricas não eram capazes de oferecer uma reconstrução sistemática da ordem natural, visto que toda descrição da natureza precisava se utilizar de categorias que falavam de entidades que não tinham existência empírica: valores, sentidos, finalidades, objetivos.

Partindo da verdade evidente de que era possível fazer enunciados acerca da injustiça de se matar uma pessoa sem motivo, Platão concluía que era preciso existir um critério imaterial de justiça. O reconhecimento dos valores de justiça, dos deuses onipotentes e dos sentidos corretos da lei não decorriam de nossos sentidos, mas das inferências que nossa razão podia deduzir do fato de que percebemos certos fenômenos e fazemos constantemente juízos morais. Partindo do pressuposto de que existe uma ordem natural e que nós conseguíamos pensar sobre os fenômenos do mundo, Platão concluía que seriam rigorosos os enunciados que decorressem logicamente dessa realidade: os homens têm uma razão imaterial, capaz de conhecer um mundo também imaterial, inclusive a própria ordem subjacente à natureza.

Russell, Wittgenstein e Carnap faziam parte de um outro ambiente cultural, no qual essa percepção platônica já não tinha lugar. Eles somente estavam dispostos a reconhecer como “rigoroso” o conhecimento que pudesse ser testado a partir de observações empíricas. Eles estavam dispostos a deslocar toda a ética para o campo do inefável: um espaço social ocupado pelas convicções que não têm pretensão de corresponder a observações empíricas (Wittgenstein, 1922). A ética estaria junto com a poesia, a religião, neste campo regido pelas preferências individuais e coletivas, e não por um conhecimento empírico rigoroso. Nesse lugar também estaria toda a metafísica produzida pelos discursos filosóficos tradicionais.

Esse projeto filosófico propunha uma espécie de cartesianismo renovado: era preciso duvidar de todos os saberes existentes e promover uma reconstrução conceitual, produzindo modelos conceituais sistematicamente organizados (por isso, lógicos) e imediatamente referidos a nossa experiência (por isso, empíricos). Sob a denominação de empirismo lógico, ele tinha por objetivo explícito redimensionar a nossa linguagem, para que pudéssemos contar com repertórios categoriais capazes de permitir a formulação de enunciados mais rigorosos acerca da realidade (Carnap, 2003, p. vi).

1.2 Sentido e referência

Os fundamentos do empirismo lógico foram estabelecidos pelo matemático Gottlob Frege, que formulou um ambicioso projeto no fim do século XIX: compatibilizar a matemática com a lógica, a partir do uso extensivo de uma teoria dos conjuntos. Nesse tipo de abordagem, consideramos que integram um conjunto todos os elementos que cumprem os critérios de pertinência previamente definidos, que Frege chamava de “marcas” (Frege, 1960a, p. 145).

E o que a matemática tem a ver com a filosofia? A centralidade da noção de conjunto, que também é utilizada pelo próprio Frege para pensar o papel linguístico das categorias, como “justiça” ou “ponte”. No momento que foram publicadas, as teses de Frege não tiveram muito impacto, pois, como ele próprio identificou, suas ideias pareciam ser demasiadamente metafísicas para os matemáticos e demasiadamente matemáticas para os filósofos (Frege, 1960a, p. 143). Com o tempo, porém, a sua influência se tornou tão grande que veio a ser reconhecido como o marco inicial da virada linguística (linguistic turn): o momento em que se diagnosticou que a filosofia tradicional incidia recorrentemente no erro de referir-se a significados linguísticos como se eles fossem elementos ontológicos. A teoria de Frege permitiu que descrever com precisão o modo como cada conceito (como “peixe”) faria referência a um conjunto determinado de seres (os “peixes”), sendo que a pertinência a esse grupo seria definida por um conjunto finito de atributos (Frege, 1960a, p. 150).

Uma das principais inovações filosóficas de Frege foi a de identificar que cada signo linguístico envolve duas dimensões diversas, que não devem ser confundidas: o sentido do termo (o conjunto de atributos) e a referência (o conjunto dos objetos designados) (Frege, 1960b). Essa composição parecia dar a Frege uma teoria logicamente adequada para explicar nossas capacidades linguísticas, que superasse os últimos resquícios de realismo. Os realistas trataram esses repertórios de atributos de um signo como se eles fossem um objeto abstrato: a essência. Frege reduziu o significado de um conceito a um conjunto finito de atributos (e não de substâncias), que servem para fixar os limites de um conjunto determinado de objetos.

Uma das grandes vantagens desse sistema foi a de deslocar vários problemas do nível da referência para o nível do sentido, o que permite tratar sem problemas de categorias paradoxais, como quadrados redondos. Para as abordagens essencialistas, o conceito é uma representação mental de uma essência, que é compartilhada por um grupo de objetos. Na perspectiva de Frege, não há espaço para supor que os objetos referidos por um conceito partilham uma essência comum: eles são apresentados simplesmente como o conjunto de objetos referidos por um conjunto de marcas arbitrariamente definidas. Segundo o próprio frege, a definição de um conceito sequer permite saber se ele tem alguma referência.

Utilizando o referencial teórico formulado por Frege, Bertrand Russel defendeu explicitamente que expressões paradoxais como “quadrado redondo” são plenamente compreensíveis e que não acarretariam problemas filosóficos, uma vez que entendamos que a possibilidade linguística de formular um enunciado não implica a afirmação de que as entidades nomeadas efetivamente existem (Russell, 1905). A possibilidade de falar de quadrados redondos, de cavalos alados ou de leis objetivamente válidas não implica a manifestação da crença de que esses objetos efetivamente existem, tendo em vista que esse tipo de construção pode ser apresentado como um signo linguístico que tem sentido, mas não tem referência.

Nos termos da teoria de Frege, não se pode cogitar da existência de conceitos verdadeiros, visto que a definição de verdade adotada nessa abordagem (correspondência de um enunciado aos fenômenos descritos) somente permite a avaliação de enunciados, não de conceitos. Nomes e definições têm sentido e referência, mas eles não trazem enunciações que possam ser comparadas com os fatos empíricos. A veracidade de um conceito passa a ser considerada uma ideia tão absurda quanto a sua cor ou seu volume: trata-se da atribuição de uma propriedade que não tem qualquer relação com o objeto designado.

Esse é um passo importante para a filosofia porque estabeleceu as bases de um discurso filosófico no qual a noção de “essência” não tem lugar. A linguagem matematizada das ciências modernas não deixou espaço para discutir a finalidade dos objetos, uma vez que “finalidade” não é uma propriedade que possa ser designada por meio das linguagens matemáticas. Uma vez que a matemática somente é capaz de estabelecer relações quantitativas entre objetos, não se mostra viável produzir uma equação sobre as essências e as finalidades. A matematização exclui das ciências qualquer dimensão metafísica, sem que seja preciso sequer apresentar argumentos nesse sentido.

No campo da filosofia, a abordagem de Frege exclui do sistema linguístico qualquer possibilidade de tratar das essências de um conceito, visto que o conceito de “sentido” não é apresentado como uma referência a objetos ideais, mas como um conjunto arbitrário de marcas. Com Frege, foram estabelecidas as bases para uma teoria que, em vez de argumentar contra o essencialismo das perspectivas filosóficas tradicionais, se limita a qualificá-lo como um “delírio linguístico”, que pode ser evitado por meio do desenvolvimento de categorias adequadas, que inviabilizem o surgimento de questões metafísicas.

2. Verdade e validade

2.1 Verdade e enunciação

Uma das consequências mais duras da perspectiva de Frege e Russell (que podemos chamar de analítica, por partir de uma análise da linguagem) é a impossibilidade de avaliar a veracidade de afirmações feitas sobre nomes sem referência ou com sentidos indefinidos. Para ambos, a veracidade é uma qualidade que só pode ser atribuída a enunciados completos, compostos por definições claras e empiricamente verificáveis (Frege, 1960b; Russell, 1905). Como Wittgenstein esclarece no Tractatus (Wittgenstein, 1922), obra que consolida a abordagem analítica, somente enunciados que descrevem fenômenos empíricos podem ser avaliados em termos de sua veracidade.

Para as narrativas analíticas, a “veracidade” é entendida como uma correspondência entre enunciados descritivos e os fenômenos que eles descrevem. O nominalismo de Frege chega ao ponto de redefinir a palavra “conceito” para descrevê-la como uma função que atribui qualidades a um objeto (Frege, 1960b). Mais tarde, Frege passou a considerar o conceito como uma mera atribuição de propriedades, que teria a estrutura C(x): esse enunciado corresponderia à atribuição à variável x dos atributos definidos pelo conceito C.

Na medida em que o conceito seria um enunciado atribuidor de qualidades, ele seria passível de ser avaliado em termos de verdade e falsidade. Chamar essa função de conceito é quase uma ironia: tal como na abordagem clássica, os conceitos são passíveis de veracidade; todavia, o seu conteúdo ontológico é esvaziado, na medida em que eles são reduzidos à afirmação de que um certo objeto faz parte de uma classe (Frege, 1960b).

Embora haja sentido linguístico na atribuição de qualidades a um objeto inexistente no mundo dos fatos (como o atual rei da França ou o sentido objetivo de uma norma), a falta de uma referência concreta impossibilita a avaliação da veracidade dessa frase. Seria falsa ou verdadeira a afirmação “o atual rei da França é um tirano”. Ela nem é falsa, nem verdadeira, pois não podemos verificar se tal enunciado corresponde aos fatos. Note que, se essa frase fosse considerada falsa, então deveria ser verdadeira a sua negação: “o atual rei da França não é um tirano”. Todavia, este enunciado tampouco pode ser considerado verdadeiro, tendo em vista ser impossível aferir se é correta (ou não) a atribuição de uma qualidade a um ente inexistente.

Com essa construção teórica, Frege nega a possibilidade de analisar a veracidade de objetos que não têm existência empírica. Essa posição é endossada pela célebre afirmação Wittgenstein, no Tractatus, de que o conhecimento rigoroso dos cientistas deve permanecer em silêncio sobre todas as afirmações cuja veracidade não pode ser acessada em termos de correspondência com os fatos (1922). Tal abordagem é posteriormente generalizada pela epistemologia de Karl Popper, que nega status de cientificidade a qualquer enunciado que não pode vir a ser refutado por meio de uma referência factual (Popper, 1973).

A aplicação direta desses parâmetros de cientificidade ao campo jurídico resultaria em uma rejeição do caráter científico do conhecimento jurídico. Como aponta Frédéric Rouvière, a falseabilidade popperiana exige a possibilidade de submeter as afirmações jurídicas a um teste empírico que não faz sentido quando se trata de enunciados sobre significados de um texto normativo, cuja definição não pode ser medida em termos factuais (Rouvière, 2015, p. 2227). Enunciados que atribuem propriedades a nomes sem referência empírica (como “direitos humanos” ou “culpa”) simplesmente não têm cabimento dentro de um conhecimento rigoroso acerca de fenômenos do mundo.

Essa incompatibilidade flagrante da filosofia da linguagem com as abordagens jurídicas (Rouvière, 2015, p. 2227) faz com que os filósofos do direito que buscam afirmar a cientificidade da dogmática jurídica sejam levados a adotar referenciais epistemológicos (ou seja, de teoria da ciência) diversos do cientificismo naturalista da filosofia analítica de Frege, Russell e do primeiro Wittgenstein (que é o nome com o qual tipicamente nos referimos às concepções defendidas por ele no Tractatus).

Na busca de sustentar que afirmações sobre o direito podem ser objetivamente válidas, uma possibilidade seria promover um retorno ao realismo de matriz platônica. Retorno não é bem a palavra, tendo em vista que a maioria dos juristas nunca abandonou a sensibilidade jusnaturalista, que compreende o mundo social a partir da pressuposição de que existe uma ordem jurídica imanente à natureza, que deve servir como modelo para as nossas formas de organização social. Juristas ligados ao jusnaturalismo continuam tratando da “soberania popular” e do “sentido correto das normas” como entidades observáveis no mundo, e não como categorias de análise. No âmbito dos discursos dogmáticos do direito, permanece comum a adoção acrítica de uma perspectiva realista, comprometida com a existência de objetos abstratos como o verdadeiro sentido de “propriedade”, de “gênero” ou de “personalidade jurídica”.

Esse tipo de realismo parte do pressuposto de que existe uma ordem natural (como realidade, e não como criação linguística) e considera que essa ordem não pode ser paradoxal (porque, nesse caso, ela não seria propriamente uma ordem). Por esse motivo, toda vez que uma descrição teórica se mostra paradoxal, os realistas entendem que ela certamente tem uma deficiência, que poderia ser superada na medida em que fossem utilizadas categorias que efetivamente correspondessem à essência dos objetos descritos.

Por exemplo: o jusnaturalismo é baseado na afirmação de que existem certos valores naturais. Mas como seria possível identificar que a igualdade ou o direito a vida seriam atributos naturais dos seres humanos? Uma saída seria afirmar que temos uma capacidade inata de reconhecer os valores inscritos na natureza. Porém, sempre foi difícil combinar essa pretensa capacidade inata com o fato que, a depender da cultura analisada, são diversos os valores percebidos como naturais. Os naturalistas não precisam enfrentar apenas o desafio de justificar a existência de valores naturais, mas também necessitam explicar o motivo pelo qual seriam naturais justamente os valores consolidados em sua própria cultura.

A necessidade de combinar esses dois elementos faz com que os naturalismos da modernidade ocidental tendam a se afirmar como reflexos de uma natureza universal, que deveria ser percebida por qualquer pessoa que analisasse racionalmente os fatos observáveis. Como estudaremos no terceiro volume desta trilogia, a principal referência desse tipo de abordagem é o filósofo Immanuel Kant, que partiu do reconhecimento de que a observação dos fatos empíricos nunca pode fundamentar a validade objetiva de normas e valores. Para contornar esse óbice, Kant propôs que a moralidade e o direito poderiam ser construídos a partir de um outro tipo de observação: uma auto-observação, em que a consciência analisa a sua própria estrutura.

Inspirados por Kant, vários filósofos buscaram desvendar as categorias intrínsecas à consciência humana, sob o argumento de que podemos observar diretamente a nossa própria racionalidade. Para os kantianos, os fundamentos da moralidade e do direito não devem ser buscados no mundo exterior, mas no mundo interior dos homens. Muda o foco, mas permanece a ideia de que existe uma ordem natural, com a diferença que ela é acessível por outro tipo de raciocínio. Entre as teorias jurídicas inspiradas por Kant, destaca-se a primeira versão da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen. Reconhecendo que não é possível encontrar as categorias essenciais do direito por meio de uma análise empírica das práticas jurídicas, Kelsen se propôs a refletir sobre o modo jurídico de construir argumentos e identificar quais seriam as categorias universais do direito, que seriam necessárias a qualquer prática jurídica racional e que, nessa medida, poderiam subsidiar a criação de uma teoria geral do direito (Kelsen, 2010). Essa mesma tendência pode ser verificada em juristas que se apresentam como ligados à fenomenologia, que atualiza as pretensões platonistas de encontrar as essências universais da experiência jurídica, tal como ocorre em Bergel (2012).

Uma perspectiva diversa para lidar com as práticas jurídicas que permeiam nossas sociedades é adotar uma abordagem chamada de realista, não por pressupor para existência real dos conceitos, mas por se basear em uma observação direta do comportamento de atores e organizações que pertencem o campo social do direito. Essas perspectivas constituem o que se convencionou chamar de “realismo jurídico”, em oposição a teorias idealistas, formalistas e logicistas. Entre os vários realismos, destacam-se o escandinavo, de Karl Olivecrona e Alf Ross, o francês, de Michel Troper (Troper, 2011), e o norte-americano, que se inicia com Jerome Frank e culmina nos Critical Legal Studies (Brunet, 2022). Essas perspectivas buscam se aproximar dos critérios de cientificidade da escola analítica, motivo pelo qual elas terminam por romper com o senso comum dos juristas, uma vez que negam a possibilidade de fazermos afirmações objetivamente corretas acerca do sentido das normas do direito positivo.

Uma terceira via envolve a incorporação do giro pragmático da filosofia da linguagem, que trata as interações linguísticas como formas de agir, e não como formas de se referir objetivamente aos fatos. Uma das possibilidades abertas por esta perspectiva é a construção de teorias da argumentação, que não enxergam o direito como uma prática orientada por um conhecimento científico acerca do direito (que seria impossível), mas como uma atividade social que envolve a fixação de regras argumentativas próprias.

A devida compreensão dessas teorias (bem como das outras que compõem o cenário atual da filosofia do direito) depende de um estudo minucioso, que será realizado no terceiro volume desta trilogia. Neste ponto, basta compreender que existem várias possibilidades teóricas para abordar os fenômenos jurídicos e que você terá oportunidade de refletir sobre a sua relação com elas. Porém, independentemente de quais sejam as suas preferências ideológicas ou teóricas, você precisará se posicionar com relação aos paradoxos da fundamentação do conhecimento, que são resumidos na formulação do célebre trilema de Münchhausen.

2.2 O trilema de Münchhausen

A tomada de posição com relação às possíveis abordagens teóricas e filosóficas sobre a sociedade (inclusive sobre o direito e a política) envolve a devida compreensão do paradoxo que veio a ser denominado como trilema de Münchhausen (ou trilema de Agripa) (Weisberg, 2021).

Esse paradoxo decorre dos usos de conceitos relacionais, tais como causalidade e justificação, que indicam a existência de uma relação entre objetos diversos. A justificação estabelece uma relação entre argumento e conclusão. A causalidade indica que certos fenômenos (ou conjuntos de fenômenos) são aptos a desencadear outros fenômenos e que, dessa forma, podem ser percebidos como sua causa. O caráter relacional desses fenômenos faz com que diferentes objetos sejam ligados entre si, resultado que, em si, não é paradoxal. Todavia, nossos discursos não se limitam a afirmar que determinados fenômenos são causados por outros, mas partem do pressuposto de que “todo fenômeno tem uma causa”. Essa afirmação pode soar trivial, mas é o que nos impele a buscar as causas de um fenômeno e depois investigar as causas das causas, depois as causas das causas das causas, e assim por diante.

O conceito de causa, entendido como uma categoria explicativa aplicável a todos os fenômenos, nos conduz a uma rede infinita de causas e efeitos, que é a primeira possibilidade do trilema. Para os modelos de pensamento que supõem uma ordem no mundo, a corrente infinita de relações parece absurda, pois ela introduziria um grau de incerteza inadmissível. Se toda explicação causal exige uma nova explicação, seria inalcançável um conhecimento seguro do mundo, pois não nos seria dado encontrar a “primeira causa” de um fenômeno, ou a “justificativa” que fundamenta uma crença.

Para evitar que toda explicação nos conduza a uma cadeia infinita, parece que há duas alternativas possíveis. A primeira nos faz retornar à afirmação de que as categorias linguísticas devem ser compreendidas em uma rede, pois o seu significado é definido fazendo referência a outras categorias. Esse tipo de explicação gera uma espécie de circularidade: uma categoria depende de outras, mas isso não indica uma cadeia infinita, mas um sistema fechado.

Ocorre que tal descrição não é congruente com o fato de que aprendemos as linguagens. Um sistema circular de referências mútuas não teria começo nem fim, e, portanto, não poderia ter uma porta de entrada para quem desconhece todas as referências. Como nós aprendemos uma língua a partir de nossas experiências sociais, supomos que o sistema linguístico não deveria ser composto apenas de referências internas, inacessíveis a quem já não as conhecesse. Portanto, a circularidade parece não oferecer uma descrição adequada de nossa relação com o mundo.

As duas primeiras alternativas do trilema são a cadeia infinita e a circularidade. Nenhuma delas é acoplável a nossas culturas baseadas na existência de uma ordem natural finita e compreensível. Por esse motivo, os filósofos sempre se dedicaram a oferecer narrativas compatíveis com a terceira alternativa: a existência de certos princípios absolutos, que permitiriam cortar a cadeia infinita e fundamentar as relações que se baseiam neles.

Um dos argumentos mais célebres da filosofia é a tese aristotélica de que a existência de relações de causalidade exigiria a existência de um primeiro motor imóvel. A utilização de um conceito universal de causalidade, aplicável a todos os fenômenos, exige que essa universalidade seja rompida ao menos em um caso: a causa primeira, que seria a origem de todo movimento. No campo do direito, Kelsen se notabilizou por usar a mesma lógica e sustentar que, para que os juristas possam falar em normas válidas, é preciso supor a existência de um primeiro motor imóvel normativo: uma norma válida em si mesma, que ele designou como norma fundamental (Kelsen, 1992, 2010).

A herança dos filósofos gregos é o projeto de encontrar fundamentos tão sólidos que nos permitam romper as cadeias infinitas de relações, estabelecendo pontos de partida seguros para ancorar nossos conhecimentos. Somente esse tipo de certeza possibilitaria a passagem da opinião (doxa) para um conhecimento rigoroso (episteme). Essas certezas nunca podem ser encontradas no mundo físico, pois o seu caráter absoluto somente é compatível com a imutabilidade do mundo inteligível, constituído pela própria ordem natural e percebido pelas faculdades racionais de nossa psique.

2.3 Os paradoxos do direito

Apesar de muito promissora, a construção proposta por Frege e continuada pela filosofia analítica tinha um problema fundamental: ela utilizava uma noção de conjunto que fatalmente conduzia a paradoxos. Esses paradoxos não ocorriam enquanto os conjuntos tinham como integrantes apenas objetos simples, mas afloravam toda vez que se tentava fazer afirmações gerais acerca dos próprios conjuntos. Russell apontou para Frege que seria possível falar de um conjunto R, ao qual pertencessem todos os conjuntos de objetos existentes. Essa definição particular conduziria à paradoxal afirmação de que R ∈ R, ou seja, que o conjunto deveria ser parte de si mesmo, algo que o próprio Frege chegou a admitir explicitamente (Frege, 1960c).

Embora esse problema matemático possa parecer muito abstrato, ele tem uma aplicação direta no campo do direito: o discurso jurídico trata do próprio direito e, com isso, muitos são os enunciados que terminam por gerar alguma forma de autorreferência, instituindo circularidades que atravessam várias dimensões do direito.

A circularidade ocorre em uma dimensão estrutural, tendo em vista que normas jurídicas do direito positivo regulam as suas próprias condições de validade e suas formas de interpretação. A tese de que a sociedade deve ser submetida ao império do direito (rule of law) implica que o sistema jurídico deve imperar sobre si próprio. Esse tipo de construção faz com que seja impossível decidir se o direito pode ou não ser alterado mediante processos interpretativos: por um lado, os juízes têm o dever de seguir o direito; por outro, a sua interpretação do direito tem validade jurídica.

Da existência de um direito interpretável emerge uma dinâmica paradoxal, em que as normas são alteradas na medida em que são interpretadas. Toda decisão judicial é simultaneamente aplicadora e criadora: portanto, aquilo que chamamos de direito nunca pode ter um conteúdo definido em si mesmo. Os magistrados, especialmente aqueles que atuam nas cortes supremas, tomam decisões que se justificam sobre um “sentido normativo” cujo sentido é definido pelas próprias decisões que o aplicam.

Esse é um paradoxo que pode ser resolvido a partir do reconhecimento que a aplicação do direito é uma atividade política, tal como afirma Hans Kelsen (Kelsen, 1992). Kelsen indica que os juízes sempre são atores políticos, pois a implementação do direito exige a realização de escolhas valorativas que não podem ser previstas integralmente no conteúdo das normas. O custo dessa desparadoxalização é o abandono do pressuposto que permeia o discurso jurídico: a ideia de que existe um direito a ser aplicado.

Existe também uma outra dimensão paradoxal, na relação das descrições do direito com o seu conteúdo. O discurso dos juristas busca descrever os direitos e deveres que cada pessoa tem, o que implica a adoção de uma perspectiva que trata o direito como um objeto a ser conhecido. Todavia, cada posicionamento doutrinário integra um debate social infinito acerca do sentido objetivo do direito. Com isso, não são apenas os atos de autoridade que geram situações paradoxais: toda afirmação sobre o direito tem a possibilidade de interferir na percepção social do direito.

Tal como acontece nas línguas naturais, toda frase que enunciamos contribui, ainda que marginalmente, para a configuração geral da língua. Toda língua muda ao longo do tempo, por meio da acumulação de pequenas variações nos modos como os falantes produzem seus discursos: abandonando algumas palavras, mudando pronúncias, criando neologismos, etc. A língua, tal como o direito, é produto de uma comunidade de falantes que, ao produzirem discursos que obedecem a uma certa “ordem discursiva”, participam de um processo de contínua transformação dos seus conteúdos.

Uma pessoa que afirme “esta frase não é uma frase”, incorre fatalmente em paradoxos. Um jurista que afirme “a minha interpretação é conforme ao direito” incorre fatalmente em um jogo de autorreferências. Se o conhecimento jurídico for considerado como o conjunto das proposições verdadeiras sobre o direito, ele fatalmente incorre no paradoxo de Russell: ele deverá ser um subconjunto de si mesmo.

Para evitar os paradoxos, filósofos como Russel e Tarski introduziram em seus sistemas uma forma de vedar a possibilidade de que uma frase falasse de si própria, por meio da fixação de níveis hierárquicos (Bolander, 2017). Afirmações que integram uma hierarquia determinada podem tratar de objetos de níveis inferiores, mas nunca podem falar de objetos do próprio nível. No direito, esse tipo de diferenciação de níveis é bastante comum, e realiza exatamente essa função desparadoxalizante.

A distinção entre direito natural e direito positivo, por exemplo, viabiliza a criação de uma relação unilateral: o direito natural regula e define os critérios do direito positivo, mas o direito positivo não pode regular o direito natural. Com isso, o paradoxo da autorreferência é evitado: o direito positivo não pode tratar de si mesmo e o direito natural dispensa justificação, por tratar-se de um ponto de partida considerado autoevidente.

A releitura moderna dessa estratégia conduziu o constitucionalismo a promover uma cisão no próprio direito positivo, distinguindo o direito constitucional (que se impõe ao próprio poder legislativo) e direito infraconstitucional (que pode ser alterado pelos legisladores). Para além da estabilização política, essa divisão cria níveis hierárquicos diversos: a legislação é produzida pelo poder legislativo, que recebe sua autoridade da constituição, que foi instituída pelo exercício de uma soberania popular que dispensa justificação. Mais uma vez, somos colocados frente à fixação de vários níveis hierárquicos, com vedação de autorreferência e fundamento em uma autoridade absoluta.

O problema da autoridade absoluta é que ela gera uma exceção injustificável na cadeia de validade. Na nossa linguagem normativa, validade é um conceito relacional: um objeto válido sempre tem sua validade definida por um outro objeto, de nível hierárquico superior. Porém, toda vez que um jurista analisa um sistema normativo concreto, ele pressupõe uma justificação objetiva da sua validade, o que termina exigindo a postulação de certos elementos “válidos em si mesmos”. Portanto, a noção de validade nos conduz fatalmente ao trilema de Münchhausen.

No discurso jurídico da modernidade, essa incongruência é tipicamente enfrentada pelo desdobramento do conceito de validade em dois modos: a validade relativa das normas positivas e a validade absoluta do direito natural ou das autoridades naturais. Com isso, o discurso jurídico moderno termina por atualizar, ainda que inconsciente, a metafísica platônica.

Quando um filósofo moderno se pergunta “o que é o direito?”, ele normalmente parte do pressuposto de que existe a entidade abstrata “direito”. Não existem apenas direitos e deveres particulares a cada pessoa, mas deve haver um sistema que articula todos esses direitos e deveres dentro de uma ordem normativa global. A teoria jurídica é influenciada pelo platonismo, pela crença de que existem certas interpretações corretas, certos conceitos que correspondem aos fatos, certos objetos que são simultaneamente abstratos e reais. Tal influência faz com que a adoção de perspectivas ligadas ao nominalismo da filosofia contemporânea cause estranhamento a muitos juristas.

Se a validade jurídica, a norma e a interpretação correta fossem apenas nomes (e não objetos abstratos), parece que a ciência jurídica perderia totalmente o seu objeto. Se tais entidades forem apenas categorias linguísticas, não poderemos fazer sobre elas afirmações objetivamente válidas. Tudo estava relativamente bem enquanto éramos inocentemente jusnaturalistas: um sistema que retira sua validade da própria estrutura natural do mundo pode parecer absurdo, mas não é paradoxal. Uma norma jurídica seria válida quando ela correspondesse à própria ordem natural, que seria simultaneamente física e normativa.

Todavia, quando o avanço do historicismo corroeu a velha estratégia jusnaturalista de afirmar a existência de uma ordem normativa imutável e eterna, os paradoxos da normatividade voltaram a ser sentidos como um problema fundamental. No século XVIII, Kant percebeu que somente restava para a modernidade investir na única ponte que ainda ligava o mundo sensível ao inteligível: o pensamento.

Em sua segunda meditação, René Descartes afirmou que “Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, nada mais pedia que um ponto que fosse fixo e seguro”, para que ele pudesse apoiar sobre ele uma alavanca (Descartes, 1973). René Descartes adotou explicitamente como ponto arquimediano para apoiar seus argumentos a evidência do pensar: um pensar que é, ao mesmo tempo, perceptível (porque somos conscientes de nosso pensamento) e imaterial (porque não é com nossos sentidos que nós apreendemos o pensar de nossos espíritos).

Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que não quer, que quer, que imagina também e que sente. (Descartes, 1973).

Para Descartes, esse eu que pensa não é um corpo, mas um espírito. A evidência primária do pensar não aponta para a corporeidade que temos, mas para uma capacidade anímica, que opera para além de nossos sentidos. Nosso espírito percebe que habita um corpo sensitivo, mas também que “a alma do homem é inteiramente diferente do corpo” (Descartes, 1973). Descartes reconhecia o papel do cérebro em nossa cognição, mas entendia que o pensamento de espírito consciente não se confundia com a atividade cerebral, dado que a função do cérebro era a de servir como um mediador entre a alma e o corpo.

A ideia de que os seres humanos são formados por essa combinação de uma dimensão corpórea com uma dimensão espiritual continua bastante presente no senso comum atual. Esse tipo de concepção parece decorrer do fato de que cada um de nós se percebe não apenas como um corpo (que pode ser visto no espelho), mas como algo que habita esse corpo (e que pode vê-lo no próprio espelho, sem se confundir com aquele objeto que é visto). Esse algo pode ser nomeado de várias formas (alma, psique, mente, espírito, consciência), mas parece que a maioria das pessoas adota uma perspectiva dualista, que diferencia nossos corpos do elemento imaterial que nos constitui enquanto pessoas.

O dualismo tem implicações variadas em nossas formas de ver o mundo. Como os dualistas acreditam na existência de objetos imateriais, torna-se plausível para vários deles que o mundo seja habitado por várias entidades incorpóreas, como espíritos, deuses e leis naturais. A filosofia ocidental é construída sobre a versão platônica do dualismo: existe um conjunto de objetos físicos, históricos e mutáveis, mas também existe um conjunto de objetos metafísicos, eternos e imutáveis, como a natureza humana e a ordem cósmica em que estamos imersos.

A filosofia tradicional do ocidente é construída sobre a intuição de que o fato de os objetos metafísicos não serem visíveis não os tornaria menos reais, menos existentes nem menos perceptíveis. A ideia de que nossa racionalidade é capaz de perceber os objetos imateriais que estruturam a ordem natural (leis, valores, finalidades, etc.) engendra o projeto filosófico de descobrir a verdade última das coisas, para além das sombras limitadas que podemos observar nos fenômenos empíricos (ou seja, perceptíveis por nossos cinco sentidos).

A filosofia moderna é uma variação específica desse tema. Na modernidade, o dualismo da filosofia permaneceu intacto, embora tenha ganho uma nova roupagem. Enquanto os filósofos gregos acreditavam que nossa alma pode observar diretamente a ordem do mundo, os filósofos modernos se tornaram céticos com relação a essa capacidade de olhar para fora. Porém, mantiveram a certeza de que podemos perceber as estruturas fundantes da ordem natural, desde que observássemos aquele objeto imaterial do qual não podemos escapar: nossa própria consciência.

O projeto kantiano, por exemplo, é construído sobre o pressuposto de que os seres humanos habitam simultaneamente dois mundos: a realidade empírica em que estão os seus corpos e a realidade imutável de uma pura racionalidade, que é acessível por sua alma. As críticas de Hume aos raciocínios indutivos (Hume, 1975) convenceram Kant de que a observação direta das coisas não pode garantir generalizações confiáveis. Todavia, Kant partilhava a confiança cartesiana de que somos capazes de perceber diretamente o nosso próprio pensar e, com isso, identificar as estruturas de nossa própria consciência. Em Kant, a racionalidade humana continuava sendo um exercício do pensamento, que era uma faculdade de nossa alma imaterial. É justamente esse caráter imaterial da alma que nos tornaria diretamente submetidos aos ditames objetivos e imutáveis que nossa cognição deduz da própria ordem natural: o caráter racional de nossas almas faz com que os imperativos da racionalidade sejam, para nós, obrigatórios (Kant, 1996).

Quando a filosofia da linguagem corrói a distinção entre alma e corpo, substituindo-a por uma faculdade linguística a partir da qual nós elaboramos discursos acerca do mundo, rompem-se as últimas pontes que ligavam o mundo das essências abstratas e eternas e o mundo das contingências concretas e transitórias. Se o conhecimento sobre o mundo é um discurso linguístico produzido dentro da própria historicidade humana, o caráter paradoxal do direito se torna evidente: os juristas utilizam uma noção de validade que nos deixa presos em um labirinto de Münchhausen, sem qualquer saída aparente.

3. As frestas do labirinto

3.1 O delírio da linguagem

Em nosso itinerário pelos labirintos da linguagem, uma das primeiras coisas a abandonar é a ideia de que o conhecimento pode ser um espelho da natureza (Rorty, 1995). Até bem pouco tempo atrás, entendíamos que os conceitos deveriam corresponder às propriedades das coisas. Os pássaros seriam seres essencialmente diversos das cobras e as cobras seriam seres essencialmente diversos dos lagartos. Essa é a herança ontológica que devemos aos pensadores da Grécia antiga e que constitui a marca distintiva da filosofia clássica ocidental.

Nosso esforço de compreensão não começou com um trabalho consciente voltado a definir categorias artificiais, mas com a tentativa de descobrir as essências imutáveis, objetivas, absolutas. No mundo antigo, as palavras deveriam corresponder, de alguma forma, a propriedades existentes no mundo, pois os conceitos deveriam ser portadores de uma verdade. Não se colocava em dúvida de que deveria haver um conceito verdadeiro de pássaro, que fosse capaz de designar uma classe de objetos cuja essência (ou seja, cujo modo específico de ser) era a de ser um pássaro.

A ideia de um conceito verdadeiro gera uma série de dificuldades, que foram bem percebidas pelos antigos. Os nomes eram percebidos como referências a um conceito, e conceitos somente podem ser verdadeiros quando correspondem a algo que existe. O Rei da Pérsia, as Pirâmides do Egito, a Justiça: essas expressões linguísticas somente podem ter um sentido objetivo quando elas denotam um objeto existente, pois o nome estabelece uma relação de correspondência.

O nome substitui, na linguagem, a própria coisa referida. Quando falo de Sócrates, eu trato de uma pessoa que existiu, não falo de uma palavra. Quando digo que Sócrates era mortal, eu uso esse adjetivo para atribuir uma qualidade a um sujeito. Mas qual é o objeto que corresponde à palavra mortal? A mortalidade é um atributo, não é uma coisa. Na nossa percepção intuitiva da linguagem, as coisas têm atributos, mas não existem atributos autônomos, independentes das coisas. O azul, o frio, o justo. Todas as qualidades somente existem enquanto atributos de objetos específicos, de tal modo que parece claro que não faz sentido buscar no mundo um azul que não seja a cor das coisas azuis.

Ocorre que quando dizemos que um determinado objeto é um cavalo ou um pássaro, ser cavalo ou ser pássaro são atributos desse objeto. A consciência de que a linguagem é uma coleção de atributo, sendo que esses atributos não correspondem a coisas determinadas, coloca em risco a nossa percepção comum, que toma a linguagem como uma série de palavras que indicam determinados fatos (ser azul, ser cavalo, ser injusto).

Na raiz de todos esses atributos, está a própria noção de ser. Essa é a noção mais original, mais poderosa e mais problemática. Será que ser é um atributo? Um objeto pode ser azul, ser quadrado e ser leve. Mas ele pode simplesmente ser? Essa é uma questão complicada porque o verbo ser (to be, être, estar) é normalmente utilizado para estabelecer relações: ele relaciona um objeto a um atributo.

Linguisticamente, a frase “o cavalo é” parece simplesmente incompleta. Ela tem um problema no nível sintático, ou seja, da própria estrutura de construção do enunciado: falta um pedaço da frase, o que a torna sem sentido aparente. Podemos dobrar a frase e dizer “o cavalo é uma coisa que é”, e isso nos aponta para um sentido não relacional da ideia de “ser”, que normalmente expressamos por meio do verbo “existir”. Quando dizemos que o cavalo existe, atribuímos uma qualidade ao cavalo (existir) por meio de um verbo e não de adjetivos qualificadores ligados por um verbo ser ou estar.

Parece que existir e ser estão ligados, mas essa ligação é obscura. Inclusive porque atribuímos várias qualidades a seres inexistentes: unicórnios são brancos, quadrados redondos não existem. Quando a própria inexistência é um atributo linguisticamente atribuível a um objeto, levados a um terreno pantanoso: qual é o ser de um objeto que não existe? Nessa pergunta, o que aflora como pantanoso não é exatamente o terreno de uma linguagem que pode ser simplesmente emotiva e poética, portadora de fantasias delirantes. O que fica borrado é a ligação entre linguagem e verdade, que parecia evidente para Platão e a filosofia grega, mas que fica obscurecida pela possibilidade de construirmos enunciados com sentidos absolutamente paradoxais.

Que verdade é possível numa linguagem que delira? A linguagem humana permite falar de coisas existentes e inexistentes. Fala inclusive de coisas impossíveis, como quadrados redondos e estrelas de massa infinita. A linguagem, como um mecanismo de interação entre seres humanos, não nos conduz a paradoxos. Os paradoxos linguísticos, inclusive, são uma grande fonte artística, utilizada exaustivamente por poetas como Manoel de Barros, especialistas em construir situações em que a palavra delira.

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo,
lá, onde a criança diz:
eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
Funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz
De fazer nascimentos
–O verbo tem que pegar delírio.
(Barros, 2010)

Os poetas talvez estejam certos, explorando a linguagem como um elemento expressivo. Isso faz com que os poetas sejam perigosos, pois podem convencer as pessoas de coisas falsas e, inclusive, de coisas nocivas. Por isso mesmo Platão pretendia vedar a poesia, com sua capacidade incrível de produzir sonhos e sombras que nos distanciam da verdade que não nos é mostrada pela linguagem, mas pela nossa racionalidade.

3.2 Metafísicas linguísticas

A crítica mais produtiva dirigida à filosofia analítica não veio dos neometafísicos jusnaturalistas, mas dos filósofos que acoplaram a reflexividade linguística dos analíticos com a historicidade radical das abordagens hermenêuticas. Esse movimento começa pelo diagnóstico de que o projeto de elaborar linguagens rigorosas é um delírio cientificista.

Frege era um matemático, interessado em rigor e precisão, crítico do modo estranho e irreflexivo como filósofos inventavam categorias incongruentes. Parece inquestionável a imensa contribuição da filosofia analítica que ele inspirou: desenvolvimento de uma consciência crítica sobre o que os filósofos fazem quando buscam desvendar a essência natural das coisas.

Se a filosofia é uma análise das potencialidades de um sistema simbólico, a filosofia analítica é um marco importante: trata-se da filosofia olhando-se no espelho e percebendo as estruturas retóricas decorrentes de sua crença acrítica nas potencialidades ontológicas de nossa racionalidade.

Desde a demolidora crítica de Frege, os filósofos refletiram muito sobre o sentido de suas práticas e o alcance dos seus conceitos. Quanto mais pensamos nas relações entre as palavras e as coisas, mais temos dificuldades para ajustar nossas conclusões com um senso comum para o qual continua sendo estranha a noção de que as coisas das quais falamos, mesmo as que nos parecem mais concretas, já são (ao menos em parte) linguagem. Se essa condição linguística dos conceitos é relevante para categorias que designam objetos concretos (como planetas, pontes e seres vivos), o que dizer das entidades que reconhecemos desde sempre como abstratas?

O que dizer da justiça? O que dizer da verdade ou da legitimidade? Que podemos conhecer acerca dos motivos pelos quais criamos e derrubamos regimes de governo bastante reais? Todas essas palavras parecem destituídas até dos elementos empíricos que as pontes parecem ter. A justiça, a igualdade de gênero e o direito de não ser escravo parecem ser formas linguísticas puras, que não existem sequer como formas de generalização. Tais conceitos, centrais em nossas culturas e nossas formas de interagir com o mundo, talvez não passem de artefatos linguísticos, categorias a partir das quais classificamos certos objetos considerados moralmente relevantes.

Se tais conceitos forem apenas convenções linguísticas, não haverá nenhuma afirmação objetivamente verdadeira sobre eles: não haverá a possibilidade de identificar uma justiça objetiva, uma verdade necessária, uma legitimidade natural. Frente a esse problema, Platão optou por desafiar o senso comum (afirmando que as formas precisam existir) para oferecer uma justificativa mais sólida à percepção comum de que o mundo é uma totalidade perfeitamente ordenada. A filosofia analítica desafiou dois mil anos de platonismo para afirmar que, se desejamos um conhecimento rigoroso, devemos evitar paradoxos e, consequentemente, calar-nos acerca de tudo o que não pode ser empiricamente observável.

Essa opção pelo silêncio termina por revelar uma certa forma de pensamento que não é exatamente platonismo, mas é mais antigo e mais abrangente: a crença na ordem fundamental das coisas. A filosofia analítica nos mostrou que a atividade reflexiva nos leva a admitir certas ideias paradoxais, ou seja, concepções que desafiam a opinião comum das pessoas (doxa). Por mais que o discurso de Frege se recuse a insistir na ontologia grega, ele termina adotando uma metafísica deflacionada: para falar da realidade, precisamos usar conceitos que não estão no mundo, mas que são partes do nosso aparato linguístico.

A Justiça não precisa existir metafisicamente como ideia, para que seja possível discutir se uma condenação penal foi injusta ou não. Platão precisou transformar o sentido das palavras em coisas, para que elas tivessem existência objetiva em um mundo metafísico; os analíticos identificaram essa armadilha retórica e tentaram transformar as palavras em signos que se referem a coisas. De um modo ou de outro, há um desejo de fazer com que seja possível construir um conhecimento rigoroso das coisas, sem que fiquemos atolados no lamaçal dos paradoxos linguísticos, que colocam em risco a imagem que fazemos dos nossos próprios saberes.

Tal como os platonistas, os analíticos têm uma rejeição fundamental pelo caráter paradoxal da linguagem. Ambos os grupos diagnosticam uma tensão entre linguagem e objetos e resolvem essa tensão propondo uma revisão desparadoxalizante: do lado platônico, postula-se a necessidade de a linguagem espelhar as essências; do lado analítico, busca-se a construção de regras semânticas que impeçam a ocorrência de discursos paradoxais.

Olhando em perspectiva, os discursos analíticos causam estranhamento, na medida em que acentuaram a inevitabilidade dos paradoxos, mas ainda assim insistem em construir um conhecimento sem paradoxos. Creio que essa postura vem do reconhecimento de que os paradoxos são incongruências linguísticas: dado o caráter arbitrário das linguagens, seria legítimo evitá-los por meio da construção de regras linguísticas adequadas.

Ainda está presente aí a noção de que existe uma ordem física perfeitamente organizada, que não pode ser bem descrita por uma linguagem científica paradoxal. Podemos construir qualquer linguagem, mas a linguagem que desejamos fazer, como cientistas, é um sistema protegido contra paradoxos. Nesse ponto, o desejo de rigor dos matemáticos se encontra com o desejo jurídico por segurança. O Frege jurídico é Kelsen, que formula também uma lógica, uma linguagem na qual seja possível falar do direito, sem as pretensões essencialistas da filosofia metafísica. Ambos são extremamente importantes em seus contextos, são muito coerentes em seus argumentos, mas conduzem ao mesmo problema: os custos de uma teoria desparadoxalizada são altos demais.

3.3 Aporia da caverna

Entre os vários pontos que o direito e a filosofia têm em comum está o fato de que tanto os filósofos como os juristas produzem conhecimento acerca do seu próprio conhecimento.

Uma filosofia sem paradoxos não pode falar de si mesma, mas apenas de outros discursos, como a ciência. Uma filosofia perfeitamente analítica precisa deixar de ser filosofia, mas não pode deixar de sê-lo, por tratar-se de um discurso sobre os saberes. Uma filosofia sem paradoxos é inevitavelmente um discurso paradoxal.

Uma teoria jurídica sem paradoxos não pode falar de si mesma, mas apenas de outros discursos, como a dogmática jurídica. Uma teoria jurídica analítica precisa adotar o descritivismo naturalista das ciências, precisa aspirar a ser uma ciência jurídica, com objetos empíricos e métodos bem definidos. Uma teoria jurídica sem paradoxos é uma teoria paradoxal, pois ela influencia o objeto que deveria descrever.

Toda afirmação sobre o direito contribui para a transformação ou manutenção do sistema normativo que se busca explicar de forma externa. Toda reflexão humana acerca da nossa capacidade de conhecer o mundo nos impele para um jogo de espelhos que fatalmente nos leva a paradoxos. Nem o direito, nem a filosofia podem escapar de sua vocação para a autorreferência, produzindo discursos que tratam de si mesmos.

Esse tipo de circularidade gera problemas incontornáveis porque ninguém é bom juiz de suas próprias percepções. Nenhum de nós consegue identificar seus próprios delírios como fantasias e suas próprias convicções como crenças. Por isso, as autodescrições dos filósofos e dos juristas se aproximam das autobiografias, que são tão interessantes pelo que mostram quanto pelo que ocultam e distorcem. De modo resumido, o exercício de um autoconhecimento conduz ao problema de que as observações reflexivas se apresentam como uma descrição objetiva de um fenômeno (ou mesmo como a única descrição objetiva possível), mas terminam por fazer apreciações sobre os méritos e sobre a autoridade da própria atividade descritiva.

O espelho que usamos para nos observar nos oferece uma imagem muito diferente do que a que nos daria uma câmera que nos filmasse, pois os espelhos invertem as imagens: tudo que está de frente aparece como se estivesse de costas e o que está na direita aparece na esquerda. Como estamos acostumados a nos olhar no espelho, tomamos a imagem invertida pela nossa verdadeira imagem, o que tende a causar estranhamento toda vez que vemos uma foto na qual nossa imagem aparece “desinvertida”. Essa imagem “objetiva” desafia nossa autoimagem, pois nossos rostos são assimétricos e acaba que a imagem real nos parece uma outra pessoa, desconforto que as câmeras frontais de celulares buscam contornar gerando selfies que simulam espelhos.

Curiosamente, a inversão da selfie faz com que ela nos pareça mais natural, pois o natural não é uma imagem objetiva da realidade, mas uma imagem que emula o mundo que tipicamente percebemos. Ocorre, porém, que não temos como obter um conhecimento objetivo sem que seja um conhecimento produzido pelo olhar humano, que não sabe identificar o quanto seus modos de enxergar determinam o conhecimento dos objetos que são observados.

Além de ser pouco objetiva, a autodescrição tipicamente não leva em conta que, toda vez que descrevemos a nós mesmos (ou atividades das quais tomamos partes), esse processo de (re)construção de narrativas altera as nossas próprias percepções. No direito, uma transformação de perspectivas implica uma alteração fundamental dos objetos: no direito de família, por exemplo, a discussão sobre a legitimidade das relações homoafetivas alterou nossas concepções sobre quem pode se casar. Um debate sobre gênero pode alterar substancialmente os entendimentos acerca dos direitos das pessoas trans. Todo debate sobre um universo simbólico tem o potencial de alterar a sua própria estrutura, uma vez que os significados são definidos pelos processos interpretativos. Inclusive, a utilidade da psicanálise vem justamente desse fato: descrever nossa vida faz com que compreendamos os significados de nossos atos de forma diversa, o que gera uma alteração simultânea nos critérios de observação e na coisa observada (que não são os fatos empíricos, mas a sua significação pessoal e cultural).

Parece impossível construir um olhar neutro, puramente descritivo, sobre objetos simbólicos. Seja porque não existe o ponto arquimediano no qual possamos assentar uma alavanca que nos mova a nós mesmos, seja porque todo processo cognitivo altera a estrutura do objeto observado. Não há saída para esse labirinto: o estabelecimento de hierarquias não resolve o problema porque, ainda que os filósofos apontem os riscos da autorreferência, nossos discursos precisam falar de si mesmos. O principal objeto das narrativas sociais é a própria sociedade, que se reproduz por meio de uma dinâmica narrativa que simultaneamente a transforma.

Tal como ocorre na natureza, a reprodução perfeita conduz à morte. Dado o caráter mutável do ambiente em que os seres vivos estão inseridos, uma reprodução demasiadamente fiel impediria o afloramento das diferenças, cuja acumulação opera lentas transformações no conjunto. Todo universo simbólico é estruturalmente aberto a essa constante mutação: ela não pode ser impedida, ainda que possa haver algum controle sobre os ritmos de transformação. A construção de uma mentalidade literalista e a vedação da interpretação dos textos sagrados pode reduzir a velocidade da mutação, inclusive para níveis que gerem um risco efetivo de desacoplamento com relação ao ambiente.

Entretanto, não é possível proibir que uma linguagem fale sobre si própria. As hierarquias antiparadoxalizantes de Russell têm um custo maior do que os seus benefícios. Os discursos humanos sempre terminam falando sobre si mesmos, numa “dobra” que fatalmente conduz aos paradoxos da autorreferência: discursos que querem descrever o mundo terminam sempre por falar de si próprios, numa paradoxal “subjetividade objetiva”.

Portanto, não há uma superação do paradoxo dentro da linguagem. É assim que compreendo as observações de Frege com relação ao paradoxo que Russell apontou em sua teoria: precisamos admitir que o paradoxo existe, mas não parece possível elaborar uma linguagem isenta dos mesmos problemas (Frege, 1960c). Um dos principais legados de Frege é a consciência de que não podemos construir uma linguagem que deixe de operar com base em sistemas de classificação e, portanto, toda linguagem acabará sendo levada a admitir enunciados acerca de um conjunto que engloba a si mesmo.

Frege mostrou claramente a inviabilidade de construir um caminho linguístico para fora da linguagem. Tal como diagnosticava o antigo taoísmo, uma linguagem que use categorias se torna inevitavelmente paradoxal. Essa percepção inspirou os taoístas a afirmar (como os filósofos gregos...) que os paradoxos estariam na própria linguagem, e não no mundo. Porém, enquanto os gregos insistiram em afirmar o primado do pensamento sobre a linguagem, como se houvesse a possibilidade de alcançar conceitos perfeitos não-linguísticos, Lao Tzu defendeu que a postura do sábio é não falar.

Curiosamente, esta também foi a postura de Wittgenstein no Tractatus: a filosofia analítica indica que somente é possível falar sobre fenômenos empíricos e que, toda vez que a linguagem corresse o risco de dobrar-se sobre si mesma, deveríamos nos calar (Wittgenstein, 1922). Mas o fato é que o próprio Wittgenstein não se calou, pois ele logo percebeu que a função da linguagem não era compreender o mundo, mas construir um mundo de significações.

Quem quer que observe a linguagem como um instrumento para falar objetivamente do mundo perde de vista o fato de que a função social da linguagem é outra: trata-se de um artefato que foi desenvolvido para a coordenação da vida em sociedade e não para fazer ciência. Os gregos construíram a descrição ilusória de que os humanos têm uma racionalidade que lhes permite observar diretamente os padrões de uma ordem natural perfeita e justa. Os biólogos contemporâneos contestam que a função adaptativa de nossas habilidades cognitivas seja esta: a racionalidade começa a ser descrita como uma habilidade capaz de coordenar pessoas, e não de descrever a efetiva verdade das coisas.

Considerando que a vida da espécie humana é um empreendimento coletivo, é provável que não exista uma saída para fora da linguagem. Por isso, Cornelius Castoriadis renova a velha metáfora platônica para dizer que não podemos sair da caverna (1992).

Pensar filosoficamente não é sair da caverna nem substituir a incerteza das sombras pelos contornos nítidos das próprias coisas, a claridade vacilante de uma chama pela luz do verdadeiro Sol. É entrar no Labirinto [...]. É perder-se em galerias que só existem porque as cavamos incansavelmente, girar no fundo de um beco cujo acesso se fechou atrás de nossos passos — até que essa rotação, inexplicavelmente, abra, na parede, fendas por onde se pode passar. (Castoriadis, 1992, p. 10)

O que podemos é andar incansavelmente pelas galerias, dando voltas em becos sem saídas até que esse caminhar em círculo faça abrir rachaduras nas paredes. A saída não está lá para ser percorrida, mas é possível criar novos caminhos. Gradualmente. Com muito esforço. Mas é possível. Não há aberturas que nos conduzam para fora da caverna, mas é possível modificar os túneis por onde transitamos e as formas como vivemos dentro deles.

4. Filosofia e sociedade

Resumo: Este ensaio aborda o papel da filosofia nos processos de transformação social. Sustento que a atividade dos filósofos tem uma grande importância na sobrevivência a longo prazo das sociedades porque os discursos filosóficos incrementam a capacidade adaptativa das estruturas sociais. Toda organização social precisa se transformar para enfrentar as mudanças — tanto nelas próprias quanto nos contextos nos quais elas estão imersas. Proponho uma descrição da filosofia que a aproxima mais da política que da ciência, uma vez que as narrativas filosóficas, tal como os discursos políticos, são elementos fundamentais para a definição do ritmo adaptativo das organizações sociais.

1. Filosofia e crítica social

1.1 Linguagem e sociedade

Os debates sobre o mundo tipicamente não são debates sobre as percepções que temos de um objeto determinado, mas sobre as maneiras corretas de descrever e de classificar um conjunto de fenômenos. Quando começa a vida? Quais são os efeitos colaterais de um medicamento? Qual é o candidato com mais chances de ganhar uma eleição? Perguntas como essas não envolvem a descrição de um fenômeno particular, mas a análise de um grande número de fatos, cuja observação conjunta permite formular os padrões explicativos que chamamos de conhecimento.

Enquanto esses debates estão apenas no plano categorial, poucas pessoas se interessam por eles. Qual o conceito jurídico de pessoa? Quais são os tipos de sentenças judiciais? Todo ato que encerra um processo deve ser chamado de sentença? Nesse plano abstrato, tais discussões podem parecer um exercício burocrático de erudição, uma filigrana acadêmica.

Mas acontece que os resultados desses debates podem ter implicações práticas imensas. Uma transição no que se chama de pessoa pode mudar o estatuto jurídico dos fetos (com reflexos na regulação jurídica do aborto) ou dos animais (que podem vir a ser protegidos contra o sofrimento, tornando-se até mesmo sujeitos de direitos próprios). Quando um biólogo sugere que certos traços culturais têm base genética, é comum que um antropólogo rebata que esses comportamentos precisam ser explicados como elementos de uma cultura. Uma mudança em nossa compreensão sobre a genética pode impactar nos modos como a medicina, o direito e a psicologia lidam com identidades de gênero ou orientação sexual.

Todos esses debates impactam nossa vida justamente porque nossas interações sociais são mediadas por esses tipos de categorias linguísticas. Há outras espécies de animais que dependem de laços sociais, mas é entre os Homo sapiens que a estrutura dos grupos pode ser profundamente impactada por alterações no significado de certas categorias: mulher, liberdade, pecado, culpa, responsabilidade, tolerância. Muitas espécies dependem pouco de laços sociais, visto que sua interação com o ambiente se dá sem essa mediação por um sistema social que cria o nicho ecológico no qual o indivíduo se insere. Já a sobrevivência dos seres humanos depende da capacidade dos indivíduos de realizar esforços coordenados. Não somos os animais mais fortes, nem os mais rápidos, mas somos aqueles cuja capacidade de coordenação social permitiu que a convergência de muitos esforços gerasse resultados altamente eficazes.

Aparentemente, nós não extinguimos os neandertais por eles serem mais fracos ou menos inteligentes, mas porque eles não eram capazes de coordenar esforços para além nos seus núcleos familiares estendidos, numa etapa evolutiva na qual os Homo sapiens já conseguiam formar sociedades clânicas, baseadas na cooperação de múltiplas linhagens familiares (Flannery e Marcus, 2012). Enquanto nossas sociedades também eram limitadas à família estendida, coexistimos (e convivemos e reproduzimos) com os neandertais, até que essa espécie se extinguiu, há cerca de 28.000 anos, durante a chamada Idade do Gelo.

Como é possível a organização social em larga escala dos Homo sapiens? A resposta está em nosso amplo repertório cultural, possibilitado pelo desenvolvimento de uma linguagem abstrata. Flannery e Marcus (2012) afirmam, com precisão, que nós nascemos em famílias, mas que somos iniciados nos clãs (ou em sociedades maiores), nas quais o indivíduo se torna parte integrante do corpo social mediante processos de aprendizagem e ritos de iniciação. A socialização produz seres humanos capazes de atuar de forma coordenada, e para isso é fundamental que eles sejam incorporados a uma cultura: um conjunto de comportamentos, de rituais, de conhecimentos, de valores. Esse conjunto de elementos simbólicos define padrões de interação social que, uma vez praticados simultaneamente por vários integrantes do grupo, permitem uma ação coordenada.

A cultura de uma comunidade é uma mescla de padrões que são repetidos pelos seus membros, o que envolve padrões de comportamentos (modos de vestir, modos de se alimentar, modos de cuidar das crianças, etc.) e também padrões discursivos (narrativas, explicações que descrevem o mundo, enunciação de deveres e de punições). Esses padrões discursivos podem ser entendidos como comportamentos linguísticos, visto a comunicação ser uma interação na qual as pessoas agem. Apesar disso, vamos diferenciar categorialmente esses padrões discursivos (ou seja, a linguagem), porque o agir comunicativo tem características bastante peculiares.

A cultura é o nosso grande desenvolvimento, pois ela molda nossa subjetividade e nos oferece um repertório de conhecimentos que permitem a cada pessoa lidar com a multiplicidade do mundo e a complexidade das possíveis interações sociais. Cada cultura nos oferece uma explicação para o mundo, uma espécie de mapa que simplifica a multiplicidade dos fenômenos observáveis e, com isso, permite que a realidade caiba dentro de nossas capacidades cognitivas. Ao definir um certo horizonte de compreensão, ao estabelecer conjuntos de valores e ao determinar uma série de deveres, a cultura propicia que cada indivíduo desenvolva padrões de interação social relativamente estáveis e que podem ser transmitidos intergeracionalmente.

Outras espécies também são capazes de aprender, mas aparentemente é somente o grupo dos Homo sapiens que desenvolveu disposições e habilidades específicas para ensinar, o que é fundamental para que seja possível transmitir um repertório de comportamentos e percepções tão complexo como as culturas humanas. Somos uma espécie constituída em torno de tradições, de repertórios culturais transmitidos de geração em geração, o que permite níveis de acumulação cultural que são a marca particular da nossa espécie.

O fato de que os seres humanos desenvolveram uma linguagem abstrata e que somos imersos desde o nascimento em um ambiente de interações linguísticas constantes e intensas faz com que cada membro de uma comunidade cultural seja exposto a uma série de narrativas, explicações, interdições e comandos que terminam conformando uma espécie de conhecimento compartilhado sobre o que é o mundo, sobre o que são as pessoas e sobre o que podemos ou devemos fazer.

O senso comum pode ser descrito como um conjunto de informações que se caracterizam apenas pelo fato de serem compartilhadas, sendo que nada garante a sua veracidade ou validade objetivas. Não obstante, dentro de uma perspectiva histórica, o fato de certas informações (e não outras) integrarem esse repertório comum de conhecimentos sugere que tais conhecimentos são bem adaptados o contexto interno (ou seja, da relação entre os membros) e externo (ou seja, da relação com o ambiente) de uma comunidade.

O senso de uma comunidade pode incorporar conhecimentos provenientes de fontes muito variadas. Tradições religiosas, mitos, notícias, discursos de autoridade, livros didáticos, canções famosas, programas de TV, grupos de WhatsApp, tiktoks e tuítes viralizantes: não existe uma fonte unificada de conhecimentos sociais, não existem critérios de incorporação de novas informações e, principalmente, não existe uma decisão acerca do que vai ingressar ou não no senso comum.

Além disso, conhecimento comum não significa conhecimento unânime. Muitas pessoas podem desconhecer parte desse repertório geral de informações (porque são jovens, porque ingressaram tardiamente na comunidade, porque são velhos e não acompanharam os novos movimentos, etc.) e, o que é mais relevante, pode haver discordância de parcelas da sociedade acerca de conhecimentos bastante consolidados, como demonstra a resiliência das teorias da conspiração que animam o terraplanismo e variados negacionismos contemporâneos. O fenômeno global da desinformação indica o quanto somos propensos a acreditar em narrativas que, embora infundadas, são aceitos em nossos círculos sociais e reforçam as nossas próprias intuições.

O conhecimento comum não é um conhecimento alicerçado sobre uma teoria. Ele usa conceitos, mas suas categorias não decorrem de uma formulação explícita e sistemática, visto que os conceitos compartilhados em uma sociedade são aqueles que circulam pelos vários círculos sociais. O critério que define a entrada no senso comum não é o rigor e a solidez de certos enunciados, mas a popularidade que eles são capazes de angariar. Certas afirmações claramente falsas, mesmo absurdas, continuam a ser veiculadas regularmente, como a noção de que usamos somente 10% do nosso cérebro ou a de que vacinas causam autismo.

Todavia, a marca do senso comum não é que ele é constituído por falsidades, e sim por uma mistura de noções que têm graus diversos de solidez e razoabilidade. Essa heterogeneidade, essa mistura de verdades e falsidades, essa falta de critérios e de precisão, todo esse caldo é de uma riqueza ímpar para os escritores, para os poetas, para os diretores de cinema. Além disso, o senso comum é extremamente útil: as verdades compartilhadas são tipicamente capazes de orientar o comportamento das pessoas de forma eficiente porque possibilitam grandes acertos com pouco exercício cognitivo e poucas informações.

Os conhecimentos comuns não estão aí por acaso, mas são o resultado de anos (ou séculos, em alguns casos de milênios) de experiência, e a capacidade humana de manter a integridade de padrões culturais é um dos segredos do sucesso evolutivo de nossa espécie. Nossa dependência da cultura é tanta que se chega a falar que ela representa uma natureza substituta, pois ela é a nossa própria realidade. Não lidamos nunca com fatos brutos da percepção, pois a nossa percepção é sempre modelada pelo nosso horizonte de compreensão e pelos nossos valores, pois essa é a forma específica de funcionamento do nosso sistema nervoso.

A neurociência atual identificou em nós uma série de modos de processamento de informação que faz com que a nossa percepção do mundo dependa da nossa percepção do mundo, em uma relação de feedback que a filosofia chama de círculo hermenêutico. O sentido do todo é dado pelas partes, mas o sentido das partes é definido pelo todo, de tal forma que toda nova informação interfere no modo como ela própria é interpretada. Não existe um lugar neutro de observação (e, portanto, não existe conhecimento objetivo dos fatos) porque todo o nosso aparato cerebral não é capaz de construir uma representação fiel dos fatos, mas somente a de reorganizar as nossas percepções segundo os padrões de atuação cerebral que chamamos de cognição.

Com isso, nunca analisamos fatos brutos, tanto porque a nossa percepção é modelada pelos nossos sentidos quanto porque o significado simbólico dos fatos interfere tanto na percepção quanto na compreensão das implicações de uma nova informação. Parecem-nos mais prováveis as consequências que são mais familiares. Parecem-nos mais convincentes argumentos que confirmam nossas intuições. Nós tendemos a avaliar de que as escolhas que fizemos (ter filhos, votar em certos candidatos, investir em certas ações) são melhores do que as alternativas que tínhamos. Não temos como escapar dessa operação circular da racionalidade. Resta-nos conhecer suas implicações e desenvolver estratégias para lidar com ela.

Em termos formais, essa operação circular faz com que o conjunto dos nossos conhecimentos tenha como elementos várias informações individuais, mas também vários conjuntos de informações e, inclusive, o conjunto integrado de todas as informações das quais dispomos, que é justamente o nosso próprio conhecimento. Com isso, o nosso conhecimento é um conjunto que contém a si mesmo, e essa configuração autorreferente é uma máquina de gerar paradoxos. O primeiro deles é o fato de que o nosso conhecimento se contém a si mesmo.

Conhecer o que já conhecemos parece algo que não poderia nos trazer nenhum benefício, pois aquilo que sabemos, nós já sabemos. Não obstante, sabemos que conhecer os nossos conhecimentos é algo difícil e que nos agrega muito. Mas isso só acontece porque, ao conhecer o nosso conhecimento, aprendemos tantas coisas que o nosso próprio conhecimento é substancialmente alterado. Opera aqui uma espécie de princípio da incerteza: não é possível conhecer a nós mesmos sem nos alterar. A nossa ação de conhecer altera substancialmente o objeto conhecido, de tal maneira que tudo o que falamos de nós mesmos é imediatamente falso, pois se refere a um eu transformado pelos atos de conhecer e de enunciar.

Esse caráter fugidio do autoconhecimento, que nunca pode operar sem gerar paradoxos, está na base da filosofia e da religiosidade. Nós somos parte da natureza e, com isso, falar da natureza é de alguma forma falar de nós mesmos. No nosso discurso sobre a natureza opera a mesma circularidade, embora de forma menos evidente e talvez menos intensa. Todo questionamento filosófico tem como raiz a percepção dos paradoxos gerados pelo conhecimento do mundo que se apresenta como sólido, absoluto, objetivo, mas que é tecido com um conjunto de categorias e percepções que são altamente dependentes do horizonte de compreensão do falante.

O fato de que vivemos imersos em uma realidade simbólica curiosamente nos torna pouco capazes de perceber o caráter simbólico da Realidade. Isso acontece justamente porque a função estabilizadora da cultura se realiza na medida em que ela não se afirma como cultura, como um determinado mapa do mundo, mas como uma descrição objetiva de como as coisas são. Nenhuma religião se afirma como um resultado de desenvolvimentos culturais, mas como uma percepção imediata de uma realidade que extrapola as nossas percepções sensíveis.

As culturas, as religiões, as ciências e os sistemas jurídicos (e todos os sistemas simbólicos em geral) somente são capazes de operar na medida em que se apresentam como um repertório de conhecimentos objetivamente verdadeiros. A única forma de escapar dos paradoxos do conhecimento objetivo sobre o mundo (essa noção completamente sem sentido) é fazer com que esses discursos falem do mundo, sem falar de si mesmos.

As abordagens filosóficas contemporâneas são baseadas especificamente na ruptura dessa vedação, e todas elas implicam alguma forma de reflexividade cuja admissão explícita impede a pretensão de objetividade. Não parece possível manter, ao mesmo tempo, reflexividade e objetividade como elementos de uma mesma visão de mundo, e o reconhecimento dessa impossibilidade é aquilo que Albert Camus chamava de sentimento do absurdo: vivemos em um mundo que não comporta sentidos objetivos e, portanto, no qual não há verdades nem valores objetivamente válidos (Camus, 2019).

E como as coisas impossíveis são as que mais desejamos, o Santo Graal da filosofia moderna é o desenvolvimento de uma teoria que permita falar do mundo ao mesmo tempo com objetividade e com reflexividade. Ao longo do livro, abordaremos algumas das tentativas de enfrentar essa questão espinhosa, que muitas vezes é enfrentada a partir de uma afirmação de que é preciso promover um renascimento de abordagens capazes oferecer um sentido objetivo para o mundo e valores objetivos capazes de organizar as relações humanas. De fato, o fortalecimento das perspectivas tradicionais é um dos movimentos relevantes do mundo atual, o que reforça a relevância do estudo contemporâneo da filosofia.

O reconhecimento racional de que inexiste sentido objetivo em um mundo cultural construído com base em contingências históricas representou uma fonte de sofrimento psíquico intenso para as primeiras gerações que precisaram lidar com esse fato. Quando Darwin assinalou o caráter histórico da espécie humana, sua teoria foi rejeitada por muitas pessoas em função das suas consequências morais (e não de sua inconsistência científica). Quando Nietzsche anunciou a morte dos valores absolutos, essa notícia não foi recebida com alegria. Quando Marx assinalou o caráter histórico (e, portanto, relativo) do direito de propriedade e quando Freud assinalou o caráter fugidio da consciência e da racionalidade, eles tampouco tiveram uma recepção calorosa. Todos eles colocaram em risco as percepções comuns da nossa cultura porque questionaram alguns dos pressupostos básicos das visões tradicionais de mundo: a existência de uma ordem objetiva e de um sujeito objetivo capaz de observá-la.

1.2 Filosofia e crítica

A inexistência de valores e verdades objetivas deixa sem chão pessoas que, durante séculos, viveram dentro de culturas que fornecem uma descrição da realidade que se apresenta como um conjunto de afirmações verdadeiras sobre a natureza e os papéis sociais dos homens. O pressuposto implícito das perspectivas tradicionais é o de que existe uma ordem natural subjacente, que pode ser apreendida pelos homens de alguma forma (investigação, revelação, intuição): a existência de uma ordem objetiva no mundo (Tao, Rta, Dharma, Cosmos, Nomos) exige que uma descrição objetivada ordem seja possível. Existe uma grande variação entre as diversas tradições culturais com relação à confiança de que a investigação racional seja capaz de conhecer a ordem natural, mas existe pouca variação com relação ao fato de que essa ordem natural existe e pode ser conhecida.

Ocorre que, atualmente, é muito difícil ignorar as várias teorias que abordam a natureza e a sociedade a partir de uma perspectiva histórica. Ao longo do último século, essas abordagens ganharam espaço e produziram resultados bastante expressivos tanto na ciência como na filosofia e na técnica. Ocorre, porém, que essas abordagens contrastam de forma muito gritante com a percepção compartilhada pela direita e pela esquerda de que existe um conjunto de direitos humanos objetivamente válidos, sejam eles os direitos liberais (de liberdade, propriedade e tolerância religiosa), os direitos sociais (de justiça social, de acesso à educação e à saúde) ou os direitos identitários (ligados aos direitos de minorias discriminadas). Não parece muito congruente defender a validade objetiva dos nossos valores e a validade relativa dos valores dos outros: é muito difícil reconhecer a relatividade dos valores que nos são tão caros que os tratamos como se fossem sagrados (no sentido de que nos permite caracterizar como má uma pessoa que questiona a sua validade). Nesse embate entre historicidade e sacralidade, que valores devem prevalecer?

Algumas pessoas enfrentaram esse dilema por meio de uma revisão de suas visões de mundo, incorporando nelas os paradoxos, a relatividade e a historicidade. Para estes, a relatividade do mundo é uma verdade desconcertante, que inicialmente gerou um sentimento de luto pelas tradições que tanto nos eram caras (deuses, direitos naturais, valores morais), mas que deveria ser superado com o tempo, por meio do desenvolvimento de teorias que incorporem os paradoxos da reflexividade (e que são chamadas tipicamente pelo nome cunhado por Lyotard: narrativas pós-modernas) (Lyotard, 2009).

Outras pessoas reagem a essa incongruência mediante a tentativa de redimensionar as teorias de modo que seja mantido ao menos um certo espaço para as verdades objetivas e os valores absolutos. Quando Lyotard afirmou na década de 1970 que já era passada a hora de superar o luto (2009), ele certamente foi muito otimista, tendo em vista que a maioria das pessoas parece mais propensa a reforçar sua visão de mundo contra os desafios da historicidade do que a desenvolver uma visão de mundo que incorpore uma historicização de sua própria experiência.

Para estas pessoas, os relativismos pós-modernos devem ser abandonados, cabendo reforçar os valores objetivos que estruturam as visões tradicionais. Não vivemos hoje uma onda de historicização da cultura, mas um conflito crescente entre esse movimento de historicização e um renascimento das visões tradicionais: um retorno ao mito da ordem e da sensação de segurança promovida por uma concepção de mundo que se apresenta como objetiva na medida em que nos possibilita justamente o conforto emocional de equilibrar nossas intuições (de que deve existir um sentido objetivo para o mundo) com nossos conhecimentos (que devem nos oferecer uma explicação objetiva para um mundo dotado de valores e fatos objetivos).

Trata-se, pois, de uma época barroca, em que muitas pessoas se sentem divididas entre o reconhecimento do caráter histórico do mundo e o sentimento de que é imperativo reconhecer alguns pontos imutáveis, que permitam um julgamento moral objetivo. Para as pessoas em geral, é desafiador viver em uma era na qual não estão claros os parâmetros adequados para conferir sentido à nossa existência. Para a filosofia, esse é um momento de peculiar relevância, pois, como afirma Richard Rorty, as pessoas parecem ouvir os filósofos somente quando o mundo está desmoronando e, com isso, a cartografia oferecida pelo senso comum não é percebida como um guia adequado (2005).

Nos momentos em que estamos dispostos a rever a nossa cartografia, a filosofia ganha espaço social, justamente porque uma de suas atividades mais recorrentes é justamente a de realizar uma reflexão detida sobre os limites do nosso conhecimento comum do mundo e sobre as possibilidades de desenvolver um entendimento mais adequado da realidade. Como sintetiza Kwame Appiah, a filosofia parte de uma “reflexão sistemática sobre crenças pré-reflexivas muito difundidas acerca da natureza da humanidade, de nossos objetivos e de nosso conhecimento sobre o cosmo e sobre nosso lugar nele” (Appiah, 1997, p. 129). E são justamente essas crenças que começam a gerar problemas nos momentos de crise, quando os resultados obtidos pela aplicação dos conhecimentos compartilhados discrepam muito dos resultados esperados.

O papel típico da filosofia não é aprimorar o senso comum, mas oferecer uma alternativa a tais formas de ver o mundo. Enquanto os sábios estão comprometidos em aprimorar os conhecimentos tradicionais, fazendo pequenas reformas e adaptações, a filosofia tende a desenvolver outras formas de ver o mundo, que poderiam substituir as perspectivas tradicionais.

Em toda sociedade é possível identificar um sistema de conceitos, ou, mais precisamente, um conjunto de sistemas conceituais interligados, que organizam a compreensão de mundo e a interação social dos membros dessa comunidade. Esse conjunto de concepções muitas vezes é chamado de filosofia, e é nesse sentido que normalmente se fala de uma filosofia oriental ou de uma filosofia ameríndia. Exemplo desse uso foi uma obra de Placide Tempels, de 1945, chamada A filosofia Bantu (Tempels, 2006). Tempels era um missionário franciscano belga que viveu no Congo Belga entre 1932 e 1962 e que, ao refletir sobre os motivos pelos quais o povo bantu impermeáveis à conversão ao cristianismo, concluiu que isso decorria do fato de que eles tinham uma filosofia própria, com um sistema conceitual muito diferente do europeu.

A abordagem de Tempels partia do pressuposto de que “todo comportamento humano depende de um sistema de princípios”, mas afirmava que os próprios bantu ainda não eram capazes de identificar claramente o conjunto de princípios nos quais eles estavam imersos Bantu (Tempels, 2006). Como os bantu não tinham uma descrição sistemática dos seus próprios conceitos, Tempels assumiu a tarefa de realizar tal sistematização, utilizando como base o repertório conceitual da filosofia europeia, especialmente a noção de ontologia.

Esse desafio partia da abordagem antropológica da etnografia, entendida então como uma disciplina voltada a descrever as culturas de povos primitivos, mas dava um passo além ao tentar compreender o pensamento subjacente às práticas sociais dos povos analisados. Por esse motivo, essa forma de abordagem foi chamada criticamente por Paulin Hountondji de etnofilosofia (Appiah, 1997).

A abordagem de Tempels teve sucesso ao contestar a noção vigente de que os povos considerados primitivos não tinham um pensamento abstrato, e contribuiu decisivamente para sedimentar a noção de que os povos africanos tinham uma ontologia própria, baseada na ideia de uma “força vital” inerente a cada objeto. Esse interesse nos repertórios conceituais de culturas não-europeias é visível em várias abordagens jurídicas contemporâneas, especialmente no comprometimento do novo constitucionalismo latino-americano no sentido de desenvolver sistemas constitucionais que incorporem elementos das cosmovisões indígenas, especialmente uma noção de Bem Viver (Sumak Kawsay) identificada “con la armonía con el entorno social (la comunidad), con el entorno ecológico (la naturaleza) y con el entorno sobrenatural (los Apus o Achachilas y demás espíritus de un mundo encantado)” (Recasens, 2014).

Embora as perspectivas contemporâneas incorporem uma tentativa explícita (e legítima) de superar o eurocentrismo reinante na filosofia e nas ciências sociais, existe um debate aceso acerca do que devemos chamar de filosofia no contexto atual. Para muitos, inclusive para Hountoudji e Appiah, a etnofilosofia não é propriamente uma atividade filosófica, mas antropológica: compreender os sistemas de pensamento de certas sociedades é uma atividade relevante, mas a atividade própria da filosofia não é a de descrever sistemas de pensamento, mas a de operar uma análise crítica desses sistemas, explorando os seus paradoxos, suas potencialidades e seus limites.

A filosofia não tem uma abordagem descritiva, nem mesmo compreensiva, e sim uma abordagem crítica. Ela desconstrói sistemas de pensamento e propõe alternativas categoriais que deveriam ser capazes de superar as dificuldades diagnosticadas pelo filósofo. Embora boa parte dos filósofos passe sua vida discutindo sobre os pensamentos de outros filósofos (em uma autorreferência filosófica que pode gerar um pensamento esotérico), os filósofos tendem a preocupar-se também com as categorias socialmente hegemônicas, o que faz com que eles sejam um dos grupos que mais criticam as pseudoverdades da tradição e o senso comum de uma comunidade.

Essa postura crítica faz com que os filósofos muitas vezes questionem os dogmas que uma sociedade pretende que não sejam questionados, o que os coloca muitas vezes em uma tensão muito grande com as instituições sociais legitimadas pela cultura e responsáveis pela reprodução dos valores hegemônicos. Não é por acaso que os filósofos não costumam ter uma imagem muito boa em uma sociedade que busca proteger suas tradições e reproduzir uma determinada ordem social. Nesse contexto, não causa estranhamento o fato de que a tradição apresente sérias ressalvas (para dizer o mínimo) quanto a um tipo de discurso que questiona frontalmente a sua autoridade. Numa sociedade patriarcal e conservadora, a resposta com relação ao questionamento da autoridade tende a ser violenta.

Desde Sócrates, os filósofos sofrem simultaneamente duas acusações: de um lado, são vistos como pessoas que vivem nas nuvens, pensando em coisas inúteis, sem dar atenção suficiente aos problemas efetivamente vividos pelas pessoas; de outro, são considerados perigosos para a ordem social. Com isso, as tradições hegemônicas e os governos que as corporificam muitas vezes tratam o filósofo como um inútil subversivo, o que os coloca no grupo de pessoas que não cabe tolerar, mas combater.

Talvez essa acusação seja até merecida, considerando que é muito parecida com a condenação que Platão fazia aos artistas: sua arte não deveria ter lugar na porque cria versões falsas da realidade (e vejam que fake news é uma categoria nova para lidar com um problema velho...) e, com isso, contribuem para a propagação de mitos e falsidades. Ocorre que, cada um à sua maneira, os filósofos e os artistas partem de interpretações das interações humanas que eles observam e as descrições que eles fazem da realidade recorrentemente se opõem às descrições hegemônicas de uma tradição cultural. O mérito das obras filosóficas, assim como das obras artísticas, muitas vezes está na originalidade com a qual elas percebem os paradoxos das nossas formas de organização social, mostrando que a realidade que vivemos difere bastante de nossas formas comuns de descrever essa realidade.

Em ambos os casos, a inutilidade é uma acusação peculiar. Artistas e filósofos talvez sejam inúteis, por não contribuem para a produção de utilidade econômica. Entretanto, os produtos de seus trabalhos interferem diretamente nas formas de sociabilidade, pois eles são alguns dos principais elementos envolvidos na forma como uma sociedade constantemente transforma suas formas de autocompreensão. A cigarra pode não produzir comida, mas pode aumentar a coesão social ou inspirar revoluções.

Alguns filósofos inspiram revoluções de grande escala. A maior parte dos filósofos é esquecida ao longo do tempo, pois eles oferecem alternativas que não se tornam hegemônicas. Porém, alguns deles são lembrados pelo fato de que foram capazes de compreender os limites do seu tempo e de oferecer instrumentos conceituais capazes de superá-los. Daqui a mil anos, quando o mundo contemporâneo já for antigo, imagino que os historiadores ensinarão que, no século XX, uma filósofa francesa fez uma afirmação paradoxal para a sua época, mas que desestabilizou definitivamente uma das noções que não foram problematizadas por milênios de pensadores homens. Em 1949, quando Simone de Beauvoir publicou uma obra em que refletia sobre a condição feminina e sobre o fato de que as mulheres estavam em pleno processo de destronar o mito da feminilidade, ela fez sua afirmação mais conhecida: On ne naît pas femme : on le devient, que podemos traduzir como “Não se nasce mulher: torna-se” (Beauvoir, 1949).

Essa pequena frase, em sua concisão e elegância, introduz uma série de fraturas no pensamento filosófico de sua época. O uso de uma construção impessoal sugere que aquele sujeito que nasce não é nem mulher, nem homem, e que o transformar-se em mulher é um processo que ocorre ao longo da vida de um ser. Beauvoir bem poderia ter dito que as mulheres não nascem mulheres, mas isso a colocaria como uma observadora externa de sua condição, e não na posição reflexiva de quem fala da própria condição. De fato, esta seria uma construção mais próxima da frase de Erasmo que parece tê-la inspirado: “l'homme ne naît pas homme, il le devient”, ou seja, “o homem não nasce homem, ele se o torna” (Mann e Ferrari, 2017). A escolha do sujeito impessoal aumenta a tensão da frase porque uma filosofia que tende a falar do lugar falsamente impessoal do masculino, como nas célebres frases “o homem é um animal social”, “o homem é o lobo do homem”.

Ante a afirmação de que não se nasce mulher, cria-se o estranhamento que ocorreria ao afirmar que “não se nasce filha” ou “não se nasce professora”, em vez de falar que não se nasce filho ou professor. Esse estranhamento é contido em certas traduções brasileiras que usam o “Ninguém nasce mulher” (Beauvoir, 2009), pois esse “ninguém” pode ser ouvido sem estranhamento pelos leitores homens que, evidentemente, não nasceram mulheres. Essa fratura do caráter impessoal do masculino é acentuada pela sugestão de que qualquer ser humano que nasce pode se tornar mulher, desestabilizando a noção essencialista e fatalista de que “a pessoa é para o que nasce” (Berliner, 2020).

O deslocamento mais importante da frase de Beauvoir está no fato de que ela coloca em xeque séculos de utilização da distinção entre masculino e feminino como se essa divisão se tratasse de uma diferença natural. É claro que certos seres humanos nascem com a carga genética XX, em vez de XY, mas não é essa a questão que Simone de Beauvoir pretende assinalar. Quando ela afirmou que mulher é uma categoria usada para designar um estado que é adquirido, ela abriu espaço para uma distinção que se consolidou nos anos 1980 a partir da diferenciação entre o sexo (biológico) e o gênero (cultural).

“Gênero” é uma categoria artificial, socialmente construída, de forma que não faz sentido algum buscar o significado natural de ser mulher, ou de ser homem. Toda categoria construída pode ser desconstruída, pode ser politicamente reconfigurada, sem que isso constitua alguma forma de desvio contra a natureza. Numa tradição filosófica que identifica o bem com o natural, ela opera uma distinção conceitual que até hoje não foi bem digerida pela parte da sociedade que chama essa divisão categorial de ideologia de gênero.

Se o gênero é uma construção social, podemos multiplicar o número de gêneros o quanto quisermos, pois não há limites para a nossa capacidade de criar novas categorias. Além disso, é preciso desligar a questão do gênero de outra que normalmente vinha agregada a ela, que é a do desejo sexual. No fim do parágrafo citado, Simone de Beauvoir já afirmava que:

Até os 12 anos a menina é tão robusta quanto os irmãos e manifesta as mesmas capacidades intelectuais; não há terreno em que lhe seja proibido rivalizar com eles. Se, bem antes da puberdade e, às vezes, mesmo desde a primeira infância, ela já se apresenta como sexualmente especificada, não é porque misteriosos instintos a destinem imediatamente à passividade, ao coquetismo, à maternidade: é porque a intervenção de outrem na vida da criança é quase original e desde seus primeiros anos sua vocação lhe é imperiosamente insuflada. (Beauvoir, 2009)

Simone de Beauvoir não formulou os conceitos usados no debate atual, mas abriu espaço relevante para que certas distinções fossem percebidas e, posteriormente, designadas por categorias autônomas. Ela reconheceu a incapacidade do repertório conceitual de sua época para compreender a complexidade da identidade feminina e buscou caminhos alternativos para descrever o processo de tornar-se mulher. A partir de um olhar contemporâneo, é evidente a pobreza da nossa tradição cultural para lidar com o complexo fenômeno da sexualidade, que não cabe no binômio homem/mulher. Essas categorias naturalizam o que não é natural, não lidam com a identidade de gênero das crianças e não oferecem um lugar adequado para acomodar uma intersexualidade que desafia o binarismo da distinção sexual padrão.

Essas tensões entre a realidade descrita e os conceitos usados para a descrição nos acompanham desde que temos uma linguagem abstrata e elas são os elementos motivadores do labor filosófico, mas também do labor científico. Tanto cientistas como filósofos, analisando os modelos conceituais disponíveis e as consequências de sua aplicação, propuseram modelos conceituais alternativos, por meio de estratégias de distinção (criando novos conceitos onde as categorias existentes falhavam por tratar fenômenos diversos a partir do mesmo conceito), de fusão (abandonando distinções conceituais que não faziam sentido) e de redimensionamento (alterando as fronteiras dos conceitos para que eles se acoplassem melhor à realidade).

Quando os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela propuseram uma definição alternativa de vida (1995), eles atuaram como biólogos ou como filósofos? Quando Einstein propôs a ideia de que a gravidade não é uma força, mas uma distorção no espaço-tempo, como devemos classificar essa contribuição? Filosófica ou científica? Esse problema acentua o fato de que o conceito não é uma propriedade dos filósofos. Os filósofos não são os formuladores dos conceitos, não são os únicos inventores de novas categorias, que são formuladas em todas as atividades humanas mediadas por interações linguísticas: as artes, as ciências, as religiões, a política, em todas essas áreas podem surgir novas categorias.

Entre os antigos, de fato, não é possível oferecer uma distinção clara entre ciência e filosofia, pois a perspectiva antiga entendia que os filósofos deveriam oferecer categorias que refletissem a realidade do mundo, e é isso que os cientistas normalmente fazem. Na modernidade, a filosofia passou a ter um objeto diferente das ciências, por se concentrar em questões de ordem metafísica, enquanto as ciências se concentravam em questões de natureza empírica. Porém, a ideia de que os conceitos deveriam espelhar a realidade era compartilhada por esses discursos.

É apenas na contemporaneidade que fazemos uma releitura linguística dessas relações, identificando que os filósofos se debruçavam (conscientemente ou não) sobre os limites dos próprios conceitos, concentrando-se nas interações conceituais (dos conceitos entre si) e não nas interações entre os conceitos e o mundo. Os cientistas estudam fatos empíricos e criam sistemas conceituais que tentam ser capazes de descrever e explicar o mundo. Os filósofos contemporâneos não estudam diretamente esses fatos, mas analisam diretamente os sistemas conceituais, o que faz com que eles possam estudar os discursos científicos, sem serem eles próprios cientistas. Mas as inovações, que interessam a todos, podem vir de qualquer lugar: da ciência, da filosofia, das artes, da política, da propaganda. Não há um lugar específico para a criatividade e para a originalidade.

Não precisamos desenvolver ainda mais esse problema porque, de fato, tampouco precisamos defender um lugar autônomo para a filosofia. Podemos deixar a filosofia como o nome de um estilo, de um enfoque, mas não de uma disciplina autônoma, definida por uma forma específica de analisar um objeto. De certo modo, esse é o ganho da categoria socrática de filosofia, de um amor pelo conhecimento que não exige o seu domínio. Caracterizar essa abordagem como uma filia, e não como uma sophia, era e continua sendo revolucionário. Não nos importa quem cria os conceitos, quem os inventa. Pode ser o artista, o político, mesmo o filósofo. Mas é tipicamente o filósofo que submete os modelos conceituais a um teste de consistência, avaliando em que medida eles contribuem para o nosso esforço reflexivo contemporâneo.

Por isso, nem as crenças compartilhadas, nem os sistemas formulados pelos filósofos anteriores são o ponto de chegada da filosofia. Eles são objetos acerca dos quais o filósofo reflete, servindo antes como ponto de partida. Isso acontece justamente porque o trabalho filosófico não é voltado meramente à descrição dos sistemas de pensamento culturalmente hegemônicos, envolvendo também uma tentativa de os superar por meio do desenvolvimento de formas alternativas de entender o mundo.

A postura crítica dos filósofos e dos cientistas não deve representar uma desvalorização das tradições, especialmente de sua fundamental importância histórica: a filosofia e a ciência, em sua imensa capacidade de contestar as tradições (e de renová-las), somente existem hoje porque em outros momentos houve tradições culturais estáveis, capazes de estimular uma atuação coordenada de seres humanos segundo leis que não eram justificadas argumentativamente, mas transmitidas por mecanismos consuetudinários.

A cultura é plástica, e essa maleabilidade permite que os seres humanos se adaptem a uma infinidade de contextos de maneira bastante rápida. Mas a cultura é também estável, permitindo que os padrões que garantiram essa adaptação ao ambiente se projetem no tempo. Por dependermos simultaneamente de plasticidade e estabilidade, a cultura que desenvolvemos está em um constante processo de transformação, cujo segredo está no seu ritmo: uma transformação rápida o suficiente para que seja possível desenvolver configurações mais eficientes, mas lenta o suficiente para garantir que as mudanças não dissolvam as estruturas sociais que garantiram a sobrevivência da comunidade.

Esse mesmo ritmo também pode ser percebido na estrutura básica de todos os seres vivos da terra: um código genético que se transforma de modo lento (por meio de mutações e de cruzamentos), em mudanças bastante discretas, que permitem uma transformação constante das populações, mudanças essas que se perpetuam (ou não) por meio do lento processo de seleção natural. A seleção natural é o processo pelo qual os indivíduos discretamente diversos de seus pais sobrevivem (ou não) ao ambiente em que estão inseridos e, com isso, toram-se capazes de gerar descendentes e, com isso, alterar a composição média da população que constitui uma espécie.

No caso das configurações sociais, não existe propriamente um código genético transmitido entre gerações, mas existem vários elementos que possibilitam a manutenção de padrões culturais. Essa multiplicidade de mecanismos possibilita que a cultura tenha elementos com diversos graus de plasticidade: certas partes da cultura podem ser alteradas de modo mais rápido (como hábitos alimentares ou modos de vestir ou de falar), mas outras partes são dotadas de mecanismos mais fortes de garantia de estabilidade. Não existe apenas um ritmo controlado na variação cultural, mas podem coexistir vários ritmos de variação, além de vários níveis de tolerância à diferença.

Isso acontece não apenas com as sociedades humanas, mas com várias outras espécies, cujas configurações culturais são muito relevantes para a interação dos indivíduos e para os seus comportamentos. No caso dos humanos, contudo, a existência da linguagem abstrata e de uma série de vínculos simbólicos viabilizou um grau de plasticidade comportamental muito maior do que em outras espécies, bem como uma velocidade de mudança extremamente alta. Essa velocidade tem seus custos: a possibilidade de introduzir modificações adaptativas também é uma abertura para introduzir modificações que levam à rápida extinção de certas comunidades.

Essa situação faz com que a filosofia tenha um papel importante para a sobrevivência da espécie: ao representar uma paradoxal instância reflexiva sobre os sistemas de categorias da própria cultura, a filosofia permite simultaneamente uma maior abertura para a mudança e um maior controle das mudanças, visto que todo sistema alternativo de conceitos será submetido a uma análise minuciosa e a uma crítica sistemática. Uma sociedade com filosofia aumenta o seu grau de criticidade. Um direito com filosofia terá instrumentos mais adequados para selecionar as categorias mais adequadas, entre as várias inovações teóricas produzidas por políticos, juízes e advogados.

Uma cultura jurídica com uma filosofia forte dificilmente será tomada de assalto por um populismo jurídico, por categorias autoritárias, por discursos que apelam para nossos sentimentos de esperança e de medo, mas que não oferecem sistemas conceituais capazes de lidar com a complexidade do mundo contemporâneo. Em um ambiente político marcado por simplificações atrozes e por um discurso emocional pouco argumentativo, o estudo da filosofia contribui para que os juristas tenham um maior grau de exigência com relação ao repertório conceitual construído pela dogmática, especialmente pelas inovações conceituais recentes: princípio da proporcionalidade, responsabilidade penal das pessoas jurídicas, personalidade jurídica de entidades não-humanas, integridade como critério de interpretação, autonomia sistêmica como um bem a ser buscado.

Essas propostas nem sempre vêm dos filósofos. Mas refletir sobre elas é um papel da filosofia jurídica contemporânea, e uma análise adequada dessas inovações somente é possível a partir de um estudo histórico sobre os padrões argumentativos que já foram utilizados e sobre as funções historicamente desempenhadas pelo direito.

2. A dúvida filosófica

2.1 As perguntas da filosofia

Como disse Rorty, a importância da filosofia tende a ser reconhecida “quando as coisas parecem estar desmoronando” (Rorty, 2005, p. 247). Em tempos de relativa estabilidade social, quando não existem muitas dúvidas sobre o caminho correto a seguir, o filósofo se torna uma figura marginal, como aconteceu em boa parte do século XIX, época em que o iluminismo se tornou uma espécie de tradição hegemônica.

Porém, quando uma pandemia gera um contexto que desafia nossas estratégias usuais, precisamos refletir sobre uma série de questões que não eram problematizadas no contexto anterior: pode um governador declarar lockdown de uma cidade inteira? Quando a China isolou a cidade de Wuhan, o mundo ficou perplexo e muitos imaginamos que isso seria impossível nas democracias ocidentais. Quando a Itália isolou o país inteiro, essa medida parecia insólita, e logo se tornou normal. Um novo normal, como tem sido tão repetido ultimamente.

Nesse novo normal, será que devemos abdicar de nossas liberdades para que um Estado forte seja capaz de garantir nossa vida e nossa saúde? Será que o colapso hospitalar legitimaria a estatização dos hospitais ou a gestão pública das UTIs privadas? Pode um governo criar passes livres para as pessoas que já desenvolveram anticorpos? Deve ser considerado ilícito que empregadas domésticas fiquem isoladas nas casas de seus patrões? Como podemos gerir, de modo legítimo, a fila de UTIs durante um colapso hospitalar?

Essas são perguntas cruciais, mas não são perguntas da filosofia. São perguntas do Direito: que direitos e deveres nós temos nesse contexto atípico? Trata-se de questões que a filosofia não tem como nem por que responder. O que interessa de fato à filosofia é que as novas respostas a essas questões podem evidenciar mudanças importantes nas nossas formas de ver o mundo. Pode ser que as pessoas abandonem o conceito de emprego, que hoje é tão importante, mas que cem anos atrás era compreendido a partir do vínculo civil de prestação de serviço. Talvez perca relevância a noção de jornada de trabalho, como forma de medir a extensão dos serviços a serem prestados. Pode ser que a percepção social dos riscos sanitários altere nossas noções de liberdade. Mas também é possível a presente emergência sanitária não modifique substancialmente as categorias por meio das quais descrevemos e avaliamos o mundo.

A filosofia se interessa especialmente pelos modelos conceituais que utilizamos para explicar o mundo que nos cerca. Quando um sociólogo se pergunta “quais são as práticas sociais legítimas?”, ele normalmente quer saber quais são os padrões de comportamento aceitos em uma certa comunidade. Quando um jurista faz a mesma pergunta, ele deseja saber quais são os padrões obrigatórios de conduta dentro dessa comunidade. Já os filósofos contemporâneos não buscam saber o que fazemos (tarefa que ficou a cargo dos cientistas), nem determinar o que devemos fazer (tarefa que ficou a cargo dos juristas), mas investigar com cuidado quais são os modos pelos quais explicamos o mundo e justificamos nossas decisões.

Os filósofos antigos não tinham essa preocupação concentrada nos discursos, que somente se tornaram o objeto principal da filosofia no início do século XX. Na Antiguidade, os filósofos buscavam descobrir a verdade por meio do uso criterioso da razão. Os antigos filósofos gregos identificaram que havia um descompasso entre as percepções hegemônicas e o conhecimento verdadeiro, sendo que muitas das opiniões socialmente compartilhadas não passavam de simulacros: de ideias falsas com aparência de verdade. As ideias absurdas não eram tão perigosas, porque elas eram facilmente detectáveis. Mas falsidades verossímeis podem conduzir uma comunidade ao desastre, na medida em que elas nos oferecem diagnósticos equivocados e terapêuticas inúteis ou mesmo nefastas.

O espetáculo midiático que envolve a presente pandemia parece corroborar a antiga tese de que vivemos imersos em sombras. A cada semana aparece um novo remédio milagroso, que logo se mostra ineficaz. A cada dia aparecem pesquisas científicas com conclusões inovadoras, mas que são refutadas por pesquisas mais sólidas realizadas na semana seguinte. Governos adotam políticas com base nas intuições dos governantes e nos seus interesses eleitorais, deixando de lado as poucas evidências que parecem sólidas. Lemos os jornais e não temos critérios adequados para diferenciar o que é verdade do que é fake news.

A pandemia de covid-19 nos deixou imersos em um grande sentimento de incerteza. Não sabemos diferenciar claramente o que é verdade e o que é simulacro. Não sabemos se o distanciamento social é a estratégia adequada. Não sabemos qual é a distância segura que devemos manter. Não sabemos com clareza quais são os riscos envolvidos na reabertura das escolas. Não temos certezas sobre os nossos mapas, sobre as nossas bússolas, sobre os nossos protocolos e procedimentos. Quando a incerteza chega a esse grau absurdo que enfrentamos no início de 2020 (e que continuamos enfrentando mais de dois anos depois...), resta clara a importância de nos voltar para a filosofia e para seu milenar exercício de separar as verdades dos simulacros.

No caso específico do direito, não sabemos como as instituições judiciárias deveriam reagir a esse momento de crise. Não temos certeza sobre a competência dos juízes para decretar medidas de isolamento, pela necessidade de proteger a vida e a saúde das pessoas. Tampouco sabemos se os magistrados deveriam se abster de avaliar as determinações de reabertura do comércio, em respeito à autonomia das autoridades eleitas.

Frente a essa multiplicidade de dúvidas sobre quais são as melhores formas de tomar decisões adequadas ao nosso tempo, pareceria razoável concluir que deveríamos nos dedicar com mais afinco ao estudo da filosofia do direito.

Entretanto, esse diagnóstico me parece equivocado, por estar ligado à concepção grega de filosofia, entendida como um caminho seguro para alcançar as mais fundamentais verdades. Minhas influências filosóficas estão ligadas ao historicismo e à filosofia da linguagem, o que me faz pensar que o filósofo não é o melhor profissional para aos juristas as melhores formas de tomar decisões, as melhores formas de governo, as metodologias científicas mais adequadas, os cânones hermenêuticos a serem adotados.

Creio que a inconsistência desse diagnóstico fica mais clara quando transitamos para o campo das artes. Não parece muito promissora a ideia de que um filósofo poderia ensinar a um artista as melhores formas de compor músicas. Existe uma dúvida grande na sociedade contemporânea sobre o que deve ser considerado arte e, por isso, seria proveitoso convidar os filósofos para dialogar com os artistas sobre os critérios que deveríamos usar para diferenciar a arte da não-arte (artesanato, produções técnicas, entretenimento, propaganda, etc.). Porém, não parece que o estudo da filosofia da arte auxiliaria um artista a desenvolver melhores meios de expressão.

Isso não significa que a filosofia seria inútil para o artista, mas apenas que ela não auxiliaria diretamente um músico em seu processo criativo. A filosofia pode auxiliar um músico a avaliar a originalidade de sua produção e a compreender melhor o modo como ela dialoga com outras obras e outras linguagens. O desenvolvimento de uma consciência filosófica pode influir na produção musical, mas o conhecimento filosófico não é necessário para a atividade artística.

No campo do direito, ocorre um fenômeno semelhante. O estudo da filosofia pode auxiliar os juristas a compreenderem melhor o significado de sua própria atuação, de seus modos de conhecer, de suas estratégias retóricas. Porém, a filosofia não é capaz de nos ajudar a encontrar a verdade objetiva, os padrões corretos, os valores naturais. Essa era a ilusão dos filósofos gregos, que achavam ser capazes de sair da caverna. Na contemporaneidade, é mais comum encontrarmos filósofos que consideram que a caverna não tem saída (não é possível olhar o mundo a partir de fora, porque fazemos parte dele), mas que é possível compreender melhor as nossas formas de perceber e descrever o mundo a partir de dentro da própria caverna labiríntica em que nos encontramos (Castoriadis, 1999).

2.2 Entre dúvidas e convicções

A filosofia pode impactar nas práticas sociais, mas isso não deve ser entendido como uma busca pelas verdades inerentes à ordem natural do mundo. O estudo da filosofia da medicina pode fazer com que um médico passe a observar algumas dimensões da saúde que não lhe chamavam atenção, e essa mudança de perspectiva pode alterar o seu modo de diagnosticar doenças e de prescrever tratamentos. O estudo da filosofia do direito pode fazer com que um juiz seja mais consciente do modo como sua visão de mundo interfere em suas decisões, e essa reflexividade pode interferir no seu modo de tomar decisões.

Se a filosofia tem essa potencialidade transformadora, não é pelo fato de que ela nos ajuda a gerir um excesso de incertezas, e sim pelo fato de que temos pouca incerteza sobre nossas formas de ver o mundo. Temos dúvidas, muitas dúvidas, sobre como o mundo é, sobre as consequências prováveis de uma decisão, sobre as melhores estratégias argumentativas. Mas essas são dúvidas com relação ao próprio mundo, não são incertezas relativas a nossa capacidade de conhecer. Para enfrentar esse tipo de incerteza sobre fatos, o mais adequado é estudar uma ciência que realize estudos empíricos (psicologia, sociologia, economia) ou estudar uma teoria dogmática que desenvolva protocolos de decisão (como as teorias jurídicas ligadas a cada ramo do direito).

A dúvida que a filosofia nos ajuda a enfrentar tem outro objeto: trata-se da incerteza sobre os modelos que utilizamos para explicar a realidade. Desde o início do século XX, a filosofia adota tipicamente a uma visão historicista radical, negando a existência de uma ordem objetiva de valores que possa ser descoberta por meio de uma reflexão racional. Essa perspectiva apresenta todas as nossas concepções como modelos de compreensão por meio do qual construímos discursos que explicam o mundo por meio da linguagem.

A filosofia não é um espelho da natureza (Rorty, 1995), que reflete as verdades, mas é uma lente que construímos para criar os mapas que chamamos de realidade. As incertezas que a filosofia nos ajuda a gerir não são nossas dúvidas sobre como o mundo é, mas nossas dúvidas acerca de nossa capacidade de compreender o mundo. E me parece que a maioria das pessoas não tem muitas dúvidas acerca de seus próprios modelos. De fato, a maioria das pessoas sequer trabalha com a ideia de que ela utiliza modelos cognitivos contingentes, valores historicamente determinados, conceitos fabricados em contextos socais específicos. Persiste no senso comum a ideia de que existe uma ordem natural, composta de valores naturais e verdades objetivas, e de que deveríamos dispor de metodologias capazes de desvendar todos esses padrões invisíveis.

Se existe um motivo pelo qual os estudantes de direito de hoje (e não apenas de hoje...) deveriam cursar uma matéria de filosofia do direito, é justamente o fato de que não temos dúvidas suficientes para enfrentar os desafios contemporâneos. A dúvida estimula o diálogo, a investigação, a busca de novos caminhos. Se os estudantes de direito tivessem um excesso de dúvidas, a estratégia mais adequada para lidar com esse transbordamento de incertezas não seria inserir no currículo disciplinas de caráter filosófico. Pelo contrário, seria mais adequado que cada disciplina jurídica gerenciasse as dúvidas teóricas que fazem parte do seu campo. As teorias do direito comercial, do direito constitucional ou do direito penal têm plena capacidade para organizar as perplexidades que temos sobre cada um desses âmbitos e a desenvolver categorias teóricas mais adequadas para enfrentar o grande desafio dos juristas: decidir adequadamente em um cenário de dúvidas insanáveis e informações limitadas.

Nesse contexto de excesso de dúvidas, questões mais gerais sobre o direito poderiam ser tratadas de forma satisfatória nos cursos introdutórios, como aliás ocorre em várias áreas do conhecimento. Afinal de contas, o direito é uma disciplina técnica que forma pessoas para exercer uma atividade profissional. Inserir filosofia do direito nos cursos jurídicos é semelhante a tornar obrigatório para os músicos o estudo da filosofia da música, ou para os médicos da filosofia da medicina. Na UnB, por exemplo, não há disciplinas filosóficas no currículo de Música e a Filosofia da Medicina é uma disciplina optativa. Os médicos e os músicos discutem em seus cursos acerca do significado e dos limites da medicina ou da música, sendo sentido como desnecessário tornar obrigatória uma matéria exclusivamente para tratar de filosofia.

Nos cursos jurídicos, as disciplinas de introdução ao direito (que na UnB são Introdução ao Direito I e II) envolvem uma série de questões filosóficas, especialmente o debate acerca da pergunta jusfilosófica por excelência: o que é o direito? É bem possível que essa estratégia fosse suficiente como abordagem geral e, seguindo o exemplo da Medicina, poderíamos deixar a filosofia do direito como uma matéria optativa, para quem desejasse se aprofundar nessas questões que não caem em concursos públicos e não são centrais para o exercício proficiente da advocacia.

A estratégia do currículo da graduação em direito da UnB não podia ser mais diversa: além das disciplinas introdutórias, são obrigatórias também a própria Introdução à Filosofia e mais três disciplinas especificamente filosóficas: Ética e Direito, Modelos e Paradigmas da Experiência Jurídica e, finalmente, Filosofia do Direito. Essa multiplicação de abordagens filosóficas faz com que, a cada ano de curso, todo aluno tenha uma disciplina voltada à filosofia.

Tal estratégia sugere que, longe de enfrentar uma sobrecarga de suas capacidades duvidantes, os estudantes enfrentam uma severa escassez de incertezas, estimulada pelas abordagens dogmáticas do direito. As disciplinas dogmáticas normalmente exigem dos estudantes respostas, e não perguntas. Respostas que (i) articulem de forma adequada as fontes do direito (legislação, jurisprudência, doutrina e eventualmente costumes), (ii) que tenham coerência lógica e (iii) apelo retórico. Trata-se de uma educação com raízes antigas, pois essas três habilidades correspondem, em grande medida, às três disciplinas clássicas do trivium: a gramática (domínio da língua e conhecimento dos textos canônicos), a dialética (domínio da lógica de construção dos argumentos) e a retórica propriamente dita (habilidade de gerar convencimento) (Joseph, 2008).

Essa abordagem clássica e dogmática está ligada uma escassez de dúvidas (ou excesso de certezas) que parece muito conveniente à atividade prática dos juristas, que é a de participar de um processo de tomada de decisões. Os juristas são treinados para decidir mesmo em situações duvidosas, pois é preciso estabilizar as expectativas sociais, inclusive (e talvez principalmente) nos casos em que existe dissenso acerca das interpretações corretas das normas e dos fatos. A capacidade de estar plenamente convicto de suas teses mesmo sem ter motivos sólidos para isso é uma forma de autoengano bastante comum entre os juristas. Mesmo quando têm dúvidas, sua tendência é defender suas teses com uma convicção simulada, visto que qualquer sinal de insegurança pode enfraquecer o potencial retórico de seus argumentos.

Ocorre, porém, que esse excesso de certezas pode conduzir a situações desastrosas, especialmente quando as convicções de uma autoridade judicial são demasiadamente enviesadas. Um exemplo claro desse desequilíbrio das convicções está na sentença de condenação do ex-presidente Lula pelo ex-juiz Sérgio Moro. Moro tinha uma convicção tão grande da culpabilidade de Lula que ele o condenou sem fornecer uma argumentação sólida para justificar sua sentença, repleta de saltos lógicos e de inconsistências (Costa, 2017).

Pessoalmente, acredito que Sergio Moro tinha uma convicção sincera de que estava realizando um julgamento técnico e bem fundamentado, sendo que tal certeza irrefletida é uma armadilha comum entre os juristas. Todavia, essa eventual boa-vontade não diminuiria a responsabilidade de Moro por conduzir tão mal um processo que era tão crucial para a política brasileira (Costa, 2017). A posição de juiz exige cuidados redobrados, visto que as consequências de sua irreflexividade são muito assimétricas: para o réu, pode custar a liberdade; para um sistema político, pode custar a estabilidade; já para o próprio magistrado, custa apenas a revisão da sentença e eventuais respingos no seu prestígio pessoal.

No caso dos advogados, o impacto da irreflexividade pode ser igualmente danoso, visto que um causídico que não tenha consciência sólida sobre o grau de adesão que seus argumentos provocam nos outros (e não em sua própria convicção) pode prejudicar bastante seus clientes. Além disso, um advogado pouco reflexivo pode manter padrões argumentativos que funcionaram bem em um contexto anterior, mas que se tornam problemáticos quando o ambiente jurídico acumula alterações tão grandes que tornam inadaptadas estratégias que foram robustas ao longo de bastante tempo.

O excesso de convicções pode ser muito eficiente quando nossas certezas estão bem alinhadas com as percepções dominantes, mas é pouco eficiente quando se trata de adaptar suas próprias estratégias a um contexto social em constante mudança. Não podemos perder de vista que os seres humanos são excepcionais em sua capacidade de duvidar dos outros, sem duvidar de si mesmos.

Temos um intenso desejo de conhecer e um sistema nervoso que o tempo todo constrói padrões a partir de suas interações com o mundo e de sua própria atividade interna. A ciência nos mostra cada vez mais que nossa estrutura cognitiva elabora uma rede de percepções e de expectativas que, uma vez estabilizadas, dificilmente podem ser alteradas. Temos todos um fortíssimo viés de confirmação: uma tendência arraigada a receber bem os argumentos que reforçam nossas crenças e a rejeitar por motivos frágeis os argumentos que nos desafiam.

A maioria de nós tem menos dúvidas do que deveria. Melhor dizendo, temos uma capacidade de duvidar muito bem calibrada com contextos de mudança ambiental mais lenta, que formavam os ambientes que selecionaram as características de nossas espécies. Todavia, ao longo do holoceno, a velocidade de transformação social necessária para acompanhar as mudanças ambientais tem exigido uma aceleração nos nossos ritmos de mudança, que demandam uma capacidade especial de (re)avaliar os nossos modelos de interação social e de explicação do mundo.

Somos, assim, levados a um paradoxo: precisamos avaliar a correção dos nossos modelos simbólicos, mas, para fazer isso, somente contamos com os critérios de avaliação que esses próprios modelos nos dão. Temos uma cultura que precisa avaliar a si mesma, quando o que as culturas normalmente fazem é exigir de nós que as apliquemos, e não que as julguemos.

No direito, esse paradoxo é ainda mais evidente: pretende-se que as pessoas obedeçam ao direito, e não que analisem o direito, mas é impossível saber quais são nossos direitos sem interpretá-los. Acontece que não temos como interpretar o direito sem modificá-lo, porque o sentido do direito é dado pelas nossas interpretações. Não existe algo como um direito estático a ser interpretado, mas existe um direito dinâmico, que é constituído pelas interpretações que damos do próprio direito.

A religião nos dá um fenômeno semelhante. Construímos discursos religiosos que estabilizam algumas interações sociais ao determinar papéis sociais que são sagrados e, portanto, inquestionáveis. Questionar o sagrado é algo proibido, e com isso o sagrado consegue gerar um alto grau de estabilidade. Porém, a vedação do questionamento nunca consegue se realizar perfeitamente porque a aplicação do sagrado exige uma reinterpretação constante de nossos papéis sociais, sob a pressão dos contextos mutantes. Essa relativa inquestionabilidade é imensamente útil, pois ela proporciona um certo equilíbrio entre conservação e variação: a sociedade vai se modificando gradualmente, de maneira discreta, mas com um discurso de que ela está apenas aplicando os padrões definidos pela tradição.

3. Filosofia e transformação social

3.1 Os ritmos da mudança social

Toda sociedade está em constante processo de mudança. Mesmo uma sociedade baseada em uma tradição que se afirma como inquestionável e eterna se encontra em permanente transformação, em um ritmo que é muito mais intenso do que o de comunidades de outros animais sociais (como formigas e abelhas) e que é extremamente adaptado ao ritmo acelerado de alterações ambientais enfrentadas pelas espécies terrestres desde o início do último período glacial. Parafraseando Pierre Clastres (2003), as sociedades anteriores ao antropoceno não eram sociedades sem governo e sem filosofia (o que implica uma leitura dessas ausências na chave da falta), mas eram sociedades contra o governo e contra a filosofia: a ausência de uma distinção estável entre governantes e governados, bem como a ausência de uma reflexão social que implicasse um autojulgamento da cultura, eram características a serem mantidas cuidadosamente.

Líderes fortes demais eram uma ameaça tão grande à tradição quanto o desenvolvimento de uma liberdade para questionar os valores tradicionais. Porém, os tempos mudaram. Ao longo do período glacial, o Homo sapiens se espalhou por todos os continentes e, em vários deles, a ocupação humana se tornou tão densa que o principal ambiente de uma cultura eram seus vizinhos, cujas crenças, lideranças e organização se alteravam de forma constante.

Em um contexto tão instável, as sociedades que sobreviveram foram justamente aquelas que se tornaram capazes de acelerar seus ritmos de adaptação, por meio da instituição de governos. A mudança social já não dependia apenas do lento ritmo das interpretações sucessivas, mas dependia das escolhas de um líder, ou de um grupo de líderes, ou mesmo de uma comunidade inteira. A invenção do governo, que tornou possível alterar estruturas sociais por meio de uma decisão, ocorreu independentemente em vários pontos do globo. A primeira aparição do governo ocorreu na Mesopotâmia, há cerca de 8.000 anos, mas experiências de centralização política ocorrem também em outros lugares do globo (Vale do Nilo, Vale do Rio Amarelo, Península de Yucatán, Andes, etc.), nos milênios seguintes (Flannery e Marcus, 2012).

Aparentemente, essa mudança atingiu apenas sociedades que precisaram competir duramente por alguns pontos excepcionalmente produtivos em termos de agricultura (como o crescente fértil, as áreas irrigadas pelo Nilo e as áreas agricultáveis dos Andes). Outras sociedades, como os indígenas da Amazônia, não tinham a necessidade de competir tanto pelos mesmos recursos, o que permitia a continuidade dos padrões tradicionais, que não otimizam o uso dos recursos, mas também não criam um risco constante de extinção das comunidades (pelas guerras internas, pelas guerras externas ou pela adoção de práticas que se mostram inadequadas aos novos tempos) (Carneiro, 1970).

Nessas sociedades, aflorava uma tensão entre os governos e as tradições que estabeleciam deveres sociais que não podiam ser alterados pelos governantes. Essa tensão foi plenamente compreendida e retratada pelo teatro grego, tendo sua maior expressão na Antígona de Sófocles.

O governo, porém, não engendra a filosofia, pois a força dos governos antigos estava em apresentar-se como um defensor da tradição. É claro que todo governante reinterpretava a tradição e que muitos deles inovaram bastante no campo político, mas toda inovação gerava riscos (como sempre). Auguste Comte (1982) percebeu bem que esses antigos modelos eram teocráticos, no sentido de que os governantes se apresentavam como tendo uma origem divina, ou como sendo os próprios deuses, de tal forma que a sua autoridade deveria ser observada e nunca questionada.

A ideia de que os cidadãos deveriam ter liberdade para questionar o governo, para discutir abertamente sobre qual seria o melhor governo e quais deveriam ser as formas de organização da cidade é uma adaptação posterior. Quando os governos se tornaram suficientemente sólidos, eles puderam afirmar sua primazia sobre a tradição, mas isso tendia a ocorrer apenas em contextos bem determinados: nos momentos em que certas formas de organização social passavam a ser percebidas como equivocadas, elas poderiam ser reformadas pelos governantes.

Essa abertura para uma inovação social conduzida pelos governantes ocorreu intensamente na Grécia antiga, quando o modelo de organização em cidades-estados (polis) mostrou sinais de decadência, fragilizando o potencial bélico das cidades gregas a tal ponto que elas poderiam ser conquistadas pelos impérios vizinhos. Frente ao colapso de certas instituições tradicionais (especialmente a escravidão por dívida), algumas cidades gregas atribuíram a certos legisladores o poder de reorganizar a cidade com base em escolhas racionais. Esse é o momento em que nasce a democracia, uma adaptação das cidades gregas para viabilizar a inclusão de um grande número de cidadãos na política e, assim, garantir um exército sólido de homens livres, mesmo em sociedades pequenas.

E é nesse contexto que aparece a filosofia, tal como conhecemos: em vez de discutir se as novas políticas estavam ou não de acordo com a tradição (algo que sempre foi feito pelos sábios), discutia-se se essas novas políticas eram adequadas à própria ordem natural. Os governantes deveriam reformar as cidades, mas não deveriam seguir os seus próprios desejos, pois a ordem social somente poderia funcionar caso ela espelhasse adequadamente a ordem natural do mundo.

A ideia de uma ordem natural, conceito chave do pensamento grego, é muito anterior aos filósofos. A novidade da filosofia grega foi indicar que essa ordem natural deveria ser acessível a qualquer pessoa, por meio de uma atividade intelectual, o que permitiu a realização legítima de uma crítica racional à tradição. O limite da atuação dos governos não deveria ser um repertório de valores tradicionais, acessíveis por meio de textos sagrados ou pelo conhecimento especial dos sábios, visto que toda ação deveria ser pautada pelo conhecimento racional da própria ordem das coisas, acessível a todo ser humano que se dedique a conhecê-la.

Como ressalta Appiah, ter uma visão de mundo não é ter uma filosofia (1997). Toda sociedade tem uma cultura, tem linguagens, tem um sistema simbólico complexo, mas nem toda cultura desenvolve uma capacidade crítica de si mesma. Várias sociedades dotadas de tradições multisseculares não produziram filosofia, pois tinham mecanismos muito sólidos para impedir a institucionalização de uma reflexão crítica acerca de seu próprio sistema simbólico. O surgimento da filosofia mostra a fragilidade e os limites das visões tradicionais de mundo, mas isso ocorre sempre em contextos nos quais a tradição posta em questão continuava a representar (como ainda representa) a espinha dorsal da comunidade política.

O que a filosofia faz não é destruir a tradição, mas segmentá-la: parte da cultura é vista como um reflexo adequado da ordem natural (a ser mantida), parte da tradição é criticada como uma percepção distorcida da natureza (a ser abandonada). Além disso, cria-se o espaço para identificar parcelas da ordem natural para a qual a tradição era cega, em virtude de seu caráter consuetudinário: as culturas são construídas pela sedimentação de percepções, o que faz com que elas tenham pouco a dizer sobre situações novas, que desafiam os valores tradicionais.

A possibilidade de uma investigação direta da ordem natural possibilitou que os filósofos se colocassem não apenas como revisores dos conhecimentos estratificados, mas como exploradores capazes de descobrir facetas da natureza que não conhecíamos ainda. Esse exercício de ampliar a tradição por meio de estratégias interpretativas é familiar aos juristas, que sempre precisam aplicar normas antigas para situações novas, como o casamento de pessoas de mesmo sexo, os crimes praticados em ambientes virtuais, os contratos envolvidos na uberização do trabalho, etc.

Tal como os juristas se propõem a resolver questões novas a partir da interpretação de uma ordem jurídica preexistente, os filósofos se propunham a enfrentar problemas novos a partir do conhecimento adequado da ordem natural das coisas. Tanto quanto os filósofos antigos, os juristas modernos não podem decidir conforme a sua própria autoridade, pois estão vinculados a estratégias de reinterpretação das tradições e de extensão hermenêutica e, especialmente, de contradição entre os direitos e deveres com relação a uma ordem superior (a ordem natural das coisas e, no presente, a ordem constitucional).

Ao promover uma reflexão sobre os limites da ordem tradicional, a filosofia propicia uma transformação social mais rápida, porém controlada, pois ela serve como uma instância crítica das nossas próprias visões de mundo. A função social dos juristas é semelhante, visto que um sistema de justiça precisa ser capaz de estimular a estabilidade das relações sociais, o que exige tanto a reprodução dos padrões tradicionais como a sua adaptação às novas circunstâncias. Essa proximidade do direito com a filosofia, enquanto instâncias reguladoras dos ritmos de mudança social, faz com que o estudo dos argumentos filosóficos possa ter várias utilidades para os juristas.

Porém, parece-me que a questão mais importante é a de que o estudo da filosofia nos propicia a realização de uma reflexão sobre as bases dos nossos próprios modelos explicativos, tanto do modelo social predominante quanto dos critérios que adotamos individualmente. Como esses critérios nos são muito caros e fazem parte de nossa própria identidade, temos uma grande dificuldade em perceber a sua contingência e, principalmente, de avaliar os nossos próprios modelos.

3.2 A crítica filosófica da tradição

Os seres humanos tendem a repetir padrões estruturados, mesmo que eles não nos conduzam a uma vida mais satisfatória. Temos uma imensa dificuldade para rever nossas percepções, nossas crenças, nossos valores. Cada um de nós tem um repertório de convicções arraigadas sobre o modo de ser das pessoas e sobre os papéis sociais que elas deveriam desempenhar. Um repertório de certezas compartilhadas é a espinha dorsal de nossas unidades sociais: sem essa cultura, não seríamos capazes de construir comunidades tão amplas e complexas.

Mas as nossas certezas também são um risco. Uma sociedade demasiadamente ortodoxa tem pouca capacidade para se adaptar a um contexto que muda em ritmo acelerado. Toda espécie de seres vivos precisa equilibrar permanência e mudança: mudança demais coloca em risco a integração dos nossos sistemas orgânicos e sociais, mas flexibilidade de menos coloca em risco a nossa capacidade de sobreviver a um ambiente mutável.

As sociedades humanas têm múltiplos elementos que produzem essas forças de coesão e mudança, e a ciência atual nos sugere que é justamente o nosso alto grau de flexibilidade que nos colocou no ápice da cadeia alimentar. Nossos antepassados distantes não eram grandes predadores, mas eram pequenos mamíferos que se alimentavam do tutano dos ossos de animais mortos. Foi um longo caminho até que conseguíssemos formar associações coordenadas de dezenas de pessoas, capazes de caçar um mamute. Esse grau de coordenação de vários indivíduos para realizar atividades complexas não é único na natureza: cupins, abelhas e formigas também formam grandes comunidades de indivíduos.

Mas a nossa capacidade de gerar novas formas de organização, aproveitando os nichos ecológicos disponíveis em cada ambiente, é única na nossa biosfera. Nossa capacidade ímpar de reorganização social vem do fato de que essas interações são mediadas por sistemas simbólicos, por crenças compartilhadas, por papéis sociais que podem variar muito em um tempo reduzido. Isso nos torna adaptáveis, embora a um custo energético muito alto, pois precisamos gastar cerca de ¼ de nossos nutrientes para manter o sistema nervoso que organiza tais interações.

A filosofia, a política e o direito são elementos culturais envolvidos nesses processos de transformação simbólica que engendra novas formas de sociabilidade. Mas a filosofia não é um substituto para a tradição, e sim uma instância crítica. Nossas sociedades também precisam dos valores compartilhados que as tradições nos fornecem. Portanto, não deve causar espanto o fato de que ainda é muito forte o discurso que visa a proteger a tradição contra as críticas filosóficas (e artísticas, e políticas, e jurídicas...).

De tempos em tempos, ressurge com força a narrativa ancestral de que as ideias modernas são um ataque às verdadeiras tradições e que, por isso devem ser combatidas. Em tempos de instabilidade política, é comum que muitas pessoas se apresentem como detentores da verdadeira filosofia, uma série de sábios se apresentam na defesa dos valores tradicionais da família, da hierarquia, da estabilidade. O mito da restauração, que coloca no passado imaginário os ideais a serem buscados, é tão constante quanto o mito da utopia, que coloca os mesmos ideais em um futuro inatingível.

Esses movimentos messiânicos, por mais que se digam filosóficos, tendem a ser o avesso da filosofia: apresentam-se como a negação do diálogo, pedindo a conversão forçada dos infiéis (os hereges, os pós-modernos, os marxistas culturais), pois somente assim eles podem ser salvos. Não precisa de um curso de filosofia quem tem certeza de que está do lado certo da história, de que seus deuses são os verdadeiros deuses, de que a sua verdade é a verdadeira verdade, de que os seus inimigos são pessoas más e de que existe uma conspiração imensa do mundo para destruir os valores que nos são mais caros.

Antes de mais nada, os filósofos precisam estar abertos a uma prática argumentativa de apresentação e refutação de argumentos. Poetas podem se limitar a construir narrativas. Religiosos podem se limitar a enunciar suas verdades e a educar pelo exemplo. Artistas podem emocionar as pessoas e transformá-las por meio de suas criações intuitivas. Políticos, religiosos, artistas, advogados e juízes podem se limitar a enunciar suas opiniões. Essas opiniões podem ser complexas, astutas e sedutoras. Elas podem ser o resultado maduro de uma vida de experiências e, provavelmente, a intuição de uma pessoa experiente é o melhor guia que dispomos para enfrentar situações de crise, que exigem respostas rápidas frente a cenários construídos com base em informações limitadas.

A ciência nos oferece alternativas mais seguras, mas as pesquisas científicas demandam um tempo que muitas vezes não é disponível, como ocorre no começo de toda nova pandemia. É preciso agir em um contexto obscuro e, nesse caso, o que se espera é a prudência, a antiga habilidade de tomar decisões adequadas com os insumos que se têm. Essa habilidade prática é o que esperamos de médicos, de juízes, de governadores, de presidentes da República, de pessoas encarregadas de tomar decisões difíceis e com impactos sociais relevantes.

Os filósofos não são os professores de prudência. Eles não nos ensinam a tomar decisões rápidas e eficazes. O que eles nos ensinam é outra coisa: desde os gregos, os filósofos nos mostram as limitações de nossos sistemas de prudência, construídos sobre certas percepções do mundo que condicionam nossas respostas políticas, nossas capacidades de prever dificuldades e de enfrentar crises. O modo como percebemos a realidade define nossas interações com o mundo, e pode ser mortal a aplicação de padrões decisórios antigos a situações novas.

A filosofia é uma espécie de reflexão que põe à prova os nossos modelos explicativos sobre a realidade. Ela funciona como um espelho que nos mostra como vemos o mundo, esclarecendo as formas como as nossas percepções são condicionadas pelas nossas tradições e apontando caminhos para construir modelos alternativos.

Quando nossos modelos explicativos e nossos modelos decisórios nos oferecem respostas que julgamos adequadas, os filósofos sempre parecem inúteis. Discutir as limitações de um time que está ganhando parece sempre um exercício de pessimismo ressentido. Aparentemente, nossa disposição para rediscutir tais modelos tende a aumentar quando começamos a perceber que nossas instituições políticas atuam de forma a produzir crises, que nossa ciência é incapaz de explicar os vários fatos que vemos e que nossos sistemas judiciários reproduzem situações de injustiça.

Normalmente, a percepção dessas deficiências nos leva a buscar as razões de ineficiência, pois pressupomos que lidamos com um sistema razoável, cuja falha em oferecer respostas adequadas decorre de algum tipo de desvio, de corrupção, de práticas indevidas. Todavia, há situações variadas em que não podemos identificar uma ineficiência, pois concluímos que as instituições estão funcionando normalmente: interpretamos que os resultados ruins decorrem do uso inadequado das ferramentas disponíveis, e não das limitações inerentes a tais ferramentas.

Essa percepção faz com que nosso sistema político esteja o tempo inteiro em reforma, baseando-se na ideia de que certas estruturas precisam ser alteradas para que o sistema consiga alcançar seus objetivos. Não se trata de aumentar a eficiência na execução, mas de alterar o próprio sistema. Essas alterações estruturais não são propostas normalmente por filósofos, por pessoas com experiência prática e influência política. Ocorre, porém, que essas alternativas para mudar tudo o que está aí muitas vezes estão fadadas ao fracasso porque elas se baseiam em explicações equivocadas.

Por maior e mais justificada que seja a insatisfação social com o modelo político vigente (uma crítica que pode ser encontrada em qualquer momento histórico), não há grandes perspectivas de melhora quando as propostas de reforma seguem uma teoria da conspiração centrada na ideia de que o grande inimigo a ser combatido é o marxismo cultural (Araújo, 2017; Sankari, 2021). Não há muitas esperanças de adaptar nossos modelos a uma realidade complexa quando o discurso reformador nos aponta para a necessidade de retomar os valores perdidos, restaurar as tradições abandonadas, retornar aos papéis sociais naturais.

E é justamente aqui que entram os filósofos, com a sua peculiar atenção sobre os modelos explicativos que servem como base para a nossa atuação coletiva: nossas organizações políticas, nossos sistemas educacionais, nossos modelos judiciários. Que tipo de conhecimento pode ser considerado seguro? Nossos valores são de fato coerentes? Quais as potencialidades de nossa metodologia científica? Quão sólidas são as categorias que embasam nossas percepções sobre a realidade?

A reforma social pode ser mobilizada por um líder político, por um profeta messiânico, por um general carismático. Mas o filósofo não é o profeta, não é o político, não é o prudente. O filósofo não é o missionário de uma fé, não é o defensor de uma tradição nem o agente de uma nova utopia. O filósofo é apenas alguém que reflete sobre as estruturas dos modelos explicativos que usamos para explicar o mundo e para tentar interferir na realidade.

Por isso, a filosofia não nos torna melhores nem mais profundos. Ela não responde às grandes questões da humanidade, ela não nos ensina os princípios, ela não descobre a Verdade. Assim como o estudo da música nos torna melhores músicos, mas não melhores pessoas, o estudo da filosofia apenas nos torna melhores filósofos. Uma sociedade com bons filósofos corre o risco de ter uma percepção mais crítica de si mesma e, com isso, desenvolver uma compreensão mais adequada do que fazemos quando operamos os sistemas simbólicos que organizam as interações sociais, como é o caso do direito e da política.

5. O mal-estar da contemporaneidade

Resumo: Este ensaio aborda os desafios dos discursos filosóficos contemporâneos frente à constatação de que a filosofia não ocupa um lugar de centralidade na cultura atual. Defendo que ainda existe espaço para as reflexões propriamente filosóficas, que tematizam reflexivamente o significado e o alcance dos modelos que construímos para explicar a realidade. A estabilidade das ideologias modernas está assentada sobre a relativa homogeneidade cultural das sociedades europeias, em que os grupos rivais eram igualmente cristãos, brancos e conservadores. Tendo em vista que esse fundamento débil não sobreviveu às transformações sociais do século XX, que implicaram uma complexificação das sociedades, exploro neste ensaio o modo como as tensões sociais contemporâneas exigem o desenvolvimento de um discurso filosófico mais aberto às diferenças que integram uma mesma comunidade (Milovic, 2004).

1. Materialismo e transcendência

1.1 Filosofia x Arte

Eu costumava iniciar meus cursos de filosofia do direito com uma espécie de exortação aos alunos sobre a relevância da filosofia. Eu perguntava quem faria a disciplina se ela fosse optativa e vários estudantes sinceramente indicavam que, se tivessem liberdade de escolha, dedicariam esse tempo a outras matérias. Essa era uma resposta previsível em um curso de direito porque esperamos que os profissionais dessa área sejam homens e mulheres pragmáticos dedicados ao domínio de sua técnica, mas pouco afeitos à teoria.

Nisso, os juristas se parecem com os músicos. Assim como os estudantes de música normalmente desejam aprender a tocar o seu instrumento, os estudantes de direito querem aprender a fazer petições, sentenças ou provas de concurso. Eles querem se tornar hábeis a responder perguntas e a resolver questões práticas, o que torna previsível um desinteresse por uma filosofia que, “tal qual praticada na universidade, está singularmente distante das ideias dos indivíduos comuns sobre a verdade e a razão, os deuses e o bem, a matéria e a mente” (Appiah, 1997). A explicitação verbal desse desinteresse, ou mesmo de uma franca rejeição, me dava a chance de tentar convencê-los da importância das várias disciplinas filosóficas, que era um esforço inútil: quem gostava de filosofia não precisava de convencimento e quem rejeitava a filosofia não era movido pelos meus argumentos.

Eu então explicava aos resistentes que a filosofia podia ser irrelevante para o seu sucesso individual, mas era importante para a sociedade que custeava os seus estudos em uma universidade pública. As reflexões filosóficas contribuiriam para que eles fossem conscientes dos limites de suas certezas, o que tipicamente leva a uma prática profissional mais crítica e menos opressora. Os juristas lidam diretamente com a vida das pessoas e sempre me pareceu útil para a coletividade que eles compreendessem a relatividade de suas convicções e valores. Minha argumentação tentava contrabalançar o desinteresse subjetivo dos estudantes pela filosofia por meio de uma utilidade objetiva, que emergiria apenas no nível social.

No nível individual, a filosofia lhes daria mais dúvidas, mais angústias, mais esforço argumentativo e mais noites insones. Porém, os ganhos gerados para os clientes e jurisdicionados dariam sentido a essa imposição forçada de uma formação filosófica. Tal concentração na importância social da filosofia revela que eu não tinha bons argumentos para promover o interesse dos estudantes na minha disciplina.

Outro ponto que eu tentava desmitificar era o caráter tedioso da filosofia. Embora intimamente eu soubesse que o estudo de certas áreas da filosofia tem uma capacidade infinita para gerar enfado até nos estudantes mais engajados, eu tendia a compreender a rejeição à filosofia como resultado de experiências ruins e de abordagens inadequadas de cursos anteriores. Continuo acreditando que uma pedagogia deficiente estimula o desinteresse, mas os resultados limitados das minhas estratégias pedagógicas mais criativas indicam que esse fator tem importância reduzida. Além disso, olhando em perspectiva, boa parte dos estudantes não se interessava muito pelas aulas de professores mais capazes e carismáticos do que eu, como aquelas em que meu querido mestre Luis Alberto Warat explorava as relações entre o direito e o amor a partir de intersecções entre Cortázar e Jorge Amado (Warat, 1979).

Os professores de filosofia são conscientes do papel marginal que a sua disciplina ocupa na cultura atual, em que o pensamento reflexivo não se concentra nos filósofos, mas é distribuído por uma série de abordagens que têm um viés tão crítico (ou mais...) que as perspectivas filosóficas: psicanalistas, historiadores, antropólogos e cientistas políticos talvez tenham mais a contribuir para uma reflexão social contemporânea que os próprios filósofos. Essa percepção faz com que os professores precisem justificar a presença da disciplina de filosofia em variados currículos, explicando aos alunos porque eles deveriam dedicar tanto tempo a tal estudo. Imagino que não seja assim que começam os cursos de neurociência, de inteligência artificial ou de direito penal.

Hoje, entendo que a filosofia é como a música clássica. É extremamente útil que um professor de música seja capaz de oferecer abordagens instigantes e criativas, que gerem interesse para as obras de Bach, de Satie ou de Villa-Lobos. Todavia, por mais que a capacidade retórica e pedagógica dos professores possa encantar alguns alunos, vivemos em culturas nas quais o interesse pelo gênero costuma ser limitado. Inclusive, pode ocorrer de certos estudantes não terem interesse musical algum, como João Cabral de Melo Neto, que dizia “não gosto de música, nunca gostei. Sou um poeta visual, não auditivo” (Piza, 2004).

Pessoalmente, eu gosto de várias peças de música erudita, mas ouvir Adiós Nonino (Piazzolla, 1969) me faz pensar que Belchior tinha razão ao dizer que “um tango argentino me vai bem melhor que um blues” (Belchior, 1976a). Nosso gosto é modelado por nossa socialização, por nossas memórias afetivas, e acho que eu preciso entender que muitos estudantes observam a filosofia como eu observo a ópera: sem ver graça nenhuma, apesar de entender intelectualmente que algumas pessoas apreciem essa peculiar combinação de música e teatro.

Ninguém precisa da música para ter sensibilidade. Menos ainda da ópera, o que me deixa aliviado. Para minha tristeza, porém, não precisamos do samba, nem de Piazzolla, nem de Belchior. Apesar disso, creio que John Stuart Mill tinha razão em afirmar que a capacidade de fruir obras de arte complexas (ele pensava na literatura) aumente nossa capacidade de obter prazer por um preço baixo e sem muitos efeitos colaterais (Mill, 2005). A compra com melhor custo-benefício que fiz a de uma edição de bolso do romance “Guerra e Paz”, de Liev Tolstói, que me deu alegrias durante três meses e me ensinou coisas para a vida toda, pelo preço de um sanduíche.

Um raciocínio semelhante pode ser aplicado à filosofia. Ninguém precisa da filosofia para desenvolver uma consciência crítica, pois muitos são os caminhos que podem nos conduzir a uma postura mais reflexiva. Como diziam Deleuze e Guattari, “ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja: acredita-se dar muito à filosofia fazendo dela a arte da reflexão, mas retira-se tudo dela, pois os matemáticos como tais não esperaram jamais os filósofos para refletir sobre a matemática, nem os artistas sobre a pintura ou a música” (1992).

A arte pode nos tornar tão reflexivos quanto a filosofia. Inclusive, aprendi mais com os textos literários de Sartre, de Camus e de Nietzsche do que lendo livros teóricos sobre filosofia. O próprio Platão escrevia diálogos, e não tratados, e alguns de seus principais argumentos têm forma narrativa. Esse potencial crítico de tais autores não vem apenas do fato de que eles se movimentam nos limites entre a filosofia e a literatura. Os livros de Dostoiévsky, de Kundera ou de Clarice Lispector estimulam a reflexividade de modo tão intenso quanto os deles.

Ademais, há outros caminhos para cultivar nossas formas de ver o mundo: a religião, a psicologia, a astrologia, a psicanálise. Podemos desenvolver uma identidade sensível à diferença em qualquer campo onde exista uma vasta experiência acumulada e uma interação de perspectivas conflitantes. Todavia, o fato de que “filosofia é o rótulo de maior status no humanismo ocidental” (Appiah, 1997) faz com que haja uma tendência a nomear como filosóficas obras que têm um caráter criativo ou crítico das ideias tradicionais. Esse tipo de apropriação parece menos razoável do que o reconhecimento de que há vários caminhos reflexivos possíveis. Como ironiza Kwame Appiah, “talvez fosse melhor não chamar um livro de cozinha de filosofia culinária” (1997), e o mesmo pode ser dito de obras de filosofia jurídica, filosofia africana ou filosofia oriental. Entendo mais produtiva a escolha de Viveiros de Castro, que caracteriza o perspectivismo ameríndio como um regime ontológico próprio, cuja relevância não passa por caracterizá-lo propriamente como uma filosofia (Viveiros de Castro, 2015).

Penso ser mais interessante seguir essa intuição e tratar o pensamento ameríndio como um outro da filosofia, uma reflexão que nos oferece alternativas à tradição metafísica ocidental que recebe o pomposo rótulo de filosofia. Essa é uma percepção convergente com a proposta de Sérgio São Bernardo no sentido que, melhor do que falar de uma filosofia africana, seria identificar os saberes e pensamentos africanos, visto que se corre o risco de confundi-los com um discurso filosófico que “é um saber que se propõe universal, mas não é um saber universal” (2006).

1.2 Ciência x Filosofia

Boa parte das notas de rodapé à obra de Platão (Whitehead, 1978) é um discurso para iniciados, e a formação necessária para fruí-los pode ser penosa para quem não tem um gosto especial pela abstração. Isso ocorre porque a filosofia se interessa primordialmente pelas categorias com as quais pensamos, o que faz com o que o discurso filosófico tenha sempre um alto grau de abstração. Continua valendo a advertência que Platão escreveu no portal da Academia: “Quem não é geômetra não entre!” (Cornelli e Coelho, 2007).

Acontece que várias pessoas têm uma sensibilidade mais afeta às imagens pictóricas, às narrativas ou à corporeidade, o que as faz terem pouca atração tanto pela geometria como pela filosofia. João Cabral de Melo Neto, por exemplo, tinha essa sensibilidade concretista: “você pode ver que em minha poesia há sempre uma vontade de concretizar as palavras, mesmo aquelas que não sejam concretas. Quando uso ‘o sonho cobre-se de pó’ é para dar uma qualidade física à imagem, para substantivá-la” (Piza, 2004). Sua poesia não é voltada a representar ideias abstratas, mas a servir como uma máquina de comover (machine à émouvoir), sendo ele um crítico mordaz da “poesia meditabunda que se quer filosofia” (Piza, 2004), mas que não consegue ser adequadamente nem uma coisa nem outra.

Que tipo de filosofia poderia interessar a João Cabral? Certamente não seria a busca da essência fundamental das coisas, pois o caminho que ele propunha era o contrário: ele queria poder falar da coisa seda, ocultada pelos escombros da palavra seda, tão gasta em metáforas fáceis que se presta pouco para a poesia.

E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,
nada tem da superfície
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.
Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma,
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas,
há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,
de animal, de animalmente
de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.
(Melo Neto, 1994a)

Esse tipo de materialismo quase sempre foi entendido como uma marca de antifilosofia, pois o interesse abstrato dos filósofos sempre apontava para as ideias e não para as coisas. A busca de experimentar o mundo parece contraposta ao projeto de compreender o mundo, como cantou Belchior em Alucinação:

Eu não estou interessado em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente, romances astrais
A minha alucinação é suportar o dia a dia
E meu delírio é a experiência com coisas reais (Belchior, 1976b)

Os filósofos dirão que a experiência com coisas reais é a matéria da filosofia, porque a filosofia estaria interessada em entender o que a realidade realmente é. Mas, em vez de nos apontar a coisa seda ocultada pela palavra seda, o filósofo da tradição grega precisaria se desvencilhar tanto da palavra como da coisa, para tentar descobrir o que seria de verdade a própria essência da seda. Quando entendemos que tal essência imaterial, metafísica, é o próprio objeto da filosofia clássica, podemos compreender por que motivo Platão foi um crítico tão mordaz dos artistas que propôs inclusive que eles não tivessem lugar na cidade (Platão, 1996).

A concepção platônica é a de que o artista tem compromisso com a emoção e não com a verdade, motivo pelo qual ele tem uma capacidade incrível de propagar ideias falsas, mas atraentes. Quando falam do mundo, os artistas terminariam por criar uma realidade inventada: heróis, mitos e narrativas que são muito mais comoventes do que a própria verdade. Como diria Pessoa, “o poeta é um fingidor, que finge tão completamente” que não é capaz de saber onde termina a realidade e onde começam suas invenções. A habilidade dos poetas seria perigosa como a dos profetas, pois eles nos mostram sua visão de mundo como se fosse o mundo, multiplicando fantasmas tão convincentes que os tomamos pela realidade.

Platão não queria o mundo cheio de fantasmas dos artistas, mas um mundo real, despido de sombras e alucinações. A abordagem filosófica envolve o reconhecimento de que aquilo que percebemos sensorialmente como realidade está longe de ser a realidade inteira. O legado dos gregos é um ceticismo muito grande acerca de nossa capacidade de percepção direta das coisas, porque a realidade é composta por elementos materiais e também por elementos imateriais: a quantidade, o tempo, a justiça, a beleza, a verdade.

Vista por fora, cada coisa é radicalmente única. Cada árvore, cada pedra, cada pessoa é uma singularidade e as singularidades podem ser descritas, mas não podem ser compreendidas. Mas Platão queria olhar as coisas por dentro, e o dentro das coisas não é material. Ninguém percebe sensorialmente os números. Ninguém percebe sensorialmente as causas de um fenômeno. Ninguém percebe sensorialmente o tempo passar. Esses elementos imateriais são inferidos racionalmente, porque é o nosso intelecto que nos mostra que todo fato tem causas, que a sucessão de eventos exige a existência do tempo ou que dezessete é um número primo. Tais elementos imateriais compõem o que a tradição filosófica chama de metafísica: um conjunto de elementos e qualidades que não acessamos pelos sentidos, mas cuja existência além do mundo físico nos é revelada por nossa razão.

O passo seguinte desse raciocínio é entender que a imensa multiplicidade de objetos singulares somente é compreensível quando entendemos cada um desses objetos singulares como realizações particulares de um certo padrão geral. O filósofo, com isso, não se concentra nas coisas particulares (como podem fazer os poetas), mas sobre os padrões, que são imateriais. Enquanto os objetos materiais são radicalmente singulares e mutáveis, as entidades metafísicas têm um caráter geral e permanente: o tempo, o azul, o calor e o número dois são sempre os mesmos, independentemente das situações concretas em que nós os observamos.

Toda essa perspectiva filosófica é duramente criticada por Fernando Pessoa (ou melhor, por Alberto Caeiro), que diagnostica que "os filósofos são homens doidos" porque eles não se contentam em descrever a natureza por fora. Os filósofos querem compreender a natureza por dentro (ou seja, pelos atributos metafísicos que conformariam cada objeto singular), mas Caeiro respondia que “a Natureza não tem dentro; senão não era a Natureza”. No Guardador de Rebanhos, Caeiro retoma várias vezes a tese de que “o único sentido oculto das cousas é elas não terem sentido oculto nenhum” (XXXIX).

Tal negação do sentido íntimo das coisas, tal rejeição da existência de qualquer objeto imaterial, cristalizou-se no século XX sob o título de existencialismo, perspectiva cuja expressão mais cristalina se encontra no verso de Caeiro que diz que “as coisas não têm significação: têm existência”. E para nos explicar como é possível observar o mundo como pura matéria, Caeiro nos diz:

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo.
Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo....

Evidentemente, Caeiro não precisa da filosofia. Melhor dizendo, Caeiro não precisa da velha filosofia dos gregos que ainda hoje habita as nossas estantes e os nossos livros, e que envolve uma busca pelos universais, pelos absolutos, pelos sentidos íntimos das coisas de uma natureza vista por dentro, por tudo isso que não existe senão como delírio. Um longo delírio que herdamos dos gregos e que deveria ter sido guardado nas prateleiras de antiguidades curiosas, juntamente com a medicina hipocrática e a alquimia. Imagine o que Caeiro diria a Mário Sergio Cortella se ele ouvisse que:

A Filosofia se preocupa em pensar as razões da existência. Pensar aquilo que, de fato, faz com que o ser humano tenha sentido. Por exemplo, do que é feita a realidade? Por que é deste modo e não de outro? Qual o propósito que as pessoas dão à vida? Qual o lugar do mal dentro disso? A felicidade existe ou é ilusão? Por que existe alguma coisa, em vez de nada existir? Por que as coisas são como são? (Cortella, 2019)

De fato, penso que Caeiro não diria nada, mas tampouco se interessaria pelas palestras de Cortella. Também não se animaria muito com a defesa de Miguel Reale de que a filosofia busca um significado totalizante e uma ideia de universalidade.

Quando se afirma que Filosofia é a ciência dos primeiros princípios, o que se quer dizer é que a Filosofia pretende elaborar uma redução conceitual progressiva, até atingir juízos com os quais se possa legitimar uma série de outros juízos integrados em um sistema de compreensão total. Assim, o sentido de universalidade revela-se inseparável da Filosofia. (Reale, 2002)

Reale e Cortella não estão sozinhos. Eles dão voz ao legado metafísico dos gregos, sempre interessado nos primeiros princípios, nas verdades fundamentais ocultas, nas habilidades intelectuais que seriam capazes de dissolver os simulacros. Na origem dessa concepção está o modo como Aristóteles explicou a importância do conhecimento. No livro Metafísica, o Estagirita explicou que algumas pessoas conseguiam exercer um ofício (como a medicina ou a advocacia) de modo eficiente em função de sua larga experiência, pois a experiência permite que enfrentemos várias situações e que aprendamos a como nos portar em cada uma delas (981a). Um bom construtor de barcos sabia construir bons barcos. Um bom piloto de barcos sabia conduzir os barcos, sabia fazer um barco chegar com segurança ao seu destino. Um bom advogado sabe escrever petições eficazes. Todos eles podem ser exímios profissionais por meio de um conhecimento intuitivo, desenvolvido com base na experiência. A longa experiência permite testar diferentes abordagens e observar diversas tentativas, permitindo que uma pessoa saiba como se comportar em uma série de contextos.

Para Aristóteles, a experiência poderia gerar eficácia, mas era a reflexão sobre a própria experiência que permitiria que uma pessoa identificasse o padrão que guiava os comportamentos eficientes, formulando uma ideia geral sobre como uma pessoa deveria agir em situações semelhantes (981a). É o conhecimento dessas causas e princípios que se pode chamar de sabedoria (982a), sendo especialmente importante a passagem da técnica para a ciência, que permite ao sábio não apenas fazer, mas também ensinar, pois ele se torna capaz de explicar os motivos pelos quais uma ação é adequada.

Por um lado, já estavam aqui delineadas em Aristóteles algumas das estruturas típicas da ciência, como a busca dos padrões causais entre os fenômenos. Por outro, Aristóteles não buscava compreender apenas as relações materiais entre os fenômenos, mas também as finalidades últimas das coisas, as características essenciais dos seres, os valores objetivamente corretos. Na tradição grega, a ordem natural investigada pela filosofia era mais rica do que a ordem natural investigada atualmente pelos cientistas: enquanto os cientistas estão interessados somente nas relações causais entre fenômenos empíricos, os gregos entendiam que a investigação dessa ordem também poderia mostrar os valores naturais, as regras naturais de justiça, os critérios naturais de bem, as formas naturais de organização política, e muitas coisas que são parte do nosso universo simbólico. O legado grego, presente em várias abordagens filosóficas feitas hoje em dia, a ordem natural deveria oferecer respostas para as perguntas metafísicas indicadas por Cortella, e não apenas para o restrito rol de perguntas dos cientistas.

No século XIX, o legado filosófico foi duramente contestado por várias perspectivas materialistas, que buscaram demonstrar que não passava de um delírio a pretensão de encontrar verdades objetivas por meio de algum tipo de exercício racional. Não existiam princípios últimos a serem encontrados, mas apenas regularidades que poderiam ser descritas. Esse foi o momento em que as explicações científicas foram expandidas do campo da natureza para englobar também a sociedade, a cultura e todas as instituições humanas. E não interessa ao cientista saber por que o mundo é de uma certa forma, nem qual é a finalidade última das coisas, mas apenas explicar como os fatos se relacionam.

Auguste Comte formulou o conceito de positivismo para explicar que, no século XIX, estava em curso uma mudança radical de perspectiva. No Curso de Filosofia Positiva (Comte, 1982), publicado entre 1830, ele afirmou que os primeiros modelos explicativos humanos eram ficcionais, ou seja, explicavam o mundo a partir de narrativas mitológicas baseadas na atuação direta e contínua de entidades sobrenaturais dotadas de intencionalidade. No segundo estágio, chamado de metafísico, a intencionalidade dos deuses é substituída por referências a uma ordem abstrata, não intencional, inerente à própria natureza, que culmina nas noções jurídicas de que a sociedade deve ser organizada de acordo com o direito natural. No terceiro estágio, chamado por Comte de positivo, as pessoas deixam de lado a busca filosófica pelos primeiros princípios e pelas finalidades essenciais (que formam o núcleo da metafísica), e se limitam ao discurso científico, que esclarece as regularidades observadas na natureza e cujos enunciados têm sempre uma pretensão relativa de veracidade.

O aspecto positivo do materialismo de Comte é simbolicamente importante. Quando um metafísico qualifica o cientista como materialista, ele quer dizer que falta alguma coisa à ciência, já que ela nada tem a dizer do mundo imaterial, que é o mais importante, por ser o lugar da justiça, da beleza e da verdade. O materialista seria alguém que tem um mundo pela metade: sem deuses, sem princípios, sem nenhum desses elementos que dariam sentido à realidade. Quando Comte assume o rótulo de positivista, ele busca inverter esse jogo e indicar que o cientista não é alguém que é cego para a verdadeira realidade, mas alguém que abandonou a crença injustificada em ficções. O materialismo não é uma abordagem pela metade, mas pode ser uma perspectiva plena, completa, positiva.

1.3 O desencantamento do mundo

Essa oposição entre materialismo e transcendência é uma questão central ainda hoje, pois muitas pessoas entendem o materialismo como uma falta: a falta de uma espiritualidade, de uma ideia de justiça, de um sentido objetivo que confira algum valor a esta existência. Segundo Milovic, o desencantamento do mundo faz com que a estrutura do real deixe de ser teológica e nossas explicações transitem do campo filosófico para o científico: “a virada da perspectiva moderna é, desse modo, uma específica perda espiritual” (Milovic, 2005). A expressão canônica dessa angústia foi formulada por Dostoievski, no diálogo em que Dimitri Karamázov fala com Aliócha sobre as ideias agnósticas de Ivan:

O irmão Ivan é uma esfinge e cala, está sempre calado. Já a mim, Deus tortura. Não faz senão torturar. Mas e se Ele não existir? [...] Eu lhe perguntei, ficou calado. [...] Eu lhe disse: já que é assim, tudo é permitido? (Dostoiévski, 2008, p. 770)

Desde o início, a modernidade precisou afirmar que a liberdade humana era absoluta (o que era necessário para justificar a deposição dos regimes políticos baseados na tradição), mas essa afirmação não se voltava a indicar que cada pessoa deveria fazer o que deseja. O pensamento moderno reconhecia claramente que o livre exercício de uma autonomia ilimitada conduziria à guerra de todos contra todos e que, portanto, era necessário estabelecer limites políticos à liberdade individual. A integração social das comunidades modernas não poderia mais ser dada pelas narrativas unitárias das perspectivas tradicionais, mas era preciso inventar uma outra forma de integração: uma coordenação política, baseada paradoxalmente na própria liberdade.

A modernidade é duplamente paradoxal (Costa, 2020). De um lado, ela precisa da autonomia dos indivíduos para que ela possa servir como base para um poder político que imponha limites a essa própria autonomia. De outro lado, ela precisa que a soberania dos governos também seja limitada, visto que o exercício de um poder absoluto poderia conduzir à continuidade da guerra que se pretendia aplacar.

A modernidade precisa de absolutos limitados: a autonomia limitada pelo contrato, a soberania limitada pelos direitos naturais (e, posteriormente, pelo direito positivo, na forma de constituições). A modernidade deseja e recusa a liberdade, e o seu legado não é o de sujeitos radicalmente livres, mas de pessoas imersas em uma série de estruturas sociais voltadas a conter os excessos de liberdade, garantindo a possibilidade da coexistência política de atores muito diversos. Na ausência da autoridade divina, que sentido existe em suportar os sofrimentos que nos são impostos pela vida em sociedade? Hobbes, que escreveu em períodos de intensa guerra civil, contentava-se com um governo que fizesse cessar a guerra. Porém, mesmo que a paz seja necessária (pergunte-se isso hoje a uma pessoa da Síria, do Iêmen ou da Ucrânia), ela não é suficiente para gerar a felicidade. O que Dostoiévski ressalta em suas obras é que a ausência de um sistema de valores religiosos deixa a vida sem sentido e, com isso, inviabiliza uma existência plena.

Em um famoso texto de 1918, Max Weber chamou de desencantamento do mundo o resultado do processo de racionalização das sociedades modernas que destruiu as formas de sociabilidade que davam sentido à existência das pessoas, de tal forma que o avanço da ciência parecia inafastável de uma espécie de empobrecimento espiritual (Weber 2011). Tal diagnóstico se ancora na percepção de León Tolstói de que a racionalização pode encher o homem moderno de pensamentos, mas não lhe oferece um sentido de plenitude, visto que uma racionalidade despida de metafísica somente pode lhe oferecer “o provisório, nunca o definitivo. Por esse motivo, a morte é, a seus olhos, não tem sentido. E porque a morte não tem sentido, a vida do civilizado também não o tem” (Weber, 2011). Nas palavras de Sara Lyons, o desencantamento significa que a vida humana foi reduzida a forças materiais calculáveis, o que estimulou a emergência de um sentimento de alienação, niilismo e tédio (2014).

Em meados do século XIX, essa percepção ganhou inclusive o nome de mal du siècle, que designa uma “profunda crise espiritual” (Hoog e Brombert, 1954), uma forma de “angústia metafísica perante a condição e o destino dos homens” (Peltier-Zamoyska, 1963), que atravessa os movimentos românticos e reflete o sentimento de inadequação das pessoas aos papéis desencantados que a modernidade lhes relega. Nos versos do jovem poeta Musset:

Tudo está bem limpo em suas estradas de ferro;
Tudo é grande, tudo é lindo - mas nós morremos em seu ar. [...]
A hipocrisia morreu, não acreditamos mais nos padres;
Mas a virtude morre, não acreditamos mais em Deus.
(Musset, 1841, p. 323)

Já em meados do século XX, Hoog e Brombert diagnosticaram que boa parte da literatura romântica deixou de comover as pessoas de um século depois, mas que “é por meio da noção de mal du siècle que nossa época ainda comunga com os valores de 1830” (1954). Nessa mesma época, Camus identificou que o desencantamento do mundo conduzia a um sentimento angustiante de vazio, que ele chamou de absurdo e que Sartre havia designado como a náusea: “a descoberta da contingência, ou seja, do fato da gratuidade da existência, que se revela absoluta, pois viver não é necessário, mas sim um ato contínuo de escolha” (Schneider, 2006). Camus escreveu “O Mito de Sísifo” em 1942 para lidar com o fato de que muitas pessoas, frente ao caráter absurdo da vida (ou seja, frente à falta de um sentido metafísico), não conseguiam justificar a necessidade de seguir vivendo em um mundo desencantado (Camus, 2019).

Acusados de defender ideias que fatalmente mergulhariam as pessoas em desespero, os existencialistas contestaram essa crítica. Sartre foi mais duro, e disse que os cristãos estavam “confundindo seu próprio desespero com o nosso”, pois apenas eles se desesperariam com o reconhecimento de que é preciso que as pessoas construam seus próprios caminhos e que nada pode salvar os homens de si próprios (1987, p. 18). Camus foi mais compreensivo no diagnóstico dessa angústia, chegando inclusive a defender que o único problema filosoficamente sério era o do suicídio: precisávamos julgar se valia ou não a pena enfrentar os sofrimentos do mundo sem que houvesse um sentido objetivo a ser perseguido. A resposta de Camus foi que, apesar da ausência de sentido metafísico, não deveríamos rejeitar o mundo, mas aceitar a nossa condição e viver com essa consciência. Tal resposta, porém, tendia a ser socialmente percebida como uma negação da espiritualidade, da verdadeira filosofia, dos valores morais e de tudo o que existe de mais caro às pessoas.

A recepção de Camus, de Sartre e de Nietzsche muitas vezes envolve o reconhecimento de que eles teriam feito uma crítica contundente à espiritualidade e à metafísica, mas não propuseram alternativas a elas. O monumental “Crime e Castigo”, de 1866, representa uma crítica mordaz ao vazio que era gerado pelas perspectivas materialistas e pelo relativismo moral que elas engendram, crenças que conduziram Raskólnikov a um crime que somente vem a ser redimido por uma aceitação tardia do cristianismo (Dostoiévski, 2016). Essa é uma crítica que até hoje mostra sua vitalidade, em uma época na qual o relativismo cultural tem sido atacado pelo conservadorismo atual como uma forma de enfraquecimento da tradição ocidental, que precisa ser defendida contra essa forma de dissolução das verdades metafísicas.

Signo da atualidade dessas críticas metafísicas ao relativismo valorativo das correntes historicistas é o fato de que um dos principais motivos que levou o diplomata Ernesto Araújo a ser escolhido pelo presidente ultradireitista Jair Bolsonaro como ministro das Relações Exteriores foi ter escrito um texto em que defendeu a ideia, tão cara ao núcleo ideológico do bolsonarismo, de que “somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente” (2017). Ernesto Araújo defendeu que o principal inimigo do Ocidente não é externo, mas é interno, é justamente a mentalidade que ele chama de pós-moderna, que nega os valores da família e da tradição: “Trump fala de Deus, e nada é mais ofensivo para o homem pós‑moderno, que matou Deus há muito tempo e não gosta que lhe recordem o crime” (2017).

Um dos maiores expoentes desse conservadorismo atual é Steve Bannon, um dos principais estrategistas da vitoriosa campanha de Donald Trump. Bannon se diz contrário ao que chama de “marxismo cultural secularista e humanista que é fundamentalmente oposto à moralidade judaico-cristã”. Em uma entrevista concedida ao influenciador digital Allan dos Santos, que foi disponibilizada no YouTube e posteriormente tornada privada, Bannon defende, inclusive, que políticos como Trump, Bolsonaro e Orbán deveriam dizer que já se cansaram de ver os marxistas culturais “tentando esmagar a moralidade judaico-cristã e que estamos preparados para colocá-los na linha”.

No contexto brasileiro, esse posto de intelectual orgânico da extrema direita foi ocupado na última década por Olavo de Carvalho, pensador qualificado por Bannon como um verdadeiro filósofo e um dos maiores intelectuais conservadores do mundo. Inspirado na crítica do filósofo Eric Voegelin à modernidade, Olavo caracterizava os pensadores que rejeitam a metafísica como filodoxos, que valorizam a opinião relativa (doxa), que não deve ser confundida com as verdades objetivas que interessam aos filósofos. Voegelin afirmava que, em toda sociedade, é necessário definir critérios para identificar o bem supremo (summum bonum), sem o que seria impossível diferenciar as condutas boas das ruins. Esses critérios deveriam ser buscados na própria natureza imutável e eterna dos homens, que envolveria uma necessária abertura da alma para a transcendência, sem a qual as pessoas seriam levadas a uma percepção distorcida de seu lugar na ordem natural (Voegelin, 1989).

A defesa de uma postura transcendental e teológica fez com que as ideias de Voegelin ganhassem eco nos Estados Unidos, durante a Guerra Fria, entre os conservadores anticomunistas (VoegelinView, 2009). Essa recepção de Voegelin estava ligada especialmente a suas duras críticas contra as abordagens filosóficas contemporâneas, como no seguinte trecho de uma conferência proferida em 1959:

Todas as opiniões expressas por aqueles que sustentam que o homem não precisa se preocupar com a participação na realidade transcendental - isto é, os imanentistas ou secularistas, para usar termos contemporâneos - caem na categoria de doxa, ou opinião no sentido técnico do termo. Portanto, os "imanentistas" ou "secularistas" são, na verdade, os espíritos desorganizados que são totalmente incapazes de conceber ideias sobre a ordem justa da sociedade. (Voegelin, 1989)

Ecoando as críticas de Voegelin ao historicismo antimetafísico da filosofia contemporânea, Olavo de Carvalho afirmou, no livro “Filosofia e seu inverso”:

Tanto em Platão quanto em Aristóteles ou em toda a filosofia escolástica, o Supremo Bem não é um “valor”, muito menos uma “criação cultural”, mas a realidade suprema, o ens realissimum, fundamento primeiro e objeto último de todo conhecimento. A repulsa que isso causa à sensibilidade moderna é notória. (Carvalho, 2012)

Segundo Olavo de Carvalho, a filosofia não pode ser confundida com o debate racional, porque mesmo quando assume a “aparência externa de uma discussão, como acontece nos diálogos platônicos, o objetivo ali não é ‘provar’ coisa nenhuma, mas trazer à mostra, tornar visível, algo que está para muito além da discussão e da prova” (Carvalho, 2012). A popularidade atual de Olavo de Carvalho, Steve Bannon e de outros intelectuais ligados à nova direita (alt-right) mostra que o embate que Comte caracterizou entre abordagens científicas e metafísicas não foi encerrado no século XIX. Devemos reconhecer que o avanço das teses positivistas, renovadas pelo neopositivismo do século XX, deixou nos meios acadêmicos um espaço muito reduzido para as perspectivas metafísicas que esses autores chamam de verdadeira filosofia.

Um dos pontos centrais desse embate é o que Max Weber diagnosticou como uma diferenciação das esferas de valor, que seria uma característica das sociedades modernas. Na Grécia antiga, tal como nas perspectivas metafísicas que se inspiram no seu legado filosófico, havia uma unidade valorativa que permitia que Platão sustentasse que “o belo, ou o justo, ou o que quer que seja, sejam um e o mesmo” (Carvalho, 2012). Essa abordagem permite que as pessoas vivam sua vida religiosa, moral, estética e utilitária dentro de um mesmo registro cultural, como se tudo fizesse parte de uma mesma ordem. Aquilo que é injusto é proibido, aquilo que é proibido é pecado, aquilo que é pecado é feio, aquilo que é feio desperta ojeriza, o que viabiliza uma harmonia entre as percepções religiosas, morais, artísticas e científicas.

Embora as sociedades tradicionais não tenham espaço para uma grande diversidade, elas tendem a oferecer um acolhimento muito grande às pessoas que compartilham a mesma visão de mundo. As narrativas tradicionais oferecem tanto uma descrição da realidade quanto uma justificação (religiosa, moral e/ou jurídica) das relações sociais em que estamos imersos. Tais narrativas culturais são importantíssimas, pois elas nos fornecem chaves de compreensão que permitem que cada um de nós desenvolva a sua própria subjetividade, a sua forma particular de ver o mundo.

Tais relatos tendem a justificar as relações sociais em que estamos imersos e a definir os papéis sociais que cada um de nós deve desempenhar: o que se espera dos filhos, dos cidadãos de bem, das esposas, dos maridos, dos governantes, dos policiais, dos médicos, dos professores. Se cada pessoa cumpre o seu papel (na linguagem jurídica, se cada pessoa cumpre os seus deveres), os comportamentos sociais se tornam previsíveis, e a sociedade, mais estável. Se hoje vivemos um tempo de instabilidade, é previsível que várias pessoas busquem segurança nas narrativas de Bannon e Olavo de Carvalho: os valores tradicionais estão em crise porque a modernidade os abandonou; a restauração desses valores é a única via aberta a uma reintegração que purifique as sociedades contemporâneas da corrupção em que estão imersas.

Esses ideais de purificação são o oposto do que pregava a modernidade, que enfrenta justamente o desafio de organizar sociedades plurais, em que é impossível realizar esse retorno à unidade. A resposta moderna não está na purificação, mas na construção de estratégias de tolerância mútua, de contenção dos desejos, de um paradoxal equilíbrio que inclua na mesma sociedade visões de mundo aparentemente incompatíveis.

2. A gestão do sofrimento

2.1 A opressão das tradições

Por volta do século XVI, a combinação de vários movimentos sociais relevantes na Europa (Reforma Protestante, grandes navegações, revolução científica) foi percebida por seus habitantes como uma ruptura tão substancial que permitiu qualificar como idade média (medium aevum) o período localizado entre a queda do Império Romano e a Reforma (Green, 1992). Todavia, foi somente no final do século XVII que se consolidou a tripartição entre os períodos antigo, medieval e moderno.

Embora a palavra ‘modernidade’ aponte para um movimento renovador, já faz bastante tempo que as inovações que ligamos à modernidade europeia deixaram de ser revolucionárias. Quando Hobbes propôs justificar a autoridade dos governantes no assentimento tácito dos súditos, ele inspirou uma alteração substancial nos discursos de justificação do poder político e na autonomia reconhecida aos indivíduos. Quando Descartes, propôs uma filosofia da consciência, ele contribuiu para uma efetiva transformação da autonomia que se atribuía ao exercício individual da razão. Porém, com o passar de alguns séculos, as propostas dos primeiros pensadores modernos já tinham perdido sua aura de novidade.

No século XIX, a combinação de iluminismo e revolução industrial representava uma ruptura tão grande nas estruturas políticas e culturais, que pareceu necessário modificar a periodização da própria história. Em língua inglesa, a época inaugurada por esses novos fenômenos foi chamada de Late modern period, em oposição ao Early modern period. Já os autores franceses foram mais audaciosos e cunharam uma terminologia que reconhece uma diferenciação ainda mais intensa: eles designaram o novo período como Époque contemporaine, cujo início foi previsivelmente fixado na Revolução Francesa.

O problema de usarmos o termo contemporâneo para designar uma era que começou há duzentos anos é que terminamos precisando de estabelecer um novo ponto de ruptura, para acentuar as particularidades dos modos atuais de organização política e de teorização filosófica. Esse novo marco, cuja ocorrência é normalmente fixada em meados do século XX, dá início ao que os historiadores de língua inglesa costumam chamar de Contemporary period. Em língua portuguesa, porém, é mais comum fazer referência a esse período pela paradoxal denominação de pós-modernidade: aquilo que veio depois do novo.

Essa construção somente se torna compreensível quando entendemos que a modernidade, enquanto categoria filosófica, ficou cristalizada como marcação da ruptura de uma idade média (que hoje é antiga) que se encerrou com a descoberta europeia de que havia novos mundos a explorar e dominar. Para articular minha narrativa com os demais discursos contemporâneos, continuarei chamando de “modernidade” o modelo de organização social que emergiu na Europa por volta de 1500 e que se impôs globalmente pelo colonialismo europeu, a partir do princípio que “tudo o que não é moderno não é civilizado; é atravessado pela marca da barbárie, da marginalização, da subalternidade” (Nascimento, 2009). Reservarei o termo “contemporâneo” para falar dos problemas atuais, visto que existem vários tradicionalismos contemporâneos que se opõem diretamente às perspectivas que descrevemos como modernas.

Na modernidade, não houve uma exclusão das visões religiosas, mas uma tentativa de acoplar numa mesma sociedade fés distintas, que deveriam ser igualmente respeitadas, o que deslocou as concepções religiosas para a esfera privada. Essa transformação da religião (e da moral religiosa) em uma crença privada viabiliza a organização política de uma sociedade multirreligiosa, mas gera uma dissonância cognitiva em pessoas que podem ter uma crença religiosa (em uma divindade dotada de intencionalidade) incongruente com suas crenças filosóficas (como a existência de uma ordem natural imutável) e incompatível com seus conhecimentos sobre a natureza (puramente materialista e causal) e sua ideologia política (que afirma a soberania do povo).

A dificuldade que a mesma pessoa tenha tantas esferas de valor dentro de si reforça o sentimento romântico do mal de siècle, que anseia por retornar a um passado ficcional, em que seria possível desenvolver o que Tolstói chamava de uma subjetividade plena (Weber, 2011). O indivíduo moderno repousa num equilíbrio frágil, pois embora toda pessoa seja radicalmente única, a ordem social depende de uma coordenação de atividades que exige um elevado grau de padronização dos papéis sociais. Os desejos, valores e expectativas de cada um de nós (ou seja, daquilo que qualificamos como uma vida feliz) terminam por ser mais variados que os papéis sociais que nos são reservados, o que gera uma sensação de que algo está sempre fora do lugar.

Sigmund Freud percebeu que essa fragmentação conduziu vários dos seus contemporâneos do início do século XX a construir uma tese curiosa de que “seríamos bem mais felizes se a abandonássemos e retrocedêssemos a condições primitivas”, que viabilizassem a unidade perdida. Porém, Freud notou que o desejo de retornar ao tempo imaginado das tradições dissolvidas pela vida moderna não seria um remédio adequado para o sentimento que ele caracterizou como o “mal-estar do homem na civilização”: um desconforto que decorre do reconhecimento de que o avanço científico da modernidade elevou nossa capacidade de intervir no mundo, mas “não elevou o grau de satisfação prazerosa que esperam da vida, não os fez se sentirem mais felizes” (Freud, 2010). Ele compreendeu bem que as raízes desse desconforto eram mais radicais: não se tratava de um problema específico da civilização moderna, mas de um desafio da vida em comunidades políticas, cuja estabilidade exigia de cada indivíduo o sacrifício de seus desejos primários de satisfação sexual e de violência contra os inimigos.

Existe uma grande pressão no sentido de que devemos nos adaptar aos papéis sociais existentes, para podermos ter uma vida acoplada ao ambiente cultural em que estamos imersos. Uma velha sabedoria indica que o indivíduo deve ser adaptar ao ambiente, pois é muito difícil que o ambiente se adapte aos desejos de um indivíduo. Não devemos nos contrapor ao fluxo do tao, não devemos nos rebelar contra o nosso destino, devemos aceitar o nosso karma, e de nada adianta se postar contra a providência divina.

Apesar disso, cada um de nós tende a sentir uma certa inadequação (maior para uns, menor para outros) entre os papéis sociais que nos são impostos pela cultura e a vida que desejaríamos viver. Freud identificou bem que desejamos a vida em sociedade (com a estabilidade que ela gera), mas que essa vida social exige que nós nos abstenhamos de realizar vários dos nossos impulsos. Alguns desses desejos foram mapeados por George Orwell, numa resenha que escreveu ainda em 1940 sobre o livro Mein Kampf, afirmando que Adolf Hitler havia compreendido bem os limites de uma atitude hedonista.

Quase todo o pensamento ocidental desde a última guerra, e certamente todo o pensamento "progressista", assumiu tacitamente que os seres humanos não desejam nada além de conforto, segurança e não sofrer. Em tal visão da vida, não há espaço, por exemplo, para o patriotismo e as virtudes militares. O socialista que encontra seus filhos brincando com soldados geralmente fica chateado, mas nunca é capaz de pensar em um substituto para os soldadinhos de chumbo; os pacifistas de chumbo, de alguma forma, não servem. Hitler, porque sente isso com força excepcional em sua própria mente infeliz, sabe que os seres humanos não querem apenas conforto, segurança, jornadas de trabalho curtas, higiene, controle de natalidade e, em geral, bom senso; eles também querem, pelo menos intermitentemente, luta e autossacrifício, sem mencionar tambores, bandeiras e desfiles de lealdade. (Orwell, 1940)

Essa descrição de Orwell está bem alinhada com as percepções do próprio Freud, que sustentava a tese hobbesiana de que o homem é o lobo do homem.

O elemento de verdade por trás de tudo isso, que as pessoas estão tão dispostas a negar, é que os homens não são criaturas gentis que querem ser amadas e que, no máximo, podem se defender se forem atacadas; são, ao contrário, criaturas que possuem, entre seus atributos instintivos, uma grande parcela de agressividade. Como resultado, o próximo é para eles não apenas um ajudante em potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sua agressividade sobre ele, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, a usá-lo sexualmente sem seu consentimento, a apoderar-se de seus bens, a humilhá-lo, a causar-lhe dor, a torturá-lo e a matá-lo. (Freud, 2022)

Por mais que seja importante para nós viver na civilização, o preço que pagamos em termos de sofrimento individual pode ser bastante alto: "o homem se torna neurótico porque não pode suportar a medida de privação que a sociedade lhe impõe, em prol de seus ideais culturais" (Freud, 2010). A resposta tradicional a esse conflito é de reafirmar a prevalência da cultura (do bem, do divino, da lei) sobre os desejos individuais. As perspectivas tradicionais do indivíduo que busca a sua própria realização fatalmente entram em choque com a sociedade, e os valores sociais devem prevalecer sobre os desejos individuais. Os filósofos antigos (e modernos) buscaram alterar essa equação, questionando a prevalência automática da tradição, sob o argumento de que os valores tradicionais são repletos de preconceitos, de obscurantismo, de atraso. Se temos algum critério para definir os deveres objetivos de cada pessoa, ele não pode ser a cultura (que é contingente), mas precisa ser a própria natureza (que é imutável e universal).

A possibilidade de criticar a tradição decorre da percepção filosófica de que a realidade percebida não corresponde à verdadeira realidade: observamos o mundo e podemos enxergar a existência de preconceitos, de injustiças sociais, de privilégios, de riscos ecológicos, de uma ineficiência das instituições políticas. Essa realidade que percebemos não corresponde exatamente à realidade que nos foi descrita pela nossa cultura (especialmente, pela nossa família), pois essas narrativas culturais naturalizam as relações de opressão existentes na sociedade e justificam uma série de injustiças.

A crítica filosófica à tradição exige um outro tipo de terreno para que sejam justificadas as limitações à liberdade individual: os limites não estão mais nos valores tradicionais, mas nos direitos naturais, em certas relações que decorreriam diretamente da natureza, e não da cultura, como a igualdade entre homens e mulheres e o direito a não ser escravizado.

2.2 O desassossego dos modernos

A filosofia moderna buscou superar a divergência religiosa pela afirmação de uma unidade valorativa, baseada diretamente na natureza, e capaz de justificar a construção de uma série de instâncias de controle social. Portanto, a modernidade não rompe a existência de certos parâmetros imutáveis que podem limitar a liberdade individual. Os filósofos modernos tentam escapar da acusação tradicional de que, "se Deus não existe, tudo é permitido", afirmando que certos direitos são naturais e podem ser descobertos pelo intelecto humano, e esse giro conduz a uma renovação do sofrimento decorrente da civilização: o alto preço que pagamos no nível individual para ter os benefícios de uma vida em sociedade.

Freud percebeu que esse sofrimento estimulava a ilusão romântica de que o sofrimento imposto pelas estruturas sociais poderia ser enfrentado por meio de um retorno à vida primitiva e à unidade valorativa proporcionada pelas sociedades tradicionais. Porém, ele foi um crítico mordaz desse tipo de resposta, que lhe parecia inadequada para superar a modernidade, visto que não é possível simplesmente dissolver a multiplicidade valorativa em que estamos imersos. A narrativa de Freud não deixava espaço para utopias totalizantes, pois o seu diagnóstico indicava simplesmente que não era possível superar essa tensão entre o individual e o coletivo, visto que se tratava de uma tensão constitutiva da vida de indivíduos imersos em uma experiência social. Como sintetizou Bauman, “a defesa contra o sofrimento gera seus próprios sofrimentos” (Carvalho, 2012).

O sentimento de desamparo pode nos impelir à busca religiosa por uma autoridade absoluta ou pela segurança ilusória que projetamos no passado, mas a ideia de que o retorno a uma unidade religiosa conseguiria equilibrar as sociedades modernas somente pode ser uma utopia plausível para quem não conhece o resultado das guerras religiosas europeias, que desgastaram aquelas sociedades até que o reconhecimento de um “empate técnico” entre católicos e protestantes conduziu a uma organização social que privatizou a esfera religiosa para viabilizar a construção de uma ordem política una.

A coesão social possibilitada pela construção da tolerância recíproca entre católicos e protestantes é tênue, visto que se trata de dois grupos que hoje nos parecem tão próximos que é difícil imaginar que eles realizaram tantas guerras para purificar a sociedade e retornar à unidade perdida. Mesmo na Europa, os grupos que hoje se contrapõem têm divergências muito maiores, pois envolvem identidades sexuais, étnicas, culturais e religiosas mais intensas do que aquelas que o sistema político moderno foi desenhado para abarcar.

Esse alcance limitado do projeto moderno não causa espanto aos habitantes das nações que Donald Trump chamou de “shithole countries” (literalmente, países de merda) (Schwartsman e Schwartsman, 2018), que foram submetidas a processos de colonização e que permanecem imersas em uma colonialidade (Quijano, 2011) caracterizada pela manutenção, mesmo após suas independências, de um poder político marcado pela seletividade étnica ou racial. Para a América Latina e a África, é evidente que a modernidade envolveu “um específico modo de exercício de poder, que tem uma específica maneira de articular conhecimentos para a validação desse modo de exercer o poder, fundado em uma geopolítica” (Nascimento, 2009). Curiosamente, a relação das metrópoles com os países colonizados sequer buscou transportar a ideia de que o governo decorreria de um contrato que exprimia a autonomia natural dos cidadãos: uma vez que os europeus descobriram a forma política necessária do exercício da autonomia individual, eles podiam se dedicar a implantar entre nós essas formas específicas de dominação fundadas em uma naturalização do caráter subalterno das culturas não-europeias. No desenho eurocentrado da modernidade, a geopolítica que emerge é justamente a expansão do poder das potências centrais uma pilhagem das nações periféricas, realizada em nome da expansão do estado de direito (Mattei e Nader, 2008).

Ocorre, porém, que tanto nos países centrais como nos periféricos, a modernidade resultou em uma integração seletiva da pluralidade social. A estratégia de evitar conflitos religiosos por meio do deslocamento da religião para a esfera privada somente poderia operar em contextos nos quais as concepções de bem dos vários grupos sociais fossem tão próximas que emergissem intensas convergências valorativas em torno dos direitos naturais. Como indica Miroslav Milovic, apesar do discurso de liberdade e autonomia, a modernidade permaneceu fechada à diferença e ligada à defesa de certos lugares privilegiados (Milovic, 2005). Uma vez que os discursos modernos estavam vinculados a uma noção eurocentrada de direitos naturais, a aplicação dessa lógica conduzia à naturalização das concepções de matriz europeia, constituída por uma estranha mescla de liberalismo e cristianismo: somos livres e autônomos, mas apenas para realizar os valores reconhecidos na tradição compartilhada por católicos e protestantes.

A unidade cultural pressuposta para que a ideologia moderna operasse com eficiência nunca esteve presente nas antigas colônias e, ao longo do século XX, a crescente pluralidade das sociedades contemporâneas colocou em xeque a viabilidade de produzir sociedades estáveis por meio desses processos de homogeneização, tanto nos centros (global e local) quanto nas periferias. No final do século XX, acirram-se tanto as críticas ao tradicionalismo moderno e começam a ter sucesso diversas lutas pelo reconhecimento de identidades (étnicas, raciais, de gênero e sexuais) que colocam em risco o privilégio das velhas tradições cristalizadas na forma de direitos e valores naturais.

No campo filosófico, essa reviravolta assumiu a forma de uma crítica radical da metafísica ocidental: a expressão dos valores tradicionais como se fossem naturais. Esse movimento foi percebido, por grupos conservadores, como uma espécie de ataque aos valores naturais, que precisavam ser defendidos contra os avanços dessa pauta progressista, o que desencadeou embates tão acirrados e polarizados que James Hunter os designou como uma “guerra cultural” (Hunter, 1991). É compreensível que as perspectivas religiosas e conservadoras entendam o desencantamento do mundo como uma perda gradual de sentido e como um afastamento dos verdadeiros valores, como uma imposição de uma multiplicidade de ordens que inviabilizam que os homens vivam em harmonia com sua própria natureza e, dessa forma, realizem plenamente as suas potencialidades (Voegelin, 1989). Tal percepção levou vários grupos sociais a se mobilizarem em torno de novos platonismos, voltados a restaurar um mundo em que a unidade fosse possível, especialmente a difícil unidade entre religião e racionalidade, que permitiria uma vida plenamente significativa.

Michel Maffesoli identifica nesse movimento um desejo de reencantamento do mundo, que “as elites instituídas não podem ou não querem entender” (2014). Um retorno aos valores tradicionais que opera em um nível emocional, e não na chave racionalizante da modernidade. “Histerias esportivas, festivais musicais, fanatismos religiosos, revoltas políticas imprevistas, mimetismos tribais de todas as ordens, não são compreensíveis exceto quando sabemos desconstruir o bem-pensar hegemônico, e perceber o retorno de uma ordem de coisas arcaica” (Maffesoli, 2014). Maffesoli ressalta “a sinergia entre o arcaico e o desenvolvimento tecnológico”, uma vez que as redes sociais se estruturam de forma orgânica, por meio do agrupamento de núcleos valorativamente homogêneos, em que é possível um acirramento da tribalização: um retorno a comunidades estruturadas em torno de um conjunto estável de mitos compartilhados. Tal retorno do mito, de uma verdade assentado no compartilhamento e não na fundamentação, é um signo de antimodernidade.

O desassossego com a pluralidade estimula o avanço de perspectivas que consideram ilusórias as multiplicidades, pois apenas a unidade é a verdade última das coisas. Como dizia Hegel: “a verdade é o todo” (Hegel, 2009). Esse holismo atravessa concepções muito diferentes, mas unidas pela ideia de que perdemos a ligação com o vínculo que nos unia a todos em uma comunhão: o vínculo com a natureza, com a ancestralidade, com a tradição, com a religiosidade. Porém, devemos reconhecer que o argumento de que a geração atual está perdida porque abandonou os verdadeiros valores já estava bem estabelecido nos Analectos de Confúcio (2009), há cerca de 2500 anos. A busca de restauração da unidade perdida, de resgate dos valores abandonados, de um retorno à natureza, é um tema recorrente no pensamento conservador.

Subjaz a essa concepção a noção de que existe uma ordem natural, que deve ser espelhada pelas nossas organizações sociais, caso elas pretendam ser justas e estáveis. Sempre houve uma luta para identificar quem seria o intérprete privilegiado dessa ordem, e a solução da modernidade foi enfrentar esse conflito na busca de estabelecer um núcleo essencial, que deveria ser compartilhado entre todos os grupos humanos: os valores que decorreriam de nossa própria racionalidade e que, portanto, seriam dotados de uma validade objetiva. Os pensadores modernos deslocaram o restante do que cada sociedade entendia como uma ordem natural (incluindo as autoridades religiosas e os costumes) para o campo do que não é racionalizável: as idiossincrasias, os gostos, os sentimentos religiosos, as lealdades nacionais.

3. A insustentável leveza da pós-modernidade

3.1 O sofrimento na modernidade líquida

A segmentação moderna permitiu construir uma ordem natural deflacionada (apresentada como o conjunto dos direitos naturais), capaz de acomodar várias perspectivas dentro da mesma sociedade. Por mais que a modernidade tenha construído discursos de valorização da abertura e da tolerância, a ideia de que a multiplicidade é inevitável continua sendo incômoda para muitas pessoas. Afinal, ela impossibilita a reconstrução de uma grande narrativa, que consolide todas as nossas percepções em uma unidade.

Apesar da constante oposição de um holismo conservador, que defende as virtudes de uma sociedade unitária, as sociedades modernas se tornaram cada vez mais plurais. As perspectivas conservadoras tendem a valorizar o todo (holos, em grego), conferindo especial relevância à manutenção da harmonia social e guardando reservas com relação a perspectivas que acentuam a liberdade individual de se contrapor aos valores tradicionais. Ocorre que a pluralidade tolerada pelas perspectivas modernas se mostrou bastante relativa: a abertura estava limitada aos comportamentos e ideias que pareciam potencialmente aceitáveis para a maioria da sociedade e, com isso, não comprometiam demasiadamente as expectativas sociais de estabilidade.

No início, houve a construção de um ideal de tolerância religiosa, mas limitada apenas ao cristianismo, o protestantismo e o judaísmo. Houve um questionamento da diferença entre nobres e plebeus, mas que deixava intacta (ou até mesmo reforçava) outros tipos de divisões sociais: estrangeiros e nacionais, civilizados e selvagens, mulheres e homens, negros e brancos. No século XX, a luta por igualdade passou justamente pelo questionamento de posições que não foram devidamente tematizadas pelo liberalismo do século XIX, tais como o lugar social das mulheres, a multiplicidade de orientações sexuais e de papéis de gênero, os direitos dos migrantes e das minorias raciais e religiosas.

Não por acaso, a valorização da pluralidade que se opunha ao conservadorismo religioso hegemônico está no núcleo do que veio a ser chamado de pós-modernidade, denominação que foi cunhada em 1970, em um ensaio intitulado “A condição pós-moderna” (Lyotard, 2009). Nesse texto, Lyotard diagnosticou a inviabilidade contemporânea dos discursos movidos por um desejo de unidade totalizante. Ele sustentou que toda grande narrativa foi fragmentada em pequenas narrativas, que tornam compreensíveis certas parcelas de nossas experiências, mas que não é possível unificá-las na forma de um grande sistema filosófico e, menos ainda, como o grande sistema filosófico/estético/religioso/político esperado pelos metafísicos que ainda creem na existência de uma ordem natural a ser descoberta. Nesse ponto, Lyotard seguia a intuição anti-hegeliana de Theodor Adorno, de que “a totalidade é o falso” (Adorno, 2005).

Devemos ressaltar que esse diagnóstico de ruptura epistemológica não deve ser percebido imediatamente como uma descontinuidade social. Quando enfocamos as instituições políticas contemporâneas, e não os discursos teóricos, é comum que percebamos mais continuidades do que rupturas, o que estimula o diagnóstico de que ainda não vivemos propriamente em um mundo além dos limites da modernidade. Anthony Giddens, por exemplo, adota uma abordagem sociológica que o leva a diagnosticar que “em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes” (1991). Creio que essa conclusão é justificada pelo fato de que as instituições políticas contemporâneas podem ser bem descritas como versões radicalizadas das instituições modernas: parlamentos mais inclusivos, eleições universais, igualdades ampliadas, proteções sociais mais abrangentes, centralidade crescente do papel da ciência.

O caráter moderno da sociedade contemporânea se revela especialmente na persistência do paradoxo constituído pela forma moderna de propiciar coesão social a sociedades complexas: buscar em uma natureza humana certos pontos de validade absoluta, que possam ser impostos a todas as pessoas (e a todas as culturas) por meio do exercício do poder político. Por um lado, a manutenção dessas propostas de reintegração é contestada pelas correntes tradicionalistas, que apostam na unidade valorativa como única forma de garantir a coesão social. Aparentemente, as consequências sociais da modernidade estimulam a ilusão de que existe uma espécie de paraíso pré-moderno, em que seria possível uma vida plena, desde que fossem restaurados os valores perdidos. Porém, a radicalização da modernidade tem levado a relações sociais cada vez mais incompatíveis com as mitologias pré-modernas, pois longe de estimular a reconstrução das identidades comunitárias do passado, o contexto atual tem estimulado a ideia de que é preciso constituir subjetividades adequadas aos acelerados processos de mutação nas formas de vida, especialmente nas formas de trabalho.

Por outro, a própria tese de que uma sociedade unificada é desejável é questionada pelos pensadores pós-modernos, que rejeitam tanto as tentativas de integração totalizante dos tradicionalistas quanto as tentativas barrocas dos modernos de afirmar a existência de limites naturais ao direito de liberdade. As críticas pós-modernas reconhecem o caráter híbrido das instituições sociais e a inviabilidade de uma utopia modernizante, também purificadora, que espera construir a unidade a partir da implantação dos projetos iluministas (Costa, 2020). As teorias pós-modernas tentam lidar com os paradoxos e os limites da racionalidade moderna, o que deixa pouco espaço para os projetos baseados em uma metafísica de unidade.

Por fim, existe uma dificuldade interna da própria modernidade em oferecer soluções para os problemas contemporâneos porque algumas das configurações sociais que têm emergido nas últimas décadas desafiam as utopias modernizantes. A pandemia de Covid-19, por exemplo, recolocou no debate público questões que pareciam estabilizadas, como a limitação de liberdades individuais em nome do bem-estar coletivo. Mas já enfrentávamos há tempos uma série de desafios que exigem uma coordenação em nível planetário, especialmente as questões ambientais que podem alterar radicalmente as condições de vida na Terra. A uberização do trabalho e as novas tecnologias desafiam os sistemas de proteção dos trabalhadores e colocam em xeque a própria noção de contrato de trabalho, como forma básica de organização da atividade econômica.

A organização política moderna é fundada em uma multiplicação de instâncias reguladoras, de compromissos políticos impostos por um governo central, cuja eficácia é desafiada por novas formas de organização social e política. Muitas pessoas defendem que o desafio atual não é o de restaurar os valores tradicionais, mas o de adaptar-se aos modos de vida da atualidade, que geram formas particulares de sofrimento. Nesse contexto, Zygmut Bauman diagnosticou uma nova fonte de sofrimento psíquico: enquanto Freud entendeu que o desconforto das pessoas com a modernidade estava no fato de que as necessidades sociais de ordem deixavam pouco espaço para a liberdade individual, “os homens e as mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade” (Bauman, 2012).

O mal-estar da pós-modernidade decorreria de um sentimento de desamparo, acarretado pela perda da segurança que era oferecida pelos grandes sistemas de moralidade. No contexto atual, vivemos relações sociais com um alto grau de incerteza (sobre o futuro, sobre a maneira correta de viver, sobre os modos de se relacionar com as outras pessoas) e essa incerteza já não é vista como um inconveniente, mas como uma característica permanente e irredutível (Bauman, 2012), e até mesmo desejável. Para descrever esse fenômeno, Bauman deixou de falar de pós-modernidade e adotou a denominação de modernidade líquida, para indicar (tal como Giddens) que as organizações sociais contemporâneas não são fruto de uma ruptura dos processos de modernização, mas de sua própria consolidação, que fez com que as organizações sociais (e não as teorias) passassem uma fase sólida para uma fase líquida:

[...] uma condição em que as organizações sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável) não podem mais manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam. (Bauman, 2007)

Essa modernidade líquida foi largamente descrita por Bauman como uma nova realidade, que se impôs nas últimas décadas, modificando as relações de trabalho, as relações afetivas, as relações políticas. É perceptível que Bauman, que nasceu em 1925, fala de uma insegurança existencial que ele próprio sente e que viu se desenvolver durante sua longa vida (ele faleceu em 2017), mas da qual ele fala “sem saudosismo” (Basílio 2010) e sem propor qualquer forma de restauração da modernidade sólida ou de um retorno romântico à pré-modernidade. Esse modo de encarar os novos tempos como um desenvolvimento social a ser reconhecido e analisado parece realizar a indicação de Lyotard, em 1979, que a crise existencial desencadeada pela crise dos grandes relatos gerou inicialmente uma reação pessimista, um forte luto acarretado pela perda das certezas metafísicas, mas que “pode-se dizer hoje que o tempo do luto foi consumado. Não se deve recomeçá-lo” (Lyotard, 2009, p. 74). Era preciso adaptar-se aos novos tempos.

Todavia, passados quarenta anos da publicação do texto em que inseriu no campo filosófico a noção de pós-modernidade, parece que Lyotard foi muito apressado em dizer que “a própria nostalgia do relato perdido desapareceu para a maioria das pessoas” (Lyotard, 2009, p. 74). Creio que mais razão tem Maffesoli ao indicar que “na vida social em sua totalidade, predominam as reações emocionais, o jogo do ‘como se’, os devaneios. Essa necessidade de reencantamento do mundo que as elites instituídas não podem ou não querem entender” (Maffesoli, 2014).

Lyotard provavelmente tem razão no que toca às grandes narrativas filosóficas, ligadas à ideia de uma fundamentação racional da política ou da ciência, cuja defesa já não mobiliza a atenção dos intelectuais. Como afirma Richard Rorty, embora continue sendo relevante encontrar razões econômicas ou psicológicas que nos ajudem a explicar os fenômenos sociais, os pensadores contemporâneos se desinteressaram de buscar justificações filosóficas ou religiosas para os nossos comportamentos, pois a religião e o platonismo passaram a ser entendidos como “fantasias escapistas” (Rorty, 2005).

3.2 A revolta da tradição

Os próprios filósofos praticamente deixaram de lado a necessidade de uma justificação metafísica da política e do direito, que marcou o início da modernidade. Porém, isso não quer dizer que a sociedade em geral tenha acolhido tranquilamente os ataques contemporâneos à metafísica. Se os intelectuais estão mais dedicados a compreender a condição pós-moderna como um dado factual e a buscar maneiras de transformá-la, existe um movimento anti-intelectual, de matriz religiosa e conservadora, que tem se dedicado a promover uma restauração dos valores tradicionais que foram contestados pela modernidade como um todo, e não apenas por sua fase líquida.

Embora o incômodo do conservadorismo religioso com a insegurança e a fluidez da condição pós-moderna seja compreensível, a reação que tem sido gestada causa estranhamento, pois ela envolve a criação de uma teoria da conspiração baseada na ideia de “marxismo cultural”. Olavo de Carvalho defendia já em 2002 uma tese que veio a se tornar comum na extrema direita contemporânea: a de que existe um ataque concertado de pensadores marxistas para destruir os valores ocidentais: “destruir a cultura, destruir a confiança entre as pessoas e os grupos, destruir a fé religiosa, destruir a linguagem, destruir a capacidade lógica, espalhar por toda parte uma atmosfera de suspeita, confusão e ódio” (Carvalho 2002).

Não se trata de uma narrativa original, pois, como identificou Jérôme Jamin, essa teoria da conspiração emergiu em círculos políticos conservadores dos EUA no início dos anos 1990, e desde então tem se tornado cada vez mais influente em grupos de extrema direita (2018). Segundo Jamin, esse discurso “alega que o objetivo principal do marxismo cultural era muito menos honrado do que mera pesquisa acadêmica com a finalidade de entender a dinâmica cultural do capitalismo, sendo visto por muitos como uma ideologia perigosa que buscou ‘destruir tradições e valores ocidentais’” (Jamin, 2018). Essa tese se tornou especialmente conhecida quando foi incorporada pelo político conservador estadunidense Pat Buchanan, em um livro de 2002, chamado eloquentemente de The Death of the West.

At Horkheimer's direction, the Frankfurt School began to retranslate Marxism into cultural terms. The old battlefield manuals were thrown out, and new manuals were written. To old Marxists, the enemy was capitalism; to new Marxists, the enemy was Western culture. […] To new Marxists, the path to power was nonviolent and would require decades of patient labor. Victory would come only after Christian beliefs had died in the soul of Western Man. And that would happen only after the institutions of culture and education had been captured and conscripted by allies and agents of the revolution. (Jamin, 2018)

Somente esse plano malévolo poderia explicar o avanço do relativismo e do respeito à diversidade, que a extrema direita dos EUA tende a chamar de politicamente correto, englobando sob este rótulo todos os seus adversários. Nas palavras de Samuel Moyn, “according to their delirious foes, ‘cultural Marxists’ are an unholy alliance of abortionists, feminists, globalists, homosexuals, intellectuals and socialists who have translated the far left’s old campaign to take away people’s privileges from ‘class struggle’ into ‘identity politics’ and multiculturalism” (Moyn, 2018). Em uma sociedade acostumada a pensar no marxismo como um risco, ganhou espaço a tese de que o marxismo tinha passado da arena econômica (em que foi vencido com a queda do Muro de Berlim) para a arena cultural, na qual ele tinha vencido. Nas palavras eloquentes e “politicamente incorretas” de Olavo de Carvalho:

Em poucas décadas, o marxismo cultural tornou-se a influência predominante nas universidades, na mídia, no show business e nos meios editoriais do Ocidente. Seus dogmas macabros, vindo sem o rótulo de “marxismo”, são imbecilmente aceitos como valores culturais supra-ideológicos pelas classes empresariais e eclesiásticas cuja destruição é o seu único e incontornável objetivo. Dificilmente se encontrará hoje um romance, um filme, uma peça de teatro, um livro didático onde as crenças do marxismo cultural, no mais das vezes não reconhecidas como tais, não estejam presentes com toda a virulência do seu conteúdo calunioso e perverso. (Carvalho, 2008)

Para tal perspectiva, o marxismo cultural representa uma ameaça à tradição ocidental, que precisa ser combatida com especial força porque não se trata de uma ameaça distante, mas de um plano de dominação cultural que teve êxito e que precisa ser desmantelado. Embora deixe claro que o marxismo cultural seja uma peça de ficção, Moyn esclarece que tal narrativa tem circulado cada vez mais amplamente em círculos conservadores e que ela tem sido usada para justificar uma reação, inclusive violenta, para defender os “valores ocidentais” e a “moralidade cristã” contra gays, lésbicas, feministas, imigrantes e comunistas (Moyn, 2018). Uma vez que o pensamento conservador descreve que o maior inimigo da verdadeira tradição é o ataque intencional e concertado de mestres malignos (Carvalho, 2008) que dominam o campo da cultura, atacá-los nada mais é do que um exercício de legítima defesa. Não é por acaso que o ativista de extrema direita norueguês Anders Breivik, que matou 77 pessoas em 2011, invocou repetidas vezes o “marxismo cultural” como justificativa para os seus atos (Jamin, 2018; Moyn, 2018).

Creio que o mais curioso dessa tese sobre o marxismo cultural seja o fato de que, ao longo do século XX, vários pensadores socialistas também dirigiram críticas severas à filosofia contemporânea, justamente por considerar que a crítica aos valores objetivos significava uma adesão implícita ao status quo. Essas críticas levaram Jean-Paul Sartre a formular uma conferência, em 1945, na qual defendia o existencialismo contra as críticas simultâneas dos comunistas e dos cristãos. Os comunistas o acusavam de professar uma filosofia burguesa, meramente contemplativa e descomprometida com a transformação social. Já os cristãos o acusavam de haver negado os valores humanos fundamentais, na medida em que a gratuidade do mundo suprime os mandamentos de deus e os valores eternos. Uns e outros acusam o existencialismo de haver negado a possibilidade de um sentido metafísico para o mundo, que justificasse objetivamente a revolução ou a salvação, fomentando com isso a apatia, a inação e o desespero (Sartre, 1987).

Submetido a críticas semelhantes, Nietzsche ressaltou em toda sua obra que ele não era um niilista: ele não é um negador de tudo o que está aí, mas um afirmador de que a metafísica é uma forma de sensibilidade que deveria ser abandonada, porque “Deus morreu”. Assim como Comte se viu levado a se qualificar como positivista, Nietzsche precisou defender que a rejeição da metafísica não era uma simples negação, porque o que propunha era justamente acentuar o caráter criativo da cultura. Não se tratava de descobrir entidades metafísicas, mas de compreender os processos por meio dos quais as interações sociais criam, instauram, produzem valores. Sartre tentou escapar desse tipo de crítica defendendo que o existencialismo é um humanismo peculiar, que ele chamou de humanismo existencialista:

Humanismo, porque recordamos ao homem que não existe outro legislador a não ser ele próprio e que é no desamparo que ele decidirá sobre si mesmo; e porque mostramos que não é voltando-se para si mesmo, mas procurando sempre uma meta fora de si – determinada libertação, determinada realização particular – que o homem se realizará precisamente como ser humano. (Sartre, 1987)

Sartre não parecia muito interessado em se conciliar com os cristãos conservadores, mas ele tampouco conseguiu convencer os comunistas ateus (que eram comprometidos com os ideais de uma igualdade imanente dos seres humanos) nem os comunistas cristãos (comprometidos com o caráter metafísico de sua moralidade), pois insistiu em afirmar a inexistência de um sentido externo objetivo para nossas ações. E, de quebra, conseguiu desagradar também os existencialistas, pois essa ideia de que o homem se realiza procurando uma meta fora de si pareceu uma concessão demasiada às teses metafísicas.

A dificuldade de Sartre em conciliar suas perspectivas filosóficas com as de pessoas que tinham ideais políticos semelhantes aos seus mostra que a ausência de uma utopia transcendente pode fazer com que as pessoas de sensibilidade metafísica considerem que falta alguma coisa ao materialismo. Porém, os pensadores materialistas simplesmente não têm como colocar nada no lugar da ordem natural e dos princípios metafísicos, justamente porque eles creem que esse lugar da metafísica deve permanecer vazio. Não lhes cabe oferecer uma metafísica alternativa, por mais que muitas pessoas os critiquem por se desviarem de um modelo filosófico voltado a recauchutar a metafísica, em vez de abandoná-la completamente.

Se tivessem um olhar menos paranoico e autocentrado, os inimigos declarados do “marxismo cultural” entenderiam que a filosofia contemporânea não tem como adversário o sistema dos valores tradicionais da família judaico-cristã, porque sua pretensão é mais ampla: trata-se de combater toda forma de metafísica, inclusive as socialistas. Mas parece que nossa espécie tem uma tendência a supor que nossos inimigos são aliados entre si, pois todos são contra nós, sendo que tal percepção pode conduzir a situações absurdas, como as descritas por Hans Kelsen no prefácio da 1ª edição da Teoria Pura do Direito, de 1934:

Os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu espírito é - asseguram muitos - aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros creem reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do Estado e do Direito. E não falta também quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta. Em suma, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não se tenha ainda tornado suspeita. (Kelsen, 1992)

Parece-me que a fina ironia de Kelsen contém o diagnóstico mais adequado das reações de todas as metafísicas contra a abordagem neopositivista que ele propôs para a ciência jurídica: as metafísicas buscam desqualificar a teoria que não lhes concede espaço algum. Ocorre que a sensibilidade metafísica, que era dominante em meados do século XX, quando Sartre e Kelsen escreveram suas obras, continua mostrando sinais de ser ainda a perspectiva dominante, seja na sua versão teológica (ligada a uma intencionalidade divina) ou abstrata (ligada a uma ordem natural despersonalizada).

Olavo de Carvalho tinha razão ao diagnosticar que a defesa tradicionalista dos valores cristãos não tem espaço favorável no ambiente acadêmico contemporâneo. Essa rejeição parece bastante compatível com a modernidade, que relegou a religião à esfera do privado justamente por reconhecer a impossibilidade de que sociedades complexas se articulem politicamente a partir de uma crença religiosa particular.

Por outro lado, as teses metafísicas mais abstratas são moeda corrente nos meios acadêmicos. Na tripartição de Comte, as perguntas descritas por Cortella e por Reale seriam classificadas no estágio metafísico, na busca ficcional pela natureza íntima das coisas, pelos princípios absolutos que deveriam compor a ordem universal. A teoria do direito lida com uma série de conceitos naturalistas, especialmente aqueles ligados ao ideário liberal, que considera naturais uma série dos direitos fundamentais. O avanço das políticas identitárias muitas vezes é permeado por uma noção naturalista muito aproximada do dogmatismo religioso: a igualdade das mulheres pode ser apresentada como uma conquista, mas também pode ser apresentada como uma realização de uma igualdade natural. Os direitos fundamentais podem ser lidos historicamente como uma construção política, mas também podem ser lidos na chave da realização de ideais de justiça imanentes, que justificam uma postura missionária voltada a concretizar os princípios constitucionais. O exemplo mais evidente dessa postura é a defesa de Roberto Barroso de que o STF tem uma função de vanguarda iluminista, na medida em que lhe cabe avançar a realização dos verdadeiros princípios (2018).

A contraposição de duas metafísicas dificilmente conduz a uma situação estável, quando ambas se consideram válidas de um ponto de vista objetivo. A polarização ideológica que vivemos hoje reforça a percepção missionária de todos os lados envolvidos e pode justificar a percepção de que o que existe é uma guerra de valores objetivos contra uma ameaça. Essa situação beligerante coloca em risco a estrutura política moderna, que é baseada na construção de uma esfera política laica, na qual as decisões sejam tomadas por meio de acordos de interesse e não de imposições da verdade e da fé, que têm uma tendência a se manifestar em um messianismo salvacionista e purificador.

3.3 Filosofia e diferença

No século XX, o avanço dos discursos purificadores esteve constantemente ligado ao aflorar da antipolítica: a rejeição da política como arena para a realização de acordos de interesse entre adversários que têm legitimidade para participar da gestão da coisa pública e a afirmação da política como espaço voltado à concretização do bem, dos valores corretos (do ocidente, da moral cristã, da justiça social ou de qualquer outro valor que se pretende objetivo e transcendente). Quem tem a verdade ao seu lado, pode realizar a necropolítica (Mbembe, 2016) de modo legítimo.

O tensionamento que vivemos hoje parece um resultado previsível do arranjo constitucional das sociedades contemporâneas. A afirmação da soberania nacional ou popular foi fundamental para viabilizar a ruptura da tradição medieval, mas a institucionalização dos novos governos envolveu uma contenção do caráter revolucionário dessa soberania, por meio da afirmação de uma solução paradoxal: o povo é soberano, mas ele precisa observar os direitos naturais, que não passam de um nome metafísico para os direitos tradicionalmente reconhecidos em uma sociedade.

Esse tipo de equilíbrio paradoxal pode manter-se estável na medida em que os governos tenham uma atuação marginal, deixando que as pessoas se organizem a partir de seus próprios valores, como prega o liberalismo. Porém, na medida em que o governo se torna o principal fornecedor de serviços, especialmente de uma educação pública gratuita e universal, é preciso decidir quais serão os valores que vão orientar essa atuação. A solução liberal promovia a pacificação social, mas por meio de uma distribuição muito desigual dos benefícios que gera uma alta concentração de renda. A alternativa social-democrata encontrada em meados do século XX foi que o Estado deveria proporcionar os serviços básicos, ou ao menos regulá-los de forma que houvesse um acesso amplo à saúde e à educação, requisitos básicos para a prosperidade de sociedades cuja economia exige uma intensa participação de profissionais especializados.

Não é por acaso que boa parte dos conflitos ideológicos atuais esteja concentrada no modo como os sistemas educacionais públicos devem lidar com os preconceitos que permeiam a sociedade. Tais preconceitos restaram de certa forma estabilizados, na medida em que a solução encontrada era a saída liberal de não ofender a moralidade vigente, para que um governo eletivo e parlamentar não entrasse nos colapsos da paralisia total nem da guerra civil. Gargarella nos mostra claramente que a aliança liberal conservadora é uma característica muito forte do constitucionalismo latino-americano (e não só dele), mas podemos observar em vários lugares que a ruptura do respeito implícito aos preconceitos tradicionais elevou imensamente as tensões políticas contemporâneas (Gargarella, 2011).

O que resultará disso? Não sabemos. Ninguém pode prever o futuro. Não é inevitável nem é impossível que as tensões que afloraram nas sociedades contemporâneas desencadeiem uma guerra purificadora, voltada a construir uma unidade que reduza as tensões e viabilize uma justificação metafísica dos governos.

A filosofia tem algo a ver com essa questão? A filosofia contemporânea não se apresenta como um caminho para dizer qual é o bem absoluto e objetivo, como foi a pretensão metafísica dos gregos, retomada pelos modernos. “A palavra era bela e ia nascer, mas a raiz apodreceu” (Nejar, 2003) e o que resta ao discurso filosófico é nos ajudar a perceber com mais clareza os modos como nossas visões de mundo se estruturam e condicionam nossa capacidade de estabelecer relações sociais compatíveis com os princípios que forjamos. Talvez esse sentido inventado nos ajude, inclusive, como dizia meu saudoso amigo Miroslav Milovic, a encontrar alternativas que nos permitam “repensar ou, melhor dizendo, inventar o mundo” (Milovic, 2005). Mas não faremos isso multiplicando ilusões sobre uma natureza última das coisas que projete, na estrutura do mundo, os nossos próprios valores.

Seguindo o João que inspirou Antônio (Belchior, 1976a), precisamos forjar um pensamento que seja faca só lâmina que cante a palo seco “num deserto sem sombra em que a voz só dispõe do que ela mesmo ponha” (Melo Neto, 1994b; c). “A razão que não me dais, eu crio” (Nejar, 2003) a partir da aridez de um mundo despido de significados imanentes, mas que povoamos com nosso canto, seguindo a escolha de “empregar o seco porque é mais contundente” (Melo Neto, 1994c).

6. Por que estudar filosofia hoje?

Resumo: Neste ensaio, defendo que o estudo da filosofia metafísica não é uma atividade capaz de contribuir decisivamente para o enfrentamento dos desafios sociais que enfrentamos atualmente. Porém, o estudo da filosofia contemporânea pode contribuir para o desenvolvimento de uma sensibilidade reflexiva capaz de contribuir decisivamente para a realização do desafio que Miroslav Milovic nos colocava: transformar a sociedade contemporânea, por meio de um discurso filosófico capaz de desafiar os conceitos a partir dos quais nós construímos nosso universo simbólico.

1. Introdução

O título deste ensaio dialoga diretamente com o texto “Por que estudar direito hoje?”, publicado por Roberto Lyra Filho em 1984. Naquele momento, Lyra se questionava do sentido de estudar direito em um ambiente autoritário, em que “a pseudociência dogmática do Direito se isolou numa redoma de servilismo político e defasagem técnica” (1993).

Como seria possível, numa situação ainda pouco propícia, de obstruções institucionais e violência repressiva, – atuar, nada obstante, com vista à transformação do mundo, sob a égide libertadora do autêntico e bom Direito? (Lyra Filho, 1993)

A resposta de Lyra Filho sugeria que, no contexto autoritário, o estudo do direito precisava ser crítico e que não poderia se limitar a uma interpretação das normas estatais, visto que “os direitos humanos não se esgotam nas normas vigentes” e que era preciso determinar os “limites jurídicos da própria insurreição legítima” (1993). Lyra Filho morreu em 1986, antes da publicação da Constituição de 1988, cujo caráter democrático estimulou uma mudança no discurso dos juristas críticos. Nesse novo contexto institucional, os juristas mais ligados aos “direitos humanos” abandonaram a crítica do direito oficial a partir de parâmetros transcendentais de validade. No lugar dessa abordagem “filosófica”, eles concentraram seus esforços na construção de uma hermenêutica constitucional capaz de concretizar juridicamente as promessas políticas da nova Carta Constitucional.

Esse “giro metodológico” é típico de sociedades em que existe uma convergência suficiente entre a aplicação dogmática do direito e as expectativas sociais de justiça. A mobilização de uma “crítica do direito” é mais exigente, em termos políticos e argumentativos, que uma “aplicação crítica do direito”. Esta segunda estratégia permite substituir um argumento “filosófico” que critica a injustiça das leis por meio de sua incompatibilidade com os valores objetivos da “ordem natural”, por um argumento interpretativo, que se limita a exigir a harmonização das leis com os princípios constitucionais. Como a cultura jurídica tipicamente privilegia os argumentos que fazem referência aos textos legislativos, não causa espanto que os juristas brasileiros tenham adotado uma perspectiva metodológica e interpretativa, voltada a desvelar o sentido profundo do direito.

As crenças dos juristas de 1984 são diferentes daquelas dos juristas de hoje. Contudo, permanece intocado o grau de certeza que eles depositam em suas novas convicções, tais como:

· a legitimidade da constituição e do poder constituinte;
· a existência de uma interpretação constitucional objetivamente correta;
· a inevitabilidade do controle judicial de constitucionalidade para a manutenção da democracia;
· a possibilidade de uma aplicação normativa simultaneamente teleológica e racional.

Nesse novo contexto, a distinção entre direito público e privado praticamente desapareceu, uma vez que todos os juristas devem interpretar o direito dando prevalência às regras constitucionais. Por outro lado, a ideia de sistema tornou-se central e o controle de constitucionalidade tornou-se a principal estratégia para a produção de uma ordem jurídica coerente com os princípios fundamentais. Toda aplicação normativa deve harmonizar os sentidos dos textos normativos com os princípios constitucionais, inclusive os implícitos, tal como o princípio da proporcionalidade.

Tal função harmonizadora é menos central em outras culturas jurídicas. No continente europeu, por exemplo, existe uma tendência a produzir discursos jurídicos mais respeitosos face à autoridade dos legisladores. Contudo, a prática jurisdicional dos tribunais da Comunidade Europeia envolve a necessidade de harmonizar diversas ordens jurídicas nacionais em um mesmo sistema. Esse desafio exige o desenvolvimento de abordagens que conferem um papel mais importante à interpretação criativa dos princípios, pois eles podem servir como parâmetros que orientam a necessária harmonização dos diferentes direitos em uma ordem comunitária unificada. Foi um desafio hermenêutico similar, embora num contexto político diverso, que estimulou a cristalização de um senso comum neoconstitucionalista no Brasil.

Parece evidente para a cultura jurídica brasileira que o papel legítimo dos juristas é o de elaborar interpretações normativas que concretizem o verdadeiro sentido da constituição. Nesse contexto, parece restar pouco espaço para uma reflexão filosófica sobre o direito: como os juristas são muito seguros da capacidade de seu repertório metodológico para a realização das funções sociais que eles se atribuem, eles não têm muito interesse em uma filosofia que tende a contestar suas crenças. Porém, cada vez que uma ideia se apresenta como incontestável, cresce a importância da filosofia, enquanto discurso capaz de diagnosticar nossas certezas e as colocar à prova.

Quando se torna socialmente aceitável que os juízes se apresentem como parte de uma vanguarda iluminista (Barroso, 2018) ou como especialistas politicamente neutros que operam uma metodologia autônoma (Bergel, 2001), devemos nos lembrar da advertência de Christian Atias no sentido de que, sem uma reflexão filosófica, o jurista pode desempenhar uma função social que ninguém deseja para si próprio: o papel de um “intelectual dos poderes de opressão” (Atias, 2009).

2. A função pedagógica das teorias

O curso de direito tem um caráter técnico, voltado a formar profissionais hábeis para realizar atividades práticas especializadas (Tholozan, 2021), tais como redigir petições, fazer sustentações orais e emitir pareceres. Nesse aspecto, ele se parece com os cursos de medicina, de música e de engenharia, que também objetivam educar pessoas proficientes na realização de ofícios cuja prática exige a combinação de um conhecimento denso (aprimorado por anos de estudo teórico) e de habilidades complexas (desenvolvidas por meio de vários anos de treino prático).

Tais saberes são chamados de “ciências aplicadas”, para diferenciá-los dos cursos de “ciências puras”, que formam pesquisadores cujo objetivo é a produção de novos conhecimentos, e não o exercício de atividades técnicas. Biólogos, químicos, antropólogos e cientistas políticos são educados por meio do desenvolvimento de habilidades de pesquisa, que exigem conhecimentos de metodologia e estatística que muitas vezes não estão presentes em cursos com viés mais técnico. E tanto os bacharelados de ciência pura como os de ciências aplicadas se diferenciam das “licenciaturas”, que objetivam formar professores e, por isso, combinam o conhecimento aprofundado de determinada área com uma capacitação teórica e prática para a docência.

O caráter pragmático dos cursos de ciências aplicadas não significa que eles não ofereçam uma dimensão histórica, filosófica ou sociológica de seus objetos. O ensino superior atualmente praticado não se limita a desenvolver habilidades práticas, pois é impossível exercer profissões complexas sem um domínio teórico abrangente. Um médico precisa conhecer sobre tipos de doenças, formas de diagnóstico e estratégias de tratamento, e todos esses saberes são teóricos: trata-se de conhecimentos adquiridos pelo estudo.

Os descaminhos do enfrentamento da pandemia de Covid-19 mostram os limites de uma formação médica baseada na transmissão do conhecimento cristalizado, pois vários foram os casos de profissionais de medicina que não se mostraram capazes de incorporar a suas práticas os resultados das pesquisas mais recentes. Quando o conservadorismo político é combinado com um conservadorismo clínico, calcado na reprodução das abordagens tradicionais e da valorização da experiência do médico, o profissional não desenvolve a capacidade de avaliar criticamente os resultados mais recentes das pesquisas médicas e de incorporá-las a sua prática.

Um profissional que desconsidera pesquisas que contradizem suas intuições termina por se tornar incapaz de aprimorar suas abordagens a partir de novas evidências. Por esse motivo, a formação universitária não pode se limitar a ensinar estudantes reproduzir certas práticas consolidadas: os profissionais de nível superior devem ser estimulados a aprimorar constantemente suas abordagens. Eles não precisam se tornar pesquisadores, cuja atividade é justamente a de produzir novos conhecimentos, mas é necessário que eles aprendam a difícil tarefa de avaliar a qualidade das pesquisas publicadas, para que sejam capazes de conduzir sua prática profissional a partir do conhecimento produzido pelas pesquisas mais sólidas e recentes.

Observe que também seria possível formar médicos com foco em procedimentos de imitação: os estudantes poderiam ser enviados aos hospitais, para observar a prática dos médicos mais experientes e, com isso, aprender os modos “corretos” de diagnosticar e tratar as enfermidades. Essa forma de ensino tem suas vantagens, pois ela é mais rápida e mais barata do que o ensino universitário que temos. Entretanto, esse tipo de abordagem gera resultados mais limitados: o aprendizado prático, por simples imitação de comportamentos, não consegue ensinar os motivos pelos quais o profissional experiente adotou determinadas providências.

O desenvolvimento das teorias se relaciona com a produção de conhecimentos que possam ser ensinados e aprendidos de forma abstrata. Nosso cérebro é um ótimo instrumento de reconhecer padrões, mas ele somente chega a identificar padrões complexos por meio de séries muito longas de observação e de testagem das hipóteses interpretativas que projetamos. Por mais que tenhamos grande inteligência e capacidade de aprendizado, a velocidade em que podemos desenvolver conhecimentos a partir de nossas próprias observações é muito pequena. Nossa linguagem nos confere uma capacidade de ensino que acelera imensamente o ritmo de aprendizado e permite um desenvolvimento cultural cumulativo.

Eu não precisei ler todos os livros estudados por meus professores, pois eles foram capazes de fazer uma triagem das experiências cognitivas que eu precisaria ter para desenvolver os conhecimentos que eles alcançaram. Nossa capacidade cognitiva e nosso tempo no mundo são bastante limitados, e precisam ser geridos com cuidado. O papel de cada geração tem sido o de construir teorias generalizantes, que condensem o conhecimento desenvolvido em um sistema conceitual compreensível e coeso, que possa ser compreendido de forma eficiente. As teorias não são uma repetição do mundo, mas são modelos conceituais que descrevem os fatos, explicam suas causas e orientam nossas ações.

Teorias bem desenvolvidas são um requisito fundamental para o avanço de nossos conhecimentos sobre saúde, sobre buracos negros e sobre relações jurídicas. Isso não quer dizer que contemos hoje (nem que poderemos um dia contar) com teorias perfeitas, pois nossos modelos explicativos são sempre redutores e limitados. O que podemos fazer é trabalhar no desenvolvimento gradual de nossas abordagens teóricas, o que se faz por meio de uma constante avaliação dos méritos e dos defeitos das abordagens disponíveis, reflexão esta que nos faz alterar constantemente os quadros teóricos que orientam nossas ações.

Uma das principais formas de desenvolvimento ocorre quando entendemos que fenômenos semelhantes devem ser tratados de modo diverso. No século XIX, por exemplo, relações de trabalho eram estabelecidas por meio de contratos civis de prestação de serviço, sendo que os desenvolvimentos da dogmática jurídica gradualmente diferenciaram deste gênero os contratos de trabalho, que deveriam ter um tratamento diferenciado. A teoria jurídica do final do século XX expandiu o conceito de “sociedade de fato” para lidar com situações familiares que escapavam das regras estritas do casamento oficialmente previsto. Frente ao diagnóstico de que as colisões de direitos fundamentais não se deixavam resolver adequadamente pelas formas típicas de enfrentamento de antinomias, foi desenvolvida toda uma teoria constitucional voltada a enfrentar esse tipo de conflito normativo.

Os desenvolvimentos teóricos nos oferecem uma rede de categorias com base nas quais podemos diferenciar situações que parecem semelhantes (como a incapacidade relativa e a absoluta) ou aglutinar situações que se afiguram diversas perante o senso comum (como a união de pessoas de sexos diversos e de pessoas do mesmo sexo). A marca fundamental do conhecimento científico não é o oferecimento de certezas absolutas, mas o fato de que existe um processo tão intenso de revisão que podemos ter relativa segurança de que se trata do melhor conhecimento disponível para orientar nossas decisões jurídicas, políticas e morais.

Essa revisão constante também ocorre em campos teóricos que não são científicos (como a filosofia, a matemática e as engenharias), mas que são submetidos a uma análise crítica constante. A complexidade dos modelos teóricos desenvolvidos por algumas áreas (como o direito e a medicina) faz com que a observação direta do comportamento dos especialistas (por exemplo, assistir a todas as sessões de um tribunal ao longo de vários anos) não permite a devida compreensão da rede de conceitos, de valores e de finalidades que estrutura essa prática social. A observação de comportamentos complexos não evidencia, de modo imediato, as teorias que pautam esses comportamentos.

Nossa forma de enfrentar essa dificuldade é a criação de sistemas de ensino/aprendizagem, capazes de produzir novas teorias, de avaliar criticamente as concepções dominantes e as alternativas propostas, e de ensinar as pessoas a manejar os instrumentos teóricos que compõem os modelos mais sólidos que se conseguiu produzir. Esses modelos teóricos são constituídos por teorias descritivas (que descrevem os fatos sociais em sua riqueza), teorias explicativas (que busquem estabelecer relações de correlação e de causalidade) e teorias normativas (que orientam a prática de certas atividades, a partir dos cânones reconhecidos).

A vantagem desses modelos é que eles podem ser ensinados e aprendidos de forma abstrata: não precisamos observar anos de julgamentos para compreender o modo como o judiciário utiliza a noção de competência ou de pertinência temática. Outras pessoas já fizeram isso antes de nós, já consolidaram esse saber na forma de textos e, com isso, permitiram que nós consigamos incorporar esses conhecimentos de uma forma mais rápida e eficiente a nossas práticas individuais.

Na prática judicial brasileira, a ideia de “pertinência temática” é importante para definir os limites em que um governador de estado pode mover o controle de constitucionalidade. Nessa mesma prática, também são importantes os argumentos que mobilizam a ideia de que o acesso à justiça deve ser amplo. Essa multiplicidade de argumentos relevantes permite uma rica discussão sobre a compatibilidade entre a pertinência temática, o acesso à justiça, o devido processo legal e os outros elementos que são reconhecidos como pontos relevantes por nossa cultura jurídica.

3. Teoria e filosofia

O tensionamento entre os diversos parâmetros juridicamente relevantes dá margem a um debate infinito, renovado a cada vez que incorporamos novos elementos a esse jogo linguístico, como novas distinções conceituais (como a diferenciação entre gênero e sexo), mudanças nos valores sociais (como a radicalização da igualdade entre homens e mulheres), alterações nos contextos políticos (que mudam os resultados projetados para uma determinada interpretação do direito).

Todo esse debate conceitual está ligado à teoria do direito, mas isso não significa que ele seja filosófico. Um debate astrológico pode discutir o sentido adequado de ascendente, um debate religioso pode discutir o conceito correto de pecado, um debate físico pode discutir o conceito de tempo. A filosofia não deve ser caracterizada apenas como uma discussão sobre os conceitos, pois ela envolve uma análise dos parâmetros que nós utilizamos nesses infinitos debates teóricos.

A filosofia funciona como uma espécie de teoria sobre as teorias. Os filósofos tipicamente não classificam os objetos (pessoas, direitos, etc.), mas classificam nossos modelos teóricos (realistas, idealistas, teleológicos, tradicionais, modernos, etc.), para compreender os modos como esses modelos se constituem, se entrelaçam, se tensionam. Por esse motivo, o passo inicial do estudo da filosofia do direito é o reconhecimento de que a experiência jurídica envolve a produção de modelos teóricos diversos e que a devida compreensão de nossas práticas precisa reconhecer quais são os modelos que utilizamos e identificar adequadamente a sua estrutura, suas incongruências e suas potencialidades.

Ocorre que as pessoas que produzem os modelos teóricos (cientistas, juristas, teólogos, etc.) muitas vezes realizam essa atividade convencidos de que eles não se dedicam a construir modelos, mas a descrever objetivamente a realidade. Quando uma pessoa está firmemente convencida de que suas crenças refletem objetivamente a realidade, ela costuma lidar mal com os discursos filosóficos, cujo passo inicial é o reconhecimento de que todo modelo conceitual (inclusive aqueles que nos são mais caros) não passa de uma construção provisória, limitada e historicamente condicionado.

A tradição grega realiza esse movimento de forma parcial: os filósofos gregos acentuaram o caráter pouco sólido dos modelos oferecidos pela tradição grega (as sombras na caverna), mas acreditaram que o exercício da razão poderia nos guiar para um conhecimento objetivo da verdade. Nesse sentido, a tradição filosófica dos gregos seria ela própria, pouco filosófica, na medida em que acentua o caráter arbitrário das crenças tradicionais, mas afirma a existência de um acesso racional a modelos objetivamente válidos. Isso faz com que os filósofos da tradição grega busquem a miragem de uma descrição objetiva do mundo, seja em seu aspecto físico, seja em seu aspecto valorativo (o bem, a justiça, o dever).

Na modernidade, houve uma distinção entre a ciência (busca de uma descrição objetiva do mundo físico, a partir de análises empíricas) e uma filosofia que continuou circunscrita ao programa de esclarecer as verdades últimas do mundo. Dos dois lados, partia-se da ideia de que existe uma ordem natural, que poderia ser compreendida por abordagens observacionais (com a ciência) e por abordagens racionais (com a filosofia).

A filosofia contemporânea nasce quando os filósofos passam a considerar a própria filosofia como um modelo teórico, abandonando a ideia de que seria possível (tanto na ciência como na filosofia) a construção de modelos que espelhassem perfeitamente a ordem natural. Durante séculos, os filósofos travaram seus debates com o objetivo de determinar qual seria o modelo teórico objetivamente correto, quais seriam as classificações que corresponderiam à essência das coisas. Após o giro linguístico, parece demasiadamente ingênua a ideia de que seria possível descobrir os modelos objetivos, as normas naturais, e os valores absolutos que tanto encantaram aqueles que escreveram notas de rodapé à obra de Platão.

Esta filosofia contemporânea, linguística e historicista, é a que acredito que pode despertar o interesse dos profissionais do direito. Creio que boa parte do estranhamento entre os juristas e a filosofia vem do fato de que muitos cursos de filosofia do direito se inserem na tradição platônica, que é a de buscar uma resposta racional para as nossas perguntas fundamentais: O que é o direito? Quando uma norma é válida? Quando uma autoridade política é legítima?

Nosso objetivo não é chegar a uma resposta a essas perguntas, mas é reconhecer que coexistem em nossa cultura múltiplas respostas, que devem ser compreendidas tanto em sua estrutura (como elas se organizam) como em suas implicações políticas (que instituições elas engendram). Não nos é dado descobrir qual delas é a verdadeira (porque essa é uma pergunta tão equivocada quanto tentar descobrir que sabor de sorvete é objetivamente mais saboroso), mas podemos aprender muito quando refletimos sobre os motivos pelos quais preferimos determinados modelos conceituais e valorativos.

Embora a filosofia não tenha por objeto nossas crenças pessoais (mas sobre certos modelos coletivamente desenvolvidos), o estudo da filosofia costuma ter uma relevância grande para que os estudantes compreendam sua própria individualidade, visto que esse tipo de reflexão tende a nos ajudar a compreender melhor nossas identificações, nossos valores e nossos engajamentos. Em especial, o estudo da filosofia nos ajuda a ver que muitas vezes nossas preferências pessoais nos levam a certas escolhas teóricas que não formam um sistema consistente. Somos historicistas que acreditam em um direito natural. Somos evolucionistas que creem em valores imutáveis. Usamos critérios muito diferentes para julgar a validade das normas e práticas sociais com as quais concordamos e aquelas contra as quais nos opomos.

Nossas crenças pessoais, forjadas por uma complexa interação de conceitos aprendidos e valores vivenciados, não formam um sistema e normalmente somos pouco conscientes desse fato. O estudo da filosofia do direito tende a ser um momento no qual essas incongruências são trazidas a um nível consciente, o que nos dá a oportunidade de criar narrativas que de alguma forma estruturam a compreensão que temos sobre nossas ideias e nossos comportamentos.

O gatilho típico dessas reflexões é o fato de que os seres humanos tendem a ser muito rigorosos com relação aos argumentos alheios e pouco rigorosos quanto à avaliação das próprias intuições. O estudo da filosofia nos permite avaliar, com bastante rigor, os modelos teóricos e conceituais desenvolvidos por outras culturas, por outras pessoas, em outros momentos, e tendemos a ser muito rigorosos com esses pensamentos dos outros. Quando fazemos esse exercício dentro de um grupo plural, temos uma peculiar oportunidade de nos reconhecer como outros de nossos colegas e professores, que criticam nossas crenças (especialmente daquelas arraigadas no senso comum) com o mesmo rigor que utilizamos para avaliar as crenças alheias.

Esse trânsito, em vários casos, permite que passemos a avaliar nossas crenças um pouco como se fôssemos um outro de nós mesmos. A aposta que guia este livro é a de que as dúvidas geradas pelos questionamentos aqui realizados podem aumentar o nível de rigor com que os leitores medem seus próprios pensamentos e valores e o nível de abertura que eles têm para dialogar com pessoas que adotam parâmetros diversos dos seus.

Evidentemente, não são todas as pessoas que realizam esse movimento reflexivo sobre a sua própria subjetividade, mas a minha experiência como professor de filosofia do direito indica que os estudantes de direito são normalmente pessoas curiosas, que gostam de ler e que tem interesse em construir uma narrativa consistente sobre suas práticas, que dê um sentido existencial a sua própria atividade.

Além disso, por maior que seja a diferença entre a sensibilidade dos juristas e dos filósofos, devemos ressaltar que existe uma grande convergência entre as práticas argumentativas realizadas por essas duas comunidades. Os estudiosos de filosofia tendem a analisar os discursos filosóficos a partir de uma abordagem bastante semelhante àquela que é usada pelos estudiosos de direito: em ambos os casos, o objeto de análise são vários posicionamentos, várias abordagens, que é preciso analisar e compreender. Essa proximidade de abordagens faz com que o conhecimento do direito facilite a compreensão dos debates filosóficos, e vice-versa.

Os filósofos falam da justiça e do bem, enquanto os juristas falam da responsabilidade civil e do princípio da razoabilidade. Por mais distantes que esses objetos possam parecer, todos eles são construções interpretativas desenvolvidas em contextos sociais específicos, que buscam tornar compreensíveis certas práticas sociais.

A ideia de sistema é muito importante para ambas as disciplinas, e esta centralidade faz com que o pensamento teórico dos juristas seja muito próximo do pensamento teórico dos filósofos: ambas as abordagens se concentram no desenvolvimento de habilidades analíticas capazes de compreender e avaliar diversas posições sobre o mesmo tema.

Em ambos os casos, o raciocínio típico é dedutivo: não se trata de uma tentativa de produzir descrições capazes de articular devidamente as observações empíricas sobre uma multiplicidade de fatos, mas de encontrar teorias que sejam consistentes com as nossas visões de mundo, com nossos valores, com as percepções sociais dominantes.

Tanto os juristas como os filósofos são profissionais capacitados em realizar a análise de posicionamentos teóricos, com vistas a apreciar a sua consistência e a produzir discursos retóricos capazes de convencer seus pares acerca das suas conclusões.

É certo que o aspecto pragmático do direito faz com que as questões analisadas sejam mais concretas. Também é certo que os estudantes de direito precisam desenvolver uma capacidade técnica que é ausente nos cursos de filosofia, e que essa é uma diferença fundamental. Ainda assim, existe uma grande afinidade entre os raciocínios filosóficos e o modo jurídico de comparar autores, de analisar elementos de uma teoria, de traçar a história dos conceitos e de buscar construções coerentes com certos princípios fundamentais.

Esse caráter dedutivo e sistemático faz com que o Direito e a Filosofia sejam muito diferentes dos cursos propriamente científicos, que forma profissionais especializados em uma atividade peculiar: a pesquisa empírica. Biologia, Antropologia e Ciência Política são cursos que oferecem aos estudantes um panorama sobre o conhecimento de cada uma dessas áreas, mas que têm especial foco no fornecimento do instrumental necessário para a realização de pesquisa científica que faça avançar esses conhecimentos. Essa pesquisa empírica, que é o núcleo das atividades em boa parte da universidade, desempenha um papel de pouco relevo tanto na filosofia como no direito, pois ambas essas abordagens se organizam a partir de elementos de análise e interpretação, com foco em discursos socialmente produzidos, e não em fatos.

Na medida em que a filosofia nos oferece mapas conceituais adequados para cartografar as múltiplas teorias e para avaliar a sua consistência, o desenvolvimento de uma reflexividade filosófica pode permitir aos juristas que compreendam melhor a sua própria prática e, também, que avaliem a consistência dos modelos teóricos que a orientam.

4. A irrelevância atual da filosofia metafísica

Apesar de defender a importância do ensino de filosofia do direito (que outra coisa esperar de um professor dessa matéria?), creio que certas abordagens filosóficas deveriam estar na estante de antiguidades que estudamos apenas por interesse histórico, como a mitologia grega, a filosofia natural e a astrologia. Ninguém estuda a física aristotélica para aprender algo sobre o mundo, embora possa ser interessante para entender como pensavam os gregos. O estudo das mitologias antigas pode ser muito interessante para pensarmos no modo como os humanos constroem suas subjetividades.

O teólogo Schleiermacher fez uma distinção interessante quando indicou que os antigos estudavam os textos canônicos buscando compreender a verdade que eles portavam (Costa, 2008; Schleiermacher, 2009). Um católico tende a ler a Bíblia buscando encontrar verdades subjacentes ao texto, e não como uma expressão de certos autores. Mas é justamente assim que os modernos encaram os textos literários e mesmo históricos: como expressões de um autor. Interessa-nos entender o que o autor quis dizer, mas não supomos que a compreensão de Aristóteles, de Cícero, de Dante ou do Padre Vieira seja capaz de nos mostrar verdades sobre o mundo.

Estudar a filosofia antiga como uma forma de compreender os modos como os antigos percebiam o mundo é algo muito proveitoso, especialmente porque o estudo de culturas diversas nos ensina muito sobre a contingência da nossa própria cultura. No caso da filosofia, esse tipo de abordagem é essencial, pois somente a compreensão histórica de como os modelos explicativos se desenvolvem pode nos oferecer um horizonte adequado a que compreendamos os limites e as potencialidades das culturas em que estamos imersos.

Além disso, algumas das estruturas simbólicas com as quais construímos nossos modelos de compreensão são muito antigas. A nossa cultura atual não é um sistema unificado, mas um conjunto de elementos que herdamos de vários momentos históricos e que compõem um mosaico complexo.

Ainda é presente em nosso senso comum a antiquíssima ideia de que o mundo tem uma ordem natural, que não é evidente, mas que pode ser conhecida por meio da razão, da experiência ou da revelação. Temos grande apreço por parte de nossos valores tradicionais, enquanto outra parte nos parece de um preconceito obscurantista. A maioria das pessoas tem uma visão religiosa do mundo, admitindo a existência de entes sobrenaturais dotados de intencionalidade. Ao mesmo tempo, a maioria das pessoas está também disposta a reconhecer que a cultura tem uma dimensão histórica, que não apenas realiza uma ordem predefinida, mas cria novas estruturas. A radical consciência histórica da pós-modernidade, que admite a historicidade das próprias condições de verdade, coabita com pretensões de fundamentação objetiva da igualdade entre homens e mulheres e da vedação da escravidão.

Podemos enfrentar essa multiplicidade de fragmentos de várias formas. Podemos adotar a perspectiva metafísica, que enxerga nessa multiplicidade uma sobreposição de ilusões e simulacros, tendo em vista que existe por trás disso tudo uma ordem natural que pode ser conhecida racionalmente. Podemos adotar uma perspectiva tradicional, que entende que a verdadeira ordem está além da cognição humana, mas pode ser conhecida por certas revelações. Podemos adotar uma perspectiva positivista, que nega qualquer tipo de transcendência. Podemos misturar várias dessas posições, gerando modelos paradoxais e por isso mesmo aceitáveis por nossos valores paradoxais.

Essas abordagens todas coexistem, e creio que um curso de filosofia do direito deveria ressaltar a existência dessa multiplicidade de discursos e dos limites e potencialidades de cada um. Porém, boa parte das perspectivas filosóficas tentam indicar qual é o modelo correto, ou no mínimo contribuir para que as pessoas possam diferenciar a verdade do simulacro. A propalada ideia de que a filosofia é um estudo capaz de nos mostrar os primeiros princípios fez com que os filósofos contemporâneos tenham reconhecido explicitamente a inutilidade da Filosofia.

Os neopositivistas, em geral, consideram aquilo que se chama tipicamente de filosofia não deve ser considerada uma busca de verdades complexas e profundas, mas um grande mal-entendido: uma busca incessante de tentar responder perguntas mal formuladas, por meio de categorias imprecisas, que não tem como nos levar a lugar algum. O ceticismo mais drástico quanto a essa filosofia clássica foi manifestado por Wittgenstein, o neopositivista arquetípico: sobre aquilo que não se pode falar cientificamente, deve-se ficar calado (Wittgenstein, 1922). Pode-se fazer poesia, claro, e todas as outras artes, mas não se deve confundir a linguagem expressiva das artes com a linguagem científica que fala do mundo com objetividade e clareza.

Nenhum filósofo influenciado pelo giro linguístico pode afirmar, como Miguel Reale, que o problema fundamental da filosofia é descobrir os valores. Reale propôs uma teoria tridimensional do direito, que deveria ser compreendido como uma certa combinação entre fatos, valores e normas. Mais especificamente, o direito seria uma articulação normativa entre fatos e valores, cabendo à sociologia o estudo do direito como fato, à filosofia o estudo do direito como valor, e à ciência jurídica o estudo do direito como norma (Reale, 2009). Essa é uma divisão que identifica a filosofia com a metafísica, algo que foi feito amplamente até o século XIX, mas que se tornou uma divisão inadequada no século XX, quando tantos filósofos se insurgiram contra o legado grego e apresentaram a filosofia com uma disciplina que tratava da linguagem, e não das coisas em si.

Confesso que, se eu entrasse em uma aula de filosofia de um professor que estivesse interessado em me mostrar os valores corretos, ou as metodologias adequadas para descobrir distinguir a verdade do simulacro, meu primeiro ímpeto seria o de trancar imediatamente a matéria. Estudar a filosofia como faziam os gregos, como um caminho para descobrir os princípios, é algo profundamente distante da consciência histórica da filosofia contemporânea. Assim, se alguma utilidade tem o estudo da filosofia, essa utilidade não está em uma retomada do ideal grego de busca da verdade, mas no esclarecimento da estrutura linguística de nossos universos simbólicos, e do modo como podemos articular categorias para conferir sentido à nossa experiência.

5. Filosofia e sensibilidade reflexiva

O caráter técnico dos cursos jurídicos costuma atrair pessoas com inclinações práticas, que demonstram interesse em aprender tudo o que é necessário para escrever petições iniciais, fazer sustentações orais, redigir pareceres e proferir sentenças. Aparentemente, nada é mais diverso de um estudante de direito do que um estudante de filosofia, que normalmente escolhe este curso por valorizar questões teóricas. Para essas pessoas, a filosofia muitas vezes é sentida como uma espécie curiosa de erudição: um conhecimento que tem importância simbólica, mas que não têm relevância na prática jurídica efetiva.

Reconhecemos intuitivamente que é preciso saber um pouco de filosofia porque os textos e as falas de juristas de prestígio, sejam eles magistrados ou advogados, dialogam com algumas referências de autores de filosofia. Toda pessoa que deseja se inserir nos discursos jurídicos precisa ser capaz de compreender referências à concepção platônica, à lógica cartesiana, ao imperativo categórico de Kant ou à norma fundamental de Kelsen.

Existe uma erudição mínima que possibilita aos juristas compreender as referências filosóficas contidas nas decisões judiciais. Felizmente, o discurso jurídico contemporâneo é menos rebuscado do que costumava ser, com uma valorização crescente da clareza, da simplicidade e da concisão. Além disso, cada vez mais o direito se reproduz por meio de referências a precedentes judiciais, o que torna dispensáveis as citações doutrinárias que eram inevitáveis na argumentação jurídica do século passado. Entretanto, nas decisões de casos difíceis, que envolvem construções argumentativas mais elaboradas, ou nos casos em que os juízes buscam modificar linhas jurisprudenciais estáveis, são comuns as referências doutrinárias e filosóficas, usadas como argumento retórico de autoridade (Rodriguez, 2013). O mínimo que se espera de um jurista é a capacidade passiva de compreender essas citações, mas espera-se de um jurista bem formado que tenha a capacidade ativa de produzir e de contestar argumentos desse tipo.

Inclusive, não é raro que as referências filosóficas sejam usadas de maneira inconsistente, por juristas que não as compreenderam bem, mas que se limitam a reproduzir alguns lugares-comuns. A capacidade de mostrar a fragilidade desse tipo de argumentação pode ter um peso retórico relevante em várias situações, pois uma referência filosófica incorreta pode gerar situações ridículas como quando promotores de justiça acusaram o ex-presidente Lula de praticar condutas que envergonhariam “Marx e Hegel”, em uma evidente confusão entre Hegel e Engels, que teve ampla repercussão nas redes sociais e na imprensa brasileira (Bedinelli, 2016). Embora esse fosse um argumento absolutamente secundário na petição, ele tornou-se nacionalmente conhecido como signo de uma falsa erudição.

Tais referências filosóficas funcionam repetidas vezes como marcadores de “capital cultural” (Bourdieu, 1979), pois reforçam o peso retórico dos argumentos e manifestam uma erudição que somente pode ser desenvolvida com longos estudos. Juristas de prestígio precisam ser capazes de manejar referências filosóficas (e não apenas compreendê-las), assim como também precisam se apropriar de uma série de outros elementos da cultura clássica e contemporânea: é preciso saber também um pouco de poesia, de literatura, de mitologia grega, de história. Inclusive, devem saber algo de sociologia para ligar Pierre Bourdieu à noção de capital cultural.

É nesse sentido de erudição mínima que o conhecimento filosófico foi incorporado, desde 2013, ao programa do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Desde então, 2 das 80 questões dessa prova são dedicadas a conteúdos de filosofia do direito, o que significa que acertá-las confere ao examinando 5% dos pontos necessários para a aprovação. Embora pareça pouco, trata-se de uma matéria com peso semelhante ao de várias outras disciplinas dogmáticas, já que a amplitude do programa impede que sejam alocadas muitas questões para cada ramo do direito. Ainda assim, a possibilidade de cobrar apenas dois tópicos exige dos examinadores que fiquem circunscritos aos conceitos filosóficos mais conhecidos.

A prova tem seguido um padrão: logo após as questões sobre o estatuto da ordem, são feitas duas questões que trazem pequenos trechos de filósofos renomados e depois fazem uma pergunta sobre as suas concepções. Nos últimos anos, foram abordados trechos de Aristóteles, Bobbio, Dworkin, Hart, Ihering, Kant, Kelsen, Locke, Montesquieu, McCormick, Stuart Mill e Platão. A alternativa correta normalmente vem ao lado de uma alternativa plausível e de duas afirmações desconectadas do texto apresentado, o que mostra cuidado na elaboração dos itens, que têm um nível de dificuldade mediano e não se focam em um aprendizado puramente mnemônico.

São todas questões acerca de história da filosofia, que não medem a capacidade analítica e crítica dos candidatos, mas o seu conhecimento acerca de algumas das principais correntes filosóficas, especialmente o utilitarismo e o neopositivismo. Apesar dessa limitação, parece-me difícil fazer melhor em uma prova com a estrutura do Exame de Ordem e devemos reconhecer que essa abordagem é bem alinhada com o fato da maior parte do conteúdo de filosofia do direito é mesmo de história da filosofia.

Nesse contexto, são vários os estudantes que entendem que o estudo da filosofia é demasiadamente custoso para que valha a pena o benefício que ele oferece, especialmente aos alunos de graduação. Ou que somente vale a pena uma dedicação mínima a essa disciplina, tendo em vista que o que se exige dos operadores do direito é apenas um leve verniz filosófico, um conhecimento panorâmico das ideias dos poucos filósofos do direito que são normalmente conhecidos pela maioria dos juristas e que, por isso, podem ser referidos em peças jurídicas sem que o argumento soe pretensioso e podem ter suas cobradas no Exame de Ordem e em outras provas.

Entretanto, é preciso levar em conta que, se os juristas práticos podem se contentar com uma erudição filosófica mínima, um conhecimento razoável de filosofia do direito é indispensável para qualquer pessoa que tenha pretensão de ingressar na academia jurídica, como pesquisadores ou professores.

Dentro da academia, diversamente do que ocorre na prática judicial ou advocatícia, mesmo as questões dogmáticas precisam ser tratadas com densidade teórica. Diferente de uma sentença ou de um parecer, uma monografia é um trabalho que não pode ser apenas uma opinião pessoal, pois ela precisa esclarecer devidamente os seus pontos de partida e as perspectivas utilizadas, elementos que somente se tornam claros para quem desenvolveu uma reflexão filosófica.

Um dos pontos mais típicos da filosofia contemporânea é o reconhecimento de que não existem verdades universais e imutáveis a serem descobertas e que, portanto, toda visão de mundo adota uma determinada perspectiva. Sob que perspectiva você enxerga o direito? Quais são os pressupostos em que se assentam os conceitos que você usa? Quais são os pontos que você não pode comprovar, mas ainda assim continuam acreditando neles? De que maneira o seu modo de ver o mundo condiciona aquilo que você chama de realidade e, portanto, a sua maneira de interpretar as normas e de decidir questões jurídicas?

O modo como você responde a essas perguntas define o seu marco teórico, que é justamente a perspectiva a partir da qual se constrói um discurso acadêmico. Um curso contemporâneo de filosofia deve ser capaz de auxiliar cada estudante a identificar as linhas filosóficas com que têm mais afinidade, para que com isso você possa ter uma consciência mais reflexiva acerca dos elementos estruturam os seus discursos sobre o direito e que, com isso, definem o horizonte da sua prática.

Creio que a avaliação comum de que um estudo aprofundado de filosofia não vale a pena é verdadeira, quando o que se estuda é uma descrição panorâmica das tentativas clássicas de descobrir os princípios últimos, os valores absolutos e os conceitos objetivamente verdadeiros. A filosofia que segue o legado dos gregos me parece ter pouca utilidade prática nos dias de hoje, na medida em que ela se propõe a descrever um mundo objetivo, e não a compreender a estrutura e o sentido de nossas atividades reflexivas. Além disso, alcançar essa erudição mínima em filosofia não exige que os cursos ofereçam uma disciplina específica de “filosofia do direito”, pois esses conhecimentos básicos podem ser suficientemente abordados nas matérias introdutórias e nas notas de rodapé das disciplinas dogmáticas.

Se existe um sentido em uma disciplina dedicada à filosofia do direito, não é o de auxiliar os estudantes a conhecer a verdade, nem é o de fomentar um verniz erudito que eles costumam ter ao final de seus cursos. O que tem sentido, na contemporaneidade, é compreender as estruturas de nossos modelos teóricos, é entender os elementos linguísticos que organizam nossas práticas, é desenvolver uma sensibilidade reflexiva que possibilite que os estudantes se tornem conscientes dos modelos teóricos que eles usam e se tornem capazes de avaliar criticamente essas concepções.

Essa habilidade me parece vital porque o ofício dos juristas não é apenas o de produzir petições e sentenças, mas o de desenvolver argumentos que reinterpretam e redefinem as teorias da dogmática jurídica. Os juristas realizam uma atividade prática que é diretamente impactada por suas crenças teóricas e, por isso, eles precisam de uma sensibilidade reflexiva apurada. Isso faz com que o desenvolvimento de uma reflexão filosófica amadurecida ajude os juristas a compreender melhor a estrutura das teorias que eles manejam e redefinem em cada interpretação. Um jurista com uma consciência teórica desenvolvida é mais capaz de compreender sua própria atividade e de produzir discursos mais efetivos.

Por mais que a ideia de filosofia dominante no senso comum ainda seja a das filosofias que seguem o legado metafísico dos gregos, o que se mostra relevante para os dias de hoje é uma compreensão adequada da filosofia contemporânea, que lida com os desafios da atualidade. Os juristas podem simplesmente adotar as concepções filosóficas e metodológicas dominantes na cultura jurídica (e que Warat chamava de “senso comum teórico dos juristas”) (Warat, 1994), mas eles também podem fazer escolhas mais sofisticadas e conscientes acerca dos modelos teóricos que eles desejam utilizar.

O conhecimento filosófico, como uma teoria das teorias, é fundamental para que sejamos capazes de renovar a teoria do direito, construindo modelos explicativos e normativos que consigam organizar melhor as nossas práticas sociais. Essa não é uma tarefa fácil, pois as estruturas de nossa compreensão são complexas, nossos mapas conceituais são sobrepostos, nossos contatos com o mundo empírico são indiretos, os significados de cada termo são fugidios e as perspectivas são tão variadas que a melhor metáfora para a filosofia não é a de uma pirâmide, mas um labirinto (Castoriadis, 1992, p. 10).

Por tudo isso, convém reconhecer que o estudo da filosofia é menos a transmissão de um conjunto de conhecimentos do que um processo pelo qual analisamos as nossas certezas, em busca de compreender como se estruturam os nossos modelos de compreensão do mundo.

A filosofia pode ser um conjunto de discursos, mas aprendi com Luis Alberto Warat que a educação para a filosofia precisa ser um desenvolvimento da sensibilidade (Warat, 2000, 2004). O estudo da filosofia deveria nos tornar sensíveis ao modo como articulamos nossas explicações acerca do mundo: às categorias utilizadas, à densidade dos argumentos, às armadilhas retóricas, aos valores implícitos, ao modo insidioso como as nossas preferências ideológicas condicionam nossas avaliações. Seguindo a velha estratégia socrática, os filósofos tendem a começar suas análises por meio do que Derrida veio a chamar de desconstrução: não se trata de destruir, mas de compreender o modo como nossas crenças foram construídas, para que elas possam ser transformadas (Derrida, 1994).

A capacidade dos discursos filosóficos de promover essa transformação é limitada. Warat, por muitos anos, promoveu uma desconstrução dos discursos dogmáticos, denunciando os mitos entremeados nas teorias pseudocientíficas que organizam a interpretação do direito (Warat, 1979). Ele me disse que, em certo ponto, entendeu que os juristas têm uma habilidade retórica e linguística muito desenvolvida, o que torna difícil acessar a sua sensibilidade por essa via, visto que eles são capazes de (re)construir narrativas que justifiquem suas visões de mundo. Quando aprendem novas teorias filosóficas, os juristas não alteram a sua sensibilidade, mas passam a justificar a sua forma de ver o mundo com os instrumentos que lhe foram dados pela nova linguagem. Lampedusianamente, mudam os discursos para que as estruturas permaneçam inalteradas.

Na busca de instrumentos mais eficazes para promover uma renovação nas práticas jurídicas, Luis Alberto Warat explorou as conexões entre direito e psicanálise (2000), o potencial transformador da mediação (2001) e também as relações entre direito e arte (2004) e do Entendo que ele buscou nessas várias estratégias uma forma de contribuir para a formação de juristas sensíveis, capazes de contribuir para que as partes reconfigurem suas relações conflituosas.

A incorporação da ideia de que apenas a experiência transforma não deve conduzir a um abandono da leitura e reflexão acerca das várias perspectivas filosóficas. É preciso aprender sobre os filósofos e suas ideias contrapostas, sobre como as ideias são influenciadas por seus contextos históricos e políticos, mas creio que o curso de filosofia deve propiciar o desenvolvimento de uma sensibilidade para a dúvida e para as variadas formas de organizar um sistema simbólico que dê sentido a nossa experiência. Tais cursos envolvem a transmissão de um amplo conjunto de informações, mas as aulas devem ser planejadas levando em conta que a maneira como abordamos esse conhecimento pode constituir uma vivência (trans)formadora.

Os professores precisam ter um cuidado constante para evitar que os estudos filosóficos estimulem os estudantes a desenvolver uma erudição vazia: um conhecimento acerca da filosofia desacompanhado de uma postura reflexiva. Como aponta Duncan Kennedy, o curso de direito pode ser lido como um processo voltado a acostumar os alunos às hierarquias sociais do campo jurídico e ao modo de pensar dos juristas, que são reproduzidos de forma acrítica e adotados para viabilizar que os alunos sejam admitidos nos círculos jurídicos (Kennedy, 1998).

Warat chamava de pinguinização esse processo de domesticação das subjetividades, promovida pelo ensino jurídico tradicional (Sousa e Costa, 2021). Para evitar a pinguinização dos estudantes, é preciso que nos esforcemos para escapar às armadilhas de um conhecimento mecânico e passivo, que acumula informações sem conectá-las em uma rede. É o trabalho hermenêutico de estabelecer ligações entre as informações novas as antigas, formando sistemas mais complexos de significação, que nos conduz a reinterpretar constantemente nossos próprios quadros conceituais.

A aposta deste curso é a de que devemos aliar um enriquecimento dos conjuntos de informações transmitidas (incluindo perspectivas que escapam à tradicional história da filosofia europeia) ao estímulo para que os alunos adotem uma postura ativa, estabelecendo conexões significativas e autônomas entre seus conhecimentos e experiências. Com isso, imagino que os estudantes poderão utilizar os vários modelos filosóficos como uma espécie de espelho, que os ajude a perceber e ressignificar os seus próprios conjuntos de convicções e valores, propiciando que a experiência deste curso seja (trans)formadora e não apenas informativa.

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