Este texto corresponde à segunda parte da minha tese de doutorado, defendida em 2008, com o título de Direito e Método. A primeira parte está publicada também neste site com o título Hermenêutica Filosófica.

Este é um trabalho sedimentar, pois ele é constituído de várias camadas, escritas em tempos diversos, que reunidas contêm as reflexões sobre hermenêutica que tenho desenvolvido e reelaborado desde que me tornei professor desta matéria, em 2000. Em sua conformação, os estratos mais antigos estão no centro do trabalho e, à medida que nos aproximamos do início e do fim, eles se tornam mais recentes.

O crescimento do texto foi menos planejado que orgânico, pois seguiu as intuições e as necessidades de cada momento. Muitos dos trechos foram reescritos várias de vezes ao longo dos anos, sofrendo grandes alterações tanto de conteúdo quanto de estilo. E devo confessar que foi somente ao escrever o epílogo que ficou claro para mim que eu leio este livro como uma narrativa da gradual historicização do pensamento hermenêutico, tanto na filosofia quanto no direito.

Durante o processo de escrita, o sentido geral permaneceu relativamente aberto, e sempre me foi difícil descrever a pesquisa de uma maneira unitária. Mas é somente quando o círculo se fecha que elaboramos um sentido para a obra, e creio que isso só foi possível porque agora eu posso olhá-lo mais na perspectiva de leitor que na de autor. Por maior que seja o esforço autoreflexivo da hermenêutica, o autor é sempre muito opaco a si mesmo, aos seus motivos inconscientes, aos seus preconceitos silenciosos, às lacunas do seu horizonte de compreensão. Por isso mesmo é que o olhar externo enriquece a interpretação das vozes alheias, de tal modo que o sentido de uma obra é construído nessa espécie de diálogo virtual que a leitura propicia e também no diálogo efetivo com os vários envolvidos no processo da construção desses significados. E essa consciência dá um sentido especial para o rito da avaliação por uma banca em que se cruzam tantas leituras.

Porém, antes de passar ao próprio texto, gostaria de agradecer a todos aqueles que me ajudaram a construí-lo, pois ele foi elaborado no constante diálogo com os meus alunos de hermenêutica jurídica na Universidade de Brasília e os meus colegas da pós-graduação e do Grupo de Estudo em Direito e Linguagem (Gedling). Em especial, agradeço à Luciana e ao Felipe, a quem devo uma cuidadosa revisão da maior parte dos capítulos.

E, por fim, gostaria de dedicar este trabalho a quem me acompanhou mais de perto em sua composição, que foi o meu irmão Henrique, que leu cada camada à medida que foi sendo escrita e conversou comigo longamente sobre cada um dos pontos desta obra. Suas palavras foram o principal espelho em que eu pude compreender as minhas.

Prelúdio

Este trabalho é um discurso sobre os modos de compreensão do direito. Ele é escrito em primeira pessoa, pois quem fala é o meu eu concreto, e não um eu abstrato pretensamente objetivo que profere verdades impessoais.

Assim, o que proponho não é o traçado de uma imagem objetiva do mundo, mas a elaboração de uma determinada narrativa, que não pode ser feita senão a partir da minha própria perspectiva e do meu lugar. Por isso mesmo, tomo emprestadas algumas das palavras com que Descartes iniciou o discurso filosófico da modernidade: não proponho este escrito senão como uma história, ou, se o preferirdes, como uma fábula.[1]

Então, gostaria que este texto fosse lido como uma espécie de mitologia possível, pois ele constitui uma narrativa que tenta dar sentido à minha própria experiência. Não se trata de um relato que pretende desenhar uma imagem exata, pois a sua função é menos produzir a imagem fiel de fatos e mais contar uma história que possa seduzir o leitor para que ele venha a determinar o seu modo de estar no mundo com o auxílio de alguns dos mapas aqui traçados.

Portanto, este não é nem pretende ser um trabalho científico. Mais propriamente, ele poderia ser qualificado de hermenêutico: uma mirada hermenêutica sobre a hermenêutica jurídica. Mas o que significa essa frase obscura, quase esotérica? Fazer essa pergunta já nos coloca no centro do problema, pois esta é uma questão de interpretação.

1. Hermenêutica e interpretação

A interpretação é uma atividade humana voltada a atribuir sentido a algo. Esse algo pode ser muitas coisas: frases, gestos, pinturas, sons, nuvens. No fundo, tudo pode ser interpretado, pois a qualquer coisa podemos atribuir algum sentido. Em outras palavras, tudo pode ser tomado pelo intérprete como um texto, ou seja, como um objeto interpretável.

Uma mulher dos Bálcãs observa as linhas formadas pela borra do café turco, no fundo da xícara que bebeu há pouco. Essa mulher lê o seu futuro na rede desses traços.

Quem interpreta normalmente atua como se estivesse a desvendar os sentidos contidos no texto. A crença de que o sentido é imanente ao objeto faz parte do exercício de quase toda atividade de interpretação. A mulher interpreta as figuras formadas na borra, acreditando que essas linhas têm um sentido. Ela não duvida de que, de algum modo, aqueles traços mostram o seu futuro. Ou melhor, talvez ela duvide, mas isso não faz diferença, desde que ela atue como se as linhas tivessem um sentido a ser desvendado.

Retirar a venda que impede a visão do sentido. Trazer à luz o que estava nas sombras. Esclarecer o mistério. Mas que certeza pode haver acerca dos enunciados da pitonisa? As palavras do oráculo são fugidias e muitas vezes são mal incompreendidas. Porém, elas não se colocam como portadoras de um mistério, e sim como esclarecedoras de um segredo. De antemão, sabemos que os mistérios são inacessíveis, e por isso mesmo eles dispensam interpretação. Os mistérios podem ser enunciados, mas não podem ser compreendidos. Os segredos, porém, são algo que ainda não sabemos, mas que podemos vir a conhecer. Assim, a compreensão desnatura o mistério, pois o que veio a ser compreendido nunca pode ter sido verdadeiramente misterioso, mas apenas oculto. Então, o sentido real das coisas permanece no âmbito do segredo porque, ainda que seja obscuro e fugidio, ele é algo a ser descoberto.

Uma vez revelados, os segredos deixam de o ser. Porém, é claro que nem todos têm as chaves para compreender os segredos do oráculo. Assim, se o sentido interpretado é apenas um segredo a ser desvendado, a capacidade de interpretação é sempre envolta em mistério, pois parece existir algo de mágico no processo interpretativo, algo que ultrapassa nossa capacidade de explicação. Então, os grandes intérpretes são aqueles capazes de desvendar os sentidos que são inacessíveis às pessoas comuns. Essa capacidade de compreender os segredos, de trazer à luz o que permanece oculto, este é o próprio mistério da interpretação.

Portanto, não é à toa que a interpretação sempre foi ligada às artes divinatórias. Nas narrativas fundantes de nossa cultura, estão grandes histórias de interpretação: os sonhos do faraó, as palavras do oráculo, as vísceras dos pássaros, os búzios. Em todas elas, o intérprete é uma pessoa especial: José, Tirésias e as mães-de-santo vêem o que os outros não vêem. Todos eles desempenham papéis semelhantes ao de Hermes, conectando o mundo dos deuses ao mundo dos homens. Entretanto, a sua função não se confunde com a do profeta que enuncia as verdades que lhe foram reveladas por uma iluminação. O intérprete não tem acesso direto a uma verdade revelada, mas é alguém que sabe ler textos que são incompreensíveis a outros olhares. Ele sabe entender vozes que são incompreensíveis a outros ouvidos.

Embaralhei as setenta e oito cartas do meu tarô com cuidado. Perguntei ao vento que soprava as folhas da minha varanda o que significa interpretar e retirei como resposta a carta da Estrela. No meu tarô, inspirado na mitologia grega, a Estrela é a esperança da história de Pandora que, depois de libertar os males da arca presenteada por Zeus aos homens, liberta também a esperança, que não afasta os males, mas mitiga a dor e possibilita a vida em meio às aflições humanas tais como as doenças, o trabalho e a velhice. Qual o sentido dessa resposta? Talvez aponte para o fato de que a interpretação seja apenas o reflexo de uma esperança, que não desvela os sentidos do mundo, mas nos possibilita conviver com a escuridão do mistério. Talvez a interpretação seja movida sempre por uma esperança de realizar o irrealizável. Talvez esse entendimento seja reforçado pelo fato de que a arca dos males, em algumas versões da história, foi forjada justamente por Hermes.

Ou talvez a carta não signifique resposta alguma, e tenha surgido em minhas mãos apenas por acaso. Mas o meu ato de retirar a carta tem um significado, pois esta ação representa a proposição de uma pergunta, mesmo que ela tenha sido dirigida a um vento que talvez sequer possa compreendê-la. E o ato de buscar um sentido para o fato de eu ter retirado justamente a Estrela talvez seja o reflexo de um velho hábito humano: o de atribuir sentido às coisas que ocorrem no mundo e crer que os sentidos atribuídos são descobertos e não inventados.

Esse velho hábito de negar o acaso que nada explica, mediante a afirmação de uma fatalidade que explica tudo é a postura (talvez o vício) que está na base da tradição interpretativa que domina o senso comum até os dias de hoje. E essa tendência é tão arraigada que é justamente a partir dela que Heidegger define a própria especificidade do homem: o homem é um ente que confere sentido ao ser e, com isso, converte a mera existência em uma existência significativa[2].

Esse é um modo peculiar de ver o próprio homem: não se trata do animal racional, que se distingue pela sua racionalidade estratégica, pelo seu domínio do raciocínio abstrato, pelo seu logos. O que determina a especificidade do homem é justamente o fato de que ele compreende o mundo, no sentido de que ele confere sentido às coisas. É justamente por isso que o homem habita um território simbólico pleno de significados[3], e não apenas um mundo empírico de objetos existentes. Para usar uma distinção heideggeriana, o homem não é meramente ôntico (no sentido de que ele existe como ser), mas é ontológico (no sentido de que ele compreende o próprio ser). E o objetivo da rede de discursos que compõem a Hermenêutica[4] é justamente o de compreender os modos como o homem compreende o mundo.

2. Hermenêutica e compreensão

Compreender. Essa é a palavra central, pois interpretamos para compreender o sentido (a interpretação, portanto, é uma atividade que tem uma finalidade determinada). Mas será que compreender o sentido é descobri-lo? É retirar o véu que o oculta e trazê-lo à luz? Sim, diriam tanto os representantes da tradição grega, quanto os modernos, cujos esforços culminaram no projeto Iluminista. E o iluminismo não recebe esse nome por acaso: compreender uma carta de tarô é iluminar a obscuridade que ela suscita.

Embaralhei de novo o tarô e retirei outra carta. Veio o dez de espadas, que simboliza o julgamento de Palas Atena que pôs fim a uma antinomia das regras divinas que mandavam Orestes simultaneamente matar a sua mãe (para vingar a morte do seu pai, por ela assassinado) e não a matar (para não derramar o próprio sangue).

Podemos entender esse fato como uma corroboração da tese da casualidade, pois a resposta à mesma pergunta é uma carta diversa (e isso já é interpretá-lo!). Mas também podemos enxergar nesse fato uma complementação da primeira resposta, pois o que Atenas faz é justamente resolver uma antinomia normativa mediante uma decisão que absolve Orestes do matricídio afirmando a regra de que ninguém pode ser punido pelo cumprimento de um dever. A interpretação, que aqui aparece como propriamente jurídica, põe fim a uma tensão semântica, mediante uma decisão. Talvez isso signifique que a interpretação não pode ser desvinculada da aplicação, e que a decisão que resolve a tensão entre entendimentos contrapostos é uma parte do processo interpretativo.

Todavia, isso talvez não queira dizer nada. Ainda mais considerando que a interpretação do tarô nunca é literal, pois o que as cartas possibilitam é apenas uma integração de sentidos de caráter analógico, fundado em uma espécie de alegoria. Como os vaticínios misteriosos das pitonisas gregas, elas sempre podem admitir variados sentidos. Assim, o fato de a carta não se repetir não significa uma resposta que nega a primeira, mas que esclarece outros aspectos da questão. Ou talvez essas cartas apenas sirvam como um ponto de apoio para as nossas próprias análises, de tal forma que as nossas tentativas de integrar a resposta das cartas ao nosso universo simbólico terminam por desencadear um processo reflexivo que nos faça dar um sentido à ocorrência de uma carta específica. Por isso, é na abertura proporcionada por sua obscuridade semântica que está a sua força significativa.

O surgimento da carta suscita uma obscuridade, não uma evidência. Nessa medida, o significado da carta se impõe como um problema a ser resolvido por meio de uma interpretação. Essa interpretação exige o conhecimento dos sentidos tradicionais das cartas, pois cada uma delas remete para uma rede de significações. Nesse tarô que utilizo, tais sentidos são enriquecidos pela ligação das cartas a uma mitologia que povoa de mitos o nosso imaginário: a grega. Prometeu, Pandora, Hermes, Atenas, Orestes, Narciso, Édipo, todos esses personagens continuam fazendo parte do repertório de mitos que organizam as nossas formas de compreender o mundo.

Porém, tal conhecimento não é o único saber exigido dos intérpretes, na medida em que o sentido abstrato (rede de significados ligados a uma carta ou a um conceito jurídico) é demasiadamente aberto e polifônico, diferente do sentido concreto (significado da carta para uma situação específica). E um dos problemas fundamentais da hermenêutica é definir como se relacionam os sentidos concreto e abstrato de um texto.

Na hermenêutica moderna, essa tensão revela-se normalmente na oposição entre interpretação (apresentada como desvendamento do sentido abstrato) e aplicação (entendida como fixação do sentido concreto). Alguns dos primeiros teóricos acentuaram essa distinção para afirmar que há uma incomensurabilidade entre interpretação e aplicação, por tratar-se de atividades com objetivos diversos. Essa, porém, não é uma saída típica dos juristas, pois tipicamente implica uma negação da cientificidade da aplicação.

Normalmente, os juristas buscaram afirmar a cientificidade das duas atividades, mas estabelecendo uma prioridade lógica entre interpretação e aplicação, na medida em que a fixação do sentido concreto pressupõe a existência de um sentido abstrato. Essa idéia perpassa tanto as teorias subsuntivas mais simplórias quanto as teorias metodológicas mais complexas, que introduzem a metodologia como uma mediação objetiva entre o sentido abstrato e o concreto.

Todas essas perspectivas pressupõem a existência de um sentido a ser desvendado e implicam um certo primado do sentido abstrato, do qual o concreto deve ser deduzido por algum tipo de procedimento controlável. Porém, desde meados do século XX, as reflexões da hermenêutica filosófica acentuaram a existência de uma co-relação circular entre interpretação e aplicação, de tal forma que a prioridade lógica tem sido substituída pela idéia de que existe uma complementaridade circular entre interpretação abstrata e aplicação concreta, pois essas duas atividades fazem parte de um mesmo processo de compreensão.[5] Nesse ponto, fica especialmente caracterizada a distinção entre a linearidade dos discursos científicos e a circularidade dos discursos hermenêuticos.

Essa circularidade se mostra em um jogo completo de tarô, em que o consulente retira dez cartas, que ocupam espaços de significação determinados pela ordem em que aparecem[6] e, a relação desses significados gera uma rede quase infinita de interações semânticas possíveis. Assim, o sentido de uma carta somente é dado na sua correlação com as demais, embora o significado do todo seja derivado das potencialidades semânticas de cada uma delas.

Vale aqui, portanto, o cânone hermenêutico fundamental: as partes devem ser compreendidas pelo todo, que deve ser compreendido pelo sentido das partes que o compõem. Essa circularidade semântica é inafastável, o que torna irresolúvel o problema do sentido. Então, interpretar é uma atividade digna do Barão de Munchhausen, que consegue sair da areia movediça puxando-se a si próprio pelos cabelos. Por isso mesmo há algo de mágico na hermenêutica[7], algo que não se explica cientificamente, ou seja, por meio de uma seqüência finita de causas organizadas de maneira linear.

Assim, o discurso científico se difere do discurso hermenêutico. Visto do ponto de vista da hermenêutica, o discurso científico mostra-se como uma forma específica de dar sentido ao mundo, que adota um olhar externo e ordena os fenômenos mediante relações de causalidade, esclarecendo uma ordem objetiva dos fatos do mundo. Porém, como a hermenêutica nega a possibilidade de uma externalidade e uma objetividade, a ciência aparece no campo hermenêutico como um discurso ingênuo ou cínico (embora útil), baseado em uma mitologia que nega a própria relatividade dos critérios de racionalidade que organizam o saber científico[8]. Por outro lado, visto do ponto de vista da ciência, a hermenêutica mostra-se como um discurso impreciso, uma espécie de mistificação, cujas afirmações são confusas e não se deixam avaliar adequadamente porque não se submetem a qualquer metodologia determinável.

Essa oposição deixa claro que não há na hermenêutica um lugar adequado para a verdade, pois a verdade é normalmente caracterizada por uma espécie de ultrapassagem de todos os contextos. Assim, uma verdade contextual tipicamente não é considerada uma verdade propriamente dita[9]. E como os discursos internos são sempre contextuais, ao menos em relação à cultura em que surge e ao seu momento histórico, o discurso hermenêutico somente pode admitir a própria categoria de “verdade” na medida em que o desveste do caráter incondicionado que lhe é tradicionalmente atribuído, reduzindo a verdade a uma espécie de adequação a um sistema interpretativo específico. Portanto, a verdade hermenêutica é medida em relação a um determinado conjunto de critérios histórica e lingüisticamente definidos. Esse tipo de historicismo obviamente não abre espaço para uma objetividade incondicional, mas apenas para uma objetividade relativa a uma determinada tradição cultural.

Justamente por isso, a hermenêutica é anti-iluminista, exatamente na medida em que o iluminismo é anti-tradicional. Existe, portanto, uma tensão fundamental entre os pensadores que se inscrevem na continuação do projeto racionalista do iluminismo (como Habermas, Dworkin e Alexy) e os que se opõem a ele (como Heidegger, Foucault, Gadamer e Rorty). Porém, seria um erro pensar que a hermenêutica é uma mera aceitação da tradição, pois enquanto a modernidade ataca a tradição de fora (por ser externo o seu olhar), a hermenêutica possibilita um ataque à tradição feito por dentro (na forma de uma espécie de autocrítica que abre espaço para o novo).

Essa crítica interna não é normalmente vista como revolucionária, justamente porque revolução é o nome dado pelos herdeiros do Iluminismo à oposição entre dois discursos totalizantes. Lyotard chama de modernos os discursos organizados em torno de grandes narrativas, que oferecem sistemas monolíticos de atribuição de sentidos ao mundo[10]. O Iluminismo é um desses projetos, e os seus herdeiros são aqueles que continuam a propor utopias totalizantes de caráter racionalista.

Na medida em que todas essas grandes narrativas propõem um ideal de unidade e identidade, o seu calcanhar de Aquiles costuma ser o seu modo de tratar a pluralidade e a diferença. A Modernidade, em todas as suas versões, admite que a pluralidade de interesses individuais é um fato que precisa ser levado em consideração, pois nenhuma pessoa pode pretender que o seu interesse pessoal valha mais do que o de um outro qualquer. Essa admissão da diferença gera um abismo entre o individual e o coletivo, que tenta ser suplantado mediante alguma espécie de vontade geral ou de interesse coletivo. Porém, também é claro que não existe uma vontade geral de fato, pois a única coisa que existe no mundo é uma pluralidade de interesses pessoais entrelaçados. Como enfrentar essa situação? De Hobbes a Habermas, passando por Rousseau, Kant e Rawls, a modernidade, a enfrenta mediante o estabelecimento de uma vontade geral ideal, baseada em critérios que precisam ser impessoais.

E essa impessoalidade é sempre medida pela sua racionalidade, pois, não obstante os pensadores modernos reconhecerem que a imensa diversidade dos interesses humanos, eles pressupõem que os homens compartilham uma única racionalidade. E é justamente essa racionalidade que é afirmada como único elemento unificador de uma humanidade dividida por seus desejos e valores, motivo pelo qual ela é erigida como critério para transcender os interesses pessoais e servir como base para a organização das sociedades.

Nessa medida, a necessidade de legitimação do poder é interpretada pelos pensadores modernos como a necessidade de fundamentação da validade de determinados padrões de organização social, sejam eles morais, políticos ou jurídicos. Assim, o discurso filosófico da modernidade, no que toca às questões normativas, está inteiramente voltado à elaboração de discursos fundamentadores que são construídos a partir do dogma de que tudo o que é racional é válido.

Esse é o pressuposto que a modernidade não pode tematizar sem desnaturar-se em um relativismo em que se perde a possibilidade de fixar padrões objetivos de verdade e validade. Por isso mesmo, considero que esta é a fronteira do pensamento moderno e a melhor linha demarcatória entre a modernidade e a pós-modernidade. E é justamente nessa fronteira que se insere a hermenêutica filosófica que, radicalizando o historicismo, rejeita a possibilidade de fundamentação racional de qualquer ordem de poder.

3. A polifonia contemporânea

Os discursos que a modernidade oferece são grandes narrativas totalizantes, que apresentam um projeto de mundo que se caracteriza pela imposição de um determinado modelo de organização social que se pretende objetivamente válido. E cada uma das grandes narrativas modernas produziu um discurso hermenêutico, na medida em que propunham um modo específico de atribuir sentido ao mundo social.

Essa multiplicidade de discursos hermenêuticos revela-se com especial força dentro do campo jurídico, em que as disputas entre os discursos estão diretamente relacionadas com a definição dos critérios de exercício do poder político organizado. E os últimos duzentos anos foram repletos de teorias hermenêuticas contrapostas, sendo que cada uma delas se inspirava em noções diversas de legitimidade e oferecia diferentes visões acerca das funções a serem desempenhadas pelos atores jurídicos.

Cada uma dessas teorias buscava afirmar-se como objetivamente válida, de tal forma que elas sempre lutaram por hegemonia, ou seja, pela conquista total do mundo da vida que define nossos padrões de auto-compreensão. Apesar disso, a situação contemporânea é justamente a de que nenhuma das grandes narrativas conseguiu impor-se de maneira hegemônica. Na hermenêutica jurídica isso não foi diferente, pois a situação contemporânea é a da permanência de uma multiplicidade de discursos. Assim, para usar metaforicamente um termo tomado da teoria do Estado, nenhuma das teorias hermenêuticas conquistou soberania.

O que vivemos, então, é uma pluralidade de narrativas. Essa pluralidade normalmente é apresentada pelas teorias da modernidade como um momento de transição para a época em que se fixará uma nova narrativa hegemônica, ou, para usar uma metáfora de origem epistemológica quase gasta pelo uso excessivo, um novo paradigma. Esse novo paradigma deverá adotar a forma de uma nova utopia totalizante, ou seja, de um novo sistema.

Uma das teses centrais defendidas neste texto é a de que o surgimento das variadas teorias da argumentação significou justamente uma tentativa de reunificar um discurso jurídico que já não era capaz de lidar com todos os problemas que enfrentava. Tal re-sistematização precisava ser feita de modo compatível com a descrença generalizada de que as narrativas anteriores eram capazes de organizar um discurso jurídico racional. E as teorias da argumentação me parecem a mais nova tentativa moderna de oferecer um modelo totalizante de racionalidade crítica, cujo principal teórico atualmente é o alemão Jürgen Habermas.

Pessoalmente, porém, não aposto minhas fichas em uma retomada dessa reductio ad unum racionalista que marca as teorias modernas, inclusive a habermasiana. Em vez enfrentar a pluralidade por meio da fixação de um critério totalizante, creio que a melhor opção é justamente a busca da construção de espaços para a coexistência das diferenças, mediante processos de autonomia e singularização. Assim, em vez de canalizar esforços para a construção de um meta-sistema que afirme um critério universal e objetivo de legitimidade, prefiro dedicar-me a compreender as tensões existentes entre as narrativas contemporâneas, inspirado pela idéia de que o desafio atual não é o de construir um novo paradigma unificador, mas a de traçar mecanismos de convivência da diversidade.

Mas como realizar uma mono-grafia que respeite a poli-fonia? Será possível uma poli-grafia acadêmica? Um sistema cuja unidade não seja construída com base na subordinação de todos os elementos a um elemento definido, mas que envolva a coordenação de perspectivas não apenas diferentes, mas contrapostas. Ou, para usar uma metáfora de Deleuze e Guattari que muito me encanta, um sistema rizomático e não radicial, como todo o pensamento totalizante da modernidade e seus grandes discursos construídos à imagem e semelhança dos sistemas axiomáticos da matemática?

Uma das possibilidades é construir sempre obras coletivas, que equilibrem várias visões simultâneas sobre um mesmo tema. Mas essa saída não é compatível com este trabalho, não só por razões burocráticas (porque uma tese de doutorado precisa ter um único autor), mas também porque cada um de nós individualmente faz uso de discursos múltiplos. Nosso nome é legião, porque são vários os discursos e devires que nos atravessam.

A subjetividade monolítica que está na base da visão moderna de mundo parece incompatível com a pluralidade do mundo contemporâneo, que admite a pluralidade como uma característica humana e não como um problema a ser resolvido. Em cada um dos meus discursos, equilibro várias das minhas personas: o Professor, o Advogado, o Filósofo, o Amante, o Artista. Engano é pensar que um juiz decide apenas como Juiz, que o professor fala como Professor, que a tese acadêmica é escrita pelo Cientista.

Não podemos misturar o personagem conceitua[11]l com o sujeito real, pois o primeiro é um arquétipo e o segundo e uma pessoa, incoerente e múltipla como todos nós feliz ou infelizmente somos. É claro que esses arquétipos são importantes para a estruturação e compreensão dos discursos e que a introdução de um novo personagem conceitual pode ter conseqüências revolucionárias (como a invenção grega do Filósofo), mas não pretendo repetir aqui o esquecimento moderno do sujeito, reduzido ao arquétipo do indivíduo racional egoísta.

Tudo bem que todo discurso tem seus esquecimentos, suas zonas de silêncio e obscuridade, que o constituem tanto quanto as zonas de iluminação. Não posso pretender que o meu não as tenha. E é por isso que me incomoda o discurso pretensamente objetivo da modernidade, construído sobre bases pouco transparentes para a própria obscuridade. E a obscuridade pode ser transparente (a afirmação do vazio e do mistério), assim como a claridade pode ser opaca.

Edgar Alan Poe conta a história de um sujeito que, ao saber que sua casa ia ser revistada, escondeu uma carta colocando-a no lugar mais evidente, e por isso mesmo menos propenso a ser identificado por quem procura elementos ocultos[12]. Na modernidade, por exemplo, os valores ideológicos são escondidos no conceito mais evidente: o de Razão. E esse simples procedimento torna tão difícil tal percepção que muitos não vêem, por exemplo, que tanto a razão transcendental kantiana quanto a razão comunicativa habermasiana contêm um elemento ético em sua própria conformação. E a igualdade colocada como um imperativo racional, e não como um imperativo ético, dificilmente é identificada como tal.

Essa mistura entre valores e razão, contudo, só é um problema para quem pretende atuar de maneira neutra. Para quem postula uma razão neutra a valores (e, portanto objetiva), esse é um problema sério. Porém, toda teoria crítica é fundada na afirmação de um critério de legitimidade, que não pode deixar de ser valorativo. Assim, é da estrutura dos discursos críticos a sua não-neutralidade, a sua parcialidade, o fato de estar ligada a posições valorativas que não são impessoais. E a alternativa à criticidade de uma teoria não existe, pois mesmo o positivismo realiza uma espécie de sacralização da neutralidade, e a neutralidade não deixa de ser um valor[13].

Portanto, não há um lugar neutro para falar de uma teoria. O enfoque externo não é um enfoque imparcial e nunca faz justiça às concepções teóricas descritas. Isso ocorre especialmente porque todo teórico engajado (isso é, todo teórico) concorda com algumas poucas tendências e discorda de todas as demais, e normalmente falamos das idéias que nos desagradam oferecendo uma versão enfraquecida, útil apenas para a crítica que a ela faremos em seguida.

Construímos estereótipos para guerrear contra eles e, com isso, atacamos inimigos imaginários. Travamos assim uma batalha fácil e cuja vitória pode ser bastante útil, na medida em que todos querem estar ao lado dos vencedores. Quando não é signo de simples ignorância, esse tipo de pseudo-vitória, tão característica das academias, revela uma espécie de covardia intelectual. Mas o normal é que ele seja apenas fruto da nossa visão distorcida das idéias que não são as nossas e que, por isso, são erradas.

Convencidos pela modernidade de que a verdade é una, não podemos chamar senão de falso tudo o que colide com as nossas crenças. E, com isso, a descrição externa de uma teoria que não é nossa perde justamente o que essa teoria tem de mais importante: a capacidade de seduzir.

4. Verdade e sedução

Ninguém adota uma teoria por causa da sua verdade, mas por causa de uma apreciação estética: somos seduzidos por ela! Pela sua elegância, pelos seus resultados, por ela estar na moda, pela sua beleza, pela sua justiça, por elementos valorativos que nos encantam e estimulam o nosso engajamento. Assim, para sermos justos com uma teoria, ela tem de ser defendida em primeira pessoa, como uma espécie de teatro, pois a sua força está na capacidade de seduzir o auditório (persuadi-lo, para usar uma palavra de Perelman) e não de convencê-lo, dado que somente convencemos as pessoas que já acreditam nos nossos valores.

Assim, o convencimento é uma operação tautológica como as demonstrações matemáticas: um procedimento útil apenas frente aos que compartilham a crença nos mesmos axiomas. E, no verdadeiro choque entre teorias, o que está em jogo é a adesão a um axioma, que nunca se dá por critérios de coerência (senão não seriam axiomas...), e sim por critérios de sedução.

Como essa sedução tende a se perder em todo discurso externo, creio que a melhor forma de lidar com ela é formular discursos pseudo-internos, em que nos deixemos atravessar pela voz do sujeito arquetípico de uma teoria. Interpretar a teoria como um ator que interpreta seu papel, e não como um cientista que a descreve. Isso envolve a construção de narrativas sedutoras, que incorporem a paixão que é perdida toda vez que tentamos ser verdadeiramente imparciais.

A imparcialidade mata a paixão. Uma descrição imparcial dos pontos fortes e fracos de uma teoria é um discurso importantíssimo. Mas ele faz parte de uma economia discursiva de quem sustentará apaixonadamente uma outra concepção teórica. Assim, uma monografia pode ser construída como um canto pessoal de uma teoria específica, mas raramente esse tipo de enfoque dará margem a boas cartografias, que melhor se adaptam a poligrafias, em que cada mapa possa guardar seu poder de encantamento.

E por isso é que tentarei defender cada ponto como um discurso interno ou, melhor dizendo, pseudo-interno, que é o máximo que podemos fazer com teorias que não são as nossas. E o objetivo da cartografia aqui exposta não será apenas a elaboração de modelos teóricos, mas a elaboração de discursos internos potencialmente capazes de seduzir os juristas para esses modelos.

Então, não se trata aqui propriamente de uma reconstrução dos modos de interpretação do direito. A realização de um projeto desse tipo exigiria um esforço diferente, pois envolveria o estudo de fontes primárias (especialmente dos discursos jurídicos de cada momento histórico), o que não é o caso, ao menos em grande medida. As referências às decisões judiciais nos servirão muito mais como exemplos heurísticos, pois o trabalho é centrado nas teorias hermenêuticas modernas e contemporâneas, e não nas práticas interpretativas desse período. Portanto, esta pesquisa é mais ligada à filosofia do direito do que à sociologia jurídica.

E a filosofia jurídica é justamente um discurso centrado na questão da legitimidade. No caso específico deste trabalho, a discussão será concentrada no debate acerca dos critérios de legitimidade que organizam os discursos de aplicação do direito, cujo paradigma típico é o discurso judicial. Se os legisladores normalmente tentam justificar a legitimidade dos seus atos com base em alguma espécie de representatividade popular ou de adequação aos valores sociais, os juízes contemporaneamente justificam a legitimidade das suas decisões na aplicação correta do direito legislado. Portanto, os critérios hermenêuticos funcionam, no direito, como critérios de exercício legítimo da autoridade judicial.

Assim, por mais que o discurso hermenêutico normalmente se organize em torno de critérios de verdade (na busca da interpretação correta), esses critérios definem simultaneamente o exercício de um poder social, que não pode ser exercido senão em nome da lei. Portanto, o debate acerca dos padrões hermenêuticos não pode ser visto como uma discussão nefelibata acerca de critérios abstratos de verdade, pois essa é a arena em que se definem os conceitos jurídicos que organizam a aplicação normativa do poder. Com isso, fica claro que a identificação foucaultiana das inevitáveis relações entre saber e poder[14] mostra-se com especial clareza no plano da hermenêutica jurídica, em que toda afirmação de verdade implica uma afirmação de validade, em que todo debate acerca da correção implica a afirmação de padrões de legitimidade para o exercício do poder político.

Essas relações entre legitimidade e discurso judicial suscitam várias abordagens. Uma delas, de inspiração mais sociológica, seria o de investigar a prática discursiva efetiva e desvendar os critérios de legitimidade que lhe subjazem, o que poderia trazer à luz as mitologias dominantes no imaginário dos juristas. Outra, de inspiração mais filosófica, seria investigar esse mesmo imaginário a partir das teorias hermenêuticas consolidadas, o que implica uma avaliação dos discursos teóricos sobre o direito. E é justamente este o desafio do presente trabalho, cujo objeto de estudo é a hermenêutica jurídica (entendida como uma rede de discursos teóricos acerca da própria interpretação) e não a interpretação do direito propriamente dita (atividade prática de atribuição de sentido aos textos jurídicos).

Essa opção pela filosofia remete a uma análise indireta do imaginário dos juristas, mediada pelos modos de compreender que se consolidaram na forma de teoria. E todos sabem que a prática, por mais que seja inspirada em alguma teoria, não pode ser reduzida a uma simples aplicação ao mundo de uma teoria determinada. Porém, mesmo uma análise filosófica que tome por objeto as teorias hermenêuticas não pode ser realizada sem uma íntima conexão com a história e a sociologia do direito, pois o esclarecimento das implicações entre as posturas teóricas e o contexto social é fundamental para a adequada compreensão das teorias e dos imaginários que as inspiram.

Como todo modo de olhar, esta perspectiva gera campos de esclarecimento e de ocultação, e a consciência disso pode contribuir para que certas distorções sejam minimizadas. Em especial, creio que optar pelo estudo das teorias tem a desvantagem de muitas vezes sub ou superdimensionar o impacto de uma teoria no contexto social. Certas concepções, como a de Kelsen, têm uma grande repercussão no pensamento de outros autores, mas não nas práticas sociais. Outras, como a jurisprudência dos interesses, acabam por ter uma grande relevância prática, apesar de (ou justamente por) não oferecer grandes inovações teóricas.

De um modo ou de outro, o direcionamento filosófico deste trabalho implica uma certa concentração das análises nas relações das teorias entre si, especialmente nas inovações conceituais propostas por cada uma e das tensões existentes entre elas, tanto no nível dos modelos teóricos propostos como das narrativas mitológicas nela implícitas. E, como em toda discussão filosófica, o aspecto sincrônico tende a predominar sobre o diacrônico, pois é no presente que se realizam as tensões contemporâneas entre os modos de interpretação. Porém, para contrabalançar um pouco esse desequilíbrio, creio que é importante oferecer uma descrição das teorias que as contextualize historicamente.

5. Estrutura do trabalho

Creio que todas essas considerações explicam porque as duas primeiras partes do trabalho são reconstruções históricas que tentam explicar o sentido contemporâneo de uma perspectiva hermenêutica, bem como uma espécie de arqueologia das teorias hermenêuticas do direito, mostrando os modos da sua formação, suas influências recíprocas e suas relações com os contextos sociais em que elas surgiram. Com esse objetivo, o primeiro livro traça uma reconstrução histórica da hermenêutica filosófica enquanto o segundo traça uma narrativa acerca da hermenêutica jurídica, desde o início do século XIX até os dias de hoje.

Com isso, creio ser possível entender como a noção de historicidade é radicalizada pela hermenêutica filosófica, que termina por se constituir como um modelo de compreensão alternativo ao científico, e avaliar em que medida essa mesma historicidade é capaz de permear as reflexões sobre a hermenêutica jurídica. Seguindo o olhar meta-hermenêutico do trabalho, este livro proporá uma avaliação dos modos como as teorias hermenêuticas contemporâneas atribuem sentido à realidade que elas apresentam, e das tensões existentes entre algumas das perspectivas teóricas relevantes no panorama atual. E, especialmente porque o debate contemporâneo envolve uma indispensável autocrítica do olhar hermenêutico, considero que essa parte fecha um ciclo de leitura hermenêutica da hermenêutica jurídica, e que esse retorno possibilita a abertura de novas perspectivas para que atribuamos sentido à atividade interpretativa que constitui a prática do direito.

6. Definição do objeto

Meu principal objetivo com este trabalho é esclarecer os pressupostos que servem como base explícita ou implícita das perspectivas contemporâneas acerca da hermenêutica jurídica, especialmente da hermenêutica constitucional, que acredito ser o campo do direito que tem oferecido as contribuições hermenêuticas mais criativas.

A plena realização deste objetivo, porém, depende da elaboração de conceitos que ainda não foram devidamente construídos pela filosofia do direito. Concordo com Deleuze e Guattari que a função da filosofia é criar conceitos e creio que, no campo da hermenêutica jurídica, existe uma grande defasagem entre a sofisticação das metodologias dogmáticas (que criam e recriam métodos, critérios e parâmetros de interpretação) e uma certa pobreza no âmbito da análise filosófica, que realizou apenas algumas tentativas um pouco tímidas no sentido de elaborar categorias que permitam pensar de maneira global o campo da hermenêutica jurídica.

Inspirando-me novamente em Guattari e Deleuze (mais especificamente na metáfora cartográfica que lhes é tão cara), acredito que a modernidade gerou vários mapas sobre a hermenêutica, mas a grande maioria deles é de escala muito grande, o que resulta no mapeamento de

de grande escala sobre a hermenêutica, tais como descrições razoavelmente minuciosas sobre as idéias de autores específicos (como Betti, Kelsen ou Gény), sobre determinadas correntes (como a Escola da Exegese ou a Jurisprudência dos Interesses), sobre determinados tópicos (como as recentes criações jurisprudenciais na interpretação constitucional) ou sobre aspectos jurisprudenciais (como a minha própria dissertação de mestrado, que versou sobre a função retórica do princípio da razoabilidade na jurisprudência do STF, e tantas outras que tentam reconstruir a posição de tribunais acerca de determinados assuntos). Faltam, porém, mapeamentos mais gerais, que possibilitem pensar toda essa produção como parte de um mesmo campo de reflexão.

Abundam descrições pontuais, mas carecemos de tentativas mais sérias de formular conceitos capazes de organizar uma reflexão sobre os pressupostos filosóficos que sustentam teorias hermenêuticas, sobre as mudanças nos significados da hermenêutica jurídica no decorrer do tempo, sobre as conexões entre fatores históricos e metodologias interpretativas, sobre as semelhanças e diferenças entre os vários aspectos das várias teorias.

Creio que a explicação mais plausível desse descompasso entre reflexões pontuais e mapeamentos gerais deriva primordialmente do fato de que esses mapas provém normalmente de pesquisas de mestrado e de doutorado e que tais cursos privilegiam nitidamente o mapeamento exaustivo de questões específicas. Não faltam livros de metodologia afirmando que a pesquisa acadêmica deve ser fundada sempre na escolha de um tema específico (quanto mais específico, melhor) que deve ser exaurido pelo pesquisador (quanto mais completa a revisão bibliográfica, melhor).

Esse tipo de orientação tem fortes raízes estratégicas e metodológicas. As primeiras resultam do fato de que as defesas em banca costumam ser percebidas como grandes batalhas contra os examinadores, o que leva o pesquisador a tentar reduzir ao mínimo os riscos de receber os golpes da banca. Nesse sentido, a demasiada ampliação do tema abre flancos para os ataques certeiros dos examinadores que defendem posturas diversas da do examinando. Então, a restrição do tema pode representar uma escolha estratégica muito adequada para uma postura defensiva, pautada pela idéia de que a banca aprova tudo o que ela não recusa, e não apenas aquilo que ela aprecia. Todavia, essa postura defensiva, que costumo aliás indicar para os meus orientandos de graduação, que normalmente ainda não têm autonomia para arriscar-se em saltos maiores nem têm segurança para enfrentar uma banca relativamente hostil, creio ser relativamente dispensável no mestrado e completamente descabida em um doutorado que, penso, deve formar pessoas capazes de sustentar abertamente suas idéias.

Já as raízes metodológicas para essa escolha me parecem estremamente frágeis em qualquer pesquisa, pois elas estão ligadas a uma pressuposição da modernidade que considero tanto falsa como inconveniente: ao partirem do pressuposto de que existe um mundo real a ser descrito objetivamente, as teorias modernas são levadas a admitir a existência de uma pluralidade de enfoques (pois todo objeto pode ser visto por vários ângulos), mas tendem a considerar que cada uma dessas perspectivas oferece um fragmento diferente de um mesmo objeto. Dessa forma, por mais restritos que sejam os fragmentos, a soma deles deverá formar a imagem de um grande objeto complexo.

Considero que o equívoco central dessa concepção está na crença de que os fragmentos se somam de maneira automática e que basta justapô-los para ter a visão do objeto complexo e acreditos que tal engano estimula as pesquisas acadêmicas a se concentrarem na realização de mapas cada vez mais precisos de regiões cada vez menores, como se essa fosse a única função da pesquisa e a única escolha metodologicamente adequada a um conhecimento pretensamente científico (e, portanto, sério).

Essa postura acadêmica parece ignorar que a justaposição dos mapas específicos não forma o desenho complexo de um objeto multifacetado, mas simplesmente uma grande confusão, pois eles simplesmente não fazem referência a uma mesma realidade objetiva. O rompimento da dualidade sujeito/objeto dá-se por meio da admissão clara da função constitutiva da razão, que elabora objetos diferentes e constrói diferentes mundos, não se limitando a traçar desenhos fragmentados de uma única e mesma realidade. Além disso, ausente um referencial objetivo que sirva como parâmetro absoluto de veracidade, é preciso admitir que não há um critério predefinido para privilegiar uma perspectiva a outra.

Frente a esse dilema da contemporaneidade, creio que a saída mais adequada é construir metamapas (ou seja, mapas de mapas) capazes de orientar as pessoas no manuseio dos vários mapas específicos, para que se tornem capazes de extrair deles as informações que forem úteis aos seus objetivos. Isso não significa pressupor que os mapas se deixem reunir em um todo unitário (a ilusão moderna da unidade dos mapas me parece profundamente perniciosa), mas acentuar a necessidade de que as relações entre as várias perspectivas precisam ser traçadas conscientemente, que a construção de mapas gerais é fruto de uma reflexão específica e que eles são absolutamente necessários para possibilitar o desenvolvimento de uma visão geral sobre um determinado campo do conhecimento.

Por tudo isso, embora o objetivo fundamental seja compreender os pressupostos filosóficos das teorias hermenêuticas contemporâneas, o objeto deste trabalho precisa ser mais amplo, pois é preciso criar conceitos capazes de organizar uma visão geral da hermenêutica, para que seja possível entender as teorias contemporâneas em sua conexão com as demais teorias hermenêuticas relevantes.

O objeto do trabalho, portanto, é a ambiciosa construção de um grande mapa filosófico da hermenêutica dos últimos duzentos anos, no qual sejam definidos conceitos suficientes para possibilitar uma análise contextualizada e abrangente das teorias contemporâneas.

Identifico na hermenêutica jurídica uma defasagem conceitual que acredito ter como principal (embora não único) motivo uma limitação típica das teorias ligadas ao projeto da modernidade, que é o fato de a busca de objetividade ser tipicamente incompatível com um pensar reflexivo.

Por isso, apesar de o objetivo do trabalho estar vinculado a uma análise filosófica da hermenêutica contemporânea, considero que o objeto do trabalho precisa ser mais amplo, pois creio imprescindível superar a defasagem existente entre o desenvolvimento de uma série de metodologias hermenenêuticas dogmáticas (voltadas à orientar os operadores do direito em sua atividade prática)

a) A defasagem conceitual da hermenêutica moderna

Esclarecendo a obscuridade da última frase: as teorias modernas buscaram descrever objetivamente o mundo, trantando o mundo real como um objeto a ser conhecido e o sujeito cognoscente como um observador que deveria descrever de forma precisa o seu objeto. Essa postura gera uma dicotomia sujeito/objeto que tende a ver no objeto algo independente do sujeito que o observa e que, no plano da hermenêutica, mostra-se normalmente como a crença de que existe no direito um sentido objetivo a ser desvendado pelo jurista.

Aqui, são necessárias duas ressalvas. A primeira é a de que o sentido objetivo do direito não está nas normas jurídicas, pois o pensamento jurídico moderno não se limita a concepções normativistas e legalistas, que, embora dominantes, não excluem a existência de outras vertentes, notadamente as de viés sociológico ou axiológico. A segunda é a de que não devemos confundir o sentido objetivo com o sentido evidente porque aquilo que parece evidente a uma pessoa muitas vezes é um mero fruto dos seus preconceitos e não é demais lembrar que está na base do projeto da modernidade a busca de purificar o conhecimento, livrando-o dos preconceitos existentes em todos os saberes tradicionais, sendo essa é justamente a motivação de Descartes para construir um método capaz de diferenciar a Verdade daqueles preconceitos em que acreditamos simplesmente porque eles nos foram ensinados pela sociedade.

Mas será possível desenvolver um modo para identificar, de maneira objetiva, os sentidos objetivos do mundo? A modernidade responde que sim e, por isso, creio que as principais marcas da hermenêutica jurídica moderna são (i) escolher como ponto de partida o pressuposto de que existem no direito sentidos objetivos a serem desvendados e (ii) adotar uma estratégia notadamente metodológica, que consiste em uma busca (por vezes quase desesperada) de construir métodos objetivos para identificar esses significados.

Essa visão metodologizante, que até hoje é a principal vertente da hermenêutica jurídica, tende a ver a pesquisa hermenêutica como a elaboração de métodos adequados para o esclarecimento dos sentidos corretos do direito.

o fato de que os juristas ligados ao projeto da modernidade normalmente compreenderam a hermenêutica como uma espécie de metodologia da interpretação, o que os levou a uma busca constante de construir métodos interpretativos adequados

Este é o projeto da construção de um mapa capaz de oferecer orientação adequada a quem deseja compreender a hermenêutica jurídica dos últimos 200 anos.

O processo de codificação do direito francês, nos primeiros anos do século XIX reflete

Neste ano, comemoramos o bicentenário de um dos marcos do direito moderno, que foi o Código de Napoleão. É claro que seria ingenuidade encarar este código como o início de um novo tempo, mas a análise do processo de codificação possibilita

Esse corte temporal é arbitrário, no sentido de que toda escolha

Capítulo I - Do naturalismo ao positivismo

1. O direito moderno

Houve momentos históricos em que o direito era a expressão dos costumes consolidados em sociedades que ocupavam territórios relativamente pequenos e dotados de homogeneidade cultural. No imaginário típico dessas culturas, como em toda organização tradicional, os valores tinham um caráter absoluto e inquestionável, e os modos corretos de agir eram aqueles reconhecidos pelos costumes. E o costume ninguém tinha autoridade para modificar, nem mesmo os chefes políticos, que não podem alterar os valores sobre os quais se assentam tanto o seu poder. Essas autoridades até podiam transgredir certas regras sem sofrer punições, mas não fazia parte do seu imaginário a possibilidade da mudança da norma, pois a tradição é sagrada, inclusive aos seus próprios olhos.

A sacralidade da tradição impede o seu questionamento e, nessa medida, não possibilita o surgimento de uma mentalidade reflexiva e histórica, capaz de perceber que somente existem valores criados pelo próprio homem[15]. Isso não quer dizer que os homens criam intencionalmente os seus próprios valores, mas que eles surgem como resultado de processos culturais que ocorrem na convivência humana. Porém, em toda sociedade tradicional, os valores não são percebidos como culturais, mas como naturais, no sentido de que a sua validade independe da cultura e que, por isso, tampouco pode ser alterada por meio de decisões políticas.

Por isso mesmo, o processo de modernização do direito pode ser encarado como uma destradicionalização do direito, que é gradualmente trasladado do campo dos costumes para o campo da política, em uma passagem que modifica profundamente a percepção das relações entre o direito e o indivíduo. Como expressão coletiva, o direito consuetudinário era a expressão de uma determinada tradição cultural, cuja imposição heterônoma às pessoas que compõem a comunidade dispensava qualquer tipo de justificação, pois estava no campo da obviedade. Quer dizer, não existe, nas sociedades tradicionais, a construção de um lugar de fala a partir do qual o indivíduo poderia questionar a validade das obrigações que lhe eram impostas pelo costume. Com isso, a fixação das normas jurídicas não era um atributo da política (exceto para o direito acerca da própria administração do poder), pois não era uma questão de decisão.

Esse era o mundo do Capitão Rodrigo Cambará, que, no começo do século XIX, bateu-se em duelo de facas com o filho do Coronel Amaral, chefe político de Santa Fé, uma cidade no interior dos pampas gaúchos[16]. A luta foi travada em um lugar ermo, pois o duelo era proibido pelo direito estatal, embora reconhecido pelos costumes. Ambos os participantes haviam deixado suas pistolas na cidade e prometido lutar apenas com armas brancas. Porém, ao sentir que era inevitável a derrota, Bento Amaral atirou contra o Capitão e fugiu. Essa traição não era admitida nos códigos jurídicos e morais vigentes e, por mais que ninguém tenha punido o jovem filho do Coronel, a imoralidade da traição era evidente para todos, inclusive para seu pai. Assim, a regra que veda a traição não era percebida por nenhum dos personagens deste drama como uma norma que pudesse ser alterada por meio de uma decisão política. E as regras costumeiras sobre o duelo continuavam sendo válidas, apesar de serem excluídas pelo direito estatal vigente, pois Érico Veríssimo situa esses acontecimentos numa época em que poder central não tinha a possibilidade de se impor sobre a rede de autoridades locais que governava cada região do Brasil.

O desenvolvimento do direito moderno vai mudando gradualmente essa situação, pois ele faz parte de um processo de unificação do poder, em que as normas legisladas passaram a excluir cada vez mais eficazmente os costumes locais que lhe eram contrários. Esse foi o caso da proibição do duelo, uma das primeiras atitudes dos Estados em sua tentativa de monopolizar o uso da violência social. Também foi o caso da exclusão das milícias armadas que atuavam em nome das autoridades não-estatais, como era o caso dos cangaceiros, contada com maestria no Grande Sertão: Veredas, cujo pano de fundo é a substituição do poder descentralizado dos coronéis pelo poder centralizado do Estado, que impôs uma nova ordem ao Sertão, com sua polícia e seu exército. E quem nos conta essa estória é Riobaldo, convertido de chefe de bando em um respeitável fazendeiro na nova ordem estatal e legislada[17].

Na Europa, porém, a passagem do direito costumeiro para o legislado, foi mais lenta, mais antiga e não se deu de maneira direta. Se o Estado brasileiro do início do século XX já impunha seu poder por meio de um direito codificado (e a codificação do direito civil antecedeu inclusive a estatização do direito em muitas regiões do país), isso foi porque ele atuava inspirado por um modelo cuja consolidação na Europa foi fruto de processo de centralização longo e gradual, em que foram moldados os Estados modernos. Esse processo remonta ao séc. XIII, marcado por uma série de transformações sociais e políticas que determinaram a decadência do feudalismo na Europa ocidental e um paulatino fortalecimento do poder do Estado, acompanhado por uma crescente centralização do poder político nas mãos dos monarcas e do poder econômico nas mãos da burguesia. Essa nova sociedade que surgia não se fundava na afirmação das autoridades locais, mas na criação de Estados compostos por territórios amplos e integrados por regiões com costumes e valores diferentes. O que dava unidade a esses estados não era a homogeneidade cultural, mas a submissão a um único soberano, o que exigia estratégias jurídicas que superassem o localismo das soluções consuetudinárias e dessem margem a uma organização mais homogênea dos Estados nascentes.

Era preciso incorporar elementos jurídicos que superassem a dimensão notadamente local dos costumes, que tipicamente estruturam a vida de sociedades culturalmente homogêneas e têm um estreito âmbito de validade territorial. Porém, quando vários ordenamentos consuetudinários passam a ser regidos pela a mesma autoridade política, o exercício do poder exige uma certa uniformidade de regulação, o que faz com que ganhem relevo elementos que têm a potencialidade de oferecer uma certa unidade jurídica a comunidades heterogêneas e a grandes territórios. Tais elementos são justamente aqueles fundados na autoridade central, e não nos costumes locais. Assim, na medida em que os reinos europeus passaram a abranger áreas de costumes jurídicos muito diversos, o que ocorreu especialmente a partir do século XIII, adquiriram relevância os elementos que poderiam servir como padrões de unificação que permitissem o exercício centralizado do poder em uma sociedade heterogênea.

Naquela época, o grande modelo que se mostrou capaz de organizar essa nova sociedade foi o direito romano, que era o direito de um império unificado e que foi utilizado como uma espécie de modelo para a orientação do desenvolvimento de um novo direito, mais adaptado à realidade política e econômica que se consolidava. Houve, então, um renascimento dos estudos romanísticos. Especialmente na recém fundada universidade de Bolonha, passou-se a estudar o Corpus iuris civilis, uma compilação de textos romanos realizada no século V por ordem do imperador Justiniano, a qual passou a ser a base da formação dos juristas e serviu como alicerce para a construção do direito europeu moderno. Assim, começou a ser formada uma classe de juristas que tinhas sua formação baseada no direito romano, o que implicou a transição de um modo de pensar enraizado no particular (pois os costumes eram fruto das concepções e valores cristalizados na sociedade medieval) para um pensamento de matriz universalizante, que buscava retirar do direito romano padrões aplicáveis de maneira universal.

Essa universalidade rompe os padrões de pensamento do direito tradicional, que não pretende ter aplicação fora do seu próprio campo de abrangência cultural. O direito romano não é válido porque está baseado nas tradições, mas porque se trata de um direito superior, cuja validade não deriva dos costumes, mas do fato de tratar-se de padrões jurídicos corretos. Essa adoção de um padrão de correção que suplanta os valores das tradições enraizadas localmente é um dos principais elementos da construção do direito moderno. Porém, não se tratou de uma ruptura com o modelo anterior, mas de uma transformação gradual, que partiu inicialmente de um certo equilíbrio entre o universal e o particular, de uma harmonização entre a tradição local (representada pelo direito costumeiro) e de uma idéia de universalidade (implícita no estudo do direito romano). Esse equilíbrio era obtido especialmente porque durante muito tempo o direito romano somente foi aplicável de maneira subsidiária, ou seja, ele somente era utilizado onde o direito costumeiro local era insuficiente para resolver os conflitos. Porém, o direito romano foi gradualmente ganhando espaço na mentalidade dos juristas, o que gerou uma perspectiva cada vez mais vinculada aos imperativos de universalidade e abstração que culminaram no jusracionalismo do século XVIII.

Inicialmente (séc. XIII e XIV), os textos romanos foram tratados praticamente como textos sagrados, com incontestável autoridade, pois traziam o conhecimento de uma época áurea do passado e eram dotados de uma sofisticação jurídica inigualável nos tempos de então. O tratamento dado a esses textos era o de um respeito cerimonioso e a primeira grande escola de juristas a estudá-los limitava-se a explicar, mediante glosas (comentários colocados às margens dos textos), o sentido de cada uma das frases e expressões usadas no Corpus iuris civilis, motivo pelos quais esses juristas são chamados de glosadores. Porém, com o tempo, foi ganhando espaço a idéia de que não bastava esclarecer o texto de forma fragmentária, pois, por maior que fosse a sabedoria jurídica romana, a aplicação do direito romano aos casos concretos ocorridos na Europa do séc. XV (período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna) exigia uma adaptação dos textos às novas situações. Assim, os juristas que enfrentaram os problemas da adaptação do direito romano à realidade da época se impuseram o desafio de superar o modo tradicional de análise fragmentária dos textos e passaram a construir um conhecimento jurídico mais sistematizado, induzindo conceitos gerais a partir das regras romanas, conceitos esses cuja generalidade e abrangência permitia sua aplicação às situações contemporâneas.

Não se tratava mais de simplesmente aplicar as regras romanas às situações atuais, mas de entender os institutos romanos, constituídos por conceitos extraídos da multiplicidade fragmentária dos textos do Corpus iuris, e não pelas próprias regras. É essa passagem do nível dos textos em si para os nível mais abstrato dos institutos que podiam ser extraídos dos textos que marca o surgimento da escola dos comentadores ou pós-glosadores (séc. XV e XVI), cujo principal trabalho foi o de proporcionar uma análise integrada das fontes romanas, criando um conhecimento jurídico cada vez mais sistematizado e abstrato[18]. Passou-se, gradualmente, de um estudo exegético constituído basicamente de comentários a textos isolados, para uma análise sistematizada do direito romano. Além disso, cada vez mais os juristas passavam da simples descrição das fontes históricas do direito romano, para um estudo do então denominado usus modernus pandectarum, ou seja prática atualizada do direito romano, que implicava uma leitura renovada das fontes romanas adaptando-o às novas necessidades sociais e relacionando-o com o direito legislado e consuetudinário[19].

Esse esforço de sistematização prosseguiu nas escolas jurídicas até o século XVII, momento em que o passo definitivo no sentido da construção de um sistema jurídico autônomo foi dado pelos jusracionalistas, que libertaram o direito de sua vinculação estrita ao direito romano e defenderam a criação de um sistema jurídico baseado na própria razão. Tal processo de autonomização entre o sistema jurídico e o direito romano começa com Hugo Grócio no século XVII, passa por Hobbes, Leibniz, Puffendorf e culmina na obra de Christian Wolff, que, inspirado nos ideais racionalistas do iluminismo e no modo matemático de argumentar mediante deduções, elaborou em meados do século XVIII uma exposição sistemática do direito more geometrico (ao modo dos geômetras), por meio “de uma dedução exaustiva dos princípios de direito natural a partir de axiomas superiores até os mínimos detalhes”[20].

Contudo, como bem adverte o historiador português António Hespanha, apesar de os jusracionalistas do século XVIII se oporem ao modelo romanista que os precede, eles somente puderam elaborar um sistema jurídico autônomo porque estavam calcados na progressiva construção sistemática do usus modernus. Assim, se Wolff foi capaz desenvolver um sistema dedutivo tão sofisticado, era porque naquele momento o sistema já estava praticamente perfeito, com seus axiomas elaborados: era possível, então, que o pensamento jurídico se limitasse a explicá-los de forma dedutiva.[21] E é justamente esse passo que inaugura o pensamento jurídico moderno: construído a partir de uma depuração dos conhecimentos tradicionais, o jusracionalismo negou precisamente o seu apego à tradição, rejeitou sua ligação com a autoridade tradicional e buscou reconstruir seus fundamentos a partir de referências meramente racionais. Na medida em que se opõem à tradição que lhe deu vida e busca afirmar-se como uma teoria universalizante fundada na razão objetiva, o jusracionalismo se afirma como radicalmente moderno.

Mas a contribuição mais perene do jusracionalismo não foram os múltiplos sistemas de direito natural (que, no fundo, repetem basicamente a tradição romanista e, portanto, não trazem grande inovação), mas o oferecimento das bases para o desenvolvimento da teoria de justificação mais relevante da modernidade, que é o contratualismo. O contratualismo é uma argumentação que assenta seus fundamentos em uma visão jurídica de mundo, pois ele acentua o fato de que os vínculos que estabelecem a base da sociedade são estabelecidos por um “contrato”, ou seja, por um instrumento jurídico derivado da vontade individual das partes envolvidas. Dado que os homens eram entendidos como indivíduos livres e iguais, a única legislação válida seria uma espécie de auto-legislação, estabelecida por meio de uma decisão política fundada em critérios racionais. Assim, já não se trata mais da mera aceitação das verdades tradicionais, nem da justificação das autoridades constituídas, nem da afirmação de que a sociedade é uma derivação espontânea da natureza humana. Frente à crescente heterogeneidade das sociedades modernas e ao individualismo que as marca, era preciso uma teoria que religasse o homem à sociedade, e a única saída que se mostrou plausível foi a de estabelecer um vínculo jurídico, fundado no uso autônomo da razão.

Hobbes, por exemplo, que elaborou pela primeira vez um sistema contratualista sólido, articula em seu conceito de direito natural os dos dois conceitos que sustentam as teorias contratualistas, que são o interesse e a razão individuais, afirmando, no Leviatã, que “o direito da natureza, a que os autores normalmente chama de jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e conseqüentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados para esse fim.”[22] Essa razão autônoma e livre, utilizada pelos sujeitos no sentido de garantir os seus interesses individuais, é uma marca do pensamento moderno que se mostra claramente no contratualismo e no seu caráter propriamente revolucionário, que é o de recusar veementemente todas as justificações tradicionais do poder oferecidas pelas vertentes jusnaturalistas precederam o jusracionalismo. Com isso, o jusracionalismo ofereceu uma linguagem na qual foi possível formular a idéia do contrato social abstrato, vinculado à razão e ao interesse individuais, e não à tradição e à autoridade posta.

Essa tentativa de assentar a validade do contrato em uma lei natural derivada da própria razão humana foi repetida, com variações relevantes, por Locke (que sustentou um jusnaturalismo liberal contra o absolutismo hobbesiano) e por Rousseau (que construiu uma teoria contratualista democrática). Porém, em todos esses casos, a razão humana foi colocada na base de um contrato que estabelecia as bases para a organização de uma autoridade social legítima. E, na base da sociedade, não estava mais a autoridade, nem o sagrado, nem a tradição, nem a solidariedade, nem o vínculo com os antepassados, mas a norma, com sua abstração e generalidade. Portanto, foi o jusracionalismo que fixou a norma como o elemento jurídico fundamental, abrindo espaço para o positivismo normativista que veio a tornar-se a concepção jurídica hegemônica do século XIX.

2. Crise do jusracionalismo

Os séculos XVII e XVIII foram o ápice do jusracionalismo, ou seja, das correntes jurídicas que entendiam ser possível descobrir regras jurídicas racionalmente necessárias e, nessa medida, universalmente válidas. Antes dessa época, o direito natural era entendido como um conjunto de princípios genéricos, ligados à idéia de justiça, que serviam como padrão para aferir a legitimidade do direito positivo[23]. Era assim, por exemplo, em São Tomás, que afirmava que o direito natural resumia-se basicamente no princípio faz o bem e evita o mal, sem decompô-lo em um sistema de regras específicas e hierarquicamente estruturadas, tal como vieram a fazer vários dos jusnaturalistas da Idade Moderna[24].

Ademais, como ensina o historiador francês Michel Villey, tanto na Antigüidade clássica como na Idade Média, o próprio termo direito não se referia a um conjunto de regras. Nessa época, a palavra empregada para designar o direito era derivada do adjetivo latino jus, sendo que o direito não era tratado como uma coisa (ou conjunto de coisas), mas como um predicado a ser atribuído. Assim, o termo “direito” não era utilizado como um substantivo que designava um objeto determinado, mas como um adjetivo que indicava aquilo que é justo, sendo que esse modo de emprego, derivado da cultura greco-romana, permaneceu na cultura européia até a época do jusracionalismo iluminista, quando se consolidou o uso substantivo da palavra.[25]

Um dos motivos dessa mudança foi que, na modernidade, construiu-se a noção de que cada sujeito individualmente poderia estudar o mundo utilizando-se de sua própria razão e descobrir, a partir da observação acurada e da análise cuidadosa, as regras que o regiam. Era isso o que fizeram os físicos, como Newton, reduzindo a complexa natureza a reflexos da aplicação de um punhado de regras muito gerais. Era isso o que tentaram fazer os juristas, que utilizavam a razão para extrair da natureza das coisas os princípios fundamentais que eram válidos porque racionais. Dessa maneira, “o direito natural tornou-se não só uma mera coleção de algumas idéias importantes ou dogmas, mas um sistema jurídico detalhado semelhante àquele do direito positivo”[26].

Porém, embora cada jurista considerasse que as regras que “descobria” eram universalmente válidas, cada um deles construía um sistema diferente, fundado em seus próprios preconceitos. Afirmando descobrir regras universais a partir de critérios de evidência[27], terminavam por afirmar como válidas (porque lhe pareciam evidentes) as regras fundamentais de sua cultura e/ou ideologia.[28] Como afirmou Michel Villey, por mais que soe absurdo aos ouvidos contemporâneos (acostumados com o relativismo de valores que se implantou desde o momento em que se tentou levar às últimas conseqüências o direito de liberdade), houve um tempo em que as mentes mais brilhantes acreditavam que a racionalidade humana, fundada em raciocínios pensados conforme as regras da lógica, poderia nos mostrar quais eram os valores naturalmente corretos, porque racionalmente necessários. [29]

Torna-se, então, evidente o importante papel desempenhado pelo jusracionalismo na derrubada do antigo regime, pois muitos dos grandes jusracionalistas do séc. XVIII defendiam a naturalidade dos direitos vinculados ao ideário liberal. Nesse campo, especial destaque deve ser dado a Locke, que qualificou como naturais os direitos ligados à concepção liberal. Tão forte era essa ligação com a idéia de direitos naturais que, na célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, os revolucionários franceses resolveram “declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”[30], entre os quais a liberdade, a igualdade e a propriedade.

Entretanto, vitoriosa a revolução contra o antigo regime, um jusracionalismo muito livre transformava-se em um elemento de instabilidade, pois os juristas vinculados a essa corrente poderiam buscar, individualmente, os princípios do direito natural e, com isso, sobrepor as regras que encontrasse (ou pensasse encontrar) ao direito positivo imposto pelo Estado[31]. Com isso, o jusnaturalismo de combate que animou os revolucionários precisava ser convertido em um jusnaturalismo conservador, que justificasse a ordem de poder instaurada pela revolução.

A justificação de todo poder envolve uma espécie de mitologia, e as revoluções liberais substituíram o mito do direito divino dos reis pelo mito da representação popular. Os deputados franceses não eram mais representantes do povo do que Luís XIV era representante do deus cristão, mas era impossível articular dentro da ideologia liberal um discurso que questionasse a sua legitimidade, pois as bases ideológicas que justificavam a instauração dos Estados Liberais, fundados no princípio da representação democrática, não permitiam a elaboração de uma crítica a modelo de organização política.

Além disso, no plano da filosofia, foi-se consolidando paulatinamente a idéia de que a razão não era capaz de discernir o justo do injusto, mas tratava-se de um instrumento capaz apenas de discernir o verdadeiro do falso[32]. Aos poucos, foi sendo minada a confiança em que um indivíduo seria capaz de identificar as regras justas por natureza, mediante critérios de evidência racional.

Assim, embora não tenha sido abandonada a idéia do direito natural enquanto fundamento da ordem positiva, perdeu terreno a idéia jusracionalista de que cada jurista poderia descobrir os princípios justos por natureza, mediante um esforço individual de reflexão. Especialmente a partir da Revolução Francesa de 1789, somente ao legislador cabia a revelação do direito natural, restando ao juiz apenas o papel de aplicar o direito legislado aos casos concretos. Portanto, o juiz agia em nome do direito natural (que justificava a autoridade que o povo transmitia ao legislador), mas não poderia invocar o direito natural contra as decisões legislativas.

Foi, então, abandonado o ideal cartesiano, deveras revolucionário, do indivíduo que buscava identificar racionalmente na natureza as suas leis, e consolidou-se a idéia de que as normas jurídicas válidas eram aquelas determinadas pelos poderes sociais estabelecidos. Assim, o jusnaturalismo liberal deixou de ter uma função iconoclasta, pois já não era mais uma arma para combater uma tradição hegemônica, mas a base mítico-ideológica para a instauração de uma nova tradição. Essa conversão exigiu que fosse inviabilizada uma ligação direta entre o juiz e o direito natural, estabelecendo-se entre esses dois elementos uma relação necessariamente mediada pela lei: a lei deveria refletir as regras naturais, mas os juristas não poderia questionar a validade da lei com base em argumentos jusnaturalistas. E, como no início do século XIX não havia um discurso crítico para além do jusnaturalismo iluminista, a perda do sentido revolucionário do jusnaturalismo privou o discurso jurídico de seus instrumentos de crítica.

Assim, como todo revolucionário que ascende ao poder, o jusnaturalismo tornou-se um conservador bastante inflexível, pois o que o movia não era o respeito relativista às diversidades, mas a afirmação apaixonada da utopia que ele ergueu contra a tradição que destronou. E, como esse jusnaturalismo propunha uma espécie de sacralização do direito positivo, a sua cristalização como discurso legitimador do direito moderno foi primeiro grande passo para a formação da mentalidade positivista, que veio a tornar-se hegemônica na teoria jurídica desde o século XIX.

3. A formação do positivismo

O positivismo jurídico normativista é a segunda grande matriz do pensamento jurídico moderno e, em suas diversas variações, tornou-se a concepção dominante no direito no decorrer do século XIX e ainda hoje domina o senso teórico dos juristas. Para manter essa posição hegemônica por tanto tempo, esse positivismo teve de modificar-se várias vezes, incorporando parcela das críticas que outras teorias concorrentes levantaram, mas sempre mantendo um certo núcleo: a pretensão de constituir em uma avaliação objetiva do direito positivo.

O positivismo maduro é um discurso que se pressupõe científico, na medida em que elege um objeto empírico determinado (o direito positivo), um arsenal teórico comum (a teoria geral do direito) e um método específico (os métodos de interpretação apresentados por cada escola para proporcionar uma compreensão objetiva do direito positivo). Na medida em que adota o discurso científico, o positivismo aparentemente se liberta do jusracionalismo, pois enquanto este precisava justificar racionalmente a validade das normas que seus teóricos elaboravam, os positivistas percebem sua função como a de simplesmente descrever o direito vigente. Na medida em que se desoneram da necessidade de justificar metafisicamente a validade das normas positivas (o que conduz fatalmente a raciocínios metafísicos) e se limitam a uma postura descritiva (ligada ao discurso científico da modernidade), os positivistas resolvem o problema da fundamentação do direito de modo bastante peculiar: eles simplesmente abandonam o problema, por entender que se trata de uma questão filosófica e não científica.

Essa separação entre filosofia e ciência permite que um mesmo jurista harmonize dentro de si o jusracionalismo contratualista dominante na filosofia jurídica (que lhe reforça o compromisso com o sistema e assegura um sentido ético para sua própria atividade) e o positivismo dominante no discurso prático (que limita-se à construção de uma dogmática que exclui de si mesma todo debate filosófico).

Não é por outro motivo que Alf Ross afirma que os normativistas dogmáticos são normalmente jusnaturalistas disfarçados, pois o seu positivismo se assenta sobre um jusnaturalismo implícito, que não encontra espaço na linguagem dogmática, mas que está na base do edifício de crenças ideológicas que organizam a atividade prática dos juristas. Trata-se, portanto, de uma concepção eminentemente moderna, tanto no tipo de racionalidade que o estrutura (cientificista, monológica e unitária) quanto no tipo de cegueira ideológica que o caracteriza (e que o torna incapaz de enxergar em si suas próprias bases filosóficas).

Cumpre ressaltar que embora o positivismo tenha se instaurado tanto no Common law quanto na tradição romano-germânica, ele adquiriu feições peculiares em cada uma dessas tradições. No Common law, por mais que a autoridade do parlamento tenha sido afirmada pelas constituições burguesas, o direito comum, de matriz jurisprudencial continuou sendo hegemônico, mesmo que o direito legislado ganhasse espaço em uma série de âmbitos do jurídico. Porém, tal como o statutory law (direito legislado), o common law é estatal, escrito e positivo (é inferido da jurisprudência dos tribunais, a partir da leitura das suas decisões). Na Europa continental e em sua área de influência, a implantação dos Estados liberais envolveu um processo de redução do direito à lei, que erigiu ao status de fonte primária o direito legislado pelos parlamentos. Nessa nova realidade, o direito romano perdeu sua função de direito subsidiário e o direito costumeiro foi reduzido a fonte secundária, subordinada à lei.

Esse direito legislado moderno (no sentido do direito característico das sociedades modernas) impô-se em grande parte da Europa continental antes que fosse possível desenvolver um arsenal de conceitos adequados à sua compreensão e aplicação. Portanto, era preciso elaborar algo que ainda não existia: uma teoria jurídica capaz de lidar com o direito legislado, o que forçou uma ruptura com o jusnaturalismo e a tradição costumeira, pois a dogmática do direito moderno já não mais podia admitir como fonte primária senão o próprio direito legislado.

Nessa medida, várias correntes do positivismo contemporâneo podem ser vistas, ao menos parcialmente, como uma forma de adaptação da teoria jurídica a uma mudança efetiva na realidade político-jurídica subjacente. Ressalte-se que isso não significa afirmar uma espécie de primazia do empírico sobre o simbólico, como se o conhecimento jurídico fosse apenas uma superestrutura voltada à sustentação ideológica do direito existente. Em grande medida, o direito moderno foi moldado pelas pretensões jusnaturalistas, com suas pretensões de clareza e sistematicidade. Portanto, as concepções modernas de mundo estão inscritas na própria estrutura do direito, não se tratando apenas de uma forma derivada de justificação ideológica. Porém, o direito que nasceu influenciado pelas pressões ideológicas da modernidade escapava dos critérios tradicionais dos saberes jurídicos, o que fez com que, nesse caso específico, a teorização sobre o direito legislado fosse posterior ao seu próprio surgimento.

Peculiarmente, as bases metodológicas para pensar o direito legislado não foram desenvolvidas nos países de direito codificado, mas nos países germânicos, onde predominou até o final do século XIX uma mistura de direito costumeiro e de direito romano. A inexistência de um direito codificado fez com que a modernização do direito passasse por uma espécie de “cientifização” dos saberes jurídicos, que se organizaram sob inspiração das ciências exatas e adquiriram um novo patamar de rigor sistemático e conceitual.

Porém, essa sistematização dos saberes jurídicos terminou por consolidar-se na forma do Código Civil alemão de 1900, que uniu as duas grandes vertentes do positivismo oitocentista: o legalismo de origem francesa e o formalismo conceitual de origem germânica, que foram os grandes vetores da formação do senso comum que dominou o senso comum dos juristas no século XX.

Capítulo II - O legalismo positivista

1. A redução do direito à lei

O primeiro grande marco do modo contemporâneo de elaborar normas jurídicas foi o Código Civil francês de 1804, cuja história revela bastante de como o desenvolvimento de novos padrões de legalidade[33] colaborou para o surgimento de uma mentalidade positivista.

Quando a Revolução de 1889 irrompeu na França, as leis ainda não haviam sido sistematizadas na forma de códigos, de forma que o direito se encontrava em grande medida esparso em costumes locais e leis extravagantes[34]. Essa configuração jurídica, que o senso moderno tende a perceber como atrasada e precária, era típica de um momento em que os Estados não tinham pretensão de regular minuciosamente todas as relações sociais. Mesmo que os regimes absolutistas tenham ampliado a relevância da legislação, dentro deles ainda prevalecia a pluralidade de fontes que marcou o direito medieval. Assim, a organização absolutista do Estado implicava um projeto de hegemonia das leis (vistas como superiores às outras fontes do direito positivo), mas não de monopólio do direito legislado.

Essa situação começou a mudar com o despotismo esclarecido, por meio do qual algumas monarquias ingressaram no processo de modernização pregado pelo iluminismo. Exemplo paradigmático desse período foi uma lei portuguesa promulgada em 1769: a Lei da Boa Razão, que alterou o sistema de fontes do direito português à luz do despotismo esclarecido, impondo a todos os juízes a observação estrita das leis editadas pela coroa[35]. Naquele momento, ainda eram vigentes as Ordenações Filipinas, de 1603, cujo livro III, título LXIV, determinava minuciosamente a hierarquia das fontes de direito, estabelecendo que os casos que não fossem pela própria ordenação deveriam ser julgados com base nas leis, na jurisprudência das cortes ou no direito consuetudinário local. Na hipótese de essas três fontes serem omissas, o caso deveria ser julgado com base no direito romano ou, se a questão envolvesse pecado, de acordo com o direito canônico. Porém, se o Corpus iuris civilis não determinasse uma solução precisa para o caso, deveria ele ser julgado com base nas glosas de Acúrsio e de Bártolo. Por fim, se os juízes não encontrassem em nenhuma dessas fontes subsídios adequados para o julgamento, a questão deveria ser remetida ao próprio rei, para que ele a decidisse.

A Lei da Boa Razão veio modificar esse sistema de fontes, mediante o fortalecimento da autoridade da lei, a exclusão do direito canônico, a contenção do direito consuetudinário e, principalmente, a limitação ao uso do direito romano, cuja aplicação pelos juízes chegava a funcionar como um limite à própria autoridade real. Tanto era assim que o historiador português António Hespanha afirma que “em relação à doutrina, a lei não era apenas um fenômeno minoritário, era também um fenômeno subordinado”[36].

A Lei da Boa Razão assim foi batizada porque ela se justifica pelo fato de que, embora as Ordenações Filipinas mandassem obedecer ao direito romano apenas na medida em que ele era fundado na boa razão, muitos juízes tomaram essa permissão por pretexto para aplicar quaisquer normas romanas, sem fazer diferença entre as que eram baseadas na boa razão e as que “têm visível incompatibilidade com a boa razão, ou não tem razão alguma, que possa sustentá-las, ou têm por únicas razões, não só os interesses dos diferentes partidos, que nas revoluções da República, e do Império Romano, governaram o espírito dos seus Prudentes, e Consultos, segundo as diversas facções, seitas, que seguiram”[37].

Com isso, em vez de insistir na tendência medieval de sacralização do direito romano, os iluministas do final do século XVIII acentuavam a incompatibilidade da Europa moderna com os costumes particulares dos romanos, “que nada podem ter de comuns com os das Nações, que presentemente habitam a Europa, como superstições próprias de Gentilidade dos mesmos Romanos, e inteiramente alheias da Cristandade dos séculos, que depois deles se seguiram”[38]. Nesse sentido, especial atenção o fato de que foram vedadas as referências às glosas de Bártolo e Acúrsio, sob o argumento de que esses autores “foram destituídos; não só de instrução da História Romana, sem a qual não podiam bem entender os textos que fizeram os assuntos dos seus vastos escritos, e não só do conhecimento da Filologia, e da boa latinidade, em que foram concebidos os referidos textos; mas também das fundamentais regras do Direito Natural, e Divino, que deviam reger o espírito das Leis, sobre que escreveram”[39].

Assim, a Lei da Boa Razão representa um momento em que os Estados tentavam estabelecer a lei como a fonte de maior hierarquia e a referência jurídica primária para o exercício da jurisdição. Porém, a vitória das revoluções burguesas trouxe uma radicalização desse projeto, dentro do espírito de reductio ad unum da modernidade, desencadeando o que o historiador português António Hespanha chama de projeto de redução do pluralismo[40]: a tentativa de reduzir o todo o direito social ao direito do Estado e todo o direito estatal à lei.[41] Já não bastava garantir a soberania do Estado e a preponderância da lei, mas era preciso conquistar o monopólio da legislação estatal sobre o direito. Assim, para além do direito estatal, eram apenas admissíveis discretas referências ao direito natural, mas não aos direitos canônico e romanístico, pois estes configuravam heranças feudais incompatíveis com o iluminismo. Além disso, mesmo que ainda se admitisse a aplicação do direito consuetudinário, a multiplicação das leis reduziu os costumes a uma fonte supletiva de pouca importância prática. Assim, o projeto não se resumia a unificar o direito sob a bandeira do Estado, mas envolvia a criação de um novo direito, adequado ao projeto de organização social vinculado ao projeto político do iluminismo, que já se manifestava no despotismo esclarecido, mas cuja maior expressão foi o Estado de Direito fundado em princípios liberais.

Além disso, com a ascensão da burguesia ao poder e ganhou espaço a garantia da segurança jurídica almejada pelos ideais liberais, especialmente ligados à garantia de que os contratos devem ser cumpridos e de que a intervenção estatal nos negócios privados deveria limitar-se ao estabelecimento das regras gerais claras e homogêneas. Dentro desse espírito de unificação e de racionalização, houve um movimento de sistematização do direito na forma de códigos.

O processo de codificação era uma demanda originada do jusracionalismo iluminista, que defendia a elaboração de um direito positivo organizado e completo, que cristalizasse na forma de lei o direito natural[42]. Essa foi a inspiração dos primeiros códigos, feitos ainda durante os regimes de despotismo esclarecido e fundados nas obras dos grades jusracionalistas, como Christian Wolff. Na Prússia, por exemplo, após uma gestação de algumas décadas, entrou em vigor em 1794 o Allgemeines Landrecth (direito territorial geral), um código construído a partir do modelo jusnaturalista de Puffendorf e Wolff e que englobava tanto o direito público como o privado. Essa codificação representava a “versão prussiana do absolutismo esclarecido tardio”[43] e, unindo o racionalismo naturalista ao centralismo absolutista, ela pretendeu reduzir toda atividade jurídica à aplicação direta e literal da lei. A supressão do papel da doutrina e da jurisprudência chegou a tal ponto que, em 1798, editou-se um decreto proibindo “a interpretação através de precedentes, de comentários ou de especiosidades eruditas” e determinou que quaisquer dúvidas deveriam ser submetidas a uma “comissão legislativa” para que ela as resolvesse por meio de uma interpretação autêntica[44].

Uma concepção jurídica igualmente naturalista, embora inspirada pelos princípios liberais da revolução francesa, foi a inspiração dos primeiros projetos franceses de codificação, elaborados por Cambacères antes da subida de Napoleão ao poder[45]. Porém, com a subida de Napoleão, o jusnaturalismo revolucionário foi preterido em favor de uma mentalidade pragmática, distanciada da perspectiva abstrata e universal do racionalismo do século XVIII e ligada à idéia de que “as leis devem ser adaptadas ao caráter, aos hábitos, à situação do povo para o qual elas são feitas”, pois “as leis são feitas pelos homens e não os homens pelas leis”. Essas afirmações, atribuídas por Bonnecase[46] a Portalis (que foi o principal redator do Code Napoléon) indicam que fonte de inspiração filosófica dos próprios elaboradores do Código não foi um jusracionalismo que pretendia consolidar o direito natural na forma de direito positivo. Ademais, parte do código era baseada nas conclusões práticas da cultura jurídica francesa anterior à revolução, pois, como afirma Norberto Bobbio, a principal influência do código foi o Tratado de direito civil de Pothier, o maior jurista francês do século XVIII, que descreveu justamente o direito civil do Antigo Regime.[47]

Não obstante, os codificadores eram jusnaturalistas e a codificação francesa não apenas inaugurou a forma moderna de se construir o direito (ligada ao monopólio estatal do poder político), mas também fixou uma série de conteúdos normativos adequados ao ideário liberal que estava na base da organização dos Estados de Direito. Com a ascensão da burguesia, consolidada por volta de 1800, o liberalismo passou a compor o núcleo dos valores que orientavam a organização dos Estados ocidentais, que pregavam valores de igualdade e liberdade e defendiam noções como a de que era preciso um governo de leis e não de homens e de que o poder do estado era limitado pelos direitos naturais dos indivíduos.

Com a publicação do Código Napoleão[48], e a codificação de outras partes do direito francês durante a década que se seguiram, criou-se uma outra realidade jurídica, mais adequada ao contexto econômico e social da época, bem como ao racionalismo dominante no contexto filosófico. O direito, que antes deveria ser buscado nos costumes de cada região ou no direito romano, foi unificado em cada país por meio de uma legislação organizada em códigos que deveriam regular exaustivamente as relações sociais. Assim, o movimento de codificação significou uma espécie de concretização dos ideais jusnaturalistas de sistematização, mas também marcou o início da derrocada do naturalismo jurídico, pois foi estimulada a mentalidade de que segundo a qual “os códigos nada deixam ao arbítrio do intérprete; este não tem por missão fazer o direito, que já está feito. Não há mais incertezas; o direito está escrito em textos autênticos”[49].

2. A interpretação do novo direito

Como afirma Foucault, cada sistema de poder engendra um sistema de saber. Mas isso não significa que devamos descrever as mudanças na compreensão do direito como um mero resultado superestrutural das mudanças ocorridas na própria estrutura da organização social. A ordem do discurso, ou seja, a organização dos saberes, é parte integrante da ordem de poder, que não existe sem o discurso que organiza a sua compreensão e aplicação[50].

Assim, a nova ordem jurídica (o direito estatal, legalizado, codificado) nasce juntamente com um novo discurso, pautado por regras diversas das que organizavam o discurso jurídico do antigo regime. Modificaram-se as regras de interdição de conteúdos, pois já não mais se podia fazer referência a certas fontes normativas antes comuns. Modificaram-se as regras de abertura, pois a codificação deveria tornar o conhecimento do direito acessível aos cidadãos comuns. Novos mitos foram introduzidos na base da compreensão do direito, especialmente com a consolidação uma concepção democrática da legitimidade do poder político, baseada especialmente no contratualismo de Rousseau, segundo a qual uma lei é legítima na medida em que é criada por um legislador cuja autoridade deriva da representação popular. Dessa forma, passou-se a entender que a lei era uma expressão direta da vontade do legislador e, nessa medida, uma expressão indireta da vontade popular, o que fez com que a figura do legislador assumisse a posição de maior destaque nas teorias políticas e jurídicas.[51]

Nesse novo contexto, a atividade dos juristas não era mais apresentada como uma prudência, mas como uma mera técnica, que sequer aspirava ao estatuto de ciência. Não se tratava da mais da arte do justo e do eqüitativo, tampouco se tratava de produzir ciência acerca do campo do direito, pois não se buscava a produção de uma teoria. De acordo do discurso jurídico que se desenvolveu na França, após a publicação dos códigos, a atividade do julgador deveria limitar-se a interpretar as regras jurídicas (buscando seu sentido original), qualificar os fatos relevantes (avaliando o enquadramento das situações fáticas aos conceitos normativos, mediante um processo de subsunção) e, caso verificasse a ocorrência do enquadramento dos fatos nas normas, efetuar a aplicação do direito, especificando as conseqüências cabíveis.

A idéia que orienta essa concepção é a de que a competência para criar normas deve caber ao Poder Legislativo e, eventualmente, ao Poder Executivo, pois a autoridade para estabelecer regras de conduta é derivada da delegação popular, mediante o voto. Como o Poder Judiciário não é escolhido pelo voto, a ele não pode ser estendido de forma alguma o poder de criar o direito, sendo-lhe reservado apenas a competência de dizer o direito, ou seja, de solucionar os conflitos sociais mediante a aplicação das normas jurídicas elaboradas pelos legisladores democraticamente instituídos. Ao juiz, portanto, não caberia a criação do direito (que se esgota na legislação) nem a definição e implementação de políticas públicas (atividade exclusiva do poder Executivo), mas somente a aplicação das normas positivas. Portanto, o seu labor não seria criativo, pois não é o juiz que determinava o significado da norma (ele apenas o identifica) nem as conseqüências da sua aplicação (ele apenas as esclarece).

O jurista encarregado de realizar essa atividade não era um cientista nem um filósofo, pois o seu saber era eminentemente prático: exigia-se dele o domínio de uma técnica, e não o conhecimento de uma teoria. Em tal contexto, os campos da reflexão teórica e filosófica ficaram ligados às concepções jusnaturalistas que não tinham mais um espaço efetivo no discurso dos juristas, pois a única referência normativa possível era o próprio direito positivo. Esse primeiro positivismo, então, era marcadamente tecnicista e legalista, pois era justamente o discurso que mediava a aplicação da lei aos fatos pelos operadores do direito.

Dentro dessa nova ordem do discurso, constituiu-se uma nova hermenêutica, que prefiro chamar de imperativista, dado que ela percebia a lei como um comando imperativo dado pelo legislador aos cidadãos. Assim, por mais que a valorização dos textos legais conferisse a essa hermenêutica um caráter predominantemente literalista, sua vinculação à literalidade da lei não se dava por uma sacralização da autoridade do texto (como ocorria entre os glosadores e teólogos), mas por um respeito quase místico da autoridade do legislador, que se expressava por meio do texto. Nesse sentido, Henri Capitant, jurista da época, afirmava que a lei era obra consciente e refletida do homem, sendo resultado das deliberações dos legisladores e, portanto, apresentando-se como expressão do pensamento comum daqueles que a editaram. Dessa forma, “para determinar qual é o sentido da regra contida na fórmula legal, é preciso descobrir o que quiseram dizer os seus autores”[52].

Portanto, a interpretação não poderia ser coisa diversa da reconstrução do pensamento legislativo contido na lei, no que a hermenêutica jurídica da época se aproximava dos cânones hermenêuticos das outras disciplinas, especialmente das concepções de Schleiermacher, que sustentava a preponderância hermenêutica do autor e de sua intenção. Assim, buscar na interpretação um outro objetivo significaria substituir o sentido correto da lei por um sentido subjetivo do intérprete, pelos seus próprios interesses e valores, o que seria absurdo.

Além disso, como sustentava Baudry-Lacantinerie, a função do direito era regular os fatos e não adaptar-se a eles. Portanto, dar a uma norma interpretação diversa da que desejavam originalmente seus autores, com o objetivo de adaptá-las às exigências do momento presente, implicaria infidelidade à própria lei: seriam os fatos que estabeleceriam a lei e não a lei que regeria os fatos.[53] Assim, na medida em que a intenção do legislador encontra-se fixada um momento histórico e não se pode modificá-la com a passagem do tempo, exceto por meio de um outro ato legislativo, que venha a modificar a própria lei. Por isso, ganhou relevância o estudo dos trabalhos preparatórios, ou seja, dos debates legislativos relativos à própria elaboração da norma interpretada.[54].

Além desse argumento, que é baseado no próprio conceito de interpretação, houve na França quem tentasse extrair do próprio Código de Napoleão a obrigação de respeitar a vontade do legislador. Aubry e Rau, por exemplo, sustentavam que embora o Código Civil francês não contivesse regras sobre interpretação de leis, deveriam ser aplicadas a essa operação, mediante analogia, as normas que o Código estabelecia para a interpretação dos contratos. Consideravam que, tal como os contratos são expressão da vontade das partes contratantes, as leis são expressão da vontade do legislador e que, portanto, era preciso utilizar as mesmas regras hermenêuticas em ambos os casos.[55]

Havia, portanto, uma clara intenção de fazer com que, como preconizava Montesquieu, os juízes não fossem “senão a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que desta não podem moderar a força nem o rigor”[56]. E essa busca era especialmente importante no início do século XIX porque muitos dos juristas da época foram formados durante o Antigo Regime. Assim, tanto os elaboradores do Código Civil como os seus primeiros intérpretes não eram positivistas nem legalistas, de forma que eles tendiam a interpretar a lei utilizando-se de todos os recursos que lhes ofereciam as suas concepções filosóficas sua educação jurídica[57]. Então, de que adiantaria criar novas leis se os juízes decidissem aplicá-las à luz do antigo direito romano e dos costumes consolidados na tradição jurídica anterior? O Code Civil promovia uma profunda revisão em certos modos de organização da sociedade (especialmente na estrutura da família) e implicava a derrogação dos costumes locais em favor de uma regulação de âmbito nacional. Era inadmissível, pois, que juízes que não representavam a vontade do povo nem os valores liberais viessem a limitar, por via interpretativa o alcance e o sentido das medidas implementadas pelo legislador.

Para que a autoridade do legislador pudesse permanecer incólume, afigurava-se preciso estabelecer estruturas que limitassem a criatividade hermenêutica dos juristas. Assim, interpretação deveria voltar-se à identificação de um sentido contido no próprio texto, evitando com isso que os juristas manipulassem os significados e atribuíssem sentidos arbitrários, especialmente considerando que, tal como reconhecia a Lei da Boa Razão “a experiência tem mostrado que as sobreditas interpretações dos advogados consistem ordinariamente em raciocínios frívolos, e ordenados mais a implicar com sofismas as verdadeiras disposições das leis, do que a demonstrar por elas a justiça das partes”[58]. Portanto, o discurso hermenêutico daquele momento exigia que os juízes evitassem ao máximo a influência de seus valores subjetivos e de suas condicionantes ideológicas, o que deveria ser conquistado por meio da fixação de padrões objetivos para a resolução jurídica dos conflitos sociais, conferindo à atividade jurídica um grau de previsibilidade adequado a garantir a segurança jurídica tão cara ao ideário liberal da época.

3. A hermenêutica imperativista

De acordo com as teorias típicas do século XIX, a interpretação era somente era necessária nas situações em que a lei fosse obscura ou incompleta. Na maioria dos casos, porém, o legislador consegue traduzir de maneira eficaz a sua intenção, de tal forma que o sentido da regra é claro o suficiente para ser percebido à primeira vista, de tal forma que ao juiz caberia simplesmente aplicar a norma aos fatos.

Essa postura era baseada em uma distinção entre interpretação e aplicação, que eram vistas como etapas diferentes de um raciocínio jurídico tripartido. Ao deparar-se com um caso, o jurista deveria, antes de mais nada, identificar as normas aplicáveis. Feita essa identificação, era preciso verificar se elas tinham alguma obscuridade que exigisse a sua interpretação, procedimento pelo qual seria esclarecido o seu verdadeiro significado. Porém, se a norma fosse clara, seria possível realizar diretamente a sua aplicação aos casos concretos, definindo as conseqüências jurídicas dos fatos analisados.

Assim, havia problemas específicos de interpretação (ou seja, dificuldades relativas à definição do sentido de normas com significado obscuro) e de aplicação (ou seja, dificuldades relativas à aplicação de normas gerais a casos concretos). E foi justamente com base nessa distinção conceitual que Schleiermacher deixou de lado a hermenêutica jurídica em seu projeto de hermenêutica geral, pois a ciência hermenêutica que ele propunha tinha a ver com a determinção dos sentidos verdadeiros (interpretação) e não com as implicações concretas desses significados (aplicação).

Com base nessa diferenciação, houve quem defendesse que a aplicação do direito deveria caber aos juízes, mas que a interpretação deveria caber ao próprio legislador. Assim, em caso de obscuridade da norma, a questão deveria ser enviada ao próprio poder legislativo, a quem cumpriria esclarecer o sentido correto, mediante o que se convencionou chamar de interpretação autêntica, ou seja, aquela realizada pela própria autoridade legislativa, por meio de uma lei interpretativa. Essas leis interpretativas, por terem como única função explicitar melhor o sentido de normas anteriormente válidas, não trariam qualquer inovação no campo jurídico e, nessa medida, não seriam submetidas ao princípio da irretroatividade[59]. Porém, o recurso ao legislador nunca se impôs como modo regular de interpretação do direito nos Estados contemporâneos, tendo se firmado a possibilidade de os juízes interpretarem os textos legislativos.[60]

De toda forma, perdurou durante muito tempo a idéia de que a interpretação era um procedimento aplicável apenas a textos com sentido gramatical obscuro. Chegou mesmo a haver no projeto do código civil francês um dispositivo que, apesar de não ter sido incluído na versão definitiva, traduzia muito bem a concepção dominante naquele momento histórico: “Quando uma lei é clara, não se deve esquivar-se de sua letra à pretexto de lhe respeitar o espírito”[61]. Essa noção, mesmo não tendo sido positivada, foi absorvida pelo senso comum dos juristas da época e permaneceu bastante arraigada na cultura jurídica. Assim, sendo claro o texto, não se admitia a pesquisa acerca da vontade do legislador, idéia essa que normalmente é transmitida por meio do brocardo latino in claris cessat interpretatio (havendo clareza, não deve haver interpretação)[62].

Entretanto, passou-se gradualmente a entender que mesmo o sentido literal era objeto de interpretação, consolidando-se na tradição imperativista a diferença entre interpretação gramatical (fundada na literalidade da lei) e interpretação lógica (baseada no primado da intenção sobre a literalidade). Essa interpretação literal tinha um carater meramente declarativo, na medida em que a literalidade expressava adequadamente a vontade do legislador. Já a interpretação lógica seria adequada apenas aos casos em que o sentido do texto fosse claramente diverso do sentido intencionado, o que poderia levar o jurista a realizar uma interpretação restritiva nos casos em que o legislador utilizasse uma redação que fosse além de sua própria intenção, de tal forma que o intérprete precisa restringir a letra da lei para preservar o seu espírito, ou uma interpretação extensiva quando o legislador utilizasse uma redação que não expressasse toda a sua vontade, forçando o intérprete a ampliar o sentido para além da letra da lei, de modo a respeitar a vontade do legislador.

Assim, havia um predomínio do critério gramatical de interpretação, que somente poderia ser ultrapassado em situações muito especiais. Mesmo quando os adeptos dessa teoria admitiam uma abertura um pouco maior, como era o caso de Aubry e Rau (que consideravam que a interpretação também deveria ser usada quando, apesar de clara, a letra da lei não exprimisse o verdadeiro pensamento do legislador), essa abertura vinha coberta de ressalvas, asseverando que tal possibilidade deveria ser usada com o máximo cuidado e quando houvesse uma iniqüidade manifesta ou quando fosse tão absurda que não se poderia esperar do legislador uma inconseqüência tão flagrante.[63] Porém, mesmo eles ressaltaram, após enumerar certos princípios interpretativos ligados à interpretação lógica, que “malgrado o valor incontestável das indicações que foram dadas, o procedimento mais certo será sempre interpretar o Código Napoleônico por ele mesmo”[64], o que indica que o jurista sempre deveria dar prioridade à literalidade da lei, evitando perder-se nas sutilezas hermenêuticas que o poderiam desviar do seu verdadeiro sentido.

Contudo, havia posições mais extremadas, como a do jovem Savigny, que afirmava existir apenas interpretação declarativa, pois a extensão e a restrição são operações que “contradizem totalmente o caráter de nossa ciência”[65], na medida em que são operações tão arbitrárias que não podem ser consideradas interpretação, dado que o juiz não reconstrói a vontade do legislador, mas impõe seus próprios valores e interesses a pretexto de fazer interpretação.

Porém, o imperativismo não tinha como se esquivar da tensão latente entre a literalidade da lei (fonte de segurança e objetividade) e a vontade do legislador (fonte de legitimidade). Pelo contrário, ele se nutria justamente dessa tensão, pois foi justamente a busca de garantir a autoridade do legislador que conduziu ao fortalecimento da interpretação gramatical. Contudo, tanto imperativos de ordem teórica quanto prática tornaram necessário estabelecer uma válvula de escape que possibilitasse evitar decisões literais absurdas, de tal forma que se consolidou no discurso jurídico imperativista a possibilidade de realizar interpretações restritivas ou extensivas nos casos em que a letra da lei fosse evidentemente incompatível com a intenção legislativa.

Todo poder engendra um saber, e o saber jurídico ligado à autoridade centralizada do Estado burguês e ao modelo judiciário vigente era vinculado a um enfoque judicial do direito (ou seja, o direito era visto a partir da perspectiva do juiz), que não tinha pretensões de cientificidade (naquela época sequer era cogitado o conceito de ciência jurídica) e que partia do pressuposto democrático de que aplicar o direito significava dar-lhe o sentido desejado pelos representantes do povo.

4. A Escola da Exegese

Para reforçar essa nova ordem do discurso, realizou-se na França uma reforma educacional que alterou a estrutura do ensino jurídico, substituindo as antigas faculdades de direito por escolas de direito colocadas sob o controle direto das autoridades políticas, com o objetivo de que estudos jurídicos passassem a limitar-se ao estudo da lei, deixando de lado o direito natural, a filosofia jurídica, e as outras fontes clássicas do direito como o costume e a jurisprudência[66]. A expressão máxima dessa nova perspectiva foi a famosa frase do professor Bugnet: eu não conheço o direito civil; ensino apenas o Código de Napoleão. Com essa reforma, o Estado francês buscou reforçar os axiomas de que o direito estabelecido pelo legislador não podia ser questionado pelo juiz e de que a única coisa que um jurista precisaria conhecer era a própria lei, pois, como bem resumiu António Hespanha:

Perante os códigos, não podiam valer quaisquer outras fontes de direito. Não o direito doutrinal, racional, suprapositivo, porque ele tinha sido incorporado nos códigos, pelo menos na medida em que isso tinha sido aceito pela vontade popular. Não o direito tradicional, porque a Revolução tinha cortado com o passado e instituído uma ordem política e jurídica nova. Não o direito jurisprudencial, porque aos juízes não competia o poder de estabelecer o direito (poder legislativo), mas apenas o de o aplicar (poder judicial). A lei — nomeadamente esta lei compendiada e sistematizada em códigos — adquiria, assim, o monopólio da manifestação do direito. A isto se chamou de legalismo ou positivismo legal.[67]

Com isso, os juristas que estudaram a partir de 1804 tiveram uma educação bastante diversa dos seus próprios professores, pois a estes somente era permitido oferecer-lhes uma descrição minuciosa e técnica da legislação francesa. Foi preciso, porém, quase duas décadas para que os estudantes formados por esse novo método passassem a compor a parte mais significativa da comunidade jurídica francesa e para que a nova mentalidade se tornasse dominante no senso comum. Nesse período de transição, que durou cerca de vinte anos, professores educados ainda no regime anterior, como Delvincourt e Proudhon, foram gradualmente elaborando a uma metodologia adequada ao ensino e aplicação dos códigos, bem como à visão legalista que se impunha na época.

Consolidou-se, então, um tipo de postura que implica a valorização dos saberes práticos e é avesso à teoria e à filosofia que lhe subjazem, perspectiva essa que até hoje predomina no senso comum dos juristas. Isso não significa que a prática jurídica tenha deixado de observar padrões definidos, pois o discurso da dogmática jurídica estrutura a prática judiciária de maneira bastante eficiente. Porém, essa organização não é feita por meio de um discurso teórico-filosófico, mas por um discurso técnico-prático, que estimulou o florescimento de uma mentalidade legalista que veio a ser conhecida como Escola da Exegese, pois os seus adeptos se limitavam ao estudo dos códigos, na busca de realizar a sua exegese, ou seja, de esclarecer o sentido correto de cada passagem da lei. Porém, ao serem educados para operar o discurso dogmático sem compreender a teoria que organiza esse próprio discurso, os juristas se tornaram praticamente cegos para a base teórica e filosófica que sustentava, com sua estrutura invisível, os padrões de organização de sua própria prática.

A Escola da Exegese teve sua primeira exposição madura no Curso de direito francês de acordo com o Código Civil, publicado por Duranton em 1825, e dominou a cultura jurídica francesa por cerca de cinqüenta anos. Durante esse período, vincularam-se à concepção exegética vários juristas de renome, tais como Aubry, Rau, Demolombe e Baudry-Lacantinerie, cujos tratados de Direito Civil permaneceram como textos básicos para a interpretação do Código até o início do século XX. Em sua maioria, essas obras eram construídas como comentários ao Código Civil, construídos na mesma ordem da lei e esclarecendo ponto a ponto o significado de cada um dos seus artigos com base em uma análise gramatical e em referências à vontade do legislador[68].

Essa orientação era tão forte que o primeiro estudo sobre o Código Civil a fugir da ordem dos artigos e instituir uma visão sistemática sobre o direito civil francês foi realizada pelo alemão Karl Zachariae e, na tradução dessa obra para a língua francesa, a ordem sistemática adotada pelo autor foi alterada para adequar-se à ordem do Código, que era a usual no modelo exegético[69]. Tal fato evidencia a principal característica da Escola da Exegese: culto do texto da lei e a redução do conhecimento jurídico à pura exegese dos códigos.

Convém notar que, nos textos da época, era ainda cabível a referência ao direito natural (ou ao menos a princípios jurídicos superiores ao direito positivo), mas apenas para reforçar o culto à lei. Aubry e Rau, por exemplo, sustentavam ser princípios absolutos e imutáveis “a personalidade dos homens, o direito de propriedade, a constituição da família, a liberdade e a força obrigatória dos contratos e a necessidade do Estado”[70]. Dessa forma, apesar de admitirem a existência do direito natural, esses dois célebres representantes da Escola da Exegese consideravam que tais princípios eram excessivamente gerais e abstratos e que, portanto, era “impossível determinar as regras a priori destinadas a organizar e desenvolver tais princípios, regras essas que apresentam um caráter contingente e variável”[71]. Na prática, essa postura significava que nenhuma norma do direito positivo poderia ser considerada pelo juiz como incompatível com o direito natural.

A observação de tensões como essa fez com que Bonnecase afirmasse que uma das principais características da Escola da Exegese era a sua postura ilógica e paradoxal frente à existência do direito, pois sustentava que o direito tinha uma base metafísica (fundada em princípios superiores e imutáveis), mas simultaneamente afirmava que o legislador era todo-poderoso[72]. E ele parece ter razão ao identificar a origem dessa postura na mentalidade estatalista acrítica dessa escola[73], pois ela tinha que sustentar ao mesmo tempo que o Estado tinha legitimidade para organizar a sociedade (o que somente pode ser feito a partir de uma perspectiva metafísica) e que as leis tinham que ser fielmente cumpridas em virtude exclusivamente da autoridade estatal.

As graves limitações metodológicas dessa escola derivavam justamente do fato de que ela era organizada em volta de uma espécie de cegueira teórica, pois os profissionais do direito que nela se alinhavam desconsideravam as bases teóricas da sua própria atividade, o que os convertia em meros operadores do direito, homens práticos que estudavam os códigos como se eles contivessem em si todas as chaves para a sua própria compreensão. Ou seja, os juízes e advogados partiam do pressuposto (epistemologicamente ingênuo e politicamente cínico) de que o caráter sistemático da própria elaboração legislativa dispensaria o jurista da necessidade de elaborar um arsenal conceitual e teórico para desenvolver sua atividade. O conhecimento das leis positivas dispensava a produção de teoria, pois o seu sentido era claro a qualquer um que as estudasse com cuidado.

Não existe método para identificar a literalidade, pois a percepção do sentido gramatical é imediato e não mediado pela aplicação de uma metodologia hermenêutica qualquer. Assim, o critério básico para a interpretação era fundado em um espécie de “evidência gramatical”: confiantes na clareza das leis modernas, os operadores do direito acreditavam que a simples observação das leis conduziria o intérprete ao sentido correto, pois o sentido correto era o sentido literal evidente para qualquer pessoa devidamente educada.

Esse modo de pensar é anti-metodológico, pois ele desconfia que toda metodologia é uma forma de escapar da evidência, que a interpretação é uma espécie de malabarismo retórico que como função distorcer o sentido correto das normas. Por isso, a Escola da Exegese desenvolveu alguns conceitos hermenêuticos relevantes, mas não podia oferecer uma metodologia hermenêutica propriamente dita, na medida em que ela se constituía por meio de uma quase negação da própria interpretação judicial, que deveria reduzir-se a uma mera aplicação.

Então, não parece ser mero acaso o fato de que o mais próximo que essa corrente chegou de uma metodologia foi o oferecimento de uma descrição do processo de aplicação, apresentado como um modo racional de subsumir fatos a normas. Partindo do pressuposto de que o juiz recebe do legislador as normas e que o jurista conhece os fatos do mundo, resta-lhe apenas realizar uma operação quase-mecânica para verificar a adequação entre o fato e a norma.

Com isso, a aplicação do direito fica reduzida a uma operação lógica dedutiva, que infere da norma jurídica a solução aplicável aos fatos que nela se “encaixam”. Assim, o raciocínio jurídico é apresentado como uma forma de pensamento silogístico, em que a norma é a premissa maior e os fatos são a premissa menor. Dessa forma, justifica-se que a aplicação do direito não é uma operação voluntarística, mas uma operação objetiva, na justa medida em que ela representa a aplicação das regras da lógica ao campo jurídico.

Dessa forma, a função do juiz não deve ser a de criar normas jurídicas nem a de interferir no sentido das regras existentes, restando-lhe apenas extrair das normas as conseqüências logicamente adequadas. A sua atividade, portanto, não é criativa mas descritiva, não é valorativa mas puramente racional. A limitação metodológica desse tipo de apresentação é evidente, pois toda ela é fundada justamente em tomar por dado o sentido da norma. Assim, a aplicação silogística depende de uma prévia interpretação, pois é impossível subsumir fatos a uma norma cujo sentido não é estabelecido. Por isso, a apresentação silogística do direito, acompanhada de uma teoria da interpretação fundada em fracos critérios de evidência, não é capaz de esclarecer devidamente os problemas do direito.

Para a Escola da Exegese, a atividade jurídica não podia ser entendida como a aplicação de um método complexo de interpretação, pois a elaboração desses métodos implicaria uma espécie de desconfiança acerca da clareza das novas leis. Subjaz a tal concepção a crença de que subordinar a aplicação do direito à interpretação dos juízes significa conferir aos juízes uma competência que deveria ser privativa do legislador, pois interpretar seria distorcer a evidência.

Não é por acaso que a única via dogmaticamente aberta para escapar da literalidade da norma era a afirmação de que o sentido gramatical era evidentemente diverso do sentido intencionado pelo legislador: portanto, somente a invocação da autoridade do próprio legislador poderia afastar a aplicação do sentido literal da norma. E trabalhar com critérios de evidência é justamente afastar a possibilidade do método, cuja valorização implica um certo ceticismo acerca da evidência, ceticismo necessário para que alguém se esforce para controlar a observação por critérios previamente definidos.

Assim, o predomínio de uma tal perspectiva impediu o surgimento de uma metodologia hermenêutica propriamente dita, pois a possibilidade de uma prática interpretativa mais elaborada foi recusada em nome da garantia da segurança advinda da aplicação gramatical dos textos. Essa prisão dos juristas a critérios de literalidade e evidência implicava uma negação da historicidade (pois os sentidos corretos não deveriam mudar no tempo) e, nessa medida, inviabilizou o desenvolvimento de flexibilização que possibilitassem adaptar as velhas fórmulas aos novos fatos.

As inconsistências teóricas e limitações da Escola da Exegese poderiam permanecer em um plano inconsciente, desde que as decisões tomadas pelo Estado fossem socialmente percebidas como legítimas, pois, nesse caso, não haveria tensão entre os princípios de legitimidade e de autoridade. Entretanto, as profundas mudanças sociais do final do século XVIII fizeram com que esses princípios entrassem em choque, pois muitas das decisões tomadas com base nos códigos já não eram mais adequadas ao sentimento social de justiça. À medida em que soluções legislativas não mais respondiam aos ideais de justiça, a Escola da Exegese começou a declinar, pois o culto à letra da lei perdia a sua força. Assim, a longevidade da Escola da Exegese correspondeu ao tempo em que foi socialmente aceitável uma aplicação gramatical estrita dos Códigos elaborados no início do século XIX.

Essa mudança tornou-se visível na França a partir a década de 1880, data que Bonnecase fixa como o início do processo de decadência da Escola Exegética[74]. Um dos principais motivos que contribuiu para esse fato foi a introdução, no ensino universitário francês, de matérias que ultrapassavam a descrição técnica do direito civil e acentuavam as relações entre o direito e a sociedade. O estudo de disciplinas tais como direito público, economia política e história do direito terminou por quebrar o monopólio do pensamento civilista (ou seja, vinculado ao direito civil) e começaram a aproximar os estudos jurídicos dos estudos científicos sobre a sociedade.

Esses novos questionamentos abriram espaço para uma visão mais histórica e sociológica acerca do direito, desenvolvida por juristas como Duguit, Planiol, Esmein, Salleiles e Gény, que promoveram uma renovação do pensamento dominante e fizeram com que, no início do século XX, a Escola da Exegese perdesse sua posição hegemônica[75]. Assim, quando as mudanças introduzidas pela revolução industrial se tornaram tão grandes que o direito codificado começou a ser percebido como obsoleto, a Escola da Exegese cedeu gradualmente espaço a concepções hermeneuticamente mais flexíveis, notadamente para algumas linhas do positivismo sociológico ou para as perspectivas germânicas caracterizadas pelo primado de uma concepção cientificizante e pela elaboração de uma Teoria Geral do Direito adequada aos novos tempos.

Capítulo III - O positivismo normativista

1. Desenvolvimento de uma consciência histórica

a) Do imperativismo ao historicismo

O discurso imperativista em geral, e a Escola da Exegese em particular, equivocou-se ao apresentar o direito como um comando dirigido pelo legislador aos cidadãos. Engana-se quem pensa que o direito é fruto da vontade dos parlamentares, pois a perspectiva teórica que reduz a história a uma série de ações de determinadas pessoas ilustres e poderosas perde de vista que é meramente eventual o fato de terem sido esses os indivíduos que ocupavam os postos de comando da sociedade em que viviam.

Embora a historiografia tradicional crie a ilusão de que são os líderes que guiam o povo, isso não passa de um mito, pois, embora as decisões de alguns indivíduos certamente contribuam para apressar ou retardar certos acontecimentos, a história humana teria seguido basicamente os mesmos passos ainda que todas as personalidades históricas que conhecemos tivessem morrido enquanto crianças e outros homens houvessem ocupado as funções de liderança nas diversas sociedades.

A modernidade, em seu processo de revalorização do humano frente ao divino e da escolha frente ao fado, terminou por supervalorizar a figura do herói, como se fosse o herói que conduzisse a história, e não a história que criasse condições para que um determinado homem se destacasse em seu meio. No processo histórico, porém, importa muito pouco a vontade individual dos líderes de uma comunidade, pois o personagem maior do desenrolar histórico é o próprio povo.

Da mesma forma, a modernidade criou a ilusão de que os atos do legislador que criam o direito, como se o legislador pudesse criar um direito que não fosse o exigido pela própria consciência social de sua época. Se uma pessoa desempenha uma função de liderança, isso ocorre porque ela é sustentada pelas forças que conformam a sociedade e, no fundo, são essas forças que definem os desenrolar da história, e não a vontade dos indivíduos que eventualmente ocupam as posições proeminentes em uma dada sociedade.

É claro que também não cabe defender um determinismo ingênuo, como se as decisões individuais fossem irrelevantes, pois isso implicaria desconhecer que o desenrolar da história é composto por uma infindável rede ações praticadas por indivíduos. Porém, por mais que determinadas preferências subjetivas possam influenciar a evolução histórica, o conjunto de ações praticadas pela maior parte das pessoas obedece a padrões razoavelmente estratificados em cada época, o que faz com que as idiossincrasias de cada participante do processo não sejam capazes de redefinir os rumos da história. Assim, mesmo que seja revelado por meio de atos legislativos e judiciais, o direito é fruto da história e não da vontade dos parlamentares e dos juízes, pois, ainda que fossem estes outros, o direito seria substancialmente o mesmo.

O equívoco imperativista somente pôde impor-se na teoria francesa porque a codificação terminou por reduzir o direito positivo à lei, o que é um engano fundamental das teorias imperativistas. Admitir esse tipo de perspectiva seria como reduzir a língua de um povo a um conjunto de regras elaboradas por uma comissão estatal estabelecida para elaborar uma gramática correta. Se uma comissão ministerial criasse uma gramática, ela não se tornaria por conta disso a língua de uma nação. Se um poder estatal cria algumas leis, isso não faz com que o direito da nação se possa reduzir a essas normas.

A língua e o direito, como toda construção histórica, surgem espontaneamente das relações sociais e não são frutos da vontade de uma autoridade específica, mas resultados amadurecidos de um processo gradual de sedimentação de valores e de uma vivência social efetiva. O legislador, tal como o gramático, não pode estabelecer as regras que quiser, mas deve colher da experiência social as regras que efetivamente a regem e, com base nela, construir a legislação e a gramática.

O direito, como a língua, existe primordialmente como uma vivência social que se expressa por meio de usos costumeiros, que surgem espontaneamente na sociedade e que, nessa medida, representam de maneira imediata o espírito do povo (Volksgeist) que a criou. Embora a construção de uma legislação seja uma necessidade da vida moderna, as leis deveriam ter por base os valores do povo e representar uma espécie de sistematização dos costumes, pois, caso contrário, elas seriam artificiais e ilegítimas.

Sabemos, contudo, que nem sempre os parlamentos observam essa diretriz fundamental e que eles muitas vezes editam normas extremamente distanciadas do espírito do povo que deveriam representar. Como adverte Maximiliano, se fôssemos buscar a intenção efetiva do legislador, descobriríamos que ele quase sempre trabalha em um horizonte estreito e com base em um conjunto de fatos concretos muito limitado; além disso, apesar da linguagem geral e abstrata, as leis normalmente têm por fundamento um abuso recente e os seus prolatores não suspeitavam de todas as conseqüências que poderiam ser deduzidas das suas prescrições[76]. Portanto, quando se encontrar frente a dúvidas interpretativas, deve o intérprete elevar sobre o próprio espírito do povo a vontade limitada do legislador?

Embora o legislador seja teoricamente o representante do povo, as leis somente são legítimas quando essa representação não for meramente teórica e a legislação refletir efetivamente o valores dominantes em uma cultura. Seguir a teoria imperativista nos levaria ao absurdo de fazer prevalecer a vontade do legislador sobre o próprio espírito do povo que é fundamento da sua autoridade.

Ao acentuarem que o direito era fruto da vontade dos governantes e não uma emanação da vontade de Deus (como afirmava o vetusto jusnaturalismo teológico) ou da razão humana (como sustentava jusracionalismo oitocentista), as teses imperativistas desempenharam um importante papel na superação dos preconceitos jusnaturalistas que dominavam a teoria jurídica até o fim do século XVIII. Porém, embora se tenha voltado contra as mistificações jusnaturalistas, o imperativismo terminou por criar uma nova mística, fundada na autoridade quase divina do legislador e na reverência dogmática às palavras da lei.

Esse equívoco evidencia que alguma formas de pensar lançam suas raízes tão fortemente em nossa visão de mundo, que muitos dos que tentam combatê-las terminam por repeti-las, ainda que inconscientemente. Seguindo o mesmo caminho do teólogo que buscava o direito na vontade de deus, os teóricos absolutistas buscaram o direito na vontade do rei, sendo ambas essas teorias de cunho eminentemente imperativista (porque o direito era visto como uma ordem do soberano ao súdito) e voluntarista (porque o direito era visto como fruto da vontade do soberano). E os revolucionários franceses, buscando romper com o antigo regime, apenas mudaram o soberano de lugar, substituindo o rei pelo legislador, mas mantendo todo o restante da estrutura.

Assim, se o direito positivo antigo era fruto da vontade do rei, uma espécie de inércia conceitual fez com que a teoria moderna cometesse o equívoco de trocar apenas o titular da vontade, terminando por identificar o direito positivo com a vontade dos legisladores. Embora esta seja uma teoria positivista (na medida em que não utiliza o direito natural como um conceito jurídico relevante para a operação do direito), ela não trouxe inovações conceituais importantes com relação ao jusracionalismo setecentista. Esse jusnaturalismo articulava em uma mesma teoria o direito natural e o direito positivo, partindo da idéia de que o primeiro era descoberto pela razão e segundo era criado pela vontade dos homens. Nessa medida, o jusracionalismo tinha uma concepção voluntarística do direito positivo, pois ele era visto como fruto das escolhas políticas de uma autoridade devidamente constituída.

Com isso, embora o imperativismo tenha recusado o direito natural como um conceito dogmaticamente relevante[77], ele manteve a perspectiva voluntarística tradicional que via no direito positivo o resultado de uma vontade. Esse, contudo, não é um engano inocente, mas um mito que desempenha uma função política muito relevante: fortalecer a concentração de poderes nas mãos dos legisladores, justificando ideologicamente a ordem política burguesa instituída com a Revolução Francesa.

Na França, o processo de codificação gerou a ilusão de que era possível entender o direito fora da história, pois as leis deveriam ser suficientemente claras para serem entendidas por si mesmas (se o sentido era evidente, qualquer referência histórica seria dispensável) ou, em casos especialmente problemáticos, a partir da revelação da vontade das pessoas que elaboraram a lei.

Porém, essa continuidade da teoria imperativista do direito, que identifica o sentido da lei com a intenção do legislador porque entende a norma como uma ordem dada pelo governante, é incompatível com uma consciência histórica plenamente desenvolvida, pois, como a origem do direito está nas próprias condições históricas que regeram a sua criação, e não na vontade eventual dos parlamentares, não faz sentido manter a intenção legislativa como critério hermenêutico fundamental.

b) Entre juristas e gramáticos

Enquanto a Escola da Exegese buscava o sentido da lei na gramaticalidade e na intenção dos legisladores, para uma corrente que possua uma consciência histórica minimamente desenvolvida, as bases para a compreensão do direito devem ser encontradas fora da legislação propriamente dita. Mas como identificar o espírito do povo, especialmente em questões sobre as quais não há costumes estabelecidos e não há padrões consolidados de valoração?

Mais uma vez é útil o paralelo com a gramática. Se um lingüista busca descobrir o modo correto de construir uma oração, não será em um passeio pelas praças públicas que ele conseguirá resolver as suas dúvidas. Isso acontece devido ao fato de que, por mais que a língua seja um produto do espírito do povo, não é na utilização popular que a língua realiza todas as suas potencialidades. Embora seja a efetiva vivência popular que cria a língua, as pessoas raramente têm consciência das regras que organizam a experiência lingüística e normalmente não utilizam todos os recursos lingüísticos. Portanto, não é no uso popular, mas no literário, que um teórico pode estudar a língua em todo o seu vigor, pois somente nesse âmbito a linguagem é explorada conscientemente por pessoas que sabem extrair da língua todas as suas possibilidades sintáticas e semânticas.

Quando um grande escritor maneja a língua das formas mais criativas, ele não se afasta do espírito da língua, mas torna-o mais evidente, esclarece o que estava oculto e abre possibilidades antes inexploradas. Quando Guimarães Rosa vira o português do avesso, ele não rompe a língua, mas revela uma série de riquezas significativas que eram ocultas. E quando um teórico revela as estruturas por trás da construção artística roseana, ele enriquece o nosso conhecimento da língua portuguesa e não apenas da obra do autor.

No direito ocorre o mesmo, pois, tal como a gramática estuda a língua, a Jurisprudência deve estudar o direito. A mera observação dos padrões usuais de convivência pode mostrar muito, mas está longe de evidenciar todas as possibilidades do direito. O direito plenamente desenvolvido somente poderá ser identificado na cultura jurídica mais sofisticada, nas construções dos teóricos e dos juízes, nas cuidadosas elaborações dos juristas que constroem um denso tecido a partir das várias fontes do direito e criam, assim, uma teoria capaz de resolver adequadamente os conflitos sociais.

A gramática não cria a língua, mas elabora um sistema que possibilita uma compreensão aprofundada das estruturas lingüísticas e das possibilidades de significação. Paralelamente, a Jurisprudência não deve criar o direito, mas sistematizar o conhecimento jurídico, possibilitando uma compreensão aprofundada das estruturas jurídicas elaboradas ao longo da história.

O direito é efetivamente histórico, no sentido que ele é construído na história e não dado por formas a priori da racionalidade nem pela vontade divina, e, por essa razão, não cabe aos homens descobrir o direito, mas criá-lo. Para realizar essa elaboração das normas jurídicas, cada sociedade desenvolve uma série de procedimentos nomogenéticos (geradores de normas), tais como o legislativo, o consuetudinário e o contratual, que são comumente chamados de fontes do direito.

A teoria das fontes do direito é uma das bases mais importantes de uma teoria jurídica, na medida em que ela possibilita diferenciar as normas jurídicas dos processos de sua criação. Com isso, ela ressalta que, apesar de os processos nomogenéticos serem heterogêneos, o seu resultado é homogêneo, pois o que se cria (leis, contratos, regulamentos, medidas-provisórias, etc.) são sempre normas jurídicas que estabelecem obrigações, proibições e permissões, por meio da atribuição de sanções institucionalizadas. Nessa medida, por mais que sejam diversos os modos de constituição das normas jurídicas, elas têm sempre a mesma natureza e, portanto, é possível percebê-las como partes de um ordenamento sistemático.

Esse ordenamento, contudo, não surge das suas fontes como um sistema pronto e acabado, pois ele é elaborado pelos homens dentro de um processo histórico em que cada uma das partes tem um desenvolvimento razoavelmente independente, apesar de interligado. Tal como a língua se constrói a partir dos atos de fala, o direito é construído pela prática de atos jurídicos, que, em parte seguem os padrões preestabelecidos, em parte os violam e em parte os transcendem.

Além disso, a maioria dos falantes é capaz de usar a língua, mas não conhece as suas regras de maneira consciente e, por isso, apesar de saberem que uma determinada forma é correta, não sabem explicar o porquê. A inconsciência da regra, contudo, não significa a sua inexistência, e o gramático precisa saber ouvir os vários modos de falar de um povo para identificar as regras que estão por trás deles, descobrindo as variações possíveis e o nível de distanciamento que separa um erro de uma liberdade poética.

O jurista atua como o gramático, observando o modo como a sociedade cria o direito, por meio de suas várias fontes, e construindo a partir desses vários conteúdos um sistema unificado. A experiência jurídica, portanto, é a matéria bruta com a qual o jurista trabalha, mas não é o resultado final do seu trabalho, pois a sua função é descrever as normas de maneira organizada, reconduzindo toda a diversidade da experiência jurídica a uma unidade sistemática.

Assim, o papel social do cientista do direito não é o de criar a norma, mas o de estudar as normas com o objetivo de descrevê-las de forma sistemática. Embora o mundo existisse antes da Física, ele não era devidamente compreendido, pois, se o mundo é um dado da natureza, a compreensão científica do mundo é um produto do trabalho humano. Da mesma forma, embora o ordenamento jurídico exista independentemente da participação do cientista, a descrição do sistema jurídico é fruto da atividade dos juristas.

Portanto, como deve um juiz julgar um caso em que a solução seja controvertida? Não deve ele buscar a resposta em supostos princípios imutáveis e naturais de justiça, nem nos seus valores pessoais, tampouco na vontade subjetiva do legislador. Deve buscá-la na história, pois o direito é uma criação histórica e deve ser entendido como tal. Não cabe ao juiz mudar o direito, mas simplesmente identificar o direito historicamente construído e aplicá-lo da forma mais objetiva possível.

Porém, para identificar o direito, não deve o jurista voltar-se simplesmente para as concepções jurídicas do senso comum nem deve fazer enquetes para descobrir a opinião do povo. O jurista deve trabalhar sobre o sistema jurídico historicamente construído, e não apenas investigar as opiniões dos leigos, pois disso depende a construção de um pensamento científico rigoroso. Assim, tal como o gramático deve estudar os autores que utilizaram a língua com maior rigor e criatividade, o cientista do direito deve estudar os juristas que compreenderam profundamente o direito e realizaram a sistematização dos conceitos subjacentes à experiência jurídica de um povo.

A atividade do jurista, portanto, não se confunde com a do sociólogo: enquanto este investiga diretamente os fatos sociais, o jurista deve partir da análise da cultura jurídica que sistematizou o direito historicamente dado, para extrair dessa cultura a solução adequada para os casos concretos. Nessa medida, o jurista nunca pode deixar de lado o elemento histórico, mas deve sempre articulá-lo com o aspecto sistemático e gramatical das normas jurídicas, pois somente assim ele seria capaz de desenvolver o sistema jurídico de uma forma adequada.

2. Do historicismo ao conceitualismo: Savigny

a) A introdução do historicismo

O discurso feito no ponto anterior mostra as divergências entre uma abordagem historicista e abordagem imperativista da Escola da Exegese. Esse historicismo, que filosoficamente podemos ligar a Hegel, insiste no fato de que o sujeito da história não são os indivíduos, mas que é o próprio Espírito Objetivo. Essa visão também se coadunava com o romantismo da época, com sua sacralização do passado (normalmente de um passado mais mítico que real, diga-se de passagem) e sua recusa do projeto mordenizante do iluminismo, tido como abstrato e artificial.

Contrapondo-se ao universalismo iluminista, e aos valores gerais e abstratos que o inspiram, o romantismo propunha uma religação do homem com as suas próprias raízes. No direito, essa tendência se mostrava na percepção de que a validade de uma ordem normativa não está na sua vinculação a valores pretensamente universais, mas em sua adequação aos valores pertencentes a uma cultura determinada.

Esse historicismo anti-iluminista, típico do início do século XIX, adquiriu especial evidência com o desenvolvimento da escola histórica de Gustav Hugo, que redirecionou os esforços dos juristas germânicos para o estudo dos textos romanos e dos direitos consuetudinários[78]. Porém, o principal representante dessas corrente foi Wilhelm von Savigny, que desde sua grande obra da juventude (a Metodologia Jurídica, de 1802), tentou equacionar o respeito ao direito positivo com as necessidades históricas e sistemáticas.

Por meio da escola histórica, a teoria alemã ergueu-se contra a concepção naturalista e legalista que lhe buscava suprimir toda relevância e ofereceu como resposta um imenso desprezo pela lei, a tal ponto que o código prussiano passou a ser quase ignorado enquanto fonte do direito, embora ele tenha sido vigente durante praticamente todo o século XIX[79]. Esse desprezo era tão grande que, segundo Wieacker, após Savigny ocupar em 1810 a primeira cadeira de direito civil na Prússia, ele ensinou até 1819 direito romano e não o código prussiano vigente. E mesmo a partir dessa data, quando começou a dar lições sobre o código, ele o fazia sem ter em conta os pressupostos da própria lei e oferecia normalmente uma interpretação romanizada[80].

Nessa época, Savigny sustentava que o direito era uma ciência que se deveria elaborar histórica e filosoficamente. A esses dois termos, porém, atribuía um significado muito diverso do que eles têm no discurso comum atual. Ao afirmar que o direito deveria ser filosófico, não queria Savigny dizer que o direito deveria subordinar-se às noções filosóficas de justiça nem se ater ao jusnaturalismo dominante, mas simplesmente que a ciência jurídica deveria ser elaborada de forma sistemática, por meio de conceitos organizados, constituindo um campo de conhecimentos com unidade e organicidade. Portanto, o conhecimento do direito não poderia reduzir-se a uma mera exposição fragmentária do sentido das normas, mas deveria ser capaz de organizar sistematicamente todos os conceitos jurídicos.

Quanto ao elemento histórico da ciência jurídica, Savigny não o assinalava para indicar a relatividade de toda construção jurídica nem a necessidade de que os juízes adaptassem o sentido das normas à realidade histórica de seu tempo. Pelo contrário: a afirmação de historicidade era um elemento na busca de uma interpretação objetiva, historicamente determinada pelo momento em que a lei havia sido elaborada. Não se tratava, pois, de um historicismo atualizador ou prospectivo, mas de um historicismo retrospectivo e conservador, que ligava o direito às raízes históricas de sua criação, impedindo as tentativas de adaptar as soluções jurídicas às condições históricas do momento da aplicação do direito. Esse caráter conservador das idéias historicistas de Savigny, que se opunha firmemente às inovações trazidas pela Revolução Francesa e pelo Code civil, é essencial para a compreensão de sua teoria, na qual o elemento histórico funcionava como um critério que poderia dar maior objetividade à aplicação do direito.

Para, Savigny, o Estado era fruto da necessidade humana de haver um limite para a arbitrariedade de uns contra os outros, limite este que deveria ser estabelecido pela lei do Estado. Por isso, os juízes deveriam interferir nos conflitos como terceiros imparciais, para determinar em que limite as liberdades de uns cederiam às liberdades dos outros e, para evitar que os juízes agissem de forma arbitrária, “seria melhor que existisse algo totalmente objetivo, algo de todo independente e distante de toda convicção individual: a lei. [...] A lei deveria, pois, ser completamente objetiva, conforme sua finalidade original, isto é, tão perfeita que quem a aplique não tenha nada a agregar-lhe de si mesmo”[81]. Savigny defendia, pois, a existência de uma interpretação objetiva, que possibilitasse a identificação do verdadeiro sentido da lei, e é nessa medida que ele afirma que a ciência jurídica é histórica, pois o sentido correto da lei é um dado histórico e “chama-se saber histórico todo saber de algo objetivamente dado; por conseguinte, todo o caráter da ciência legislativa deve ser histórico” [82]. Expressão dessa busca de objetividade também é a negação por Savigny das interpretações tanto extensivas quanto restritivas, por considerar que, nesses casos, o juiz não se limita a reconstruir o sentido da lei, mas insere seus próprios valores, alterando a norma em vez de interpretá-la, em uma operação “tão arbitrária que não se pode falar de uma verdadeira interpretação, pois aquilo que o juiz deve agregar à lei, apenas por este fato, não pode ser considerado objetivo”[83].

Mas qual deveria ser esse sentido objetivo das normas? Como os demais hermeneutas de seu tempo, Savigny filiava-se à corrente que identificava na busca da vontade do autor o núcleo da interpretação legislativa, afirmando que “toda lei deve expressar um pensamento em forma tal que valha como norma. Quem interpreta, pois, uma lei, deve investigar o conteúdo da lei. Interpretação é primeiramente: reconstrução do conteúdo da lei. O intérprete deve colocar-se no ponto de vista do legislador e, assim, produzir artificialmente seu pensamento” [84]. Nisso, ele estava de acordo tanto com os teóricos franceses quanto com a tradição germânica que influenciou Schleiermacher.

Porém, Savigny reconhecia como uma meia verdade a afirmação de que, na interpretação, tudo depende da vontade do legislador, pois, segundo ele, não bastava que o legislador tivesse uma vontade, mas era preciso que ele a evidenciasse na lei para que essa sua intenção vinculasse o intérprete, de tal forma que ele define interpretação não apenas como identificação da vontade do legislador, mas como “reconstrução do pensamento (pouco importa se claro ou obscuro) expressado na lei, enquanto seja cognoscível a partir da lei”[85]. Assim, diversamente da escola francesa, Savigny não propunha uma investigação autônoma da vontade do legislador, baseada em análises dos trabalhos preparatórios, mas subordinava a reconstrução do pensamento legislativo ao estudo dos próprios textos efetivamente legislados, o que indica sua grande vinculação ao elemento gramatical da interpretação[86].

Essa relativa independência em relação à vontade psicológica do legislador parece derivar, ao menos parcialmente, do fato de que a base do pensamento jurídico da época não era a lei, mas o direito romano do uso comum. Assim, diversamente da escola francesa que buscava evidenciar a vontade de um legislador recente que deixou bem documentadas as discussões legislativas, uma cultura jurídica fundada no estudo do direito romano não poderia empenhar-se em reconstruir a vontade real dos autores dos textos com que trabalhavam. E, como afirmou Sebastián Soler, “nada más alejado de la doctrina romana que esa nueva actitud de adoración a las palabras de la ley, y la empeñada búsqueda de la voluntad del legislador como objeto final de la tarea interpretativa”.[87]

Essa especial relevância da literalidade das normas, contudo, não fez com que Savigny se limitasse aos aspectos gramaticais da interpretação, sendo que ele afirmava que, na reconstrução do pensamento do legislador, o intérprete deveria realizar uma tríplice atividade, inserindo uma terceira espécie de interpretação (a histórica) no antigo modelo bipartido que diferenciava a interpretação em lógica e gramatical. Com isso, a interpretação deveria constituir-se em uma atividade dividida em três partes:

  1. uma parte lógica, que consiste na apresentação do conteúdo da lei em sua origem e apresenta a relação das partes entre si. É também a apresentação genética do pensamento na lei. Mas o pensamento deve ser expresso, motivo pelo qual é preciso também que haja normas de linguagem, e disso surge
  1. a parte gramatical, uma condição necessária da parte lógica. Também se relaciona com a parte lógica
  1. a parte histórica. A lei é dada em um momento determinado, a um povo determinado; é preciso conhecer, pois, essas condições históricas para captar o pensamento da lei. A compreensão da lei só é possível pela compreensão do momento em que a lei existe. [[88]]

Percebe-se, assim, que Savigny inseriu o elemento histórico na hermenêutica como uma forma de garantir que a interpretação deveria observar as condições históricas do momento da elaboração da lei, pois toda lei é fruto de determinadas circunstâncias históricas, e não para afirmar que a lei deveria ser interpretada de forma a adaptar-se aos valores históricos do momento em que ela fosse aplicada. Trata-se, pois, de uma utilização conservadora do elemento histórico, na medida em que vincula o sentido da lei ao momento de sua elaboração e que, portanto, opõe-se ao projeto modernizador do positivismo.

b) Da história ao sistema

É no contexto desse embate entre um iluminismo positivista e um historicismo romântico que se deve compreender a célebre polêmica travada entre Savigny e Thibaut, acerca da codificação do direito alemão. Em 1814, quando terminou a ocupação francesa devido à queda de Napoleão, os reinos germânicos viram-se frente ao seguinte dilema. De um lado, havia os defensores da criação de um código comum a toda a Alemanha, inspirado especialmente no Code Civil, na busca de estabelecer não apenas a unificação, mas também a racionalização e a modernização dos direitos germânicos. Contra essa posição tipicamente iluminista, que tinha em Thibaut o seu maior defensor, ergueu-se Savigny, que criticou a proposta de codificação na famosa obra Da vocação de nosso século para a legislação e a ciência do direito, texto no qual ele demonstra grande ceticismo em relação às leis criadas por legisladores que se julgam dotados da capacidade de identificar regras derivadas da própria razão, e de elaborar códigos que “con sus perfecciones, debían garantir una mecánica exactitud en la administración de la justicia; de modo que el magistrado, dispensado de todo juicio propio, debía limitarse a una simple aplicación literal de la ley. Debían, además, estos Códigos estar completamente libres de toda histórica influencia, y por obra de una solemne y extraña abstracción, debían adaptarse a todos los pueblos y a todos los tiempos.”[88]

Em sentido contrário ao racionalismo iluminista de Thibaut, Savigny defendia que o direito não era revelado ao legislador pela razão, mas que deveria ser extraído do espírito do povo (Volksgeist), que é a única fonte legítima de normas jurídicas. Contudo, preciso estar atento para o fato de que o povo de cuja vontade Savigny fala não é a população real dos reinos germânicos, pois o Volksgeist não é apreendido por meio de uma análise sociológica dos anseios da nação. É preciso estar atento para o fato de que o “povo não é, para Savigny de modo algum a realidade política e social de uma nação histórica, mas um conceito cultural ideal — a comunidade espiritual ligada por uma cultura comum”[89]. Tal como o gramático que considera que a língua é fruto de uma sociedade, mas funda toda sua teoria na análise do modo como essa língua é utilizada pelos poetas e literatos; Savigny afirma que o direito nasce do espírito do povo, mas estuda o direito que é construído pelos juristas profissionais, que o desenvolvem de forma mais elaborada e com alto grau de sofisticação.

Como resumiu Wieacker, “povo constitui, aqui, portanto, um conceito cultural, finalmente quase equivalente, de forma paradoxal, aos juízes e letrados de um país”[90]. Dessa forma, embora fale em espírito do povo, o interesse de Savigny é dogmático e não sociológico, volta-se para o direito dos juristas (Juristenrecht), ou seja, para a cultura jurídica tradicional, construída com base na experiência dos juristas germânicos em desenvolver um sistema jurídico a partir do estudo do direito romano e dos costumes. Essa postura fez com que Savigny se contrapusesse a qualquer elaboração artificial do direito, especialmente aos códigos de inspiração jusnaturalista e liberal, pois, em sua opinião, o verdadeiro direito não deve ser construído abstratamente, mas “tiene su origen en aquellos usos y costumbres, a los cuales por asentimiento universal se suele dar, aunque no con gran exactitud, el nombre de Derecho consuetudinario; esto es, que el derecho se crea primero por las costumbres y las creencias populares, y luego por la jurisprudencia; siempre, por tanto, en virtud de una fuerza interior, y tácitamente activa, jamás en virtud del arbitrio de ningún legislador”.[91]

Tal historicismo é mais radical que o defendido por Savigny em sua primeira fase, pois a história já não é mais apenas o pano de fundo para a compreensão objetiva da legislação, mas é admitido o caráter histórico do direito no sentido de que ele deve provir da própria consciência jurídica de um povo e não da vontade arbitrária de um legislador. Porém, continua sendo um historicismo conservador, vinculado ao projeto de impedir a implantação dos novos institutos, ligados ao Estado liberal que se fortalecia, contribuindo, assim, para a manutenção do direito germânico tradicional. Dessa forma, “a escola histórica do direito realizou uma renovação da ciência jurídica e do seu papel na vida pública sacrificando ou impedindo as codificações feitas pelo Estado”[92].

António Hespanha afirma, com razão, que a originalidade de Savigny não foi a de afirmar a historicidade do direito (o que já havia sido proclamado pela escola humanista[93]) nem a de evidenciar o seu caráter sistemático (o que já havia sido defendido pelo jusracionalismo), mas a de proporcionar uma peculiar síntese desses dois aspectos, articulando a natureza histórico-cultural do direito com um adequado sistema de exposição, o que ele fez no Sistema de direito romano atual, sua obra de maturidade.

Nessa obra, embora aceite as regras jurídicas como um dado histórico-cultural de validade objetiva (que devem ser aceitas em vez de questionadas com base nos ideais jusracionalistas), Savigny não se limita a propor uma descrição tópica e fragmentária das regras tradicionais, mas propõe uma reelaboração científica do material recebido, ordenando-o em função de pontos de vista unitários e, assim, criando as bases uma ciência jurídica a um só tempo sistemática e historicista.[94] Analisando o direito historicamente construído, o jurista deveria identificar os princípios gerais, evidenciar e corrigir as lacunas e contradições, elaborar os conceitos fundamentais para o desenvolvimento de uma visão unitária do direito. Assim, o historicismo de Savigny não era mera descrição de fatos e normas, não era mera glosa aos costumes, mas uma extensão a todo o direito da pretensão pandectística de uma descrição unitária e sistemática, embora objetiva e neutra, do direito romano.

Nesse momento, Savigny completou sua célebre quadripartição dos critérios interpretativos, acrescentando à tripartição anterior o elemento o sistemático, ou seja, “o nexo que liga em uma grande unidade todos os institutos e regras jurídicas”[95]. Ao promover essa redefinição dos critérios interpretativos, Karl Larenz identifica que Savigny promoveu duas grandes inovações em seu pensamento[96]. A primeira, que veio a ter uma influência duradoura, é a substituição da idéia de que havia diversas espécies de interpretação pela noção de que há vários elementos hermenêuticos, propondo a concepção de que o intérprete não opta por uma determinada espécie de interpretação, mas que deve levar todos os elementos (gramatical, lógico, histórico e sistemático) em consideração, de forma conjunta e harmônica. A segunda inovação apontada por Larenz foi uma abertura no próprio conceito de direito, pois, para Savigny, a noção de instituto vinculava-se à própria realidade jurídica, as relações concretas da vida (casamento, propriedade, compra e venda, etc.) tal como vividas pelo povo e não apenas como descritas nas regras jurídicas. Assim, enquanto o pensamento em termos puramente normativos é produto de uma mentalidade abstrata, os institutos somente poderiam ser captados por meio de uma intuição, dado que a abstração e a generalidade das normas não poderiam captar todo o sentido da realidade de um instituto concreto.

Savigny, contudo, não explicou devidamente o que seria essa intuição nem levou às últimas conseqüências esse reconhecimento da limitação do pensamento normativo. Por isso, talvez Larenz tenha razão ao afirmar que, “se essa doutrina tivesse sido defendida com seriedade absoluta por Savigny e observada pelos respectivos sucessores, nunca estes poderiam ter chegado a trilhar os caminhos da Jurisprudência dos Conceitos formal”[97]. De toda forma, a ausência de uma determinação precisa do sentido que Savigny dava ao termo instituição torna possíveis também outras interpretações, como a de Wieacker, que sustenta que Savigny provavelmente não pretendia promover a ligação direta entre o direito e a realidade social apontada por Larenz.[98] De toda forma, fosse pela sua obscuridade ou por qualquer outro motivo, o conceito de instituição não foi desenvolvido pelos discípulos de Savigny, que se concentraram no aspecto formal da organização do sistema jurídico e não na exploração de eventuais relações direito e realidade social que talvez estivessem implícitos no historicismo de Savigny, o que conduziu a teoria germânica ao modelo sistemático conceitual.

3. A jurisprudência dos conceitos

a) Da técnica à ciência

A função do cientista não é conhecer a multiplicidade multiforme dos fatos empíricos, mas conhecer as regularidades que se pode perceber por trás deles. Não é conhecer as coisas, mas as leis de sua organização, suas regularidades, é conhecer a estrutura que está por trás das aparências. Portanto, a afirmação de Bugnet de que ele não conhece o direito civil, mas apenas o código civil, é o exato oposto da mentalidade cientificista, que pretenderia conhecer o direito civil (seus conceitos, suas regularidades, suas interações) e não o código civil (que é apenas uma expressão historicamente determinada do direito civil, uma associação específica e contingente entre as muitas possíveis).

O cientista trabalha com abstrações, conhece melhor as estruturas que os objetos, o que implica um certo predomínio da teoria com relação à prática. É certo que esse cientista costuma ser avesso à filosofia, às bases epistemológicas do seu próprio conhecimento, mas isso não o afasta da do discurso teórico, na medida em que o cientista é profundamente vinculado à teoria que dá sustentação à sua prática. Ele sabe que, sem conceitos determinados e sem o auxílio do método científico, a realidade somente é capaz de se mostrar como uma série de fragmentos sem sentido.

Portanto, se é possível haver um conhecimento jurídico válido, ele deve ser um conhecimento científico que vá além do mero conhecimento das leis e seja capaz de identificar as estruturas que estão por trás do próprio direito positivo. Assim, se há um modo adequado de conhecer o próprio direito positivo ele somente pode ser a formulação de uma teoria que ultrapasse a descrição minuciosa do objeto (finalidade da escola da exegese) e seja capaz de explicar o próprio objeto, suas conexões internas, suas regularidades, suas ligações com o mundo.

Esse esforço de pensar cientificamente o direito já estava presente em Savigny, especialmente na vontade de sistema que inspira todas as fases do seu pensamento e que é uma das principais características do pensamento moderno. No século XIX, essa busca de sistematicidade conduziu o direito moderno por duas grandes vertentes. De um lado, o iluminismo modernizador buscou sistematizar o próprio direito positivo, inspirando assim os movimentos de codificação. O principal exemplo dessa perspectiva é a do direito francês, em que a modernização e racionalização das próprias normas gerou um saber técnico, que se concentrava apenas na aplicação prática de um direito positivo cuja sistematicidade era pressuposta pelos seus operadores.

Outra vertente relevante foi a do historicismo germânico, que se opunha ao racionalismo iluminista, por meio da afirmação de uma espécie de primado da tradição, que o aproxima de certos valores pré-modernos, especialmente de um jusnaturalismo que afirma a historicidade como um critério de legitimidade. Dessa concepção herdamos a idéia de que o direito não resulta das escolhas legislativas, mas que é fruto da vontade de um povo, revelada em sua própria história, e que por isso ele não pode ser encontrado em uma razão abstrata e universal. Assim, embora o historicismo se oponha ao jusracionalismo, ele não é propriamente positivista, na medida em que afirma ser natural a validade dos ordenamentos historicamente construídos.

Para essa corrente, o equívoco jusracionalista foi inventar sistemas abstratos como se fossem reais, e o equívoco do iluminismo foi acreditar que seus valores podiam ser universalizados por serem racionais. Contra essas tendências dedutivas (que buscavam deduzir o direito correto de um padrão ideal e as soluções corretas de uma aplicação técnica da lei), o historicismo apresentou um pensamento indutivo, que aproximou o seu discurso dos padrões de cientificidade. Assim, a escola histórica não negava a necessidade do sistema, mas buscou elaborar indutivamente um sistema conceitual, em vez de especializar-se apenas na dedução das soluções corretas a partir das normas postas.

Assim, por mais que a escola histórica tenha se oposto à codificação do direito, ela não o fez por negar valor à sistematicidade, mas por negar valor ao projeto de sistematizar o próprio direito positivo à luz dos valores liberais. Porém, isso não significa que o direito deixe de ser um sistema, apesar de ele se revelar na forma fragmentária de um conjunto de elementos aparentemente heterogêneos. E por isso é tão reveladora a comparação do direito com a gramática: o papel do jurista é revelar o sistema do direito, assim como o papel do gramático é revelar o sistema da língua.

E o direito histórico não se revela nos códigos e nas leis, pois estes elementos normativos precisam ser compreendidos como parte de uma tradição jurídica que os conforma. Assim, a unidade do sistema jurídico não podia ser encontrada na própria lei, mas nos elementos que a formam, ou seja, nos conceitos jurídicos estratificados em uma determinada tradição. Portanto, a descrição sistemática do direito é elaborada pelos próprios juristas, a partir de uma análise do direito positivo como um todo. E, como a tradição jurídica germânica não era legalista, mas basicamente consuetudinária e romanística, foi a partir do estudo dessas fontes que os estudiosos germânicos buscaram construir um sistema de conhecimentos.

Seguindo esses passos, a cultura germânica experimentou uma sistematização dos conceitos presentes em sua tradição, o que representa uma espécie de auto-conhecimento, na medida em que os estudiosos investigaram a sua própria cultura e sistematizam as suas os seus conceitos, gerando a corrente que veio a ser conhecida como Jurisprudência dos conceitos. Essa foi a escola que primeiramente tentou infundir no direito uma perspectiva propriamente científica, tendo em vista que a objetividade do conhecimento científico não está baseada na homogeneidade dos fatos com que ela trabalha, mas na sistematicidade dos modelos teóricos elaborados para conferir unidade à diversidade.

b) Por uma ciência do direito

Assim, a ciência elabora sistemas de conhecimento, revelando as formas de organização de fatos que aparentemente podem ser desconexos. Mas como pode o jurista construir uma unidade teórica a partir de elementos tão heterogêneos como as normas jurídicas? Essa é a pergunta que os primeiros historicistas[99] não enfrentaram adequadamente, mas que somente veio a ser devidamente formulada a partir de meados do século XIX[100]. Para compreender a resposta, é preciso ter em mente que tudo no mundo tem uma determinada ordem, mas que essa forma de organização nem sempre é evidente. Observamos o mundo e vemos as mais diversas cores, formas e movimentos e nem sempre compreendemos o modo como elas se relacionam. Quantos séculos foram necessários para que o homem compreendesse que a força que faz a lua girar em torno da terra é a mesma que faz uma maçã cair no chão? E a genialidade de Newton foi justamente saber estabelecer relações entre o que aparentemente não era conexo.

Portanto, para que seja possível descrever adequadamente o ordenamento jurídico, é necessário pensar o direito de maneira científica, ou seja, por meio de conceitos derivados da experiência e rigorosamente concatenados em modelos explicativos abrangentes. Para compreender como isso se dá na prática, convém partir inicialmente de uma análise da Física, que, além de ser um conhecimento mais próximo do senso comum, tem sido o grande modelo científico desde a época de Newton.

O que faz um físico? Ele analisa o mundo e constrói modelos explicativos que esclareçam o modo como os fenômenos efetivamente ocorrem. Um físico não se limita a descrever a realidade (dizendo, por exemplo, que a Terra gira em torno do Sol), mas tenta explicar os motivos pelos quais as coisas acontecem (dizendo, por exemplo, que a terra gira em torno do sol em virtude da atração gravitacional).

Para elaborar as explicações, o físico precisa fazer uso de uma série de conceitos, tais como força, massa, velocidade, tempo, espaço, aceleração, etc. Entre esses conceitos, alguns são simples e outros são compostos. O conceito de aceleração, por exemplo, é composto, pois ele é construído a partir da combinação de outros conceitos, sendo ela entendida como a variação da velocidade no tempo. Também a velocidade é um conceito composto, pois ela é entendida a variação do espaço no tempo. Tempo e espaço, porém, são conceitos simples, pois eles não podem ser explicados em termos de unidades conceituais menores. Um físico, portanto, deve conhecer os vários conceitos fundamentais e os modos como eles se combinam para formar conceitos compostos.

O conceito, contudo, não deve ser confundido com a realidade. No mundo, não existem os conceitos de força e de matéria, mas várias forças diferentes e vários corpos distintos. O conceito é uma maneira de a ciência se referir a objetos que estão no mundo e, portanto, ele não é parte da realidade em si, mas do modelo explicativo que a ciência cria. Quando falamos da Física, portanto, tratamos de dois sistemas diferentes: um deles é o próprio mundo, constituído por todos os fenômenos que existem, cada um deles individual e específico; o outro sistema é a Física, que é um sistema de conceitos inter-relacionados que busca explicar o mundo. É claro que a Física só é um conhecimento verdadeiro quando ela corresponde exatamente ao mundo que ela busca descrever.

Porém, o que o físico conhece não é o próprio mundo, mas os conceitos que podem ser usados para explicá-lo e, especialmente, para prever o seu comportamento futuro. Quando se pergunta a um físico qual seria a velocidade final de um corpo submetido a uma determinada força durante cem anos, ele poderá responder a essa pergunta sem que nenhum cientista tenha submetido um corpo a precisamente essa força durante esse tempo exato. A partir do que ele sabe sobre a aceleração que uma força impõe a uma massa (conceito que foram construído com base em fatos análogos, mas diversos), ele pode responder a essa pergunta. Conhecendo as teorias da física, o cientista pode fazer afirmações seguras sobre fenômenos que ele nunca presenciou nem vai presenciar.

Tal como o físico, o jurista também constrói um modelo para descrever e explicar certos fenômenos que ocorrem no mundo. Porém, em vez de estudar fenômenos físicos, o jurista deve estudar o direito positivo, que é o conjunto das normas jurídicas que existem em uma determinada sociedade. Tal como o físico, ele deve elaborar conceitos que descrevam adequadamente o seu objeto e que possibilitem explicá-lo da maneira mais fiel possível. A Ciência do Direito, assim, não se confunde com o próprio direito, pois enquanto este é um conjunto de normas válidas, ela é uma teoria que oferece uma descrição precisa do seu objeto.

Embora tenhamos traçado as semelhanças entre a Física e a Ciência do Direito, a Química foi a ciência que serviu como modelo para a mentalidade formalista da Jurisprudência dos Conceitos. O paralelo mais conhecido entre o direito e a química foi o estabelecido por Rudolf von Jhering, um importantíssimo jurista germânico que esteve vinculado à pandectística nos seus primeiros escritos. Sustentava ele que, tal como a Química identificava os elementos fundamentais da natureza e a sua forma de organização, a Ciência Jurídica deveria estudar os elementos lógicos do direito, destilando-os em sua pureza[101]. Essa comparação se justifica na medida em que tanto o jurista quanto o químico procedem por análise, ou seja, decompõem o seu objeto de estudo até encontrar as partículas fundamentais que o formam.

No caso do químico, ele observa a realidade multiforme e complexa do mundo e, por meio de uma análise das várias substâncias que compõem as coisas, ele descobre quais são os seus elementos fundamentais[102]. Descobertos esses elementos, o químico passa a estudar o modo como eles se combinam e os resultados das interações entre os diversos tipos de átomos, o que o leva gradualmente a compreender as estruturas das moléculas mais complexas. Quando a Química atinge um alto nível de sofisticação, é possível oferecer a um estudioso a fórmula de uma substância que ele não conhecia e ele poderá dizer qual deve ser a estrutura das moléculas que compõem essa substância. Além disso, ele poderá prever qual será o resultado da combinação de duas substâncias cuja reação ele nunca havia observado.

Para Jhering, tal como o químico, o jurista deve conhecer os elementos fundamentais do seu campo de estudo e as suas formas de combinação. Retomando posteriormente essa imagem de uma química jurídica, Francesco Ferrara afirmou que “do mesmo modo que o químico analisa os corpos singulares, reduzindo-os aos seus elementos fundamentais, e busca os princípios segundo os quais se produzem as combinações químicas, assim o jurista deve analisar os corpos jurídicos, reduzindo-os aos seus elementos puros, estudar as causas e as formas de combinação, descobrir as relações e reações entre os vários elementos, para poder, por sua vez, recompô-los e reconstruí-los sobre outra base e forma.”[103]

Por mais que pareçam um tanto quanto estranhas ao senso comum atual, essas metáforas cientificistas eram comuns na passagem do século XIX para o XX, estimuladas pela noção positivista da época de que todos os ramos do conhecimento deveriam ser construídos tomando como paradigma as ciências da natureza. Cada saber almejava ser reconhecido como ciência e, para isso, era preciso aproximar-se dos modelos da física, da química ou da biologia. Essa necessidade mostra-se ainda mais evidente no seguinte trecho de Ferrara, em que ele explicita melhor o funcionamento da análise jurídica, procedimento pelo qual seria possível identificar os conceitos fundamentais.

A análise jurídica consiste na decomposição da regra de direito nas suas unidades elementares, na separação e eliminação daquilo que é particular e contingente, e na redução dos preceitos jurídicos a conceitos jurídicos. Das normas de direito no seu complexo, bem como de elementos de uma só norma, extraem-se os conceitos jurídicos, isto é, fórmulas abstratas em que se concentra o pensamento, que constituem o precipitado das disposições positivas. Assim, o conceito de domínio, de contrato, de herança. E por sua vez esses conceitos cindem-se e analisam-se em conceitos mais simples e gerais: assim os de direito real, de negócio jurídico, de sucessão.[104]

Essa análise das normas jurídicas para retirar delas os conceitos fundamentais era entendida como o primeiro e fundamental passo na construção de uma ciência do direito. Como afirmou Windscheid, o mérito do modelo sistemático era apresentar-se como uma análise dos conceitos, na tentativa de encontrar as partes constitutivas de cada conceito, para poder apresentar cada um deles como a reunião de conceitos ainda mais simples.

É possível identificar nessa postura uma manifestação das orientações metodológicas cartesianas que inspiraram toda a ciência moderna, pois Descartes afirmava que era preciso dividir cada uma das dificuldades “em tantas partes quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las” e, então, conduzir os pensamentos “a começar pelos objetos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos, para galgar, pouco a pouco, como que por graus, até o conhecimento dos mais complexos e, inclusive, pressupondo uma ordem entre os que não se precederem naturalmente uns aos outros”[105]. Esse modo de pensar que reduz os problemas a seus elementos mais simples mediante um procedimento de análise, para depois proceder a uma reconstrução do pensamento mediante uma síntese, é muitas vezes chamado de reducionismo[106].

Nessa medida, podemos reconhecer no modelo sistemático-conceitual uma forma reducionista de pensamento, pois reduz as noções complexas a conceitos simples, na busca de poder resolver os problemas a partir de uma recombinação das idéias fundamentais resultantes do procedimento analítico. Como exemplo dessa forma reducionista de pensar, o jurista alemão dá o seguinte exemplo[107]: compra e venda é um contrato com o qual se aliena uma coisa por dinheiro; contrato é um negócio jurídico em que duas ou mais declarações de vontade entram em acordo; negócio jurídico é a declaração de vontade privada que tem efeito jurídico. Mas que é declaração de vontade? Que é vontade? Que é acordo? Que é coisa? Que é alienação? Somente com a redução dos conceitos complexos (como contrato, negócio jurídico ou direito subjetivo) a conceitos mais simples (como alienação, acordo, coisa) e o esclarecimento de cada uma dessas partes constitutivas, é possível desenvolver um conhecimento uniforme e sistemático do direito, e a construção desse conhecimento científico é a função da Jurisprudência, convertida pela primeira vez em Ciência do Direito.

c) Análise dos conceitos: a ciência do direito como química jurídica

Em meados do século XIX, elegeu-se como objetivo da ciência jurídica germânica a análise do direito positivo historicamente dado na busca de extrair deles os conceitos que o estruturam, possibilitando uma descrição unificada e sistemática da totalidade do direito de um país, segundo os padrões de um sistema lógico de organização piramidal. Essa escolha metodológica representou o surgimento da Jurisprudência dos conceitos, escola positivista que representou o ápice do formalismo jurídico novecentista e que se caracterizava por deduzir “as normas jurídicas e a sua aplicação exclusivamente a partir do sistema, dos conceitos e dos princípios doutrinais da ciência jurídica, sem conceder a valores ou objetivos extra-jurídicos (por exemplo religiosos, sociais ou científicos) a possibilidade de confirmar ou infirmar as soluções jurídicas”[108].

A relevância dessa corrente é imensa, especialmente porque ela constituiu o primeiro esforço sistemático no sentido de elaborar um conhecimento científico acerca do direito positivo e, nessa medida, ela é precursora de toda a ciência jurídica contemporânea. O nome mais ligado à jurisprudência dos conceitos é o Georg Puchta, principal discípulo de Savigny e mentor do projeto de construção do sistema conceitual abstrato que ele próprio chamava de genealogia dos conceitos.

Como a principal obra de Puchta chamava-se Pandekten (Pandectas) e esse mesmo título foi utilizado por vários dos juristas que levaram à frente a sua proposta teórica que ele propôs, passou-se a designar como pandectística a corrente que buscou aplicar ao direito o método propugnado por Puchta. Embora esse método tenha sido utilizado também no estudo do direito público, a pandectística é uma escola tipicamente ligada ao direito privado, tendo atingido sua formulação mais acabada nas Pandectas de Bernhard Windscheid, que exerceram tal influência que vieram a praticamente servir como base para a codificação do direito germânico ocorrida no final do século XIX[109].

A pandectística era uma escola de linha positivista, na medida em que não buscava analisar o direito segundo critérios de uma justiça natural, não tentava extrair normas da própria racionalidade humana nem intentava fundamentar a obrigatoriedade do direito em uma teoria metafísica: seus interesses limitavam-se a uma descrição neutra e precisa do direito que objetivamente existe e por uma descrição sistemática dessa realidade empírica, nos moldes das ciências exatas e da matemática.[110] Essa ligação era tamanha que o filósofo Wundt chegou a dizer que a ciência do direito, “por força de seu processo jurídico-conceptual, tem um caráter estritamente lógico e é, em certa medida, comparável à matemática”[111].

A Jurisprudência dos conceitos representou um importantíssimo período de depuração do conhecimento jurídico, pois as rigorosa análise conceitual que levou a cabo levou os juristas da época a compreender melhor os conceitos com os quais trabalhavam, diferenciando situações que pareciam idênticas ou cuja definição era confusa[112], evidenciando as similaridades e distinções entre os vários institutos jurídicos. Essa depuração dos conceitos teve grande repercussão, pois foram remodeladas várias das categorias com as quais trabalha o pensamento jurídico. Herdamos dessa época várias distinções relevantes, como as distinções entre posse e propriedade, entre prescrição e decadência, entre negócio jurídico e contrato, entre direito material e direito de ação, e uma série de outros elementos conceituais que formam a base da dogmática jurídica. A própria noção de Ciência do Direito foi construída pela Jurisprudência dos Conceitos, que representou o primeiro grande esforço de construir uma teoria jurídica estruturada à luz do modelo positivista de ciência.

Foi dessa sistematização dos conceitos que nasceu a idéia de teoria geral do direito: uma teoria que contivesse as categorias fundamentais da experiência jurídica, conceitos esses que não seriam extraídos aprioristicamente da razão, como era o projeto jusracionalista, mas construídos indutivamente a partir da observação dos direitos historicamente construídos. A diferença entre o modo de pensar exegético e o sistemático mostra-se na própria estruturação das obras clássicas sobre direito civil: enquanto os livros da Escola da Exegese francesa seguiam a mesma estrutura do Código de Napoleão, esclarecendo cada uma das suas regras; os livros dos teóricos influenciados pela Jurisprudência dos Conceitos[113] estruturam-se em torno das noções jurídicas fundamentais. Assim, os conceitos jurídicos não são vistos como uma mera explicação da lei, sendo que a própria lei passa a ser vista como expressão de um sistema conceitual logicamente organizado.

Os juristas ligados à Jurisprudência dos conceitos, tais como Puchta e Jhering, consideravam ser possível, a partir da recombinação dos conceitos obtidos pela análise jurídica, construir novos conceitos, “trazendo à consciência e à luz do dia proposições jurídicas que, ocultas no espírito do direito nacional, não se tinham ainda exprimido, nem na imediata convicção e na actuação dos elementos do povo, nem nos ditames da própria lei escrita, que patentemente só se vêm a revelar enquanto produto de uma dedução da ciência”[114].

Para tais juristas, vale no campo do direito a célebre afirmação de Hegel de que “tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é real”[115]. O sistema jurídico é organizado de forma racional e lógica (pois, sendo real, ele deve ser racional) e, portanto, se uma afirmação é conseqüência lógica dos conceitos que formam o sistema, então essa afirmação será verdadeira (pois tudo o que é racional é real). Dessa maneira, aqueles enunciados que fossem conseqüências lógicas dos conceitos obtidos pela química jurídica, por serem logicamente dedutíveis dos conceitos fundamentais, seriam por isso obrigatórios, na medida em que configurariam normas implícitas no sistema.

Por exemplo, se um dos componentes do conceito de crime fosse a possibilidade de atribuir penas restritivas de liberdade ao infrator, então as pessoas jurídicas nunca poderiam cometer crimes, pois elas não podem ser presas. Dessa maneira, seria forçoso reconhecer que, mesmo não havendo qualquer proibição formal no sistema acerca da punição de pessoas jurídicas, apenas pessoas físicas poderiam ser processadas por incorrer em atos tipificados como crimes[116].

Outro exemplo: pode o Congresso Nacional, mediante emenda à constituição, modificar a forma de alteração da própria Constituição Federal? Muitos juristas entendem que não, baseados na oposição entre os conceitos de poder constituinte originário e poder constituinte derivado. O poder originário é entendido como o poder de elaborar a própria constituição, poder esse cuja titularidade é do povo, que o atribuiu à Assembléia Constituinte que estabeleceu a Constituição de 1988. Por ser originário, trata-se de um poder ilimitado, pois é completa a liberdade dos constituintes para plasmar a constituição. Já o poder derivado é um poder constituído pela própria Constituição da República, que atribuiu ao Congresso Nacional o poder de fazer emendas constitucionais, observados certos procedimentos.

Com base nessa distinção, vários juristas entendem que, embora nada na Constituição vede expressamente a alteração das regras de emenda, existe uma vedação implícita, que pode ser extraída do próprio conceito de poder constituinte derivado. Argumenta-se normalmente algo como: o poder constituinte derivado existe apenas porque os constituintes originários previram a possibilidade de o Congresso alterar a constituição e, portanto, as regras de emenda são a fonte do próprio poder constituinte derivado; ora, seria absurdo que o poder constituinte derivado pudesse alterar as regras de emenda porque, nesse caso, ele alteraria os próprios limites do poder derivado, decisão que somente poderia ter sido tomada pelo próprio poder constituinte originário. Seria, portanto, ilógico que o poder constituinte derivado alterasse as regras de emenda, pois isso levaria ao absurdo de um poder derivado que constitui a si mesmo.

Observe-se com cuidado a estrutura do argumento: para resolver um problema jurídico específico, em vez de analisar o sentido literal da norma constitucional (o que levaria apenas à descoberta de que é previsto o poder de mudança e não à vedação expressa à alteração das regras de emenda) ou de buscar reconstruir a vontade do legislador histórico (não se pergunta diretamente o que pensaram os constituintes), ou de buscar o sentido que melhor atenda os interesses sociais (não se pergunta por nada que não seja a própria norma), busca-se os conceitos que foram elaborados por meio do processo de análise científica do ordenamento jurídico (no caso, os de poder constituinte derivado e originário) e, a partir deles, constrói-se uma solução compatível com a lógica interna do sistema. Assim, de acordo com esse esquema de pensamento, uma conclusão lógica (derivada dos conceitos fundamentais a partir de uma inferência dedutiva), é uma conclusão juridicamente obrigatória.

4. Hermenêutica sistemática

a) Para além da vontade do legislador

A Escola da Exegese propunha uma interpretação subjetivista, na medida em que o seu critério hermenêutico fundamental é a identificação do pensamento de um sujeito individual ou coletivo, que é o legislador[117]. Na interpretação das leis, essa mesma orientação foi adotada pelos primeiros representantes do modelo sistemático, especialmente pelo alemão Windscheid, o qual defendia que a função do intérprete era esclarecer a vontade empírica do legislador. Porém, ainda no final do século XIX, alguns juristas alemães que elaboraram, a partir dos pressupostos do modelo sistemático, o que se veio a chamar de teoria objetivista da interpretação. Para esses autores, uma norma positivada passa a ter existência objetiva, independente das intenções subjetivas das pessoas que participaram de sua elaboração e, portanto, a finalidade da interpretação não é identificar o que o legislador realmente pensou, mas construir soluções com base na recombinação dos conceitos jurídicos que podem ser extraídos do direito por meio de procedimentos analíticos.

Tanto os imperativistas franceses como os defensores germânicos do modelo sistemático acreditavam que o direito era um sistema organizado, mas essa crença se mostrava de maneiras diferentes. Para a Escola da Exegese o sistema era construído pelo legislador e ao juiz cabia apenas aplicar as regras da forma mais literal possível, o que fortaleceu a postura de que era preciso buscar o pensamento real do legislador histórico (objetivo que era facilitado pelo fato de as discussões parlamentares sobre os códigos serem amplamente documentadas). Na cultura jurídica germânica, porém, não apenas o direito era não-codificado mas, antes da unificação da Alemanha, a própria lei não ocupou um papel preponderante dentro do sistema jurídico.

Com um sistema não-codificado e de fontes heterogêneas (costumes, direito romano e jurisprudência), não faria sentido os alemães considerarem que o direito tinha um manifesto caráter sistemático. Pelo contrário: qualquer um que observasse os direitos germânicos encontraria, à primeira vista, um conjunto heterogêneo e desorganizado. Todavia, os racionalistas germânicos consideravam que essa desorganização era apenas aparente, pois uma análise do direito positivo possibilitaria a elaboração de um sistema conceitual, a partir dos direitos historicamente construídos. Justamente nesse ponto está a grande influência de Savigny e sua particular combinação entre história e sistema[118].

Embora o sistema existisse (e os seguidores de Savigny não poderiam partir de outro pressuposto), ele não era auto-evidente, mas precisava ser elaborado pelos juristas, a partir de um conhecimento analítico dos diversos elementos que compunham direito positivo germânico. Dessa forma, enquanto para a Escola da Exegese o sistema era elaborado pelo próprio legislador, cabendo aos juristas apenas uma tarefa mecânica de aplicação, para a Jurisprudência dos Conceitos o sistema jurídico era uma construção dos próprios juristas, que era feita a partir do direito positivo mas que não se esgotava em uma mera explicação do sentido das normas.

A partir dessas diferenças é possível entender por que, embora a hermenêutica da Escola da Exegese tivesse a mesma finalidade da hermenêutica vinculada à Jurisprudência dos Conceitos (qual seja, esclarecer o sentido objetivamente correto da lei), os defensores desta última teoria terminaram por rejeitar as posturas subjetivistas na interpretação da lei, pois, enquanto Exegese apostou suas fichas no código e no legislador, a Jurisprudência dos Conceitos partiu da valorização dos juristas e da ciência do direito.

E, com o passar do tempo, mesmo a referência à intenção legislativa perdeu espaço mesmo na doutrina francesa, pois o argumento genético tende a tornar-se um discurso vazio quando feito por juristas demasiadamente afastados da própria figura do legislador. Logo que o Código de Napoleão foi elaborado, o lugar quase mítico que o legislador ocupava no imaginário jurídico francês estimulava um respeito cerimonioso a sua vontade. Porém, à medida que as décadas se passaram, o país deixou de ser rural e passou a ser urbano, deixou de ser agrícola e entrou em uma fase industrial, as relações de emprego passaram a ocupar um lugar central na sociedade capitalista que se formava. Com todas essas mudanças, a intenção de um legislador (que havia pensado as leis para a realidade em que ele vivia) deixa de ser um elemento hermenêutico capaz de oferecer saídas adequadas para as novas situações.

Com isso, embora as chamadas interpretações lógicas ainda exigissem uma menção à voluntas legislatoris, essas referências passaram a ser praticamente uma desculpa para que o juiz adaptasse as normas às novas situações. As modificações nas relações entre as pessoas e nos valores socialmente dominantes evidenciaram a existência de lacunas legislativas e exigiram a criação de novas regras que, na tentativa se suprir as incompletudes do sistema, muitas vezes entravam em conflito com as normas anteriores, gerando antinomias.

Com isso, foi preciso desenvolver uma teoria que resolvesse de modo mais adequado os problemas de incompletude e de incoerência, que fornecesse aos juristas elementos jurídicos que oferecessem soluções os casos concretos sem tomar com base seus valores pessoais nem uma pretensa vontade do legislador. Ademais, as referências à mens legislatoris muitas vezes não passavam de uma forma de o julgador burlar a lei, pois representavam a própria vontade do juiz, projetada por ele no legislador. Os juízes que não pretendiam utilizar esse artifício meramente retórico perceberam que era preciso buscar a própria vontade da lei, e não a vontade do seu autor.

Porém, como a tradição hermenêutica girava em torno da categoria “vontade do legislador”, não estranha que a Jurisprudência dos Conceitos tenha partido da defesa desse posicionamento. Porém, o seu caráter eminentemente sistemático “não se conciliava com a doutrina defendida pela maioria dos autores, inclusive Windscheid, de que à interpretação só competia transmitir a vontade empírica do legislador histórico”[119]. Dessa forma, mesmo que os juristas modelo sistemático continuassem a utilizar a clássica expressão vontade do legislador, essa referência adquiriu paulatinamente um novo sentido.

O legislador de que se falava deixou gradualmente de ser uma figura histórica e passou a ser uma figura idealizada e abstrata cuja vontade não era mais o que o autor da lei efetivamente desejou, mas o que ele deveria ter desejado se tivesse utilizado parâmetros racionais para elaborar a norma. Por exemplo, caso se tentasse elucidar o que significava a expressão “aumento abusivo de preços”, em vez de se buscar a intenção que a pessoa que escreveu o texto realmente teve, passou-se a buscar o sentido que um legislador racional teria dado a essa expressão caso ele elaborasse a lei. E que sentido racional seria esse senão o sentido adequado dentro de uma visão sistemática do direito?

Dessa forma, em vez de buscar a vontade real do legislador histórico, passou-se gradualmente a buscar a vontade racional de um legislador fictício. Tratava-se, evidentemente, de uma construção demasiadamente artificial, pois chamar de legislador uma figura idealizada a esse ponto não passava de uma forma argumentativamente palatável de retirar do centro do pensamento hermenêutico as referências à vontade do legislador.

O passo decisivo nessa ruptura foi dado quase simultaneamente por três juristas alemães, Kohler, Wach e Binding, em torno de 1885. Kohler, por exemplo, sustentava que o importante não era descobrir o que quis o autor da lei, mas o que a lei quer.[120] A partir dessas reflexões, desenvolve-se um conceito que transmitia melhor essa ruptura dos padrões hermenêuticos tradicionais: a idéia de que interpretar não é descobrir a vontade do legislador (voluntas legislatoris), mas identificar a vontade da própria lei (voluntas legis), para além do que o próprio legislador havia pensado ou querido de forma consciente.

Portanto, esse câmbio não instaura uma mudança de perspectiva, pois a intenção da lei é uma expressão evidentemente metafórica: a voluntas legis passa a ser uma metáfora para falar do sentido correto da lei. Dessa forma, mesmo que tenha sido mantido os termos clássicos voluntas ou mens (vontade e intenção), eles já não portavam mais nada do seu sentido original. Na nova ordem do discurso que se instaura, a hermenêutica já não se trata da reconstrução sentidos desejados por uma subjetividade real nem ideal (como o legislador histórico ou o legislador racional). Não se trata mais de repensar o que já foi pensado por alguém, mas de determinar um sentido objetivo para as palavras da lei.

Com essa passagem da vontade real do legislador histórico para uma vontade da lei, mantém-se a mesma forma discursiva do pensamento anterior (continua-se a falar na busca de uma intenção ou vontade, permitindo a manutenção de categorias como interpretação extensiva, e restritiva), mas já não temos mais a mesma vontade nem o mesmo legislador nem a mesma lei: a vontade é uma metáfora para referir-se ao sentido sistematicamente adequado, o legislador é uma metáfora para referir-se a um ideal de pessoa racional ou razoável e o sentido da lei resulta de uma construção sistemática feita pela Jurisprudência.[121]

Com isso, instaura-se uma nova ordem do discurso, em que a mens legis passa a se referir a um sentido adequadamente construído, dentro de um contexto hermenêutico em que a literalidade continuava sendo a principal referência, mas sempre vista como a manifestação pontual de um significado que fazia parte de um sistema maior. Assim, toda vez que a literalidade era considerada insuficiente para a solução de um problema, a extrapolação do sentido gramatical deixou de ser referida à vontade do legislador e passou a ser referida a busca da integração do sentido particular da norma com o sentido do direito como um todo.

Com isso, a doutrina se viu perante o desafio de construir um sistema jurídico uno, completo e coerente, a partir de um conjunto heterogêneo de leis, doutrinas e linhas jurisprudenciais muitas vezes incompatíveis. Tal busca de sistematização coroou os esforços de séculos de análise do direito romano e gerou a moderna ciência do direito, baseada na pandectística alemã, que reconstruiu o edifício conceitual do direito civil e estabeleceu uma teoria geral do direito com um grau de sofisticação que nunca antes havia sido alcançado. E foi justamente essa nova teoria geral que serviu como base para a codificação do direito na Alemanha.

b) Dos conceitos ao código

Durante quase todo o século XIX, a cultura jurídica germânica foi dominada pela pelo historicismo e pela pandectística, o que implicou uma grande valorização da ciência do direito e uma importância reduzida, embora nunca ausente, das leis. Porém, com a criação do Estado alemão unificado, em 1871, as pressões em torno de uma codificação geral aumentaram, e reforçou-se a idéia, dominante na França desde o início do século, de que a vontade do povo se exprime nas leis e de que a legislação, e não a Jurisprudência, deveria ser o centro da vida jurídica de um país[122].

Além disso, é preciso notar que um dos motivos mais relevantes para que os reinos germânicos não seguissem o caminho da codificação, mas o da pandectística, foi o fato de que a sociedade burguesa e liberal que implantou-se na França com a revolução de 1789, consolidou-se na Alemanha apenas em meados do século XIX. Como vimos anteriormente, a vitória do historicismo de Savigny (que abriu espaço para a pandectística) deveu-se, em grande parte, à força de uma ideologia conservadora que rejeitava o iluminismo e valorizava a tradicional organização jurídica (o que é dizer também política e econômica) dos reinos germânicos. Assim, com a consolidação da organização social burguesa, ganhou força o projeto de codificação, que era uma das facetas a ideologia liberal, para a qual era preciso construir uma sociedade “unitária e igualitária, subordinada aos princípios da liberdade de propriedade e da liberdade contratual”.[123]

Aos poucos, a Alemanha unificada viu surgirem uma série de leis nacionais, que unificaram os direitos dos povos germânicos e culminaram no Bürgeliches Gesetzbuch (BGB), o código civil alemão[124]. A gestação dessa lei começou em 1873, mas o primeiro esboço do código foi o Primeiro Projeto, de 1877, que foi elaborado uma comissão de juristas ligados à pandectística e baseou-se fundamentalmente no sistema conceitual das Pandectas de Windscheid, que foi o membro mais proeminente dessa comissão. Esse projeto sofreu duras críticas pela sua linguagem complicada e por ser ele mais voltado a construir um sistema logicamente perfeito que a criar uma base adequada para a resolução dos conflitos da época.

Convocou-se, então, outra comissão, com a função expressa de superar as deficiências do projeto anterior, simplificando a linguagem e dando mais atenção ao direito alemão e às necessidades econômicas da época. Essa comissão (que contou novamente com a participação vigorosa de Windscheid, e da qual não fez parte nenhum dos críticos da pandectística da época, tais como Jhering e Gierck) publicou em 1895 o Segundo Projeto, o qual acabou sendo aprovado com poucas alterações de fundo e entrou em vigor na simbólica data de 1o.1.1900. Todavia, apesar da expressa tentativa de escapar dos dogmatismo da pandectística, é evidente para os observadores atuais que ele continha os mesmos vícios apontados no primeiro projeto: “uma linguagem conceitual demasiado abstrata e doutrinária, uma predominância das soluções do direito das pandectas e uma técnica de remissões complicadíssima”[125].

Era evidente, pois, que por mais que se tentasse escapar dos exageros da pandectística, o modo pensar típico dessa corrente estava demasiadamente arraigado na cultura jurídica germânica, de tal forma que os alemães construíram o código de sua sociedade burguesa sobre os alicerces dos estudos romanísticos inspirados por Savigny e Puchta e desenvolvidos a seu ponto máximo por Windscheid. Porém, ao ser elaborado com base nos rigorosos conceitos da pandectística e organizado com o extremo cuidado sistemático que marcava essa corrente, ele superou em rigor e coerência todas as codificações anteriores.

É certo que esses ganhos foram obtidos às custas da clareza e da concisão que marcaram os códigos de inspiração francesa, porém, as virtudes do BGB fizeram com que ele se tornasse o modelo básico para os países que ainda não tinham passado pelo processo de codificação, ocupando o espaço que até então era do quase centenário Código de Napoleão. Dessa forma, a codificação brasileira, gestada durante a segunda metade do século XX e realizada nos primeiros anos do século XX, sofreu uma maior influência da pandectística e do BGB que do Code Civil e da Escola da Exegese.

Com a publicação do BGB, consolidou-se na Alemanha a passagem do positivismo científico da jurisprudência dos conceitos para um positivismo legalista. A unificação alemã foi seguida pela publicação de uma série de leis nacionais e esses diplomas legislativos tornaram-se gradualmente a principal fonte do direito, substituindo aos poucos as construções científicas da pandectística. E, como afirmou Wieacker, “nessas circunstâncias, a transição da ciência para a legislação foi festejada pelos contemporâneos como um avanço das liberdades civis e da construção do Estado nacional.” Assim, tal como o Code Civil representou tanto o ápice quanto o ocaso do jusnaturalismo, o BGB marca o momento em que a cristalização legislativa do sistema pandectista fez com que os juristas alemães passassem a reconhecer na lei o centro do sistema jurídico.

c) A dupla sistematização do direito

No século XX, a grande referência de código deixou de ser o Code Napoléon e passou a ser o BGB, que era mais preciso, abrangente e sistemático. Essa codificação possibilitou uma espécie de unificação dos discursos jurídicos europeus. O pensamento legalista de matriz francesa, cuja maior expressão foi a Escola da Exegese, era metodologicamente mais débil que a Jurisprudência dos Conceitos, tanto que os textos que passaram a ser mais influentes na França tinham uma inspiração germânica, na medida em que promoveram o trânsito do comentário exegético do código para um pensamento sistemático acerca do próprio código.

Nesse ponto, o exemplo mais importante é o da obra de Aubry e Rau, responsável pela inserção no contexto francês da perspectiva conceitual germânica e cujo tratado de direito civil teve uma imensa repercussão. Assim, no final do século, os juristas franceses já passavam a estudar novamente o direito civil, e não apenas o Código Civil. É claro que o direito civil era estudado a partir do Código, mas o conhecimento era orientado pela percepção dos conceitos que estruturavam o código, para a compreensão do sistema que o código estabelece, o que implicava um rompimento com o sistema de comentários. Traçando um paralelo histórico, enquanto a Escola da Exegese era comparável à corrente dos glosadores, a influência germânica levou os estudiosos franceses a incorporar uma sistematicidade conceitual mais próxima dos pós-glosadores, que já não se orientavam pelo princípio do comentário, mas por uma explícita vontade de sistema.

Assim, o discurso francês foi-se aproximando do discurso sistemático dos alemães, que se tornava especialmente sedutor na medida em que ele representava uma aproximação do discurso científico, cuja hegemonia era incontestada no final do século XIX, quando todas o pensamento ocidental pretendeu converter-se em ciência.

Porém, o pensamento germânico radicalizou a vontade de sistema quando a codificação do direito civil permitiu a união do discurso sistemático com o direito positivo sistematizado. E essa dupla sistematização chegou a tal ponto justamente porque a codificação alemã era baseada em um corpo doutrinário cujos conceitos haviam passado por um longo processo de depuração.

Assim, realizou-se o ideal historicista de que o direito deveria ser construído a partir de uma auto-compreensão de uma cultura jurídica (o que foi conseguido mediante a sua redescrição na forma de um sistema conceitual). Esse historicismo que se realiza, porém, não é radical, na medida em que ele é sincrônico e não diacrônico. O que se impôs foi a idéia de que a cada cultura subjaz um sistema e que esse sistema é válido porque foi construído. Porém, uma vez revelado, ele passa a ser compreendido e aplicado sincronicamente, pois ele é a forma do direito válido.

Nessa medida, a dupla sistematização do direito (como objeto e como disciplina) instaurou uma espécie de equivalente jurídico do princípio teológico da sola scriptura: o direito positivo deveria oferecer as suas próprias chaves de compreensão, pois os conceitos deveriam ser extraídos do próprio código. Com isso, o pensamento jurídico acompanhou o pensamento científico em sua ausência de historicidade. E o direito, apesar de ser reconhecido como uma construção histórica, passou a ser compreendido como um sistema de normas vigentes em um determinado instante, no qual é possível a elaboração conceitual do sentido correto. Portanto, por mais que o direito seja positivo e mutável, o sentido concreto de uma norma deve ser determinado de maneira a-histórica, pois a sua articulação não depende de uma argumentação diacrônica, mas de uma argumentação sistemática.

Não é à toa que quase toda pesquisa jurídica contém um capítulo em que se trata da história do conceito analisado, mas apenas para dizer como ele se tornou o que é hoje. Com isso, a história acabou adotando uma perspectiva apenas retrospectiva, normalmente usada somente para afirmar que o sistema atual tem uma origem histórica determinada. Assim, a história passa a ser uma disciplina desarticulada da dogmática, pois apenas o argumento sistemático, ao lado do literal, passou a ser relevante para o discurso que regula a tomada de decisões.

A acentuação do pensamento sistemático, reforçado especialmente pela tentativa de cientificizar o discurso jurídico, fez com que ganhasse importância o cânone hermenêutico de que o sentido das partes se revela pelo sentido do todo. Porém, isso não significou uma abertura para a circularidade hermenêutica, na medida em que foram elaboradas estratégias conceituais para garantir que o raciocínio continuasse linear.

No caso da Escola da Exegese, essa linearidade foi conquistada por meio do estabelecimento de um critério hermenêutico meta-textual, que é a vontade do legislador. Assim, a referência a um ponto externo às normas possibilitava um tratamento objetivo do sentido dos textos legislativos. No caso da Pandectística, a busca não era de um critério transcendente ao texto, mas de um critério imanente, ou seja, intra-textual.

E esse foi justamente o papel desempenhado pelos conceitos, cuja existência se radicava dentro do próprio sistema jurídico, de tal forma que a determinação de conceitos fixos (mediante o procedimento de análise) permitia que o raciocínio jurídico não fosse propriamente hermenêutico-circular, mas que se processasse como uma montagem metodológico-linear de significados.

Para sustentar essa visão de que havia um sistema conceitual adequado, que refletia um direito positivo sistematizado, o principal instrumento teórico era justamente uma teoria do ordenamento jurídico, que oferecesse as chaves para uma compreensão sistematizada do direito positivo. Assim, descrito o direito como um sistema de normas com significados articulados segundo uma estrutura determinada, seria possível descrever a atividade hermenêutica como a busca de descobrir o sentido de uma norma a partir dos critérios oferecidos pelo próprio sistema.

5. Teoria do ordenamento jurídico

a) Tipos de sistemas: orgânicos e lógicos

Os esforços de elaboração de uma teoria sistemática do direito poderiam ter investido na idéia de um sistema orgânico, no qual tudo gira em torno de um mesmo centro e cada parte adquire significado em virtude de sua participação no todo. Como afirma Reale, na unidade orgânica, cada elemento tem “sua função própria, mas nenhuma destas se desenvolve como atividade bastante de per si; cada parte só existe e tem significado em razão do todo em que se estrutura e a que serve”[126]. A unidade de um sistema orgânico não pressupõe hierarquias e a metáfora do organismo estimula a concepção de que todos os elementos são interdependentes.

Porém, estimulada pelos ideais cientificistas e pela filosofia kantiana, os precursores alemães do modelo sistemático trabalharam a partir da idéia de que o direito se constituiria em um sistema formal e abstrato, cuja representação simbólica não é a do organismo circular, mas a da pirâmide. A metáfora piramidal acentua a idéia de que cada elemento ocupa um espaço hierárquico diferente, de tal forma que a unidade não é explicada por relações de coordenação, mas de subordinação. Enquanto a metáfora organicista estimula a idéia de que uma descrição das partes não é capaz de explicar o todo, pois é nas inter-relações que o sistema se constitui e estas não se deixam apreender em conceitos abstratos construídos pela razão, a metáfora piramidal faz parte de uma outra visão de mundo, na qual a posição hierárquica define a relevância dos elementos e os elementos subordinados são descritos em função dos subordinantes. Essa metáfora piramidal até hoje é a predominante no imaginário dos juristas, que não descrevem o direito como um todo orgânico e inter-relacionado, mas como um conjunto de regras, cada qual com um grau diverso de hierarquia, sendo que as regras dos escalões superiores têm um alto grau de generalidade e as dos estratos inferiores são mais específicas.

O sistema piramidal é comumente chamado de lógico porque inspirado nas noções da lógica formal e da matemática, no qual o vértice da pirâmide é ocupado pelos princípios de maior generalidade (por exemplo, os axiomas euclidianos) e o restante do sistema é construído a partir de derivações e deduções desses princípios. Assim, se a fórmula de Báscara ou o teorema de Pitágoras fazem parte do sistema matemático é apenas porque eles podem ser derivados dos princípios básicos que formam o estamento superior da pirâmide. Tais elementos ocupam estratos intermediários no sistema, sendo que, com base neles, outros elementos podem ser construídos, como afirmações específicas sobre as raízes de uma dada equação ou sobre o comprimento da hipotenusa de um determinado triângulo.

Outro exemplo desse modelo de sistema é a física newtoniana, o que é especialmente relevante porque, no século XIX, e em grande medida ainda hoje, a física era o grande paradigma das ciências. No topo da pirâmide, encontram-se os princípios fundamentais, que são as chamadas leis de Newton, das quais podem ser deduzidas todas as outras proposições da física, tais como as equações que descrevem o movimento balístico ou pendular. Como todos os enunciados da física newtoniana podem ser derivados a partir dos princípios fundamentais, essa é considerada uma ciência axiomatizada, ou seja, um ramo do conhecimento em que todos os enunciados são desdobramentos dos axiomas (princípios fundamentais sobre os quais o sistema é assente). Esse modo de estruturação do conhecimento físico, como uma pirâmide de conceitos, não poderia deixar de influenciar os demais ramos do conhecimento que buscavam ser reconhecidos como ciência.

Percebe-se, dessa forma, que, em um sistema lógico, os elementos mais próximos do vértice são os de maior generalidade e abstração (como a reta é a menor distância entre dois pontos ou um corpo em que não atuam forças tende a permanecer parado ou em movimento retilínio uniforme), enquanto os elementos mais próximos da base são os de maior especificidade e concretude (as raízes da equação x2–1=0 são 1 e –1 ou se uma força X incidir sobre um corpo de massa Y, ele adquire uma aceleração Z). Como afirmou Larenz, “o ideal do sistema lógico é atingido quando no vértice se coloca o conceito mais geral possível, em que se venham subsumir, como espécies e subespécies, os outros conceitos, de sorte a que de cada ponto da base possamos subir até ele, através de uma série de termos médios e sempre pelo caminho da eliminação do particular”[127].

b) Características do sistema jurídico

As teorias positivistas de viés sistemático encaram o ordenamento jurídico como um sistema piramidal de normas, ou seja, ele não é visto apenas como um conjunto desordenado de regras, mas como um conjunto organizado segundo certos padrões definidos, que lhe conferem unidade[128]. Foram os defensores dessas correntes que desenvolveram a imagem, tão familiar aos juristas, do direito como uma pirâmide de normas, na qual cada regra ocupa um degrau hierárquico e as normas inferiores (mais específicas) estão subordinadas às superiores (de maior grau de generalidade e relevância). Trata-se, pois, de uma descrição do ordenamento jurídico que tem como base o sistema lógico-abstrato das ciências exatas e da matemática, e que sustenta que o direito não possui simplesmente alguma ordem interna, mas que ele se trata um sistema fechado, completo e consistente.

· Fechamento

O direito é um sistema fechado na medida em que os juristas não podem acrescentar ou retirar qualquer norma do conjunto. Por mais que o direito seja mutável, apenas os legisladores podem modificar o sistema, apresentando-se este ao jurista sempre como um conjunto de regras com existência objetiva (o chamado direito objetivo), cabendo aos intérpretes apenas compreendê-lo e aplicá-lo, mas nunca alterá-lo. Além disso, para resolver os problemas jurídicos, os juristas somente poderiam de critérios intra-sistemáticos (baseados nas fontes formais de direito positivo), sendo-lhe vedado apoiar suas decisões em elementos extra-sistemáticos, ou seja, diversos das normas jurídicas positivas, tais como interesses sociais, políticos ou econômicos.

Nessa medida, os intérpretes não deveriam avaliar as regras segundo seus valores individuais de justiça nem de acordo com os valores sociais dominantes. A eles era vedado perguntar-se acerca da adequação das conseqüências da lei, pois dura lex sed lex (a lei é dura, mas é a lei), não deveriam adaptar o sentido da norma às realidades sociais, mas simplesmente extrair das regras jurídicas o significado que a elas foi dado pelo legislador. Ao jurista, deveria bastar o conhecimento das normas jurídicas, pois apenas elas podem servir como base para uma decisão jurídica adequada.

Dentro dessa, explica Wieacker, se ainda é possível fazer alguma referência à justiça, é porque ela parte do pressuposto de que as normas jurídicas constituem uma regulação justa da sociedade (por derivar do espírito do povo ou da própria razão) e, portanto, supunha-se que a correção lógica implicava correção material (justiça). Embora esse pressuposto não possa ser demonstrado, parece subjazer implicitamente às teorias tradicionais do século XIX a crença de que a aplicação científica (neutra, objetiva e lógica) de normas a fatos é o caminho mais adequado para garantir uma sociedade justa, crença essa típica do idealismo kantiano e do jusracionalismo do séc. XVIII.[129]

· Completude: o problema das lacunas

A teoria jurídica anterior ao século XVIII não partia do pressuposto de que o direito deveria ser capaz de oferecer uma resposta a todos os conflitos sociais. O que ocorria era justamente o contrário: entendia-se que não era qualquer conflito de interesses que poderia ser levado ao judiciário e que os tribunais somente poderiam julgar os litígios que a lei definisse como de sua competência. Portanto, a função do juiz não era procurar no direito uma solução para todas as controvérsias que lhe fossem submetidas. Antes de mais nada, ele deveria verificar se as questões que lhe eram apresentadas eram previstas pelo direito e, caso contrário, ele poderia decidir pelo non liquet, ou seja, por afirmar que o direito não regulava aquele caso e que, portanto, o judiciário não tinha competência para resolvê-lo.

Uma das inovações mais relevantes do Código Civil francês de 1804 foi modificar essa concepção, estabelecendo o princípio de “vedação do non liquet”, ou seja, estabelecendo para os tribunais o dever de julgar todos os conflitos de interesse que lhe fossem submetidos. Com isso, passou a ser proibido que um juiz se negasse a julgar nenhum caso sob a alegação de que o direito não o regulava. Dessa forma, o juiz passou a ter dois deveres fundamentais: julgar sempre com base no código e julgar todos os conflitos. Observe-se, que essas duas obrigações somente poderiam ser cumpridas concomitantemente se fosse possível julgar todos os casos com base no código. E era essa justamente a crença dominante: o direito não continha lacunas, ou seja, era possível resolver todos os conflitos sociais relevantes com base nas regras do direito positivo.

O argumento típico nesse sentido era o de que um ordenamento jurídico primitivo poderia não abranger uma série de casos relevantes, mas que um ordenamento evoluído e racional, composto por um imenso número de regras, muito raramente deixaria de abarcar alguma situação. Além disso, mesmo que as leis não conseguissem abranger todos os casos relevantes, sempre haveria alguma norma legislada ou costumeira que regulasse situações semelhantes e que poderia ser aplicada por meio de analogia. Por fim, para a Jurisprudência dos Conceitos, era possível extrair conseqüências jurídicas dos conceitos jurídicos mediante o procedimento de construção conceitual, anteriormente descrito.

Portanto, mesmo que se admitisse a possibilidade de lacuna da lei, rejeitava-se a possibilidade de haver lacuna no direito: ainda que a lei fosse omissa, haveria a possibilidade de identificar dentro do direito (incluindo no conceito de direito a legislação, os costumes e princípios gerais de direito) uma regra que fosse aplicável ao caso mediante interpretação extensiva, analogia ou construção. Por tudo isso, a teoria tradicional defendia que aquilo que alguns chamam de lacunas (casos relevantes não regulados pelo direito) não passam de lacunas aparentes, pois mesmo que a lei fosse omissa, haveria critérios intra-sistemáticos que possibilitam a sua resolução.

· Coerência: o problema das antinomias

Por fim, entendia-se que o direito era um sistema coerente (ou consistente), ou seja, isento de contradições internas. Como parte do postulado de que o legislador é racional e de que o direito é um sistema, a hermenêutica tradicional não pode admitir que o autor da lei tenha vontades contraditórias sobre um mesmo objeto, pois, nesse caso, seria rompida a sistematicidade do direito, na medida em que a existência de comandos contraditórios impede a identificação de uma solução correta. Com isso, as teorias tradicionais são levadas a não admitir a existência de normas contraditórias dentro do ordenamento jurídico.

Porém, mesmo as teorias tradicionais não chegam a defender a ficção de que o legislador nunca produz normas que contradizem outras regras do sistema. O que elas afirmam é que o sistema jurídico nunca pode conter duas regras que atribuam conseqüências contraditórias ao mesmo fato, o que é garantido mediante o estabelecimento de três critérios dogmáticos para a resolução das antinomias.

Pelo critério hierárquico, as antinomias existentes entre uma norma hierarquicamente superior e uma inferior devem ser resolvidas excluindo-se do ordenamento a norma inferior: lex superior derrogat inferiori. Dessa forma, será inválida uma lei que seja contrária à constituição ou um decreto contrário a uma lei.

Pelo critério da especialidade, as disposições especiais têm prevalência sobre as disposições gerais. Embora toda lei deva ter a característica da generalidade (por se aplicar a um conjunto de fatos e não a um fato específico), essa generalidade é uma faca de dois gumes. Por um lado, ela garante que os casos idênticos serão tratados da mesma forma, mas, por outro, ela trata igualmente casos que, pelas suas peculiaridades, mereceriam uma solução diversa.

Tomemos, por exemplo, a regra geral que atribui uma determinada pena a toda pessoa que cometer homicídio, sendo essa norma aplicável a todos os casos em que uma pessoa mata outra. Todavia, é por todos sabido que há uma regra especial, que permite matar alguém em legítima defesa. Como devemos entender a relação entre essas duas regras?

Se Marcos mata Pedro em legítima defesa, as duas regras são prima facie aplicáveis ao caso. Todavia, a permissão especial da legítima defesa tem prioridade sobre a proibição geral do homicídio, pois trata-se de uma exceção feita à regra geral, estabelecida com a finalidade de garantir um tratamento justo a essa hipótese. Assim, toda vez que uma disposição puder ser entendida como uma exceção feita a uma regra geral, com o objetivo de tratar desigualmente as condutas desiguais, na medida da sua desigualdade, deverá ser aplicada ao caso a norma especial e não a geral.

No Brasil, essa regra de interpretação não é apenas doutrinária, mas encontra-se positivada no art. 2o, §2o da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), que determina: “a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.”.

O terceiro critério é o cronológico, que é aplicável apenas a normas de mesma hierarquia ou grau de especialidade. Nesses casos, considera-se que a norma posterior derroga a norma anterior: lex posterior derrogat priori. Dessa forma, se uma lei tem dispositivos incompatíveis com determinações de uma lei anterior, valerá o conteúdo da regra mais nova. Portanto, mesmo que uma lei não revogue expressamente uma norma anterior, a incompatibilidade entre elas acarretará a invalidade dos dispositivos mais antigos. Também essa regra é prevista na LICC, que determina, no art. 2o, §1o, “a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.

De acordo com a hermenêutica tradicional, a aplicação dessas regras deve resolver todas as antinomias que porventura surjam no ordenamento, o que significa que toda antinomia é apenas aparente. Como, no momento em que surgem as regras contraditórias, já existe um critério preestabelecido para determinar qual das normas deve prevalecer, então nunca chega a haver no sistema uma contradição de regras vigentes. No exato instante em que entra em vigor uma lei nova, a lei anterior com ela incompatível perde vigência e, portanto, elas nunca são válidas ao mesmo tempo. As leis que contradizem a Constituição não podem ser válidas e, portanto, quando um tribunal declara a sua inconstitucionalidade, ele afirma que ela nunca foi vigente no ordenamento jurídico. Ao descrever dessa forma o problema das incompatibilidades normativas, a teoria tradicional termina por sustentar que toda antinomia é aparente, pois a coexistência de regras antinômicas não chega a ocorrer realmente.

Porém, foi preciso admitir que existem também antinomias reais, ou seja, normas cuja contradição não pode ser resolvida mediante a aplicação das três regras explicitadas. Nesse caso, se não houver nenhum critério hermenêutico relevante que possibilite a escolha de uma das normas[130], então o intérprete é forçado a admitir que ambas as regras têm igual valor, o que deve conduzi-lo a pronunciar-se como se nenhuma das regras antinômicas tivesse existido[131]. Portanto, se os critérios de resolução de antinomias forem insuficientes para a resolução de uma contradição normativa, a garantia da coesão intra-sistemática exigirá do intérprete a exclusão de ambas as normas colidentes, como se uma anulasse a outra. Nesse caso, surgiria uma lacuna (a chamada lacuna de colisão) que precisaria ser preenchida mediante os recursos clássicos de analogia e construção.

Capítulo IV - O positivismo sociológico

1. A introdução do argumento teleológico

a) Normativismo e liberalismo

A Escola da Exegese não tinha a potencialidade de gerar um discurso científico, pois ela se guiava fundamentalmente pelo princípio do comentário, que visa apenas a dar voz a textos mudos. E, como dizia Foucault, “o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão de dizer enfim o que já estava articulado silenciosamente no texto primeiro[132]. Não havia, portanto, lugar para um pensamento indutivo, pois a hermenêutica imperativista reduzia o discurso jurídico a uma dedução, que buscava extrair conseqüências específicas das normas gerais fixadas pela lei. Essa perspectiva não era compatível com a do discurso científico, que é justamente aquele em que as regras gerais precisam ser construídas por via indutiva, mediante procedimentos argumentativos controlados.

A hermenêutica imperativista não estava ligada ao projeto de construir um sistema a partir de elementos fragmentários porque essa elaboração era considerada dispensável, na medida em que a própria legislação era tomada como um sistema. Assim, como a sistematicidade da legislação era pressuposta, a função dos juristas era apenas esclarecer o conteúdo do ordenamento vigente, o que possibilitou a redução do discurso ao nível do simples comentário. E o resultado dessa perspectiva foi um grande apego à literalidade, mitigado apenas nos casos excepcionais em que a interpretação literal conduzia a resultados tão absurdos que não se podia aceitar que eles fossem intencionados por um legislador racional.

Contra essa perspectiva tecnicista, a hermenêutica sistemática ofereceu uma articulação entre argumentações indutivas e dedutivas que aproximaram o discurso jurídico do discurso científico. Essa aproximação inspirou-se especialmente no método químico de reduzir o objeto aos seus elementos fundamentais. E o que caracterizou a pandectística foi justamente a mudança do “átomo jurídico”: em vez de encarar o direito como uma articulação ordenada de normas, as próprias normas foram decompostas em seus elementos fundamentais: os conceitos.

Assim, a construção indutiva de regras gerais, a partir da recombinação dos conceitos descobertos por via analítica, abria uma maior aproximação entre o discurso jurídico e o científico. Essa perspectiva possibilitou que o pensamento jurídico não se organizasse apenas em torno do sentido imanente do direito positivo, na medida em que a própria interpretação das normas deveria articular de maneira coerente os conceitos fundamentais. Assim, o conceitualismo da pandectística permitiu a sistematização do discurso jurídico dentro de uma sociedade em que o direito positivo não se encontrava sistematizado. Porém, o resultado dessa perspectiva foi o desenvolvimento de uma mentalidade formalista, em que a correção dos enunciados era medida em termos coerência lógica com o aparato conceitual construído pelos juristas.

Com isso, fica claro que o formalismo conceitual e o legalismo não têm uma origem comum nem uma ligação necessária. Porém, no final do século XIX, esses dois elementos foram sendo gradualmente reunidos, em um movimento de interferência recíproca que gerou tanto uma conceptualização do legalismo francês quanto uma legalização do conceptualismo germânico. E o ápice desse processo foi promulgação do BGB, em que formalismo e legalismo se uniram para formar a expressão acabada do direito liberal.

O positivismo normativista assim constituído representava uma tentativa de separar política e direito, na qual a função legislativa deveria ser deixada aos agentes políticos legítimos, enquanto a função jurisdicional deveria ser exercida de maneira objetiva e imparcial. Com isso, o discurso jurídico foi adquirindo um viés cada vez mais formalista, em que não havia lugar para argumentos axiológicos nem teleológicos.

Esse formalismo era relativamente mitigado na tradição imperativista, que tratava os juízes como agentes neutros, mas que vinculava o sentido do direito à intenção dos legisladores, o que deixava o discurso relativamente aberto a elementos axiológicos e finalísticos. Porém, a radicalização do conceitualismo excluiu tais referências, na medida em que circunscreveu o discurso à busca da interpretação coerente com o sistema de normas e conceitos. Com isso, os critérios de correção interpretativa estavam ligados à manutenção da coerência interna do sistema normativo e conceitual, inexistindo espaço para questionar a legitimidade do próprio sistema e das soluções que ele oferecia.

Assim, por mais que se reconhecesse que era função do direito promover a justiça, o discurso jurídico liberal determinava que essa finalidade somente deveria ser buscada pelos legisladores, e nunca pelos juízes, cuja atividade deveria restringir-se à aplicação objetiva do direito legislado aos fatos concretos. Dessa forma, o discurso jurídico restou despolitizado, pois os argumentos finalísticos e valorativos que normalmente organizam o discurso ético e político foram substituídos por referências puramente deônticas e conceituais. Evidentemente, isso não quer dizer que o direito se despolitizou (pois as suas funções políticas eram claramente percebidas), mas apenas que o discurso aplicativo do direito se tornou impermeável àqueles argumentos que Ronald Dworkin chama de políticas (policies)[133], que fazem parte de um discurso organizado como uma busca finalística de realizar o bem comum.

Com isso, somente eram consideradas jurídicas as argumentações baseadas na interpretação do direito positivo, sendo consideradas metajurídicos todos os argumentos de caráter teleológico e axiológico. Esse discurso jurídico despolitizado é o que normalmente chamamos de positivismo, pois trata-se de uma perspectiva dogmática que não possibilita a crítica externa do direito positivo (feita por critérios éticos ou políticos), o que termina por vincular os juízes à aplicação do modelo político consolidado nas leis.

Portanto, a despolitização do discurso implicou um atrelamento da prática jurídica aos princípios valorativos implícitos no próprio sistema legal. Justamente por isso, tal despolitização somente permaneceu sustentável na medida em que o liberalismo subjacente ao direito positivo manteve sua posição hegemônica. Entretanto, quando os Estados Liberais entraram em crise, no final do século XIX, também entrou em crise o direito positivo que eles construíram, bem como o discurso jurídico a ele ligado.

b) A crise da legislação novecentista

No início do século XIX, os códigos eram uma forma inovadora de elaborar o direito positivo, que alcançou um patamar inédito de amplitude e sistematização. Naquele momento, a codificação fazia parte de um amplo processo de reorganização social, no qual andavam lado a lado a pauta ideológica do liberalismo e os padrões de racionalidade iluministas. Os códigos, as máquinas a vapor, as linhas de trem, as construções de ferro, esses eram símbolos de uma era que se iniciava.

Em meados do século XIX, o progresso material era evidente nos países que se seguiam esse processo de modernização. Como afirmou o historiador Eric Hobsbawm, a sociedade burguesa da época “estava confiante e orgulhosa de seus sucessos”, mas “em nenhum outro campo da vida humana isso era mais evidente que no avanço do conhecimento, da ciência. Homens cultos do período não estavam apenas orgulhosos de suas ciências, mas preparados para subordinar todas as outras formas de atividade intelectual a elas”[134].

A razão que movia os imensos desenvolvimentos da química, da física e da biologia e deu notoriedade a nomes como Pasteur, Darwin, Maxwell, Mendeleev, era essa mesma razão que deveria conduzir o homem. Quem estaria disposto a negar que a forma correta de pensar é aquela que tornou possível os navios a vapor, as locomotivas, as vacinas, todas as novas técnicas e instrumentos que pareciam melhorar as condições de vida das pessoas da época em um ritmo nunca antes visto?

Desde então, o discurso jurídico dominante foi sendo permeado por um positivismo cientificista, que buscava construir uma ciência do direito nos moldes das ciências naturais. Essa profunda crença nos padrões científicos mostrou-se de forma mais evidente na tentativa da Jurisprudência dos Conceitos de se tornar uma espécie química jurídica.

O positivismo da época levou os juristas a não se preocuparem com a justificação filosófica dos ordenamentos jurídicos (uma das eternas preocupações dos jusnaturalistas) e centrarem suas preocupações na descrição dos ordenamentos jurídicos: era preciso fazer ciência e não filosofia. Nesse sentido, Savigny chegou a afirmar que a filosofia não é necessária ao jurista, mesmo como simples elemento prévio[135].

O liberalismo, o capitalismo e o positivismo são expressões da mesma forma de organização política e ideológica. Todos eles tiveram um crescimento gradual e constante durante a primeira metade do século XIX e se consolidaram como perspectivas hegemônicas. As décadas de 50 e 60 foram o seu período áureo, época que marca o triunfo do capitalismo liberal no ocidente, descrito por Hobsbawm de modo lapidar na introdução de A era do capital:

Foi o triunfo de uma sociedade que acreditou que o crescimento econômico repousava na competição da livre iniciativa privada, no sucesso de comprar tudo no mercado mais barato (inclusive trabalho) e vender no mais caro. Uma economia assim baseada e, portanto, repousando naturalmente nas sólidas fundações de uma burguesia composta daqueles cuja energia, mérito e inteligência os elevou a tal posição, deveria — assim se acreditava — não somente criar um mundo de plena distribuição material, mas também de crescente esclarecimento, razão e oportunidade humana, de avanço das ciências e das artes, em suma, um mundo de contínuo progresso material e moral.

Tratava-se de uma época consciente de suas conquistas e orgulhosa de seus sucessos, período no qual se acreditava que o progresso (essa palavra tão típica do positivismo novecentista) era quase uma lei da natureza (para algumas leituras pobres da teoria evolucionista de Darwin, era uma lei da natureza), pois não havia limite para os desenvolvimentos econômicos, científicos e tecnológicos que se descortinavam. A maior prova de que o capitalismo/liberalismo era o caminho inequívoco para o progresso era justamente o sucesso das nações que haviam adotado esse modelo.

Parece que tendemos a ver na riqueza e no poder efetivamente conquistados uma prova inequívoca, embora dada a posteriori, de que eram sólidas as bases nas quais eles foram erguidos. Assim, se a Inglaterra, a França e a Alemanha eram grandes potências no início do século XX, então o seu modelo de organização era justificado pelos seus próprios resultados, não havendo a necessidade de buscar fundamentos metafísicos para os justificar. No campo do direito, o positivismo não estava interessado em oferecer argumentos que fundamentassem o modelo de organização jurídica da época, mas apenas em descrevê-lo e contribuir para que ele pudesse operar da forma mais eficiente possível: sua única fundamentação era o sucesso do modelo político de que fazia parte e, para qualquer um que vivesse naquela época, não parecia haver motivos que apontassem para um esgotamento desse sistema. Pelo contrário, a crença era em uma expansão contínua do modelo jurídico/político dos países centrais, até que englobasse todo o mundo (ao menos todo o mundo civilizado, para utilizar outra expressão típica do período).

Os poucos obstáculos ainda remanescentes no caminho do livre desenvolvimento da economia seriam levados de roldão. As instituições do mundo, ou mais precisamente daquelas partes do mundo ainda não excluídas pela tirania das tradições e supertições, ou pelo infortúnio de não possuírem pele branca (preferivelmente originária da Europa Central ou do Norte), gradualmente se aproximariam do modelo internacional de um Estado-nação definido territorialmente, com uma Constituição garantindo a propriedade e os direitos civis, assembléias representativas e governos eleitos responsáveis por elas e, quando possível, uma participação do povo comum na política dentro de limites tais que garantissem a ordem social burguesa e evitassem o risco de ela ser derrubada.[136]

Todo esse otimismo, contudo, mostrou não ter bases sólidas, o que realça o fato de que o sucesso de qualquer modelo, ainda que estrondoso, não lhe confere imortalidade. Enquanto a expansão capitalista fazia com que o senso comum percebesse como evidentes uma melhoria na capacidade de geração de riquezas e na qualidade de vida das pessoas, parecia uma verdade inegável que o papel dos juízes era o de aplicar as leis de maneira objetiva e literal, pois isso contribuía para reforçar o modelo político, econômico e social garantido pelas disposições legislativas. Não é por acaso que o período de formação da Escola da Exegese coincide com o de formação do modelo capitalista liberal, ambos consolidando sua posição hegemônica em meados da década de 40 e mantendo-se no ápice até meados dos anos 1870, quando começaram a mostrar suas fraquezas.

E essa foi justamente a época em que a Jurisprudência dos Conceitos ingressou em seu ápice, no contexto de uma Alemanha recém unificada, que procurava garantir sua entrada no processo de modernização social em que ela ingressou com atraso. E a codificação do direito civil, feita em 1899, marca definitivamente sua entrada na modernidade jurídica. Assim, seja partindo de um código (como na França), seja chegando a ele (como na Alemanha), o direito oitocentista insistiu no caminho da codificação e, conseqüentemente, da rigidez legislativa implicada nessa estratégia.

Porém, o início do século XX já não era mais a época do liberalismo triunfante, pois começavam a se tornar muito evidente que os novos Estados de Direito continham uma série de problemas que não se deixavam resolver pelas estratégias jurídicas liberais. A sociedade européia mudou radicalmente no século XIX, especialmente devido aos processos de industrialização e de urbanização, que modificaram profundamente as relações sociais.

E os modelos políticos e jurídicos vigentes não davam conta dessas novas realidades, cuja injustiça foi lida de várias formas. Elas encontraram eco na literatura no romantismo de Vitor Hugo (1802-1885), mas sua expressão mais contundente está no naturalismo cientificista de Émile Zola (1840-1902)[137]. Para escrever Germinal, Zola viveu durante meses entre os mineiros de carvão que ele pretendia retratar. Assim, como entre os mineiros também viveu Van Gogh, quando ainda tentava ser pastor e não cria na possibilidade de viver afastado daqueles que ele deveria orientar espiritualmente. E essa vivência é magistralmente retratada em quadros como Os comedores de batata, que trata da pobreza extrema desses trabalhadores.

Karl Marx (1818-1883), por exemplo, leu-as como resultados necessários de um sistema econômico capitalista, o que inspirou vários movimentos que buscaram resolver essas tensões por meio da instauração revolucionária de um novo modo de produção. E o embate ideológico entre a utopia socialista e a utopia liberal marcou boa parte do século XX.

Para utilizar uma leitura típica do direito constitucional, os direitos de primeira geração não ofereciam parâmetros jurídicos adequados os problemas sociais da época, que somente vieram a ser equacionados pelos direitos de segunda geração, que foram sendo estabelecidos como resultados de uma série de lutas sociais durante as primeiras décadas do século XX.

A sociedade transformava-se rapidamente e exigia alterações no direito, mas os códigos eram (e ainda são) as normas de mais difícil e lenta modificação. E menos mutável ainda era o sistema conceitual da pandectística, pois ele se postava acima do próprio BGB, na medida em que a teoria geral do direito pretendia conter um conjunto de conceitos inerentes à própria experiência jurídica. A sistematização feita pela pandectística foi a mais sofisticada tentativa de garantir a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões judiciais, e, como toda perspectiva que valoriza sobremaneira a estabilidade, tinha como calcanhar de Aquiles a sua inflexibilidade. Assim, tanto o modelo imperativista como o sistemático oferecem critérios interpretativos que pretendem ser objetivos e impessoais, o que os torna avessos a qualquer interferência dos valores sociais no direito. Em ambas as perspectivas, o direito somente poderia ser alterado pelo próprio legislador, de tal forma que elas propiciavam práticas interpretativas que, em sua rigidez, não se mostraram capazes de adaptar as soluções às novas demandas sociais.

Assim, no curso do século XIX, a codificação já não representavam um processo de renovação do direito, mas a continuidade do processo de fortalecimento dos Estados de Direito que seguiam os moldes liberais. Nesse contexto, mesmo o BGB, que era o mais atualizado dos códigos, caracterizava um aperfeiçoamento formal da legislação codificada (por sua maior sistematicidade e coesão), mas que não trazia avanços relevantes de conteúdo (na medida em que se inspirava no conceitualismo anteriormente traçado). Com isso, a codificação deixou de ser um processo renovador e passou a ser um processo conservador, especialmente na medida em que os códigos são normas muito difíceis de se modificar.

No final do século XIX, já estava claro que o preço a ser pago pela sistematicidade do código era o de uma extrema fixidez do próprio direito, na medida em que o tamanho e a complexidade dos códigos faz com que a alteração desse tipo de norma exija um processo legislativo muito demorado. Então, como os códigos tendem a perdurar por longos períodos, o que termina implicando a permanência de modelos de organização jurídica que vão se tornando gradualmente defasados frente à realidade jurídica.

Enquanto a sociedade modifica-se constantemente, o texto dos códigos permanece estático, pois eles são refratários a alterações pontuais que ameacem a sua sistematicidade. Esse descompasso entre a realidade social chegou a ser identificado como uma guerra dos fatos contra o direito, pois as normas legisladas eram incapazes de responder adequadamente às demandas sociais de uma sociedade que se modificou profundamente durante o século XIX.

A solução liberal para lidar com o envelhecimento do direito era a criação legislativa de novas normas. Porém, na medida em que essa solução não era suficientemente ágil dentro dos ordenamentos codificados, tornou-se cada vez mais necessário alterar o direito vigente por via interpretativa e não por via legislativa. Enquanto as soluções derivadas dos sistemas jurídicos vigentes foram socialmente entendidas como justas, manteve-se intacto o respeito às palavras do legislador e ao sistema. Porém, quando a sociedade começou a perceber como injustas muitas das decisões sistemicamente adequadas, o modelo sistemático passou a ter opositores cada vez mais ferrenhos, que conduziram a teoria jurídica à necessidade de enfrentar o difícil problema de definir se era mais importante garantir a segurança jurídica (o que o sistema fazia bem) ou a justiça (que por vezes se contrapunha aos códigos e sistemática dominante).

As correntes de viés teleológico acentuaram que, por mais que o normativismo tradicional se acreditasse fundamentado na própria racionalidade humana, o que lhes deveria conferir neutralidade e cientificidade, elas se erguiam efetivamente (embora quase nunca de forma explícita) sobre pressupostos metafísicos, éticos e valorativos. A segurança jurídica, princípio fundamental da teoria jurídica tradicional, não é um valor que pode ser logicamente derivado da natureza ou da razão humana: trata-se apenas de um valor que, como qualquer outro, somente pode ser defendido em bases ideológicas e não racionais.

Isso não era percebido pelos jusnaturalistas, dada a sua crença de que a razão era capaz de diferenciar não apenas o verdadeiro do falso, mas também o certo do errado, de tal forma que um uso adequado da razão poderia indicar os valores fundamentais sobre os quais a sociedade deveria ser construída. No século XVIII, ainda era comumente aceita a idéia de que a razão poderia ser dividida em duas espécies: de um lado, tínhamos a razão teórica (ou especulativa), que era capaz de diferenciar o verdadeiro do falso e orientar a resposta a questões teóricas; de outro, tínhamos a razão prática, que nos indicava quais eram os princípios corretos do agir, fundamentando uma hierarquia dos valores morais que, na medida em que era capaz de orientar nossas escolhas éticas, possibilitava que déssemos resposta a questões práticas.

Porém, à medida em que conquistou espaço o relativismo ético que considerava impossível estabelecer racionalmente uma hierarquia de valores morais e consolidou-se o postulado empirista de que a razão é simplesmente incapaz de fundamentar valores, perdeu credibilidade a concepção clássica de que havia valores logicamente superiores a outros. A própria noção de razão prática foi sendo abandonada, consolidando-se gradualmente a idéia (ainda hoje dominante) de que existe apenas uma razão: a razão especulativa que é capaz de diferenciar argumentos logicamente bem estruturados de argumentos falaciosos, porém é incapaz de orientar escolhas valorativas.

A partir de então, ficou patente que construir um modelo hermenêutico que visa a conferir previsibilidade às decisões mediante a restrição do papel criativo dos juízes não é uma necessidade lógica, mas uma escolha política baseada em critérios valorativos — e a tentativa de revestir uma escolha política como uma necessidade lógica é um dos procedimentos mais típicos da ideologia.

A hermenêutica tradicional concebe uma ordem jurídica completa e coerente (sem lacunas nem contradições) e, por mais que essas concepções sejam compatíveis com o conceito de ciência vigente à época, dificilmente se pode negar que essa crença desempenha uma relevante função ideológica na manutenção da estabilidade do modelo político e econômico dominante. Como afirma Warat, as manifestações teóricas das correntes tradicionais “constituem uma tentativa de consolidação do compromisso de segurança ideologicamente estabelecida pelo modelo napoleônico de direito.

Através da exaltação desse valor (segurança) busca-se legitimar o exercício do poder socialmente dominante, o qual se apresenta como seu legítimo guardião, sendo todos os seus atos intrinsecamente justos por serem legais”[138]. Nessa medida, um ato era entendido como justo porque derivado de uma norma geral, o que implicava uma pressuposição da justiça das normas e conduzia ao fenômeno que os juristas de linha marxista chamariam de legitimação ideológica e que Kelsen chamava de uma legitimação acrítica do direito[139].

Além disso, devemos ressaltar que a crença na justiça intrínseca das normas jurídicas positivadas somente pode desempenhar devidamente sua função ideológica se for possível extrair delas uma, e apenas uma, interpretação correta, mediante a aplicação de métodos hermenêuticos puramente racionais. Porém, como afirmou Kelsen, a idéia de que a interpretação científica do direito conduz a um entendimento unívoco e correto não passa de “uma ficção de que se serve a Jurisprudência tradicional para consolidar o ideal de segurança jurídica” e, embora essa ficção possa ter certas vantagens de um ponto de vista político, “nenhuma vantagem política pode justificar que se faça uso dessa ficção numa exposição científica do direito positivo”[140].

A teoria jurídica tradicional do século XIX, embora tivesse um viés positivista, era fundada em alguns pressupostos éticos/metafísicos, especialmente nas crenças de que a fonte de legitimidade do direito era a vontade geral ou o Volksgeist e de que a garantia da separação dos poderes (com a conseqüente restrição ao poder criativo dos juízes) era o modo mais adequado de organizar juridicamente uma nação de forma a respeitar a vontade do povo, manifestada por seus representantes. Implícita nessa noção estava a crença de que o legislador respeitaria as convicções jurídicas e políticas tradicionais, crença que se mostrou justificada durante a maior parte do século XIX, especialmente porque a legislação era confiada “nas matérias jurídicas clássicas, aos representantes dessa cultura jurídica, aos letrados e aos juristas formados tecnicamente”[141].

Dentro dessa mentalidade, o direito serviria como uma garantia da justiça, pois, na medida em que ela estabelecia critérios objetivos de conduta (pressupostos como justos por serem resultados da vontade geral), protegia os cidadãos das arbitrariedades que eventualmente poderiam ser praticadas tanto pelo governo quanto pelos juízes. Porém, ao evitar que os juízes e governantes pudessem questionar a legitimidade das regras jurídicas, a teoria jurídica tradicional aboliu qualquer possibilidade de se construírem instrumentos que protegessem o povo contra a injustiça da lei. Em outras palavras, ao retirar a questão da justiça das preocupações dos juristas, as teorias tradicionais partiam de um pressuposto implícito de que o direito era justo (ou, ao menos, de que era a forma jurídica mais próxima da justiça) e tiveram que pagar o preço dessa aposta no legislador como guardião da justiça: não havia mais proteção jurídica contra a arbitrariedade legislativa.

Durante a época em que a aplicação literal das leis gerava resultados socialmente aceitáveis (o que parece ter ocorrido durante a maior parte do século XIX), a ausência de proteção contra a lei injusta não parece ter gerado problemas muito sérios e, de um modo ou de outro, referências pontuais à vontade do legislador eram capazes de oferecer uma saída para evitar a ocorrência de decisões manifestamente absurdas. Na medida em que o uso desse tipo de argumentação permanecesse restrito a casos esporádicos, tais referências poderiam servir como uma válvula de escape que servia como forma de estabilizar o sistema sem exigir nenhuma modificação estrutural no modelo, que permaneceu estável basicamente porque a razoável harmonia entre o modelo de organização político-econômica e o modelo jurídico estabelecido pelas leis fazia com que as decisões jurídicas respondessem as demandas sociais.

Essa harmonia entre os dois modelos, contudo, era cada vez menor, pois as formas de organização jurídicas permaneceram praticamente inalteradas desde o início do século, enquanto as formas de organização econômica e política modificaram-se em um ritmo acelerado, gerando problemas novos em escala cada vez maior, problemas esses que a teoria jurídica tradicional não era capaz de enfrentar devidamente. Assim, apesar de terem servido muito bem aos propósitos de seus elaboradores, os códigos promulgados no início do século XIX eram frutos de seu tempo e, com as grandes mudanças sociais econômicas e políticas que ocorreram na segunda metade daquele século, as soluções que os juízes podiam extrair dos códigos foram-se tornando gradualmente inadequadas às novas demandas sociais.

Como reconhecia Saleilles já em 1899, inovações de ordem econômica, que ninguém poderia prever um século antes, modificaram as relações jurídicas entre o capital e o trabalho, bem como entre os que produzem e os que consomem[142]. As populações concentraram-se cada vez mais nas cidades, iniciou-se o capitalismo industrial, foram alteradas as relações de emprego e de consumo e a conformação da família. Frente às novas dificuldades, os códigos demonstraram claros sinais de envelhecimento, o que evidenciou que a grande estabilidade jurídica que eles proporcionavam era uma faca de dois gumes: em situações normais, a estabilidade é um fator que gera segurança, mas, frente a uma sociedade em ritmo acelerado de mudança, o que era uma virtude passou a representar uma séria dificuldade, pois a inflexibilidade dos códigos dificultava sobremaneira a adaptação do direito às novas situações.

Assim, apesar de todas as suas qualidades, os códigos demonstraram seu grande defeito: é muito difícil modificá-los. Sempre é possível fazer algumas alterações pontuais, mas logo que um código começa a dar sinais de estiolamento, chega-se a um dilema: por um lado, a estratégia de fazer mudanças isoladas é limitada, pois um grande número modificações isoladas terminariam por descaracterizar o sistema; por outro, é muito difícil e demorado o trabalho de refazer o sistema, criando um novo código. Dessa maneira, se já era sabido que o direito sempre está atrás dos fatos, os novos códigos e a mentalidade exegética dos juristas fizeram com que essa distância aumentasse sobremaneira, à medida que se aproximava o final do século.

Essa distância entre as leis e a realidade social fez com que muitos juristas mudassem de postura frente ao direito. Enquanto os códigos eram jovens e representavam uma inovação legislativa para comportar as mudanças sociais decorrentes das revoluções burguesas, a ideologia jurídica dominante era a de que as leis deveriam ser aplicadas da maneira mais literal possível e de que o papel criativo dos juízes deveria ser suprimido.

Além disso, não é demais lembrar que o código era uma tecnologia legislativa inovadora naquela época e era preciso desenvolver uma metodologia de trabalho adequada à nova organização do direito, concentrado quase exclusivamente em leis sistematizadas e abrangentes. Com isso, durante muito tempo, os intérpretes limitaram-se a buscar esclarecer os sentidos da expressões usadas pelo legislador e a precisar-lhes o alcance, utilizando como base de seus trabalhos os minuciosos arquivos que registraram o processo de elaboração dos códigos. Não se tratava ainda de desenvolvê-los e adaptá-los, mas de descobrir-lhes as minúcias e compreender o novo sistema jurídico.

Porém, essas leis envelheceram e não houve um processo legislativo eficiente para substituí-las por regras mais adaptadas. A própria forma codificada dificultava sobremaneira essa renovação legislativa, pois, quanto mais complexo e abrangente o código, mais difícil é introduzir nele modificações, pois cada alteração pode causar repercussões em todo o sistema. Com o tempo, os juristas tornaram-se conscientes de que as próprias qualidades da técnica de codificação (amplitude, precisão, unidade, sistematicidade, etc.) impunham obstáculos difíceis às inovações necessárias para que as leis fossem atualizadas[143].

Dessa forma, as dificuldades resultantes de um direito codificado não existiam apenas na França com seus códigos do começo do séc. XIX, mas também na Alemanha unificada e de seus códigos elaborados ao final desse século. Como os códigos não podiam ser modificados no ritmo necessário para acompanhar as alterações sociais, chegou-se mesmo a declarar a existência de uma guerra dos fatos contra os códigos e restou aos juristas, que não podiam alterar o próprio texto da lei, mudar o modo de trabalhar com elas, de tal forma que fosse possível adaptar as soluções jurídicas às novas realidades sociais.

Assim, a crise do direito liberal gerou uma gradual abertura para novas formas de argumentação jurídica, que buscavam adaptar o direito positivo à realidade social. Assim, das últimas décadas do século XIX até a I Guerra Mundial, houve uma série de tentativas de transformar hermeneuticamente um direito que se encontrava em descompasso com as demandas da sociedade que ele visava a regular. Portanto, não estava em jogo apenas uma discussão teórica sobre o direito, mas uma redefinição política do papel do direito e de seus intérpretes.

Naquele momento, as correntes que se opuseram ao legalismo dominante precisavam encontrar um ponto sólido para apoiar sua alavanca argumentativa. A saída mais óbvia seria a de opor ao sistema dominante uma série de direitos justificados de modo jusracionalista, e esse tipo de perspectiva até hoje tem vida nas chamadas teorias críticas. Porém, não ocorreu um simples fortalecimento do jusracionalismo do século XVIII, especialmente porque ele adotava a forma de um discurso filosófico que estava em profunda crise. O final do século XIX era uma época em que o discurso da verdade objetiva não poderia ser travado com as armas de uma metafísica filosófica, pois o discurso dominante acerca da verdade já era o científico.

Assim, não foi por acaso que o cientificismo marcou todos os teóricos que procuraram modificar o pensamento jurídico na passagem do século XIX para o XX, época em que ganharam força no campo jurídico uma série de teorias de matriz cientificista, que buscaram identificar, por meio da observação da própria sociedade, as normas que compõem o direito. Porém, se esse cientificismo era uma espécie de positivismo, ele não se confundia com o normativismo novecentista, pois tratava-se de um uso renovador (e não conservador) do discurso científico. O apelo à ciência não era uma forma de justificar a validade das normas legisladas, mas uma busca para identificar um direito positivo para além da própria legislação. Assim, as referências científicas deveriam possibilitar uma mudança social calcada em valores objetivos, na medida em que o conhecimento científico do homem e da sociedade deveria possibilitar aos juristas a identificação dos critérios adequados de organização social. Não se buscava, portanto, uma pura descrição da sociedade, mas a busca de um direito positivo porque social, e não porque legislado.

Portanto, o jurista não deveria isolar-se no estudo dogmático das normas legisladas e dos conceitos formais, mas deveria abrir-se à compreensão ao direito produzido pela própria sociedade. E essa abertura era mediada por uma concepção inovadora do direito, que passou a ser percebido como um dos elementos que uma sociedade utiliza para atingir as suas finalidades. Então, interpretar o direito não pode significar apenas trazer à luz o sentido originário da norma, mas conferir às normas jurídicas um sentido compatível com a sua função social. Assim, enquanto a hermenêutica normativista era fundada apenas em argumentos que buscavam reconstruir o sentido original da norma, começou a se difundir um discurso hermenêutico baseado em argumentos teleológicos: a interpretação correta não era aquela que realizava um sentido fixado no passado, mas aquela que realizava no presente as finalidades sociais do direito.

Por tudo isso, o conhecimento jurídico não poderia se reduzir à descrição das leis, nem do sistema conceitual subjacente ao direito positivo. Nesse sentido, afirmava Ehrlich que a verdadeira ciência não é a análise de normas (essas construções superestruturais e ideológicas, que não se referem a nada que exista verdadeiramente no mundo), mas o estudo das próprias relações sociais que forma o direito[144].

Inspirando esse posicionamento, também havia um reconhecimento generalizado de que as decisões judiciais não são tomadas exclusivamente com base em argumentos normativos. Assim, a hermenêutica normativista passou a ser vista como uma falsa descrição dos processos decisórios, na medida em que o que os juízes faziam nunca era simplesmente desvendar os sentidos imanentes ao ordenamento jurídico. Tornava-se claro que o processo de aplicação do direito necessariamente envolvia uma abertura para os valores sociais que não se haviam consolidado na forma de direito positivo.

Por isso mesmo é que Oliver Wendell Holmes afirmava, ainda em 1899, que é uma falácia a noção de que a única força em funcionamento no desenvolvimento de uma lei é a lógica” e é um erro a noção de que um sistema jurídico “pode ser elaborado, como a matemática, a partir de alguns axiomas gerais de conduta”[145], pois

a vida do direito não tem sido a lógica, mas a experiência. As necessidades sentidas na época, a moral predominante e as teorias políticas, as instituições da política pública, declaradas ou inconscientes, até os preconceitos que os juízes compartilham com seus semelhantes, são muito mais adequadas do que o silogismo para determinar as regras pelas quais os homens devem ser governados[146].

Essas frases, proferidas por um professor de direito que veio a se tornar juiz da Suprema Corte dos EUA, traduzem um sentimento compartilhado por muitos dos juristas de sua época, tanto na tradição do common law quanto no direito romano-germânico. O direito não é lógica; o sistema de conceitos não representa o direito real; o silogismo é um raciocínio abstrato que não retrata o modo de pensar dos juristas; as decisões não são valorativamente neutras; o juiz não é guiado apenas pela sua razão; o Poder Judiciário deve desempenhar um papel político; a vontade do legislador é um conceito vazio; os ordenamentos jurídicos não são fechados nem completos nem consistentes. Idéias como essas, que negam frontalmente os axiomas da teoria normativista, começaram a surgir na segunda metade do século XIX e adquiriram relevância crescente até a primeira guerra mundial.

c) Por uma verdadeira ciência do direito

Tal como a Jurisprudência dos Conceitos, o positivismo teleológico representou uma tentativa de abordar as questões jurídicas a partir de um discurso científico. Porém, já não mais se tratava de construir um direito à luz das ciências empíricas, mas de elaborar uma ciência jurídica inspirada pelos modelos de ciências sociais que se consolidavam no final do século XIX, especialmente a sociologia e a economia.

Como todo positivismo, essa corrente se opunha ao jusracionalismo, pois defendia que os estudos jurídicos não deveriam se perder nas cogitações metafísicas ligadas a um direito natural, mas concentrar-se em uma análise dos fenômenos jurídicos ocorrentes na sociedade. Nessa medida, os juristas não deveriam projetar um direito ideal, mas descrever o direito efetivamente existente.

Porém, diversamente do positivismo legalista que somente era capaz de enxergar o direito nos códigos, o positivismo sociológico buscou identificar o direito nas próprias relações sociais. E, diversamente da Jurisprudência dos Conceitos, que estabeleceu uma espécie de autocompreensão da tradição jurídica romano-germânica, o positivismo sociológico tinha os olhos voltados para a sociedade contemporânea e não para um Volksgeist cristalizado na cultura jurídica tradicional. Portanto, essa corrente não buscava elaborar o sistema conceitual implícito na tradição, mas buscava o que Ehrlich veio a chamar de direito vivo: o direito em sua expressão mais atual, capaz de refletir a consciência jurídica contemporânea de um povo.

Essa busca de contemporaneidade pode ser lida como uma radicalização do historicismo, que deixou de ter um caráter meramente conservador, para adotar um caráter prospectivo: o direito histórico não é o que foi construído, mas aquele que estava em um processo constante de produção. Assim, não se buscava simplesmente desvendar a origem histórica do direito positivo vigente, mas procurava-se compreender como o direito dentro de um processo histórico constantemente aberto para o futuro.

O historicismo que estava por trás desse movimento já não era mais conservador como o de Savigny, que opunha o historicismo ao iluminismo. Tratava-se, pelo contrário, de uma leitura da história como progresso, como evolução, como realização no mundo dos próprios ideais iluministas. Para usar uma construção muito reducionista, podemos ver aqui o afloramento de um hegelianismo de esquerda: ainda estamos dentro do idealismo moderno, em que a história é vista como a gradual realização da Razão no mundo. E essa razão tem um discurso que não é o da filosofia, mas o da ciência, que seria o saber capaz de organizar a sociedade de uma maneira justa e racional (ou melhor, justa porque racional).

Por se constituir como um discurso científico, o positivismo sociológico não buscavam determinar o ser do direito por meio de referências a um ideal transcendente. Nessa medida, eles se opunham ao jusnaturalismo, inclusive ao jusnaturalismo conservador que marcou os primeiros desenvolvimentos da escola histórica germânica.

Os positivistas sociológicos estão mais interessados em descrever a atividade judicial tal como ela efetivamente ocorre, em vez de estudar o conteúdo das normas segundo padrões puramente dogmáticos. Nessa medida, as várias linhas que compõem o positivismo sociológico não podem aceitar a utópica descrição da atividade jurisdicional oferecida pela hermenêutica tradicional e esforçam-se por criar modelos explicativos mais próximos da realidade — motivo pelo qual certas linhas sociológicas são chamadas de realismo jurídico.

Em suas várias vertentes, o positivismo sociológico buscou sempre acentuar o papel criativo inerente à atividade judicial, evidenciando que o juiz desempenha um papel político na sociedade. O norte-americano Roscoe Pound chegou a afirmar que o juiz é um engenheiro social, pois não lhe cabe apenas aplicar regras a casos concretos, sendo sua função a de projetar soluções jurídicas capazes de promover “a melhora da ordem econômica e social por meio de um esforço consciente e inteligente”[147].

Essa noção de que os juristas devem contribuir para que o direito alcance a sua finalidade social é uma das mais caras aos positivismo social, estando no centro das reflexões de teóricos do peso dos americanos Wendell Holmes, Roscoe Pound e Benjamin Cardozo, dos franceses François Gény e Léon Duguit ou dos alemães Rudolf von Jhering, Eugen Ehrlich e Joseph Kohler. No Brasil, as reflexões sociológicas encontraram eco em vários juristas do início do século XX, entre os quais merecem destaque Clóvis Bevilaqua e Pontes de Miranda[148] e, mesmo autores que vinculados a posturas mais tradicionalistas mostraram ter alguma influência das teses sociológicas, como Carlos Maximiliano[149].

Como reconhecia o belga Vander Eycken já no início do séc. XX, desenvolveu-se uma nova concepção de direito, que se articula em torno dos conceitos de finalidade, de interesse, de equilíbrio e de utilidade social[150]. Embora as linhas teóricas vinculadas a tais concepções tivessem em comum o fato de se contraporem ao conceito normativista de direito e à hermenêutica jurídica tradicional, devemos ressaltar que os juristas aqui citados defenderam teses muito diversas e por vezes conflitantes. Não houve a construção de uma única alternativa contra a teoria jurídica então dominante, mas uma série de tentativas no sentido de superar os limites das concepções tradicionais.

Apesar de mais de cem anos de acirrada crítica, a hermenêutica tradicional e o positivismo normativista ainda hoje têm forte influência sobre o senso comum. As várias críticas, porém, propiciaram uma mudança no senso comum teórico[151] dos juristas e no discurso jurídico padrão, sendo perceptível que a noção de vontade do legislador perdeu gradualmente seu status de conceito hermenêutico fundamental e que as teorias dominantes a partir da década de 30 normalmente tentam harmonizar o formalismo das teorias tradicionais e certos aspectos das teorias sociológicas. Dessa forma, o senso comum dos juristas deixou gradualmente de entender a interpretação como uma mera busca da intenção original do legislador e passou a vê-la, em grande medida, como um processo em que é relevante procurar de soluções adequadas às finalidades sociais do direito.

Tratava-se, então, de um positivismo que buscava identificar na sociedade os padrões de conduta corretos. Holmes, Jhering, Frank, Gény, Ehrlich, todos esses nomes estão ligados à superação de um pensamento jurídico legalista e formalista, mediante o fortalecimento de uma visão teleológica, que era incompatível com as tendências teóricas dominantes na Europa durante o século XIX, que eram as linhas positivistas da Escola da Exegese e da Jurisprudência dos Conceitos.

O legalismo da Escola da Exegese era fundado no pressuposto de que havia um sentido correto para as normas legisladas, que se deixaria esclarecer por uma análise gramatical da própria norma, temperada por uma avaliação das intenções originais do legislador. Já o formalismo da Jurisprudência dos Conceitos pressupunha ser possível identificar os conceitos inerentes ao próprio direito positivo, com base nos quais seria possível elaborar uma interpretação objetiva da norma. De um lado ou de outro, o significado da norma era entendido como predeterminado e fixo (fosse no sistema, na literalidade ou na intenção do legislador) de modo que tal sentido não poderia sofrer interferências dos valores subjetivos do intérprete nem dos valores sociais dominantes.

Para essas concepções, a alteração do conteúdo do direito somente poderia ser feita pelo próprio legislador, e não pelos intérpretes e aplicadores. Assim, por mais que as correntes do positivismo novecentista admitissem a historicidade do direito (na medida em que ele era visto como o produto histórico de um legislador dotado de autoridade), não se admitia a historicidade da atividade hermenêutica (que deveria reduzir-se à identificação do sentido correto e original da norma).

Porém, desde meados do século XIX, uma radicalização do historicismo levou muitos juristas a abandonarem a idéia de que havia um conteúdo fixo para as normas jurídicas. Um dos principais motivos desse processo é o fato de que as legislações elaboradas no início do século já não mais respondiam adequadamente às demandas sociais de uma sociedade profundamente alterada pela industrialização, pela urbanização e pelos tantos outros processos que moldaram o mundo contemporâneo.

Nesse contexto, muitas das soluções fundadas na literalidade das leis ou dos conceitos extraídos do sistema deixaram gradualmente de ser percebidas como razoáveis, pois elas se distanciavam dos valores de grande parte da sociedade. Esse distanciamento gerou uma espécie de déficit de legitimidade do direito, pois as respostas jurídicas eram entendidas como injustas[152], o que exigiu a construção de uma série de mecanismos de flexibilização dos sentidos literais e de atualização dos significados cristalizados na doutrina e na jurisprudência.

O principal argumento utilizado para possibilitar uma tal flexibilização dos sentidos dominantes foi o teleológico. Enquanto valia o princípio de que fiat justicia et pereat mundum (faça-se a justiça, ainda que pereça o mundo), a atividade jurídica era vista como a identificação do conteúdo imanente da norma e o argumento teleológico era rejeitado, pois ele implica uma interpretação da norma de acordo com valores que a extrapolam. Afirmar que o direito tem uma função social e que as suas normas devem ser interpretadas à luz dessa função significa atrelar o sentido das normas aos valores sociais dominantes, o que torna os juristas uma espécie de engenheiros sociais (social engineers) voltados à realização prática dos ideais políticos de uma sociedade.

Assim, por meio da idéia de função social, muitos juristas passaram a entender que a sua atividade não era a de garantir a adequação da sociedade à norma positiva, mas também a de garantir a adequação dos sentidos normativos às finalidades sociais, o que libertava a atividade jurídica da literalidade da lei quanto, da vinculação a uma pretensa intenção originária do legislador e também da inércia dos conceitos jurídicos tradicionais.

Essas perspectivas tiveram o mérito de contestar a redução positivista do direito à lei, de revalorizar o conceito de justiça e de tentar infundir no direito os valores dominantes na sociedade, tentando fazer do sistema jurídico um instrumento de justiça social. Assim, as teorias sociológicas não se limitavam a afirmar a validade das regras formalmente vigentes, mas buscavam identificar as normas cujo conteúdo era adequado aos padrões sociais de justiça e legitimidade. Nessa medida, elas ofereciam um conceito material de direito, ligado a uma legitimidade dada por parâmetros de justiça social, em vez de se reduzirem a um conceito formal de direito. Portanto, elas caracterizaram um ganho de legitimidade, pois a flexibilidade que elas trouxeram ao sistema jurídico possibilitava uma gradual adequação do sentidos normativos às aspirações sociais, independentemente de uma alteração legislativa.

d) Interpretação teleológica

Enquanto nas teorias tradicionais a interpretação era compreendida como um mecanismo de elucidação do conteúdo posto na lei pela vontade do legislador ou do sentido sistemático da norma, as teorias de viés sociológico acentuaram o fato de que as palavras da lei admitem interpretações diversas e que, portanto interpretar é escolher, dentre as muitas significações que a palavra oferecer, a justa e conveniente[153]. Assim, é ressaltada a função criativa do intérprete e seu relevante papel na adaptação do direito a uma realidade social em constante mudança.

Com isso, a interpretação deixa de ser entendida como a reconstrução um significado cristalizado no tempo (a partir da vontade do legislador, do sentido histórico originário ou de imperativos de sistematicidade) e passa a ser compreendida como uma espécie de atualização, de concretização no presente das finalidades sociais implícitas na norma. Como afirmou Saleilles, um dos principais representantes dessa mudança de mentalidade na França, era preciso que o direito se curvasse a esse mundo novo, que desse satisfação a essa nova justiça, o que exigia uma adaptação às transformações econômicas e sociais que se produziam[154].

Assim, da busca do sentido original da norma pensado pelo legislador (ou do significado correto da regra no sistema), passou-se à busca de fazer com que a norma respondesse às necessidades sociais. Trata-se, em grande medida, de uma reação contra a obrigatoriedade de leis injustas, operada mediante a reintrodução de critérios extra-legais para avaliar a correção de uma decisão jurídica ou de uma opção legislativa. Essa extrapolação da lei, contudo, não gerou um retorno ao jusnaturalismo clássico, especialmente ao jusracionalismo típico dos séculos XVII e XVIII, pois verifica-se a busca de critérios extra-legais porém não-metafísicos: em vez de tentar descobrir os princípios de justiça universais inerentes à razão ou à natureza humana, os juristas voltaram-se à identificação os interesses existentes na sociedade contemporânea, mediante uma análise científica dessa sociedade.

Da busca de Savigny por um sentido historicamente dado, mas congelado no tempo da criação da lei, passou-se à busca de um sentido adequado ao momento da aplicação da lei, ganhando cada vez mais espaço a idéia de que a lei não serve para impor um comando, mas para realizar uma finalidade: passava-se de um pensamento meramente deontológico para uma hermenêutica teleológica. Nessa época, mesmo juristas que defendiam expressamente a tradicional posição de que interpretar é descobrir a vontade do legislador, como Henri Capitant, passaram a entender que o intérprete deveria aplicar a lei levando em consideração as condições atuais da realidade jurídica, pois o legislador cria a lei para o futuro e, portanto, é de sua vontade que as fórmulas da lei sejam adaptadas às mudanças nas situações de fato que elas regem[155].

Essa mudança de perspectiva fez com que os juristas tivessem que abandonar o mero estudo das leis e que tivessem a necessidade de ampliar os seus conhecimentos da própria realidade sócio-econômica[156]. Entram em jogo, então, conceitos como paz social, harmonia social, interesse público, felicidade geral, valores socialmente aceitos e vários outros que buscam servir como ponte entre a previsão abstrata da norma e uma decisão concreta materialmente adequada. Tornou-se, então, preciso conhecer as necessidades sociais para que fosse possível adaptar a elas as soluções jurídicas. Nasce, assim, a base para a construção de uma virada sociológica na ciência do direito.

2. Correntes de matriz sociológico

a) Precursores de uma jurisprudência teleológica: Bentham e Jhering

Fiat justicia, pereat mundus: faça-se a justiça, ainda que o mundo pereça. Esse brocardo latino sempre foi utilizado como uma forma de afirmar a primazia do pensamento deontológico sobre o teleológico ou o valorativo. Se as regras jurídicas existem para garantir certos direitos e não para realizar determinados valores ou finalidades, então uma interpretação literal não poderá ser suplantada pelo argumento de que as conseqüências dessa aplicação seriam valorativamente inaceitáveis ou incompatíveis com as finalidades das normas específicas ou do direito como um todo.

Essa idéia era plenamente compatível com as teorias tradicionais, que afirmavam que a função do juiz era conhecer o direito e aplicá-lo silogisticamente, sem levar em consideração a justiça da decisão ou a aceitabilidade social de suas conseqüências. Porém, à medida em que as soluções que a teoria tradicional oferecia aos casos concretos passaram a ser reiteradamente percebidas como inadequadas, foi sendo também a postura de que os juízes não deveriam levar em conta as conseqüências sociais de suas decisões.

Em 1904, por ocasião das comemorações do centenário do Código de Napoleão, afirmou o presidente da Corte de Cassação da França que “o juiz não deve limitar-se a pesquisar obstinadamente qual foi, há cem anos, o pensamento dos autores do código ao redigir tal ou qual artigo. [...] A justiça e a razão exigem que adaptemos liberal e humanamente esse texto às realidades e às exigências da vida moderna”[157]. Tal pronunciamento expressa o nível de desencantamento dos juristas no início do século XX com a teoria hermenêutica tradicional e a adoção de um novo critério interpretativo, que tornou-se central em várias das teorias da época: o elemento teleológico. Frente ao platonismo que levou a hermenêutica tradicional a buscar o sentido correto imanente às palavras da lei, ergueu-se a antiga idéia aristotélica: a de que toda ação humana é voltada a alguma finalidade.

Precursor da reabilitação da idéia de finalidade foi o inglês Jeremy Bentham, cuja filosofia utilitarista propunha uma teoria ética de cunho teleológico[158]. Contrapondo-se à deontologia que caracterizou a filosofia iluminista no continente, Bentham defendeu que as ações humanas não deveriam ser consideradas éticas na medida em que cumpriam devidamente as normas morais, mas na medida em que realizavam adequadamente a finalidade básica da ética: alcançar a máxima felicidade social. Com isso, Bentham proporcionou as bases para uma mudança radical de posicionamento: em vez de julgar moralmente as condutas por meio da avaliação vontade do agente e do respeito às regras morais, abriu-se espaço para avaliar as ações humanas de acordo com as finalidades socialmente desejáveis. Substitui-se a norma pelo fim, a deontologia pela teleologia.

Operando essa revitalização da idéia de finalidade no campo do direito, o alemão Rudolf von Jhering, com sua obra O fim no direito, de 1877, que buscou demonstrar que o fim é o criador de todo o direito, não existindo regra jurídica que não se origine de uma finalidade, de um motivo ligado a seus interesses[159]. Desenvolvendo essa noção no plano específico da hermenêutica, o belga Paul Vander Eycken escreveu em 1907, “o enfoque positivista que nós adotamos atribui uma importância primordial à finalidade social”, que passa a ser considerada o principal critério de interpretação, pois permite “introduzir os valores sociais no raciocínio e animar pelos interesses da vida as fórmulas abstratas do direito”[160].

O esgotamento da legislação atingiu com especial força os dogmas da Escola da Exegese, pois sua limitação no estudo do Código Civil Francês de 1804 e sua negação do caráter histórico do direito lhe fizeram especialmente incapaz de adaptar-se às mudanças sociais em curso. Porém, a Jurisprudência dos Conceitos, apesar de ter sido originalmente inspirada sobre uma concepção de viés historicista, também não soube adaptar-se, pois ao reduzir a atividade do jurista a uma descrição objetiva do direito, retirou-lhe qualquer capacidade de alterar o próprio direito, que deveria ser apenas explicado, mas nunca modificado pelo jurista.

Partindo do pressuposto de que o direito seria o mais justo possível por ser fruto do espírito do povo, o historicismo de Savigny abriu espaço para uma teoria jurídica meramente descritiva, na qual o jurista deveria abster-se de fazer qualquer consideração valorativa acerca do seu objeto de estudo, limitando-se a descrevê-lo da maneira mais objetiva possível. Aliando-se a essa postura científica (no sentido de puramente descritiva, nos moldes das ciências exatas e da matemática) ao dogma da sistematicidade do direito (entendido sistema no sentido lógico-abstrato do termo), o historicismo alemão criou um ambiente propício para o desenvolvimento uma teoria jurídica formalista, fundada na busca dos conceitos fundamentais cuja articulação formaria uma descrição perfeita do sistema jurídico. Na base dessa corrente, podemos identificar a crença de que a aplicação da razão ao direito levaria a uma descrição adequada do sistema jurídico.

É interessante notar que o primeiro grande jurista alemão a investir contra a Jurisprudência dos Conceitos foi justamente um dos que mais contribuíram para a estruturação dessa corrente: Jhering, em sua obra da maturidade, dedicou-se com afinco a substituir a visão lógico-abstrata da Jurisprudência dos Conceitos por uma perspectiva teleológica, fundada em uma explicação finalística do direito.

A Jurisprudência dos Conceitos assentava-se no pressuposto de que conseqüências lógicas dos conceitos extraídos das normas eram obrigatórias, pois a atividade jurídica deveria observar as regras da lógica formal. Contrapondo-se a essa tendência, Jhering sustentava uma forma de compreensão do direito que privilegiava as necessidades sociais e não a coerência lógica, chegando a afirmar que “a vida não é o conceito; os conceitos é que existem por causa da vida. Não é o que a lógica postula que tem de acontecer; o que a vida, o comércio, o sentimento jurídico postulam é que tem de acontecer, seja logicamente necessário ou logicamente impossível.”[161]

Além disso, os juristas, no final do século XIX, tornaram-se cada vez mais conscientes das limitações do método hermenêutico tradicional, especialmente do fato de que a atividade interpretativa não poderia ser reduzida a uma série de regras que, se devidamente seguidas, conduziriam o intérprete identificar o sentido correto da norma. Que a hermenêutica envolve uma série de indicações que devem ser seguidas em maior ou menor grau, isso fazia parte do senso comum dos juristas, mas essa idéia era normalmente temperada por noções como as de que esses princípios eram regras genéricas, incompletas e incapazes de refletir toda a complexidade do processo interpretativo[162]. Portanto, quando as conseqüências lógicas de uma norma ou de um conceito apontavam para uma resposta socialmente inaceitável, passou-se a entender era preciso sacrificar a lógica para garantir o objetivo fundamental do direito, que era alcançar as finalidades socialmente relevantes.

Com isso, a frase fiat justitia, pereat mundus passou a ser rejeitada e ganhou novo espaço outro célebre dito latino, o summum jus, summa injuria (supremo direito, suprema injustiça), que apontava para o fato de que os juristas não deveriam aplicar o direito apesar do mundo, mas com olhos postos nas conseqüências sociais dos seus atos. Além disso, foi também gradualmente abandonada a crença de que in claris cessat interpretatio, dado que, como todas as normas jurídicas deveriam ser entendidas em função da sua finalidade social, mesmo os textos claros comportariam interpretação. Indo além, Carlos Maximiliano chegou mesmo a afirmar que “é sobretudo com as regras positivas bem feitas que o intérprete desempenha o seu grande papel renovador consciente, adaptador das fórmulas vetustas às contingências da hora presente”[163].

Assim, no final do século XIX, inspiradas especialmente pelas concepções teleológicas de Bentham e Jhering, várias correntes de inspiração sociológica conquistaram um espaço crescente no panorama jurídico. Observando essa mudança de perspectiva, Carlos Maximiliano constatou, ainda na década de 1920, que havia ganhado espaço uma interpretação sociológica “que atende cada vez mais às conseqüências prováveis de um modo de entender e aplicar determinado texto; quanto possível busca uma conclusão benéfica e compatível com o bem geral e as idéias modernas de proteção aos fracos, de solidariedade humana” [164].

Transição da vontade individual protegida para o interesse socialmente protegido. Windscheid para Jhering.

[Analisar o modo como a Jurisprudência dos Conceitos dificultava a própria mudança legislativa, já que interpretava as leis novas conforme os conceitos construídos com base nas leis antigas.

b) A jurisprudência sentimental do bom juiz Magnaud

Durante quinze anos (1889-1904), o tribunal de primeira instância de Château-Thierry, sob a presidência do juiz Magnaud, tomou uma série de decisões discordantes das tradições do direito francês e, especialmente, contrárias à jurisprudência dos tribunais superiores. Apesar de ter seu nome constantemente citado nas obras sobre hermenêutica jurídica, Magnaud não era um teórico do direito, não escreveu livros nem ofereceu uma teoria jurídica que tivesse a pretensão de substituir as concepções tradicionais, sendo que a sua importância não está nas idéias que ele propôs, mas nas decisões que ele tomou e nas discussões estimuladas por sua postura iconoclasta.

O objetivo declarado de Magnaud era o de favorecer os miseráveis e ser rigoroso com os privilegiados, fato que foi muitas vezes visto com simpatia pela opinião pública francesa e internacional, especialmente em virtude de certa afinidade com os princípios políticos que orientavam a jurisprudência Magnaud[165]. Embora seja verdade que, em grande medida, as decisões atribuídas a Magnaud não são muito diferentes da jurisprudência francesa que se construía à época, mas não há dúvidas de que, em alguns casos particularmente delicados, o tribunal de Château-Thierry optou por soluções mais audaciosas que o normalmente admissível.

Isso ocorreu, por exemplo, no campo da responsabilidade civil, em que, antecipando mudanças legislativas e jurisprudenciais, estabeleceu-se a responsabilidade objetiva[166] do patrão frente ao empregado, em caso de acidente de trabalho, bem como das companhias de transporte frente a usuários que fossem vítimas de acidentes[167]. Também houve decisões em que se afirmou a invalidade de uma penhora aparentemente regular para evitar a aplicação de sanções ao depositário infiel[168] e nas quais se reconheceu que a boa-fé de certas pessoas afastava a possibilidade de elas serem punidas pela prática de certos atos definidos pela lei como infrações penais[169]. Segundo Gény, que era um severo crítico da postura de Magnaud, apesar da engenhosidade soluções acima citadas, elas não excediam a audácia típica do judiciário francês de então a ponto de constituírem uma nova forma de interpretação judicial.

Houve, contudo, algumas decisões que certamente marcaram um grande distanciamento do direito positivo e da jurisprudência francesa da época, com as que absolveram uma ladra de pão com base na existência de uma fome irresistível e um vadio[170] tido por absolutamente irresponsável pela sua miséria. Entre as decisões particularmente inovadoras, essas duas decisões são as únicas que foram aprovadas pela maioria dos juristas, tanto que a segunda deu ocasião a uma circular ministerial recomendando aos magistrados que passassem a aplicar esse princípio em suas sentença. Segundo Gény, as demais decisões que fugiam completamente aos padrões da época foram quase unanimemente criticadas, entre elas as que reconheceram, expressa e abertamente, a possibilidade de divórcio por decisão consensual[171], a que absolveu um esposo que comprovadamente havia cometido crime de adultério e a que suspendeu uma liquidação judicial para permitir a realização de uma liquidação amigável[172].

Todavia, mais que as decisões em si, causava estranhamento o modo pelo qual Magnaud justificava suas decisões, o qual contrariava frontalmente o discurso jurídico tradicional. Segundo Gény, em vez de buscar o direito na lei, intepretando-a gramaticalmente ou perguntando-se sobre a vontade do legislador, sempre com base em critérios objetivos, era a apreciação subjetiva que guiava Magnaud, que tomava a decisão com base em seus próprios valores e, se fazia referências à lei, era apenas para reforçar os seus pontos de vista pessoais[173]. No mesmo sentido, Carlos Maximiliano afirmava que Magnaud “não jogava com a hermenêutica, em que nem falava sequer. Tomava atitudes de tribuno; usava de linguagem de orador ou panfletário; empregava apenas argumentos humanos sociais, e concluía do alto, dando razão a este ou àquele sem se preocupar com os textos”[174]. Parece, então, que se Magnaud houvesse tomado as mesmas decisões, mas manipulando o discurso tradicional por meio de ficções e procedimentos hermenêuticos sofisticados, ele não teria causado tanto espanto.

No entanto, os sentimentos pessoais de Magnaud (especialmente “uma simpatia, um pouco cega, pelos miseráveis e pelos fracos, acentuada pelo contraste de um rigor excessivo com os privilegiados da fortuna, da tradição ou da sorte”[175]) fizeram com que ele fizesse uma série de pronunciamentos que não se podiam conciliar com o papel tradicionalmente atribuído aos juízes. Por exemplo, disse ele que “a probidade e a delicadeza são duas virtudes infinitamente mais fácies de praticar quando nada nos falta do que quando nada temos”[176] e que, para apreciar adequadamente o caso do vadio, em vez de buscar um ponto de vista neutro, “o juiz deveria, por um instante, esquecer o bem-estar que ele geralmente goza, a fim de se identificar, tanto quanto possível, com a situação lamentável de ser abandonado por todos, que, em farrapos, sem dinheiro, exposto a todas as intempéries, anda pelas ruas e raramente deixa de ser visto com desconfiança por todos aqueles a quem ele se dirige para obter trabalho”[177].

Ao submeter o direito a uma aplicação fundada em critérios de eqüidade e nos valores sociais que o juiz considerava mais adequados, Magnaud tomou uma série de decisões que podem parecer muito justas para uns e absurdas para outros, especialmente quando ele interfere na organização tradicional da família e dos negócios. Porém, não se tratava de um simples rompimento com o discurso jurídico hegemônico, mas de um rompimento com as exigências iluministas no sentido de um discurso jurídico racional.

A ausência de apego a um discurso técnico ou científico (ou pretensamente técnico e científico) e o uso de fundamentações manifestamente baseadas em valores sociais fez com que se qualificasse essas decisões como uma jurisprudência sentimental e valeram ao seu principal responsável a alcunha de “o bom juiz Magnaud”. Assim, o discurso irracionalista de Magnaud se contrapunha tanto ao tecnicismo da Escola da Exegese quanto aos discursos cientificistas do positivismo.

Para ambas as perspectivas, era inadmissível a completa ausência de método na atividade de Magnaud, que tornava imprevisível a prestação jurisdicional. Assim, mesmo quando as suas decisões fossem valorativamente corretas, as fundamentações apresentadas eram inaceitáveis, pois elas eram fundadas em um discurso de autoridade e de prudência incompatível com os imperativos iluministas de impessoalidade. Portanto, mesmo os reformadores do pensamento jurídico tendiam a perceber que o exemplo de Magnaud não apontava para nenhuma das vertentes do projeto iluminista de modernização da sociedade.

François Gény, por exemplo, que era contemporâneo de Magnaud e estava longe de ser o mais conservador dos juristas franceses, afirmava que, se “banalidades desse gênero” talvez pudessem influenciar certas decisões, elas não conferiam nenhuma ordem à sociedade, pois eram resultado da ação arbitrária de um juiz que tomou para si o papel de corrigir a sociedade, opondo ao direito puro uma espécie de direito ideal que, por ser superior à lei, autorizaria o Judiciário a desconhecer o direito positivo em casos tais como o da absolvição de um adultério constatado, da admissão ostensiva do divórcio consensual ou rejeição de uma declaração de falência regular, casos em que a argumentação fundada na eqüidade parecerá “a todo espírito ponderado, desprovida de todo apoio objetivo e de toda necessidade prática, sendo manifestamente impotentes para contrabalançar a força do direito positivo formalmente consagrado”[178].

Assim, por mais que o fenômeno Magnaud reflita a existência de um descompasso entre o direito vigente e as aspirações sociais, o estilo de resposta que ele oferecia não encontrou eco entre os juristas mais progressistas do seu tempo, pois a própria noção de progresso era ligada ao iluminismo, que o apresentava como um processo de racionalização da sociedade. Justamente por isso, as tentativas tidas como progressistas não propunham uma revolta irracionalista contra as leis, mas uma cientificização do discurso, que possibilitasse decisões objetivas e impessoais para além de uma aplicação literal do direito legislado. Tratava-se, pois, de superar o discurso tradicional por meio da elaboração de novos métodos, e não de negar a importância da teoria e da metodologia para a aplicação correta do direito.

c) A escola da livre investigação científica de François Gény

Na França, um dos primeiros juristas de peso a voltar-se contra a teoria tradicional foi François Gény, com sua clássica obra Método de interpretação e fontes em direito positivo privado, cuja primeira edição é de 1899. As críticas que Gény opõe à dogmática jurídica de seu tempo são, em grande medida, aplicáveis à dogmática jurídica atual: permanecem no senso comum dos juristas tanto o fetichismo da lei escrita quanto a tendência a limitar as decisões judiciais a argumentos formais e abstratos voltados a uma aplicação silogística da legislação.

Entretanto, apesar de ter uma marcada influência sociológica, Gény permanece ainda ligado a alguns dos pressupostos fundamentais da teoria tradicional, especialmente à idéia de que a lei é expressão da vontade do legislador. Por um lado, como afirmam os Mazeaud, tanto o método exegético como o proposto por Gény compartilham da clássica noção de que in claris cessat interpretatio, ou seja, que um texto claro não deve ser interpretado, mas apenas aplicado de forma literal, pois o intérprete é vinculado pela lei[179]. Além disso, afirma que “a lei não é outra coisa senão uma vontade, emanada de um homem ou de um grupo de homens”[180] e que “nada admito como conteúdo legítimo da lei, a ser evidenciado pela interpretação, senão aquilo que seus autores desejaram e souberam exprimir em sua imposição”[181]. Dessa maneira, toda vez que a vontade do legislador fosse identificável, ela deveria ser respeitada.

Entretanto, Gény contrapunha-se à teoria tradicional ao afirmar que, nos casos em que a vontade do legislador fosse duvidosa ou ambígua, não se deveria insistir na ficção de que essa vontade seria certa e precisa. Em casos como esses, a busca da vontade do legislador não passaria de uma ficção hipócrita que encobria juízos meramente subjetivos. Segundo o autor francês, a pretexto de interpretar uma norma à luz da intenção de seus autores, muitos juízes atribuíam ao legislador a vontade que melhor convinha a seus interesses e valores pessoais,

de tal sorte que, sob o pretexto de melhor respeitar a lei, pervertia-se a sua essência. E é assim que, nos jurisconsultos que professam a mais escrupulosa veneração pelo texto legal, encontramos certas vezes idéias absolutamente pessoais, audaciosamente atribuídas ao legislador. Creio que essa desnaturação da lei não passaria de um mal menor, caso ela fosse assumida e abertamente praticada. Porém, o seu principal perigo é a hipocrisia que a cobre.[182]

Perguntou-se, então, Gény, se “não seria apenas mais sincero, mas também melhor adaptado à finalidade superior da elaboração do direito positivo, reconhecer às concepções subjetivas o sei verdadeiro caráter, e de lhe conceder, no domínio da interpretação, o campo de aplicação que lhe é devido?”[183] Essa postura mostra que devemos entender a teoria de Gény como uma tentativa de romper a hipocrisia da teoria hermenêutica tradicional, o que implicava a admissão do caráter subjetivo inerente a toda decisão judicial fundada em normas de conteúdo obscuro e incerto.

Entretanto, é preciso deixar claro que apesar de considerar que as decisões judiciais não eram fruto de um aplicação objetiva e silogística de regras a fatos, ele também negava que a atividade judicial devesse recair em um subjetivismo exagerado e que o juiz poderia aplicar livremente os seus ideais de justiça, o que resta evidente na manutenção do pressuposto tradicional de que a identificação da vontade do legislador “é o objetivo essencial de toda interpretação propriamente dita”[184]

Nessa medida, os esforços de Gény caracterizam a busca aristotélica de um meio termo entre flexibilidade e segurança. A segurança é garantida à maneira tradicional, pela subordinação do juiz à lei e pela vinculação da hermenêutica à intenção legislativa. Já a flexibilidade é conquistada mediante uma ampliação da teoria tradicional das fontes, com uma valorização dos costumes, da jurisprudência e da doutrina. É nessa flexibilização da teoria das fontes que Gény abre espaço para que os juízes escapem do fetichismo da lei e busquem em elementos extra-legais, mas nem por isso menos jurídicos, fundamentos para adaptar o significado das normas às necessidades sociais. Com isso, busca ele estabelecer uma nova liberdade para o jurista, mas uma liberdade limitada aos critérios objetivos estabelecidos pela ciência do direito.

Portanto, não deve causar estranheza o fato de Gény tecer críticas severas ao bom juiz Magnaud, afirmando que esses exemplo de uma jurisprudência subjetiva foi suficiente para mostrar “os perigos de sistemas que abandonem, por menos que sejam, a direção rígida da lei sustentada por uma lógica estrita”[185]. Com isso, ele busca superar a crença tradicional de que a lei encerra todas as respostas, mas sem questionar a submissão do juiz à lei nem abrir espaço para qualquer tipo de subjetivismo judicial.

Tal recusa do subjetivismo está presente, inclusive, no tratamento que Gény propõe para as lacunas no direito. Sustenta ele que a lei deve ser observada, porém argumenta que há situações em que todas as fontes formais do direito positivo são insuficientes para oferecer uma solução adequada, devido à ocorrência lacunas ou obscuridades incontornáveis. Em casos desse tipo, toda tentativa de interpretação será inútil, pois não há uma solução a ser extraída das normas jurídicas. Nessa hipótese, e apenas nelas, o intérprete poderá exercer uma atividade criativa e não meramente aplicativa. Porém, mesmo nesses casos, é preciso que o jurista escape, tanto quanto possível, de toda influência subjetiva e que baseie sua decisão em elementos de natureza objetiva.

Por conta disso, Gény não denomina essa atividade criadora com o clássico título de eqüidade, mas chama-a de livre investigação científica: uma investigação livre por não ser submetida à vontade de uma autoridade positivada em uma fonte formal e “ao mesmo tempo científica, porque ela não pode encontrar bases sólidas senão nos elementos objetivos que somente a ciência lhe pode revelar”[186]. Assim, o que Gény defende não é a livre criação do direito pelo juiz, pois a livre investigação científica que ele que propõe de forma alguma pode ser vista como uma manifestação subjetiva dos valores do juiz. Para Gény, que tem uma postura marcadamente cientificista, é possível identificar o direito para além das leis escritas, mas sempre dentro dos quadros de uma teoria das fontes construída pela ciência do direito.

As idéias de Gény tiveram grande repercussão desde o início do século XX e podemos identificar em juristas contemporâneos a sua influência. O brasileiro Limongi França[187], por exemplo, defende nos dias de hoje teoria praticamente idêntica à de Gény: o ponto de partida da interpretação será a exegese pura e simples da lei, no caso de dúvida deve-se buscar a intenção do legislador e apenas quando esta não puder ser identificada o jurista poderá apelar para a eqüidade, e mesmo nesses casos, “a construção da regra de eqüidade não deve ser sentimental ou arbitrária, mas o fruto de uma elaboração científica, em harmonia com o espírito que rege o sistema e especialmente com os princípios que informam o instituto objeto da decisão”[188].

A concepção de Gény, ao mesmo tempo que rechaça resolutamente a idéia de que o Código Civil constitui todo o direito positivo, proclama seu respeito à lei escrita, pois apenas em caso de lacuna o intérprete pode recorrer à livre investigação científica[189] e esta livre investigação não passa de uma aplicação racional dos métodos científicos. Com isso, o método apregoado por Gény, na medida em que se aproxima bastante das teorias tradicionais, é mais importante pelos efeitos que produziu ao criticar as bases da Escola da Exegese, que por seu próprio conteúdo[190]. Assim, independentemente de suas posições, e talvez mesmo contra suas própria vontade, Gény abriu a caixa de Pandora, liberando forças maiores que ele poderia controlar e sua obra terminou por marcar o sepultamento da Escola da Exegese na França.

d) O movimento do direito livre de Ehrlich e Kantorowicz

Antes de mais nada, é preciso reconhecer que existe uma grande dificuldade em caracterizar o movimento do direito livre e identificar seus membros, sendo muito comuns as contradições entre os autores que tratam do tema. De toda forma, é necessário não confundir a escola francesa da livre investigação científica e o movimento do direito livre, que tem matriz germânica e defende uma visão sociológica bem afastada do legalismo moderado e eclético de Gény.

No campo da teoria do direito livre, parece que toda generalização leva a equívocos, pois as idéias das pessoas vinculadas a esse movimento não se deixam reduzir a uma matriz comum, exceto em algumas idéias tão genéricas que não permitem a distinção entre essa corrente e outras de linha sociológica, tais como a jurisprudência dos interesses e a jurisprudência sociológica norte-americana. Essa noção comum é o reconhecimento de que é uma ilusão pensar que as decisões judiciais são fundadas em uma aplicação lógica do direito aos casos concretos, pois “toda aplicação genérica a um caso específico é necessariamente uma atividade pessoal, pelo qual será uma empresa inútil querer-se anular por completo a individualidade do juiz”[191]. Essa idéia foi defendida ainda em 1885 por Oskar Bülow, que chegou a afirmar que sob o “véu ilusório da mesma palavra da lei oculta-se uma pluralidade de significações, cabendo ao juiz a escolha da determinação que lhe pareça ser em média a mais justa[192].

Büllow, porém, não deixou claro se nesta busca pela solução mais justa o juiz deveria optar por um padrão objetivo de justiça ou por uma aplicação de critérios subjetivos. Com isso, suas afirmações foram entendidas tanto em um sentido como no outro, sendo que essa ambigüidade serve com uma boa chave para a compreensão do movimento do direito livre, pois essa corrente abarca teóricos que buscaram privilegiar a justiça em relação à lógica, fosse com base em critérios mais objetivos, fosse com base em critérios mais subjetivos.

A busca de critérios mais objetivos de justiça foi desenvolvida especialmente pelo sociólogo Eugen Ehrlich, que criou a denominação teoria do direito livre (ou direito vivo) em 1903[193]. Ressaltando a função política dos juízes e a impossibilidade de reduzir sua atuação a um exercício meramente intelectivo, a Ehrlich sustentava que era necessário afastar-se da aplicação literal da lei sempre que esta se mostrasse injusta. Porém, não eram eles defensores de uma decisão puramente subjetiva, pois o juiz não deveria atentar para seus valores individuais, mas “devia antes dar satisfação a necessidades ou interesses relevantes da sociedade”[194], considerando “os fatos sociais que deram origem e condicionam o litígio, a ordem interna das associações humanas, assim como os valores que orientam a moral e os costumes”[195]. Portanto, o juiz não deveria criar subjetivamente o direito, mas encontrá-lo na sociedade, pois ter a liberdade de buscar o direito vivo não significa ter a liberdade de seguir livremente seus instintos de justiça.

A corrente do direito livre contrapunha-se ao formalismo da metodologia hermenêutica tradicional (que acreditava na possibilidade de uma aplicação lógica do direito), pois, em vez de exigir decisões formalmente adequadas (ou seja, extraídas do sistema de normas e conceitos), passou a exigir decisões materialmente adequadas (ou seja, adequadas aos padrões de justiça dominantes na sociedade). Sustentando que era impossível reduzir a atividade do juiz a uma aplicação silogística de normas a fatos, conclamava os juízes a adaptarem suas decisões às necessidades sociais.

Porém, a rejeição da metodologia silogística tradicional não era movida pela negação da necessidade de um método, mas pela crença de que era preciso construir novos métodos, que possibilitassem a tomada de decisões materialmente adequadas. Tratava-se, pois, da busca de uma renovação metodológica, que substituísse o positivismo conceitualista e pandectístico por um positivismo sociológico, trocando um padrão científico por outro, mas sem abandonar a idéia de que a atividade judicial deve ser mais aplicativa que criativa.

A expressão direito livre, porém, foi retomada por juristas que defendiam posições mais radicais, especialmente por Herman Kantorowicz, que afirmavam “a existência de um direito livre anterior, vivo e espontâneo, contraposto ao direito ditado pelo Estado”[196], criado pela decisão jurídica dos cidadãos, pela atividade dos tribunais e pela ciência do direito[197]. Portanto, não apenas a sociedade, mas também os tribunais e os juristas eram vistos como agentes criadores do direito, o que implicava a admissão de que o juiz poderia decidir sem estar balizado por critérios normativos ou científico previamente fixados.

Convém observar que, definido com tal grau de radicalidade, o título movimento do direito livre não poderia englobar o próprio inventor da expressão direito livre, dado as idéias de Ehrlich apontarem antes para um positivismo sociológico que para o voluntarismo judiciário defendido por Kantorowicz. Tudo isso torna a expressão direito livre bastante vaga e muito sujeita a servir como rótulo genérico para englobar todos os juristas que apontavam para uma renovação nos métodos tradicionais[198]. Por isso, é sempre necessário interpretar com cuidado o sentido em que cada autor utiliza essa expressão.

Em sua ala mais radical, o movimento do direito livre rompe até mesmo com o positivismo sociológico, pois em vez de ter uma inspiração cientificista (como era a de Ehrlich), opunha-se ao racionalismo científico e acentuava o papel da vontade, do sentimento e da intuição. Nessa medida, aproximava-se mais de teorias bastante céticas com relação à racionalidade científica, tais como as dos filósofos Friedrich Nietzsche e Arthur Schopenhauer. Essa vertente mais radical do movimento do direito livre era cética não apenas em relação à metodologia tradicional, mas à própria idéia de que era possível chegar a decisões justas a partir da aplicação de uma metodologia predefinida.

A crença de que era impossível construir uma metodologia que garantisse a justiça da decisão fez com que se defendesse para o juiz o direito de buscar livremente a decisão eqüitativa. Porém, convém ressaltar que, por maior que fosse o ceticismo em relação à metodologia tradicional, os defensores do direito livre não colocaram em xeque a idéia de que existia uma solução correta, que poderia ser alcançada fosse por um método alternativo (especialmente pela análise científica do direito vivo), fosse pela aplicação de critérios de eqüidade que não se deixam reduzir a um método.

Portanto, essa corrente buscou liberar os juristas das amarras estritas da lei e do método, mas apenas porque acreditavam que essa liberdade era um pressuposto para que fosse possível aos juízes buscar a solução correta para os conflitos sociais. Nessa medida, percebe-se que mesmo os defensores mais radicais do direito livre não defenderam um abandono da busca da decisão correta, mas simplesmente ofereceram novos critérios de correção

Esses novos critérios, porém, não possibilitam a construção de um método dogmático que orientasse a busca da solução correta, pois a adequação valorativa não seria fruto da aplicação de uma metodologia, mas de uma capacidade do juiz de identificar a solução correta. Portanto, essa teoria somente pode gerar bons resultados na medida em que o juiz seja capaz de perceber, de forma intuitiva e direta, qual seria a solução correta do caso, o que conduziria a um grande nível de subjetivismo nas decisões judiciais. Nessa medida, como bem aponta Warat, a mesma mitificação que a Escola da Exegese fazia do legislador (colocando os seus atos acima da possibilidade de questionamento por crer que eles representavam a vontade geral) era feita pela escola do direito livre, mas em relação ao juiz, pois confia a ele a missão de eliminar os ingredientes ultrapassados da lei, como se ele fosse um ser capaz de perceber a realidade de maneira correta (pois, caso contrário, como poderia ele corrigir as leis?).[199]

Nessa medida, a escola do direito livre parece ocultar (ou ao menos não atentar adequadamente para) o fato de que o juiz, longe de ser um sujeito individual e autônomo, é membro de setores sociais específicos e representa ideologias determinadas. Assim, ao defender que o juiz pode buscar livremente o direito, podem justificar que ele “livremente” julgue um caso de acordo com os interesses sociais de que partilha e os valores ideológicos que ele representa e cujo conjunto ele chama de justiça. Ademais, parece exageradamente ilusório acreditar que se trata de um escolha verdadeiramente livre o fato de um juiz que aplicar livremente critérios valorativos que ele não escolheu livremente, já que os nossos conceitos de justiça são em grande parte definidos pelos padrões ideológicos que nos são transmitidos independentemente de nossa vontade e que passam a constituir a tábua de valores com as quais medimos o mundo.

Além disso, a atribuição aos juízes de uma tamanha liberdade decisória foi rejeitada pela maioria dos juristas em virtude de contrapor-se à segurança jurídica, que é o valor fundamental dos sistemas jurídicos liberais. Mesmo autores da época influenciados pela linha sociológica, como Heck, afirmaram que “un derecho del juez a modificar la ley es incompatible con el postulado de la seguridad jurídica y con la autonomía de la comunidad de derecho”[200]. Porém, embora sejam poucos os juristas que deixam de apontar sérias vicissitudes no voluntarismo exacerbado dos seus membros mais radicais, também é verdade que mesmo os seus críticos tendem a reconhecer a importância dessa corrente tanto na crítica ao pensamento hermenêutico tradicional quanto no reconhecimento da parcela criativa da atividade judicial[201]. Por tudo isso, a avaliação contemporânea do movimento do direito livre envolve normalmente a admissão da procedência das críticas dirigidas às teorias tradicionais, acompanhada de uma recusa a alternativa que ele propõe.

e) Escola sociológica norte-americana

A jurisprudência sociológica norte-americana (Sociological jurisprudence) surgiu em oposição tanto ao jusnaturalismo como ao positivismo normativista[202]. Contra o idealismo jusnaturalista, ela afirmou a noção positivista de que o direito é fruto da sociedade e sustentou que a sua compreensão deve ter base em uma análise de fatos empíricos e não em pressuposições metafísicas. Contra o normativismo e o formalismo da jurisprudência analítica, o realismo sustentou as noções sociológicas de que o direito não pode ser apreendido como um sistema lógico de conceitos nem aplicado de maneira silogística, mas deve ser visto como um instrumento social voltado à concretização de finalidades ligadas ao interesse público e operado de forma a garantir a efetivação desses objetivos sociais. Essa dupla oposição pode ser apreendida claramente em um dos textos mais célebres da corrente sociológica, contido nos primeiros parágrafos do livro The Common Law, no qual Oliver Wendell Holmes afirma:

The object of this book is to present a general view of the Common Law. To accomplish the task, other tools are needed besides logic. It is something to show that the consistency of a system requires a particular result, but it is not all. The life of the law has not been logic: it has been experience. The felt necessities of the time, the prevalent moral and political theories, intuitions of public policy, avowed or unconscious, even the prejudices which judges share with their fellow-men, have had a good deal more to do than the syllogism in determining the rules by which men should be governed. The law embodies the story of a nation”s development through many centuries, and it cannot be dealt with as if it contained only the axioms and corollaries of a book of mathematics.[203]

Embora Holmes seja o precursor da jurisprudência sociológica, seu principal teórico foi Roscoe Pound. Pound adotava uma perspectiva fortemente teleológica, o que transparece claramente na sua famosa afirmação de que a ciência jurídica deveria ser uma espécie de engenharia social, uma disciplina que desenvolvesse ferramentas voltadas a fomentar o progresso da sociedade. Portanto, a prática jurídica não deveria estar direcionada principalmente para a aplicação de normas, mas para a satisfação dos interesses sociais mais relevantes.

Nesse sentido, Pound chegou a afirmar: “me limito a considerar el Derecho como una institución social para satisfacer necesidades sociales — las pretensiones y demandas implícitas en la existencia de la sociedad civilizada — logrando lo más posible con el mínimo de sacrificio, en tanto en cuanto pueden ser satisfechas tales necesidades o realizadas tales pretensiones mediante una ordenación de la conducta humana a través de una sociedad política organizada”[204].

Outro jurista de destaque nessa corrente foi Benjamin Cardozo, segundo o qual, no processo decisório dos juízes, a lógica desempenhava um papel subordinado. Para Cardozo, o juiz tinha a obrigação de valorar interesses contrapostos com o objetivo de alcançar o maior equilíbrio social possível, sendo que usualmente ele precisava escolher entre duas ou mais possibilidades logicamente possíveis. Dessa forma, não lhe bastavam as regras da lógica nem critérios científicos predeterminados, pois essa eleição valorativa seria necessariamente influenciada por “instintos heredados, creencias tradicionales y convicciones adquiridas y por su idea general de la vida y su concepción de las necesidades sociales”.[205]

Percebe-se, assim, que a jurisprudência sociológica acentuava o papel criativo dos juízes e evidenciava os limites do pensamento silogístico que marcava as teorias hermenêuticas tradicionais da época. Porém, embora recusasse a idéia de que o direito se deixa apreender por um método lógico-silogístico, a jurisprudência sociológica não deixa de oferecer um critério hermenêutico fundado na idéia de interesses sociais que devem ser garantidos pelos juristas.

Capítulo V - Neopositivismo

1. Entre política e direito

a) A politização velada do discurso hermenêutico

A crescente divergência entre as expectativas sociais e as soluções jurídicas não instaurou uma crise de efetividade (sentida como uma incapacidade de conferir efetividade às próprias normas), nem de eficiência (sentida como uma incapacidade de fazer com o que o sistema jurídico opere sua própria dinâmica interna). Essas são crises ligadas à nossa situação atual, que tem a ver com a configuração que o direito positivo adotou em resposta à crise da virada do século, e a hermenêutica atual precisa lidar com esses problemas do presente.

O que ocorreu foi uma crise de legitimidade instaurada a partir do momento em que o direito passou a oferecer respostas formalmente adequadas com o sistema vigente, mas incompatíveis com valores sociais que se tornavam dominantes. Não se tratava, portanto, de uma crise do discurso hermenêutico, mas de uma crise do discurso normativo, pois o problema de base não estava nas questões interpretativas, e sim no próprio tratamento que o direito positivo atribuía aos fatos.

Portanto, essa não era uma crise capaz de ser resolvida por meio uma alteração nos modelos hermenêuticos, como efetivamente não o foi. O que colocou um fim a essa crise foi a alteração das bases constitucionais, com a passagem do Estado liberal para o Estado social e a conseqüente instauração de um novo direito positivo, que ampliava a intervenção estatal em nome dos direitos fundamentais de segunda geração.

Mas esse trânsito somente começou a ocorrer na década de 30, e se consolidou na década de 50, com a instauração no pós-guerra dos estados democráticos de direito que tentaram equilibrar a o intervencionismo dos Estados sociais com o respeito democrático aos valores liberais de igualdade e liberdade. Antes disso, a força inercial do sistema era mais forte que os movimentos de alteração legislativa, mas isso não significou que os juristas permaneceram inertes à crise de legitimidade, que eles tentaram resolver mediante a alteração do único elemento que eles têm em suas mãos: o discurso hermenêutico. Já que não era possível modificar judicialmente o texto do direito positivo, restava mudar o próprio direito por meio da alteração do sentido atribuído a esses textos.

Foi esse o grande movimento que ocorreu na hermenêutica no início do século XX, capitaneada pelas vertentes sociológicas que buscaram tornar o discurso jurídico permeável aos outros discursos sociais, de tal forma que a percepção típica da época é a de que elementos jurídicos (ou seja, normativos) precisavam ser articulados com elementos metajurídicos (sociológicos, éticos, psicológicos, econômicos, etc.). Esse processo colocou em xeque o primado do discurso puramente deontológico, que dominou a cultura jurídica do século XIX, tanto nas vertentes ligadas ao legalismo exegético quanto naquelas derivadas da sistematicidade da jurisprudência dos conceitos.

Assim, ele marcou o início da crise de uma determinada tradição jurídica, que enxergava o direito como um sistema coerente de normas cujo conteúdo poderia ser identificado pelos agentes mediante uma investigação metodologicamente controlada. A hermenêutica jurídica moderna, foi revolucionária ao seu tempo, na medida em que a legalização do direito envolveu o rompimento com os elementos jurídicos herdados do período feudal e permitiu a elaboração de um direito iluminista, centrado na figura do indivíduo (o sujeito de direito) e nos direitos de liberdade e igualdade. Entretanto, o sistema jurídico liberal não oferecia categorias capazes de lidar com os problemas sociais decorrentes dos processos correlatos de industrialização e de urbanização, que alteraram profundamente as relações sociais, especialmente no campo do trabalho e da família.

Assim, a inaceitabilidade política das soluções jurídicas levou uma série de juristas a politizar o discurso jurídico, introduzindo nele uma série de elementos teleológicos que lhe eram estranhos à hermenêutica liberal do século XIX, que buscou a todo custo construir um discurso jurídico que se diferenciasse do discurso político e do moral. Se a hermenêutica é o metadiscurso com o qual atribuímos sentidos às nossas práticas, a hermenêutica jurídica moderna foi uma tentativa de reduzir o sentido da atividade jurídica a um processo racional e metódico de aplicação de normas positivas a fatos concretos. Contudo, a crise de legitimidade do Estado liberal e do seu direito rompeu essa pureza deontológica do campo jurídico, mediante a introdução de uma argumentação finalística que efetivou uma espécie de politização do discurso jurídico.

Porém, essa politização não foi feita de maneira aberta, pois, com exceção de Magnaud e do jovem Kantorowicz, os teóricos de inspiração sociológica ainda eram herdeiros do iluminismo e estavam demasiadamente vinculados ao ideal de segurança jurídica para que pudessem reconhecer que a atividade dos juízes tinha um cunho político e voluntarista. O que se buscava não era romper com a segurança garantida por uma metodologia hermenêutica racional e científica, mas introduzir uma nova medotologia, que fosse tão ou mais segura que a anterior, mas que fosse mais justa. Esse movimento de abertura tentava equilibrar a insegurança gerada pelo rompimento da literalidade com uma espécie de meta-segurança: era preciso modificar a interpretação do direito, mas sempre a partir de parâmetros objetivos. Assim, a ruptura do normativismo legalista não foi conduzida em nome de um irracionalismo romântico, mas foi inspirada por um racionalismo que acreditava que a metodologia científica poderia oferecer parâmetros seguros para uma atividade judicial fundada em argumentos teleológicos.

Nessa medida, não houve uma rejeição absoluta do normativismo, mas uma mitigação da argumentação puramente deontológica, mediante teorias a atribuição de diversos graus de peso a uma argumentação teleológica fundada em elementos extraídos das ciências sociais. Por isso, não havia uma teoria sociológica, mas várias teorias de inspiração sociológica, cada uma delas tentando equilibrar justiça e segurança de uma maneira adequada. Para alguns, como Gény, a segurança jurídica era um princípio a ser garantido de maneira tão forte que ele somente admitia os argumentos sociológicos para a solução de lacunas. Para outros, a lei deveria ser preservada mas o direito deve ser compreendido sempre de maneira finalística, o que implica que a compreensão de cada norma deverá levar em conta os objetivos sociais que ela visa a garantir. Essa é, por exemplo, a postura da jurisprudência sociológica norte-americana. Já o movimento do direito livre defendia, com Ehrlich, que a busca da justiça pode levar o jurista à ultrapassar os limites da lei e buscar o direito vivo não-estatal.

Em todas essas concepções, a tentativa de garantir os ideais de justiça e eqüidade leva a um gradual distanciamento da literalidade da lei ou do próprio direito legislado, mas sempre com base em uma metodologia cientificista. Por mais que fossem conscientes dos limites do pensamento silogístico e já não defendessem que os juízes poderiam extrair racionalmente do sistema normativo soluções jurídicas para todos os casos concretos, essas concepções tampouco afirmaram que os juízes deveriam decidir os casos conforme suas concepções pessoais de justiça. Nenhuma dessas correntes defendia um irracionalismo nem um subjetivismo, mas sim uma nova espécie de positivismo: um positivismo sociológico, que incorporasse ao pensamento jurídico os influxos das outras ciências sociais.

Somente com a jurisprudência sentimental de Magnaud e a radicalização do movimento do direito livre feita por Kantorowicz é que se defendeu o rompimento de uma busca metodológica e se advogaram as teses anti-racionalistas de que o juiz deveria decidir com base em sua consciência jurídica. Porém, essa foi uma opção minoritária e com pouca repercussão prática, na medida em que implicava substituir o fetichismo da norma por uma mistificação das capacidades do juiz de identificar as soluções justas.

Entretanto, tiveram influência crescente as linhas sociológicas mais moderadas como as de Gény, Ehrlich e Pound, que buscavam estabelecer critérios metodológicos razoavelmente seguros para orientar o juiz na aplicação do direito segundo critérios de justiça social. Esses discursos tiveram grande penetração no imaginário dos juristas, na medida em que eles forneciam elementos que possibilitavam um enfrentamento hermenêutico da crise de legitimidade que o direito vivia. As categorias elaboradas por essas vertentes permitiram articular argumentos deontológicos e argumentos teleológicos, por meio dos quais os interesses e finalidades sociais puderam ingressar no discurso jurídico. Com isso, a partir do início do século XX, várias idéias dominantes até meados do século precedente passaram a ser sistematicamente recusadas (como as noções de que in claris cessat interpretatio e de que fiat justitia, pereat mundus) ou tiveram sua importância imensamente reduzida (como as referências à vontade do legislador).

b) O esclarecimento da politização

Os juristas vinculados às principais correntes de viés teleológico tinham objetivos políticos evidentes, mas a realização dessas finalidades tipicamente não era buscada por meio da politização “à la Magnaud” do discurso jurídico, mas sim por meio da elaboração de um conhecimento científico simultaneamente teleológico, histórico e objetivo. Assim, para os problemas derivados do modelo jurídico iluminista, a solução proposta foi uma radicalização do próprio iluminismo, naquilo que ele tem de racional e cientificista.

E foi essa vinculação ao iluminismo, que acredita religiosamente nas potencialidades emancipatórias da razão, que impediu esses teóricos de ver que o que eles promoviam não era uma nova onda de cientificização, mas uma verdadeira politização do discurso hermenêutico. Uma politização relevante, inscrita em um momento histórico de crise de legitimidade e que desempenhou um papel renovador muito importante para a sociedade da época. Porém, tratou-se de uma politização velada, pois ela foi realizada mediante a introdução de novos critérios de verdade e não mediante critérios autônomos de justiça.

Esse velamento terminou conferindo a esses discursos um viés profundamente ideológico, no sentido negativo do termo, pois tratava-se do uso de um linguajar científico para encobrir as posturas políticas subjacentes. E foi assim que o positivismo sociológico terminou sendo bastante infiel com sua própria cientificidade, na medida em que buscava encontrar em uma análise descritiva da sociedade os padrões prescritivos corretos a serem aplicados pelos juristas, como forma de corrigir teleologicamente os desvios axiológicos da legislação. Assim, foi construída uma aporia: os juristas propuseram para a ciência do direito um desafio que ela é incapaz de enfrentar sem que seja desnaturada como ciência, no sentido positivista.

Esse amálgama entre teleologia e deontologia e entre normas e fatos foi considerado por muitos juristas como um avanço da teoria jurídica rumo à garantia da justiça. Entretanto, as diversas concepções que mesclavam legalismo e sociologismo tipicamente não tinham um grande rigor científico, especialmente porque havia uma tendência de representar questões ideológicas (que envolviam preferências políticas e ideais de justiça) como questões lógicas (que envolviam análises científicas e raciocínios dedutivos).

A idéia de que o respeito aos interesses sociais deveria prevalecer sobre a observância dos padrões da lógica podia servir como base para um discurso dogmático percebido como justo, porém dificilmente deixa-se articular com a pretensão de construir uma ciência do direito nos moldes positivistas. Isso ocorre especialmente porque a maioria das tendências sociológicas tendia a afirmar que o jurista não deveria simplesmente descrever o direito como ele era, mas que ele tinha a função criativa de converter o direito positivo naquilo que ele deveria ser.

Porém, esse modo de ver o direito implica a crença de que o jurista, ao conhecer a sociedade, pode identificar os valores de justiça. Com isso, embora essas teorias superem o anti-historicismo das teorias jusnaturalistas (na medida em que se fala em valores de justiça construídos historicamente e não em valores de justiça universalmente válidos), o sociologismo do início do século XX partia do pressuposto de que existia, na sociedade, um modelo correto de justiça que pode ser conhecido a partir de uma análise científica. Ora, essa pressuposição não é minimamente adequada à complexidade das modernas sociedades, divididas em grupos os mais diversos, cada qual como valores próprios e diversos.

Em uma sociedade complexa, a afirmação de que uma norma é socialmente justa não passa de uma fórmula vazia, pois não existe uma concepção uniforme de justiça, mas uma rede de valores polifônicos. Portanto, partir da idéia de que o cientista social é capaz de definir os valores de justiça corretos implica adotar um pressuposto epistemologicamente ingênuo (quando as pessoas realmente acreditam que os seus valores pessoais são os valores socialmente corretos) ou cínico (quando as pessoas sabem que os seus valores são subjetivos, mas os tratam como objetivos, na tentativa de justificar a sua imposição heterônoma). De uma forma ou de outra, a possibilidade de construir uma ciência do direito se perde, pois ela se transformaria em uma concepção ideológica inconsciente (quando ingênua) ou em uma distorção consciente da realidade (quando cínica).

Todas as concepções sociológicas do direito postulam uma ligação entre o ser e o dever que soa como um novo jusnaturalismo: em vez do jusnaturalismo fixista do iluminismo, trata-se de um jusnaturalismo sociológico, em que os valores socialmente dominantes são tratados como naturalmente válidos. Assim, por mais que os influxos sociológicos tenham possibilitado a crítica dos sentidos impostos pela lei, eles não criaram nenhum tipo de salvaguarda contra os valores socialmente dominantes. E não é demais lembrar que o jusnaturalismo dos iluministas foi justamente um instrumento para contrapor-se à tradição dominante durante a época feudal, e que a vinculação entre justiça e valores dominantes somente tem potencial emancipatório quando os valores que orientam a atuação política se afastam dos valores sociais. Porém, a postulação de que há um nexo lógico, e não ideológico, entre os valores sociais e a justiça significa uma espécie de dogmática que, em nome de uma heteronomia social, não deixa espaço algum para a autonomia dos sujeitos.

Assim, as variadas teorias sociológicas defendiam que a atividade dos juristas não deveria limitar-se à descrição do direito positivo, mas exigiam dele um engajamento ao processo de adaptar o direito a um determinado modelo racional de organização social. Nessa medida, os pressupostos teóricos das concepções sociológicas, por mais que fossem adequados ao seu momento histórico (que exigia a ruptura da literalidade da sistematicidade, como imperativos da reconstrução de uma legitimidade democrática), não deixavam de ser um discurso claramente ideológico (pois apresentavam seu posicionamento político como uma necessidade científica).

E, como toda teoria crítica que não assume claramente os pressupostos valorativos em que é calcada, os discursos sociologizantes (ou economicizantes, ou psicologizantes, ou tudo isso ao mesmo tempo) tiveram uma grande densidade política, mas uma fragilidade epistemológica gritante. E foi justamente essa fragilidade epistemológica, revelada na falta de um delimitação adequada tanto do objeto quanto do método, que moveu juristas de viés analítico a empreenderem a busca de construir um discurso verdadeiramente científico, dentro dos padrões positivistas de ciência, que à época se tornavam cada vez mais ligados ao neopositivismo lógico do Círculo de Viena e do primeiro Wittgenstein.

É dentro desse contexto que devemos entender a reação de Kelsen ao que ele identificou como uma politização da ciência jurídica baseada em uma equivocada mistura entre política e ciência. E, devido às várias incompreensões do pensamento kelseniano, é preciso ressaltar que a sua revolta não era contra a politização do discurso jurídico (cujo aspecto político era inescapável), mas contra a utilização de argumentos pseudo-científicos, que não desnaturavam o caráter político do direito, mas o caráter racional da ciência jurídica. A revolta de Kelsen não era contra o fato de o direito ser como é, mas contra o fato de os juristas da época utilizarem argumentos pretensamente científicos para atribuir as suas preferências políticas o valor objetivo de uma verdade científica.

c) O neopositivismo aplicado ao direito

Assim, ao defender que a ciência do direito deveria ser um conhecimento descritivo acerca do direito existente, Kelsen somente poderia enxergar nos discursos sociologizantes uma espécie de ideologização da teoria jurídica. Justamente por isso, ganhou espaço a distinção entre política do direito e ciência do direito, sendo a primeira uma espécie de atividade ideologicamente engajada e a segunda uma forma de conhecimento adequado aos cânones científicos. E uma tal ciência do direito simplesmente não existia, pois todas as teorias jurídicas da época eram derivações pseudo-científicas de uma base ideológica oculta nos pressupostos da teoria.

Para ele, os novos discursos confundiam política e direito, ser e dever-ser, veracidade e validade, a um tal ponto que não passavam de discursos ético-políticos travestidos de discursos científico-jurídicos. Por isso mesmo, a virada sociológica do início do século XX não representava para ele um movimento de cientifização do campo do direito, mas uma mistura eclética e vazia entre normativismo e sociologismo, que terminava por subordinar a pesquisa jurídica a critérios ideológicos e por impedir o desenvolvimento de qualquer conhecimento verdadeiramente científico sobre o direito.

A idéia de que era possível resolver conflitos valorativos (e portanto ideológicos) com base em critérios científicos (que deveriam ser lógicos), parecia completamente sem sentido para os defensores do positivismo formalista do início do século XX. Para eles, as diversas tendências sociológicas representavam uma tentativa, ainda que inconsciente, de sustentar premissas ideológicas como se fossem conclusões científicas, o que significava revestir com um falso manto de cientificidade as concepções políticas e morais subjacentes a cada concepção teórica.

Por isso mesmo, Kelsen se dedicou a elaborar um discurso puramente normativo, em que os valores políticos e éticos fossem deixados em seu devido lugar: na política e na ética, e não em um discurso que pretendesse ter um caráter científico. No campo da hermenêutica, esse novo positivismo em que ele estava engajado (e que podemos chamar de neopositivismo), exigia o abandono da visão idealista dos modelos tradicionais, que, em vez de explicar o que os juristas fazem ao interpretar, limitavam-se a dizer o que os juristas deveriam fazer ao interpretar. Em outras palavras, era preciso desenvolver uma hermenêutica descritiva (que explique adequadamente o que os juristas efetivamente fazem quando interpretam as normas), em vez de uma hermenêutica prescritiva (que criava metodologias de interpretação para orientar as atividades dos juristas).

As teorias tradicionais apresentavam a interpretação como um ato meramente cognitivo, por meio do qual o intérprete esclarecia racionalmente o significado das normas jurídicas. Essa concepção também estava presente nas teorias teleo-sociológicas, as quais, embora tenham desenvolvido critérios hermenêuticos que exigiam dos juristas um papel mais ativo, continuaram partindo da premissa de que havia uma solução correta para cada caso, a qual poderia ser encontrada a partir de uma análise adequada, e normalmente orientada por critérios científicos, dos interesses sociais envolvidos em cada conflito. Evidencia-se, então, que as tendências sociológicas do início do século XX admitiam um papel mais ativo por parte do juiz, mas raramente estiveram dispostas a reconhecer-lhes um papel criativo.

Mesmo dentro do movimento do direito livre o que se defendia não era a liberdade do juiz para criar subjetivamente o direito, mas a liberdade para basear-se no direito espontaneamente criado pela sociedade — o direito vivo de que falava Ehrlich — e para julgar de acordo com os interesses sociais. Porém, nenhuma corrente sociológica chegou a defender que o juiz deveria ser livre para seguir suas preferências subjetivas e decidir do modo que desejasse. O que se defendia era justamente o contrário da liberdade subjetiva, pois tanto as escolas vinculadas ao positivismo sociológico[206] quanto as tradicionais compartilhavam o pressuposto de que era preciso oferecer aos juízes critérios científicos que orientassem a sua atividade decisória. Nessa medida, não deve causar espécie o fato de que a discussão mais relevante do início do século XX foi o debate acerca da metodologia hermenêutica correta, o que deixou praticamente de lado uma discussão mais aprofundada sobre até que ponto seria possível submeter a aplicação do direito a padrões racionais inspirados nos métodos científicos. Reflexões mais contundentes sobre esse ponto afloraram apenas nas décadas de 1920 e 1930, quando uma espécie de antidogmatismo opôs-se tanto às dogmáticas legalistas quanto às sociológicas.

O principal representante dessa oposição ao sociologismo eclético e ao legalismo tradicional foi Hans Kelsen, que afirmava, na década de 1920, que “hoje em dia não existe quase nenhuma ciência especial, em cujos limites o cultor do direito se ache incompetente. Sim, ele acha que pode melhorar sua visão do conhecimento, justamente conseguindo pedir emprestado a outras disciplinas. Com isso, naturalmente, a verdadeira ciência do direito se perde”[207]. Kelsen, portanto, não se opunha ao desenvolvimento de outras ciências sobre o direito, mas ao “sincretismo metódico” que misturava os vários conhecimentos sem ter em vista as peculiaridades de cada um e, na época, tendia a subordinar todos os raciocínios normativos a questões ideológicas e, com isso, gerar uma pseudo-ciência do direito, em lugar de uma verdadeira ciência normativa.

Assim, contrariando as tendências sociologistas da época, Kelsen propôs a revitalização de um pensamento normativista sobre o direito, a partir de uma perspectiva que, como descreve Luis Alberto Warat, não deveria responder nem à questão sociológica acerca de como os juristas efetivamente pensam o direito nem ao problema ideológico de dizer como o direito deveria ser, mas deveria simplesmente definir como se poderia pensar cientificamente o direito enquanto um sistema de normas. Nasceu, então, a célebre teoria pura do direito.

A Teoria pura do direito, formulada pelo jurista austríaco[208] Hans Kelsen, foi desenvolvida no primeiro pós-guerra e tinha como objetivo ser uma teoria científica acerca do direito positivo. Para Kelsen, as tendências sociologistas do início do século XX levaram muitos juristas a encarar o direito como um fato social determinado pelo modo efetivo de constituição da sociedade e a limitarem seus estudos à investigação dos aspectos econômicos e sociais que condicionavam a criação e aplicação das normas jurídicas. Essa excessiva concentração nos aspectos sociológicos e políticos fez com que se perdesse de vista que era preciso haver também uma ciência normativa do direito[209].

Embora admitisse expressamente que existia uma conexão estreita entre o direito, a sociologia, a ética e a política, Kelsen sustentava que uma mescla acrítica e desordenada desses vários ramos do saber, em vez de gerar um conhecimento mais profundo, terminava por causar um sincretismo metodológico que obscurecia a ciência jurídica e colocava em risco a sua autonomia[210]. Por esse motivo ele contrapôs-se às tendências sociologizantes de sua época, sustentando a necessidade de se estabelecer uma ciência positivista que tivesse como objeto as normas jurídicas enquanto regras obrigatórias e não os fatos sociais que condicionam a sua criação ou aplicação.

Além disso, Kelsen percebeu que várias das teorias ditas científicas não passavam de pseudociência, pois, em vez de descreverem o direito tal como ele é, descreviam o modelo jurídico que os seus membros gostariam que fosse implantado na prática. Nessa medida, embora essas concepções se apresentassem como científicas, elas tinham bases ideológicas e não epistemológicas, o que as desqualificava enquanto ciências. Para escapar desse sincretismo metodológico que obscurecia o próprio direito, Kelsen desenvolveu um processo de purificação da teoria jurídica, cujo objetivo era estabelecer as bases de uma teoria científica depurada de qualquer intenção ideológica e bem delimitada frente às ciências que lhe são conexas. O resultado desse processo foi batizado como Teoria Pura do Direito, que pretendia ser uma teoria científica sobre as normas jurídicas[211] e que trazia uma inovadora descrição do sistema jurídico e uma nova teoria da interpretação.[212]

2. A Teoria Pura do Direito

a) A estrutura do direito

O interesse de Kelsen era descrever o direito positivo, entendido este como um conjunto de normas jurídicas válidas. Porém, o que ele buscava não era uma descrição histórica da evolução de um determinado direito, nem uma descrição sociológica das razões que moldam as transformações legislativas, nem uma justificativa filosófica de um determinado critério de legitimidade. O objetivo declarado de Kelsen era descrever o direito em geral, e não um ordenamento jurídico em particular[213] de tal forma que ele somente poderia afirmar um conceito formal de direito.

Ele sabia muito bem que qualquer tentativa de inserir um conteúdo necessário para as normas jurídicas implicava a defesa de uma espécie de jusnaturalismo, o que significava afirmar a existência de um direito construído fora da história e com validade absoluta. Como um direito natural desse tipo era incompatível com o historicismo e com o relativismo que orientam o positivismo, Kelsen tentou construir uma teoria alternativa às concepções dominantes, sustentando um conceito puramente formal de direito.

Na medida em que era formal, esse conceito não se vinculava a nenhum conceito específico e, justamente por isso, pretendia superar a mistura de teoria e ideologia que impedia as teorias jusnaturalistas e sociológicas de se constituírem como um conhecimento propriamente científico. Portanto, Kelsen precisava de um conceito puramente formal de validade, que servisse como critério para a identificação objetiva de um sistema jurídico.

Quando é possível afirmar que uma regra é válida? Ao analisar essa questão, Kelsen percebeu que a validade de uma norma não era uma característica que estava contida no próprio enunciado normativo, mas na sua conexão com outras regras. Isso acontece porque uma norma somente é válida quando ela é elaborada, por uma autoridade constituída, seguindo parâmetros definidos por uma outra norma. Examinemos, por exemplo, o caso de uma sentença judicial que determina ao vendedor de um automóvel que ele deve devolver parte do dinheiro pago pelo comprador porque o veículo alienado tinha um defeito oculto. Essa decisão somente será válida se o contrato em que ela se baseia for válido. Por sua vez, o contrato somente será válido se celebrado de acordo com as leis que regulam o contrato de compra e venda. E essas leis somente serão válidas se houverem sido editadas com observância de todas as regras constitucionais sobre processo legislativo.

Esse exemplo evidencia tanto que há uma ligação de validade entre todas as normas citadas (sentença, contrato, lei, constituição) quanto que essas regras não estão no mesmo plano. A constituição confere validade à lei, que confere validade ao contrato, que confere validade à sentença, que confere validade ao ato da autoridade pública que dará cumprimento a essa decisão judicial. A percepção dessa diferença de níveis leva Kelsen a concluir que “o ordenamento jurídico não é, portanto, um sistema jurídico de normas igualmente ordenadas, colocadas lado a lado, mas um ordenamento escalonado de várias camadas de normas jurídicas”[214].

Em virtude dessa estrutura escalonada, é possível qualificar as regras jurídicas como superiores (quando elas conferem validade a outras) e inferiores (quando elas recebem sua validade de outras normas). As normas jurídicas, portanto, não são superiores ou inferiores em si mesmas, mas superiores ou inferiores umas em relação às outras. Por exemplo, a constituição é superior às leis, que são inferiores à constituição mas superiores aos contratos. Já os contratos são inferiores às leis mas superiores às sentenças judiciais que lhe dão cumprimento. Assim, com exceção da constituição (que sendo a norma mais alta do direito positivo não possui no ordenamento jurídico nenhuma regra superior) e das regras mais específicas da base do sistema (que não conferem validade a outras normas, mas apenas a atos que lhe dão execução), as normas são simultaneamente superiores a algumas regras e inferiores a outras.

Para facilitar a compreensão dessa estrutura escalonada do ordenamento jurídico é bastante comum utilizar a metáfora da pirâmide. Por vezes chega-se mesmo chamar essa estrutura do ordenamento de pirâmide de Kelsen, mas a metáfora da pirâmide, além de ser anterior à Teoria Pura do Direito (pois remonta ao menos à Jurisprudência dos conceitos de Puchta), em momento algum é utilizada pelo próprio Kelsen. De qualquer forma é didaticamente útil a afirmação de que as normas jurídicas se organizam tal como se fossem dispostas em uma pirâmide formada por uma série de estratos. No topo, encontram-se as normas de maior hierarquia e generalidade e cada escalão inferior é formado por normas mais específicas e de menor grau hierárquico. Construída essa estrutura, podemos falar em normas superiores e normas inferiores, sendo que a validade da norma inferior é sempre derivada da validade da norma superior.

b) A hermenêutica kelseniana

De acordo com a concepção kelseniana, cada norma superior atribui a uma determinada autoridade o direito de produzir uma norma inferior. Assim, a norma superior não determina completamente o conteúdo das normas inferiores, mas atribui competência legislativa a um determinado agente, que deve complementar o direito, mas sem extrapolar os limites de forma e conteúdo definidos pelas normas superiores. Dessa forma, Kelsen sustenta que as normas superiores estabelecem apenas uma espécie de moldura dentro da qual uma autoridade do Estado tem competência para tomar decisões. “Daí resulta que todo o ato jurídico em que o Direito é aplicado, quer seja um ato de criação jurídica quer seja um ato de pura execução, é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado.”[215]

Assim, como a determinação do conteúdo é sempre parcial, cada autoridade constituída pelo ordenamento jurídico dispõe da liberdade de preencher a moldura criada pela norma superior. Isso resulta em uma descrição unificada da atividade jurídica: o Congresso Nacional elabora leis dentro da moldura criada pela Constituição; o Presidente da República edita decretos dentro da moldura criada pelas leis; os cidadãos podem celebrar contratos desde que não afrontem as outras normas do sistema; e os juízes criam normas para regular os casos concretos que lhe são apresentados, dentro da moldura criada por todas as normas gerais do sistema.

Nessa medida, as autoridades constituídas pelo ordenamento jurídico positivo realizam uma atividade simultaneamente executiva (porque a criação das normas inferiores é uma espécie de execução das superiores) e produtiva (pois, dentro da moldura, a norma superior não determina o conteúdo da inferior). A exceção está apenas nos agentes que estão na base da pirâmide e que se limitam a praticar atos de mera execução.

Porém, mesmo a atividade dessas autoridades é parcialmente criativa, dado que, como afirmou Kelsen, “mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer”. Por exemplo, “se o órgão A emite um comando para que o órgão B prenda o súdito C, o órgão B tem de decidir, segundo o próprio critério, quando, onde e como realizará a ordem de prisão, decisões essas que dependem de circunstâncias externas que o órgão emissor do comando não previu e, em grande parte, nem sequer poderia prever.”[216]

Portanto, Kelsen rompe a distinção tradicional entre atividade legislativa e atividade judicial, pois ele trata essas duas atividades como espécie do mesmo gênero, que é o de criação de normas, por meio do exercício de um poder normativo atribuído por um determinado ordenamento jurídico. Essa ousada afirmação de que a aplicação do direito é uma atividade sempre criativa (embora não completamente criativa) fez com que Kelsen rompesse a distinção tradicional entre a atividade legislativa e a atividade judicial. Ao afirmar que os juízes não se limitam a aplicar silogisticamente normas a fatos, mas que, dentro da moldura estabelecida pelo sistema normativo, eles criam normas jurídicas para regular os casos que lhe são submetidos, Kelsen é levado a concluir que a atividade do juiz é praticamente idêntica à do legislador: ambos partem de molduras predefinidas e, dentro de um certo campo de liberdade, criam novas normas. E ambos, certas vezes, atuam fora da moldura que lhes é conferida e essa criação originária termina sendo admitida pelo próprio sistema, quando não há instrumentos capazes de modificá-las. Assim, a diferença entre essas funções é de grau e não de qualidade, na medida em que o legislador trabalha com uma moldura mais ampla (para o Congresso Nacional, a única moldura é a Constituição Federal) e regula hipóteses gerais, enquanto os juízes trabalham com uma moldura mais restrita (que envolve todo o sistema jurídico) e regulam casos específicos.

E é justamente ao defender o papel inerentemente criativo e político dos juízes que a teoria kelseniana mais se afasta das teorias hermenêuticas tradicionais, que tentaram justificar cientificidade da atividade jurídica na idéia de que era possível atribuir aos juízes uma tarefa apenas intelectiva: a aplicação de normas a casos concretos, mediante métodos predeterminados. Porém, as descrições da atividade judicial oferecidas pela hermenêutica tradicional (que a descreviam como neutra, científica, objetiva, não-criadora, etc.) certamente pareciam cada vez mais estranhas aos juristas, tal a sua divergência com as observações da efetiva prática do direito. Com o tempo, a busca de uma metodologia interpretativa perfeita passou a ser vista por muitos pensadores não apenas como uma utopia vã, mas como uma espécie de manipulação ideológica que visava a justificar certas opções políticas a partir de sua vinculação com padrões pseudo-científicos. Tornou-se claro que, subjacente à definição dos critérios corretos de interpretação, estava presente a tentativa político-ideológica de apresentar a atividade judicial como um ato de conhecimento, pois somente assim seria possível justificar a validade objetiva das decisões judiciais.

Como bem descreveu Habermas, a ideologia contemporânea não é tipicamente baseada na afirmação dogmática de alguns pressupostos éticos ou políticos, mas na pretensa demonstração de que certas opções valorativas são cientificamente justificadas[217]. Nessa medida, reconhecer dignidade científica a certos métodos de interpretação significa blindá-los contra questionamentos valorativos. Portanto, não deve causar espanto o fato de que, consciente ou inconscientemente, tantos juristas tenham se esforçado tanto para caracterizar como científicas as concepções que se prestavam a fundamentar as suas opções políticas.

Essa mescla de teoria e ideologia, que marcou tanto as teorias sociológicas quanto as tradicionais, foi identificada com clareza por Hans Kelsen, que dedicou sua obra a desenvolver uma teoria jurídica que não tivesse um caráter ideológico, ou seja, que não se prestasse à justificação de nenhum sistema político ou social em particular. Porém, diferentemente dos realistas norte-americanos, que buscaram descrever o modo como os juízes decidem casos, Kelsen buscou analisar as estruturas lógicas envolvidas no pensamento jurídico. Como afirma Warat, o objetivo de Kelsen não era mostrar como os juristas efetivamente pensam, mas explicar como seria possível pensar cientificamente o direito.

Esse objetivo fez com que Kelsen fosse um dos primeiros juristas a defender sistematicamente o abandono da busca da única decisão correta, seja com base em critérios sistemáticos ou sociológicos. Inspirado por um profundo rigor epistemológico, Kelsen explorou as possibilidades de se construir um discurso verdadeiramente (e não apenas pretensamente) científico acerca do direito. Assim, enquanto as teorias da época tendiam a partir do dogma de que era possível extrair do direito (fosse do sistema jurídico ou de uma análise sociológica) uma solução correta para cada caso, ou a concluir pela completa impossibilidade de se tomar uma decisão racionalmente fundamentada (como na vertente mais radical do movimento do direito livre e do realismo jurídico), Kelsen decidiu perguntar-se sobre o papel que a razão poderia desempenhar em uma análise científica do direito.

Para as teorias tradicionais, aplicar o direito significava descobrir no sistema jurídico, mediante procedimentos racionais, a solução que ele atribui a um caso concreto. Todavia, mesmo tendo na idéia de sistema um de seus conceitos fundamentais, Kelsen percebeu claramente que as soluções jurídicas particulares não podem ser extraídas dedutivamente das normas que compõem um ordenamento. Por isso, ele recusou veementemente a idéia de que o juiz pode ser a boca da lei: uma concepção que precedeu o positivismo e permanece até hoje no nosso senso comum[218], especialmente na idéia de que é possível descobrir nas normas positivas uma — e apenas uma — solução juridicamente adequada para cada caso concreto[219].

Até esse ponto, Kelsen não inovou, dado que simplesmente repetiu a teoria de Ehrlich, que já havia “submetido a uma crítica minuciosa e bem fundamentada a opinião da Jurisprudência do século XIX de que a solução dos casos jurídicos se podia extrair por dedução lógica de proposições jurídicas fixas”[220]. Porém, essa constatação não levou Kelsen a buscar, tal como Ehrlich, outros elementos que poderiam guiar o juiz na busca de construir uma solução adequada. Em vez de tentar elaborar um novo método hermenêutico, Kelsen simplesmente admitiu que é impossível a construção de uma tal metodologia, dado que a existência de uma solução correta a ser descoberta não passa de uma “ilusão de que se serve a Jurisprudência tradicional para consolidar o ideal de segurança jurídica”[221]. Essa ilusão tem uma grande utilidade política e ideológica, na medida em que contribui para justificar certas concepções políticas, mas nada “pode justificar que se faça uso desta ficção em uma exposição científica do Direito positivo, proclamando como única correta, de um ponto de vista científico objetivo, uma interpretação que, de um ponto de vista subjetivo, é mais desejável do que uma outra, igualmente possível do ponto de vista lógico”[222].

Segundo Kelsen, é impossível extrair do ordenamento jurídico uma solução correta para cada caso, pois toda norma tem um certo campo de indeterminação, de tal forma que as regras jurídicas não são capazes de definir completamente o modo como as autoridades a aplicarão às situações concretas. Mesmo a norma mais pormenorizada “não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada”, deixando “àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer”. Sempre existe, portanto, uma margem de livre apreciação, de tal forma que, relativamente ao ato de execução que a aplica, a norma sempre tem “o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato [...]. Daí resulta que todo o ato jurídico em que o Direito é aplicado, quer seja um ato de criação jurídica quer seja um ato de pura execução, é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado.”[223]

E quais são os critérios que um juiz deve seguir para preencher essa moldura de forma adequada? A vontade do legislador, como defendia a Escola da Exegese? A manutenção da lógica interna do sistema, como sustentava a Jurisprudência dos Conceitos? O bem comum e o interesse social, como sustentavam diversas escolas sociológicas? Os interesses assegurados pelo ordenamento positivo, como sustentava a Jurisprudência dos interesses?

Para Kelsen, nenhuma dessas possibilidades era cientificamente justificada porque cada uma dela implica opções ideológico-valorativas. Mas, então, quais seriam os critérios hermenêuticos cientificamente válidos? De acordo o jurista austríaco, o preenchimento da moldura sempre se dá por meio de critérios metajurídicos que nada têm de científicos e, portanto, uma ciência do direito que mereça esse nome somente pode admitir humildemente que “a produção do ato jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicanda é livre, isto é, realiza-se segundo a livre apreciação do órgão chamado a produzir o ato”[224].

Nessa medida, Kelsen mostra-se ainda mais cético que os próprios integrantes do movimento do direito livre, pois sequer coloca a justiça como o padrão que o juiz deveria buscar manter. Admitindo a premissa positivista de que a função da ciência não é orientar, mas descrever, Kelsen limita-se a admitir que não há critério científico para o preenchimento da moldura e afirma corajosamente que qualquer tentativa de sustentar o contrário significa introduzir critérios ideológicos na teoria hermenêutica, o que significaria negar-lhe qualquer pretensão de cientificidade.

Essa reação de Kelsen contra a ilusão da resposta única não deve ser entendida como a defesa de um irracionalismo, pois ele sustenta que a delimitação da moldura é um ato de razão não influenciado por quaisquer posições ideológicas. Nessa medida, apesar de reconhecer que toda decisão possui um conteúdo volitivo, a teoria pura do direito tenta manter um espaço para a racionalidade, na medida em que a afirmação kelseniana de que as normas são parcialmente indeterminadas, implica que elas também são parcialmente determinadas. Com isso, Kelsen assegura um papel definido para a ciência do direito, que tem de abrir mão de manifestar-se acerca do preenchimento da moldura (pois essa é uma atividade valorativa e, portanto, irracional), mas mantém sua competência acerca da definição dos limites da moldura a ser preenchida.

Portanto, o que Kelsen defende não é a liberdade completa do juiz, mas a admissão de que ele é vinculado ao que a norma define (ou seja, ao campo de escolhas que ela lhe atribui) e que apenas dentro desse campo o juiz atua com plena liberdade. Portanto, as decisões judiciais são, em parte, determinadas por uma atividade cognitiva orientada pelas regras da lógica formal e, em parte, resultantes de uma escolha dos juízes que não pode ser reduzida a um mero ato de conhecimento. Com isso, a definição do direito aplicável a uma situação particular sempre envolve uma atividade volitiva por parte de uma autoridade estatal, especialmente na escolha dos valores aos quais dará primazia. Essa opção valorativa pode ser limitada, pode ser orientada por controles metodológicos mais ou menos rígidos, mas nunca pode ser totalmente suprimida, como desejavam os teóricos tradicionais da interpretação.

Após reconhecer que a aplicação das normas tem um caráter dúplice (cognitivo-volitivo), Kelsen afirmou que apenas o primeiro pode ser controlado por critérios jurídicos. Não admite, assim, que possa haver critérios jurídicos que orientem o intérprete na aferição da validade das escolhas dos agentes estatais, desde que elas se encontrem dentro da moldura criada pelas normas positivas. Essa opção pode ser orientada por valores morais, ideologias políticas, concepções de justiça, mas nunca por critérios jurídicos propriamente ditos, na medida em que o Direito tem a ver apenas com as relações lógicas entre as normas positivas. O papel da Teoria Pura do Direito é apenas delimitar a moldura, definir o campo de escolhas possíveis aos aplicadores do Direito, não sendo razoável a pretensão de que a ciência jurídica possa descobrir qual é a solução correta de um caso concreto.

Percebe-se, assim, que Kelsen adotou uma postura intermediária frente ao papel da razão no direito: não considerou, como as teorias tradicionais, que o juiz exerce uma atividade meramente raciona, mas também não sustentou que a decisão judicial era mera expressão da vontade do julgador. Em vez de sustentar uma ilusão de racionalidade ou de afirmar a irrelevância da racionalidade, ele ofereceu um modelo explicativo que estabelecia papéis bastante definidos para o que poderia ser racionalmente definido (a definição da moldura) e para o que derivava da vontade (o preenchimento da moldura). Portanto, um cientista do direito

não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica. Como conhecimento do seu objeto, ela não pode tomar qualquer decisão entre as possibilidades por si mesma reveladas, mas tem de deixar tal decisão ao órgão que, segundo a ordem jurídica, é competente para aplicar o Direito.[225]

Nessa medida, a teoria kelseniana deixa claro que não devemos confundir a figura do juiz com a figura do cientista, já que eles desempenham papéis diferentes. E, radicalizando essa distinção, Kelsen afirma claramente que, por mais que a fixação da moldura seja um ato de cognição, o juiz sempre tem a potencialidade de, movido por suas motivações políticas, decidir fora da moldura definida pela norma. E são vários os casos em que os juízes decidem fora dessa moldura, adotando uma postura francamente criadora, que ultrapassa os limites da competência que lhe foi atribuída. E, como disse Kelsen, “é fato bem conhecido que, pela via de uma interpretação autêntica deste tipo, é muitas vezes criado direito novo — especialmente pelos tribunais de última instância”[226].

Essa atividade legisladora dos juízes não é apresentada por Kelsen como uma distorção do sistema, mas como uma decorrência do fato de que as decisões jurídicas não podem ser anuladas quando transitam em julgado. Assim, por mais que o direito determine que os juízes devem atuar dentro da moldura de significação das leis, é também o próprio direito que atribui validade às decisões tomadas fora da moldura. Nessa medida, os juízes muitas vezes tomam decisões incompatíveis com a ciência do direito, mas que ainda assim são válidas.

c) Recepção da teoria pura do direito

Como as conclusões de Kelsen não ofereciam uma justificativa ideológica nem para o nacional-socialismo alemão, nem para o liberalismo, nem para o comunismo, nem para qualquer outro sistema político, muito pequena foi a acolhida das idéias de Kelsen. Em um momento histórico especialmente dividido por ideologias contrapostas, Kelsen defendeu um relativismo que se opunha a todas elas e defendeu ardorosamente que a ciência não deveria desempenhar o papel submisso de justificar certas concepções políticas. Por conta disso, a teoria pura do direito sofreu rejeição por parte de praticamente todos os credos ideológicos, como reconheceu ironicamente o próprio Kelsen, ainda em 1934.

Os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou os social-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado comunista ela é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu espírito é — asseguram muitos — aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros crêem reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do Estado e do Direito. E não falta também quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta. Em suma, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não se tenha ainda tornado suspeita. Mas isso precisamente demonstra, melhor do que ela própria o poderia fazer, a sua pureza.[227]

Essas críticas evidenciam que cada ideologia, percebendo que a teoria kelseniana não lhe oferecia sustentação nem rejeitava as concepções políticas que lhe eram opostas, tendia a ver como inaceitável teoria pura do direito. Mesmo nos dias de hoje, não é incomum ouvir a afirmação de que Kelsen teria oferecido uma justificativa ideológica para o estado nazista, idéia absurda mas infelizmente difundida por alguns juristas contemporâneos que provavelmente nunca chegaram a ler uma obra de Kelsen.

Por tudo isso Kelsen, que publicou a primeira edição da Teoria Pura do Direito no mesmo ano em que Hitler ascendeu ao poder na Alemanha (1933), afirmou desde o início que tinha poucas ilusões acerca das possibilidades de êxito de seu projeto em uma época “de radicais comoções sociais, de violentas transferências de poder de umas mãos para outras”, na qual os políticos, “não podendo abdicar da ideologia que professam, passam a combater a teoria social que não lhes dá o que pretendem”[228].

Como previu Kelsen, o senso comum não seguiu o cientificismo formalista da teoria pura do direito, mas foi em um outro sentido: em vez da pureza metodológica, a tentativa ideológica de construir uma teoria dogmática que harmonizasse os ideais de segurança das escolas tradicionais com os ideais de justiça e equidade das escolas de viés sociológico. Essa tentativa de estabelecer um meio-termo adequado entre esses ideais conduziu a maior parte dos teóricos a elaborar concepções próximas do amálgama entre os discursos legalistas e sociológicos, que veio a servir como base para a dogmática jurídica positivista do século XX, que está na base do atual senso comum dos juristas.

3. O Realismo jurídico

Contemporâneos de Kelsen foram os primeiros autores vinculados ao realismo jurídico, que radicalizou a opção sociológica mediante um rompimento da perspectiva teleológica que as concepções sociológicas anteriores. Os realistas jurídicos mais destacados foram Karl Llewellyn e Jerome Frank, tendo ambos escrito suas principais obras por volta do ano 1930, época de grande crise do estado liberal[229] e de ceticismo acerca de suas instituições. Esse ceticismo mostrou-se especialmente no antinormativismo da corrente realista que, apesar de fixar-se no estudo da atividade judiciária, opunha-se frontalmente ao positivismo normativista da escola analítica.

Para os realistas, a idéia de que as normas jurídicas têm um sentido objetivo que pode ser percebido pelos juristas a partir de um estudo cuidadoso do sistema jurídico não passa de um dogma do idealismo normativista. Porém, apesar de falso, esse mito está fortemente enraizado no modo jurídico de ver o mundo e constitui uma espécie de mito básico do direito. Como essa crença na objetividade do direito é especialmente reforçada pelo discurso judiciário, que trata o direito como se fosse um sistema de normas e as decisões judiciais como deduções silogísticas, Llewellyn sustentava que “la teoría de que las normas deciden los asuntos parece haber engañado durante un siglo, no solo a los ratones de biblioteca, sino a los jueces”[230].

Inspirado pela psicanálise, Frank chegou a afirmar que o mito da certeza jurídica tinha como principal motivação satisfazer uma necessidade emocional de segurança que era profundamente enraizada no inconsciente das pessoas. Partindo da idéia de que a criança retira sua segurança da crença ilimitada na autoridade do pai, Frank afirmava que a descoberta da limitação paterna levava o adulto a, inconscientemente, tentar “encontrar en el Derecho un substituto de aquellos atributos de firmeza, certeza e infalibilidad que se confieren, en la infancia, al padre”[231]. Portanto, a segurança jurídica seria uma ficção a que recorremos em virtude da permanência de um comportamento infantil e que somente poderia ser superada pelo desenvolvimento de uma verdadeira maturidade emocional[232].

Contrapondo-se a essa ficção, Frank sustentava que não era possível conhecer o direito relativo a uma situação senão a posteriori, pois até que um tribunal decidisse a questão, não se pode dizer que havia uma norma jurídica que regulasse esse problema[233]. Era preciso, pois, encarar a ausência de previsibilidade das decisões jurídicas e construir uma teoria jurídica não fundada em quaisquer idealismos. Portanto, era preciso admitir que as normas tinham um papel bastante menor do que lhe era atribuído pela teoria tradicional, sendo que, em muitos casos, o conhecimento das regras jurídicas serve muito pouco para prever as decisões de um juiz, pois as decisões judiciais são fortemente influenciadas pelas preferências e aborrecimentos pessoais dos juízes, bem como por seus preconceitos e estados de ânimo[234].

Rejeitada, assim, a função idealista da ciência jurídica, restava-lhe apenas concentrar-se no estudo do modo como as decisões eram efetivamente tomadas. Na medida em que o discurso tradicional partia do pressuposto de que o direito deveria ser algo que ele não era, ele conduzia os juristas a desenvolver visão idealista do direito. Contra essa perspectiva, o realismo jurídico inspirou-se em Holmes e Max Weber[235] para propor uma visão descritiva do direito, que explicasse como o direito efetivamente era, em vez de desenvolver um ideal de como ele deveria ser. Com isso, sua questão principal já não era mais o que deveria fazer um juiz? (pergunta que remete a uma visão idealista do direito), mas o que efetivamente fazem os juízes?. Opera-se, então, uma mudança de foco dos estudos jurídicos, que passa da análise das regras para uma análise do real comportamento dos juristas, especialmente dos juízes[236]. Tratava-se, portanto, de uma perspectiva sociológica que visava exclusivamente a descrever o funcionamento efetivo da atividade judicial[237].

Percebe-se, então, que a teoria realista constitui um discurso externo e não um discurso interno, pois pretende analisar o direito da perspectiva de um observador que se limita a descrever o os fatos tal como ele os vê, identificando por via indutiva os padrões de comportamento típicos dos juízes. Nesse sentido, Llewellyn afirmou que, ao lado das teorias jurídicas (legal doctrines), seguem as técnicas jurídicas (crafts of law), sendo que não se pode estudar o direito sem ter em conta os ideais e tradições que subjazem a essas técnicas, pois isso significaria deixar de lado metade do efetivo modo de funcionamento do direito[238]. É essencial aos juristas, portanto, conhecer o modo como pensam e atuam os juízes de primeiro grau, os tribunais do júri e os tribunais de segunda e terceira instâncias, bem como levar em conta as diferenças entre as técnicas de julgamento utilizadas em cada um desses órgãos.

Percebe-se, assim, o discurso realista não visa a explicar o que os juízes deveriam fazer, mas simplesmente a descrever o que eles efetivamente tendem a fazer, tratando-se, pois, de um discurso despido da carga prescritiva. Neste ponto, o realismo diferencia-se das teorias sociológicas anteriores, especialmente da sociological jurisprudence, pois, enquanto elas tinham como finalidade básica oferecer aos juízes um modelo dogmático que orientasse a aplicação do direito, o realismo limitava-se a oferecer uma descrição do modo como o poder judiciário efetivamente operava.

O resultado dessa opção é que, em vez de fundar um discurso dogmático, o realismo origina um discurso estratégico, substituindo a clássica busca da solução juridicamente correta pela tentativa de estabelecer estratégias adequadas para influenciar um determinado juiz no sentido de que ele venha a tomar a decisão desejada pelo jurista. Como bem notou o jurista Edgar Bodenheimer, a adoção dessa perspectiva significa que os realistas norte-americanos passaram a estudar os fenômenos jurídicos desde a perspectiva do advogado[239].

Esta é uma peculiaridade muito importante, dado que marca uma diferença em relação à maioria das outras teorias jurídicas[240] que têm no juiz a sua figura principal. Enquanto as teorias jurídicas são normalmente centradas na figura do juiz e na pergunta “o que o juiz deve fazer para resolver adequadamente os casos a ele submetidos?”, o realismo concentra-se na figura do advogado e na tentativa de identificar as formas efetivas de atuação dos juízes, inclusive para capacitar os advogados a prever os resultados de um processo e a influenciar as decisões judiciais conforme seus interesses.

Ao partir da figura do advogado e não do juiz e ao adotar uma perspectiva meramente externa da atividade judicial (buscando unicamente descrevê-la, sem participar de seus pressupostos metafísicos), não faz sentido dentro do realismo jurídico a busca de uma resposta correta, dado ser impossível estabelecer critérios de correção. Nessa medida, por mais que possa oferecer uma descrição bastante minuciosa dos modos como se processa a atividade judicial, o realismo não pode (nem tem pretensões) a elaborar uma teoria hermenêutica dogmática, dado que o discurso dogmático é sempre um discurso interno (parte do dogma de que as normas têm algum sentido e que vinculam o juiz) e prescritivo (na medida em que oferece critérios para o agir e não apenas descrições de fatos).

4. Os limites do neopositivismo

Tanto os realistas quanto Kelsen partem da mesma indignação epistemológica, pois não reconhecem cientificidade às teorias sociologizantes de sua época, e buscam construir uma aproximação positivista epistemologicamente adequada. A diferença é Kelsen escolheu como objeto a norma, enquanto os realistas escolheram como objeto os fatos envolvidos na aplicação judicial do direito. Assim, Kelsen elaborou uma teoria pura do fenômeno normativo, que o conduziu a uma postura formalista e logicista, ao passo que os realistas foram conduzidos à necessidade de elaborar uma nova teoria sociológica do direito, adequada aos padrões de cientificidade do neopositivismo.

Em ambos os casos, a consciência epistemológica apurada e a busca de uma verdade metodologicamente controlada conduz essas vertentes aos limites do neopositivismo, que é um positivismo libertado do dogma iluminista de que a verdade conduz à emancipação política e não apenas à descrição adequada dos fatos. Para eles, a ciência não conduz à liberdade, não está engajada na defesa da justiça, mas movimenta-se apenas com o objetivo de conhecer o mundo de acordo com padrões de veracidade. Com isso, o neopositivismo gerou uma importante demarcação entre política e ciência, mas que ele desenvolveu apenas no sentido de produzir uma ciência sem política. Porém, restava intocado o problema fundamental da prática jurídica, que era a de como regular a dimensão política de sua produção hermenêutica.

Quando a filosofia analítica queimou as pontes entre valores e racionalidade, chegamos ao ponto kelseniano de considerar irracional todo julgamento valorativo. Esse é o altíssimo preço que a teoria pura do direito paga pelo seu formalismo: se apenas a lógica formal conduz à verdade científica, nenhuma apreciação material pode ser considerada mais racional que outra. Por isso é que Kelsen abdica da possibilidade de uma hermenêutica jurídica científica ser capaz de oferecer aos juízes uma metodologia adequada de interpretação. Portanto, na exata medida em que não se configura como um discurso jurídico capaz de organizar a prática política do direito (mas apenas a ciência do direito), o destino da teoria kelseniana nunca poderia ser o de transformar-se em senso comum.

Assim, tais teorias desempenharam a função de desmascarar a utilização política de argumentos pseudo-científicos, o que lhes confere um caráter crítico da maior relevância, pois contribuem para tornar os juristas conscientes de que a sua prática não pode ser reduzida à aplicação de nenhuma metodologia hermenêutica cientificamente. Entretanto, essa redução da cientificidade apenas ao aspecto descritivo, e a correspondente recusa de cientificidade a qualquer metodologia hermenêutica prescritiva, conduz o neopositivismo à elaboração de discursos epistemicamente sólidos, mas completamente incapazes de organizar o discurso dogmático que orienta a prática do direito.

Portanto, a importância científica e epistemológica do neopositivismo é incontestável, mas a sua implicação no senso comum dos juristas é muito limitada. Porém, o radical antidogmatismo dessas teorias nos levou a lidar de modo renovado com as questões da demarcação do direito e determinou o desafio que organiza o pensamento hermenêutico contemporâneo: o neopositivismo desafiou os juristas a elaborar discursos hermenêuticos dogmáticos que superassem o ceticismo radical quanto à racionalidade de qualquer metodologia de interpretação.

Capítulo VI - O senso comum dos juristas

1. O novo senso comum

Apesar de terem seguido caminhos muito diferentes, tanto o realismo como a teoria pura têm um ponto de partida comum: o pressuposto de que a ciência deve ser sempre um discurso externo e descritivo, e nunca interno e prescritivo, fez com que ambas as correntes negassem a possibilidade de que uma teoria científica justificasse escolhas valorativas e, conseqüentemente, rejeitassem como autocontraditória a idéia de uma dogmática científica. Não obstante esse fundamento comum, os caminhos seguidos foram quase opostos: enquanto realismo jurídico promoveu uma radicalização do ideal positivista de ciência empírica, a teoria pura enveredou pela veia do formalismo e da busca das estruturas lógicas fundamentais que caracterizavam a forma do direito, independentemente do seu conteúdo.

Com isso, o resultado obtido também foi imensamente diverso. De um lado, a obra de Kelsen deu origem a um modelo lógico-formal, constituindo uma teoria geral do direito que serviu como base para a construção tanto de uma epistemologia quanto de uma lógica jurídicas, mas que era desligada da prática jurídica efetiva. De outro, o realismo operou uma descrição do modo como o direito efetivamente se desenvolve, especialmente dentro dos tribunais, mas que era desligada de um sistema de conceitos que estruturasse um pensamento jurídico científico. Assim, enquanto a teoria pura descreveu a ciência como poderia ser, o realismo descreveu a realidade como ela era. Porém, nenhuma dessas correntes ofereceu as bases para uma teoria dogmática que superasse os modelos tradicionais imperativistas e sistemáticos, o que as fez ter uma repercussão limitada no modo de pensar dominante no senso comum dos juristas.

Em linhas gerais, podemos afirmar que as teorias tradicionais entendem o direito como um conjunto de regras que têm um sentido unívoco, sentido esse que pode ser percebido pelos juristas a partir de uma análise neutra e científica do sistema normativo. Exaltam essas correntes o valor da segurança e a busca de resguardar a racionalidade do sistema, o que leva vários juristas a considerar que a atividade jurídica pode ser reduzida à aplicação silogística de normas a fatos.

Já as correntes sociológicas costumavam defender um cientificismo tão arraigado quanto o das escolas tradicionais, embora substituindo o modelo lógico-dedutivo da química por um modelo teleológico inspirado na sociologia empírica. Vinculados a um positivismo sociológico, defendiam que os juízes não devem criar autonomamente o direito, mas que devem revelar o direito que surge espontaneamente na sociedade. Uma visão mais voluntarística do direito parece estar presente somente nas versões mais radicais do movimento do direito livre, especialmente na obra de juventude de Kantorowicz[241]. Porém, as vertentes menos revolucionárias desse movimento, como a de Ehrlich, apontavam para a necessidade de descobrir o direito não-estatal presente na sociedade e não para a necessidade de o juiz criar autonomamente regras jurídicas de acordo com a sua própria concepção de justiça.

Apesar do acirrado debate teórico que ocorreu na passagem do século XIX para o XX e da crítica ácida dirigida às teorias tradicionais pelos defensores das correntes sociológicas, o senso comum dos juristas continuou sendo dominado pelas primeiras. Não obstante a simpatia com que parte da opinião pública leiga e especializada tenha encarado as decisões do bom juiz Magnaud, apesar da grande produção teórica e das polêmicas geradas em torno das idéias de Ehrlich e Kantorowicz e mesmo que Holmes tenha sido nomeado juiz da Suprema Corte Norte-Americana, o senso comum continuou avesso à maior parte das inovações teóricas defendidas pelas várias teorias sociológicas, especialmente aquelas que apontavam para um papel mais ativo dos juízes. Nesse aspecto, o senso comum do começo do século tendia a continuar representando o juiz como um aplicador da lei e não como um agente político que deveria ter uma postura ativa na definição dos rumos do direito.

Assim, em vez de dar uma guinada rumo a uma visão mais sociológica ou a uma abertura no sentido de atribuir uma autonomia política mais acentuada aos juízes, as teorias que passaram a dominar o senso comum continuavam a preconizar uma submissão do juiz à lei e uma contenção dos aspectos subjetivos das decisões judiciais mediante o estabelecimento de critérios hermenêuticos tão objetivos quanto fosse possível construir. Nesse sentido, podemos pensar as correntes sociológicas como movimentos de vanguarda, que apontaram novos caminhos, mas que não alteraram profundamente o senso comum dos seus próprios contemporâneos. É certo que elas trouxeram novas perspectivas, que aos poucos foram sendo integradas ao discurso dominante, de tal forma que o fetichismo do silogismo e do sistema foram mitigados até o ponto de que a argumentação teleológica terminou ingressando no senso comum. E é desse senso comum renovado, que trata o presente capítulo.

Não obstante os ataques diretos ao literalismo e ao formalismo do normativismo novecentista, as correntes sociológicas não proporcionaram uma crítica aprofundada da objetividade e da segurança, pois elas também se vinculavam à busca de padrões hermenêuticos objetivos para a compreensão do direito. Assim, elas originaram inovações relevantes, especialmente a introdução da argumentação teleológica no discurso jurídico, mas sem colocar em questão a necessidade de erigir padrões objetivos de interpretação do direito. Com isso, ganhou importância a distinção entre direito e lei, pois as teses sociológicas ampliaram a abrangência do que se deveria considerar direito válido.

Nesse sentido, para recuperar uma categoria da filosofia analítica muito utilizada por Hart e reinterpretada por Dworkin, a sociologia funcionou como um discurso a partir do qual se operou uma crítica externa ao discurso legalista. Porém, essa era uma crítica que se pretendia externa ao legalismo, mas interna ao direito, o que implicou uma expansão no próprio sentido do que se considerava direito. Esse é um movimento revolucionário porque coloca em questão a base do próprio sistema, que são, para utilizar novamente um termo de Hart, as regras de reconhecimento do direito válido.

Mas justamente ao atacar o centro da concepção dominante, o positivismo sociológico não obteve êxito. Apesar da crise de legitimidade que inspirou a abertura sociológica ter sido percebida por todos, o núcleo do normativismo permaneceu intacto, pois a solução para essa crise não foi dada por meio de uma ampliação dos limites do direito para além da lei, mas pela elaboração legislativa de novos direitos e deveres, que buscaram adaptar o direito às novas relações sociais.

O discurso sociologista retirava muito de sua força do fato de que havia um grande descompasso entre a situação social e a regulamentação jurídica. Enquanto a decadência do estado liberal clássico se acirrava, mas seu sistema normativo ainda subsistia, o principal front das lutas jurídicas era hermenêutico. Nesse contexto, floresceu um pensamento interpretativo que procurava ser capaz de adaptar velhas leis às novas realidades sociais, pois a renovação da prática jurídica precisava ir muito além da norma positiva, na medida em que esta não oferecia elementos suficientes para subsidiar soluções percebidas como legítimas.

Porém, esse contexto foi profundamente alterado no decorrer das décadas de 30 e 40, quando o direito positivo foi gradualmente renovado, especialmente com o surgimento da legislação trabalhista e previdenciária, e com introdução e ampliação dos direitos de segunda geração. Assim, na medida em que o Estado Liberal cedeu espaço para o Estado Social, o front das lutas jurídicas foi transferido do plano hermenêutico para o plano legislativo, pois as conquistas dos direitos não eram feitas principalmente por reinterpretação de normas ultrapassadas, mas pela edição de novas leis.

Com isso, a partir do momento em que os legisladores passaram a dar uma resposta legislativa mais efetiva aos problemas de sua época, a questão hermenêutica deixou de ocupar o ponto central do debate jurídico, tornando-se desnecessárias as construções barrocas que os juízes se viram forçados a adotar para evitar decisões incompatíveis com os padrões vigentes de legitimidade. Assim é que o processo de abertura do discurso jurídico foi sendo deixado de lado, na exata medida em que a ampliação do próprio direito trouxe para o campo interno os principais elementos que lhe eram externos durante o século XIX. Para discutir a legitimidade, já não era mais preciso falar em justiça, em direito vivo, em lacunas, mas bastava fazer referência aos direitos fundamentais garantidos nos próprios textos constitucionais.

Daí seguiu-se que, a partir das décadas de 1920 e 1930, houve um relativo abandono das teses sociológicas propriamente ditas, mesmo pelos teóricos de vanguarda. As críticas das teorias sociológicas foram relevantes e contribuíram para a renovação dos debates jurídicos, mas o que restou delas foi aquilo que se pôde converter de crítica externa em crítica interna, que são justamente os elementos de que o pensamento normativista foi capaz de se apropriar.

Com isso, a argumentação teleológica foi parcialmente apropriada pelo discurso dominante, mas não como uma forma de abertura para os discursos morais e políticos, e sim como uma maneira de o discurso jurídico se auto-compreender normativamente. E, nessa medida, ela foi integrada ao discurso normativista, como a busca da finalidade da lei, construída com referência ao próprio discurso dogmático e não como forma de abertura elementos meta-jurídicos. Assim, a adoção do argumento teleológico não foi acompanhada por uma abertura sociológica efetiva, embora se tenha consolidado a idéia de que a devida compreensão de uma norma envolve a atribuição tanto de um significado quanto de uma finalidade. Dessa forma, a politização do direito (ocorrida especialmente com a valorização do discurso constitucional) tornou desnecessário o peso de uma politização do discurso jurídico, pois as referências normativas passaram a ser suficientes para a solução adequadas dos problemas contemporâneos.

Assim, houve um trânsito gradual nos desafios que se colocavam ao jurista. O envelhecimento do direito liberal e dos seus códigos deu margem a um déficit legislativo (traduzido na expressão luta dos fatos contra o direito) que se buscou superar por meio de uma teoria hermenêutica adequada. Porém, a gradual substituição do minimalismo do Estado liberal pelo intervencionismo do Estado social superou o déficit legislativo e instaurou um novo problema, que se radicalizou com a imensa produção legislativa realizada pelos Estados Democráticos de Direito: tornou-se claro que o principal problema a ser enfrentado era um déficit de eficácia, por meio da garantia da concretização dos direitos que já haviam sido legalmente atribuídos aos cidadãos. Assim, o que vivemos hoje é muito mais uma luta do direito contra os fatos, numa tentativa de conferir aplicação prática aos direitos consagrados na legislação.

Com isso, a crescente demanda pela modernização do direito, fortalecida por toda a pressão renovadora das escolas sociológicas, terminou por dar origem a um novo direito, muito mais amplo que o anterior, e repleto de normas cuja eficácia depende da implantação de políticas públicas específicas. Assim, essa renovação do direito legislado, com todas as dificuldades ligadas a sua aplicação, está na base dos problemas hermenêuticos sobre os quais os juristas enfrentam desde meados do século XX.

Creio que uma das principais evidências desse fato foi o virtual abandono de um problema tradicional: a questão das lacunas. Enquanto uma ordem jurídica deixa de tratar de fatos relevantes, ou trata-os de maneira inadequada, ganha espaço o debate acerca das lacunas, que lidam com o déficit normativo. Porém, essa situação mudou quando o próprio direito legislado passou a atribuir aos cidadãos mais direitos do que o Estado era capaz de assegurar na prática, especialmente levando-se em conta que os direitos de segunda geração somente são garantidos por meio de políticas públicas adequadas. Por tudo isso, as lacunas deixaram de ser uma questão relevante, exceto em situações muito especiais.

E o problema fundamental tornou-se o de elaborar uma dogmática que organizasse a aplicação do direito legislado, a compreensão dos direitos constitucionais recém-criados, a dinâmica da aplicação judicial dos direitos de segunda geração e uma série de outros desafios que não se resolviam mediante uma hermenêutica que possibilitasse a atualização do sentido de textos envelhecidos (desafio principal do final do século XIX), mas mediante uma hermenêutica que ressaltasse a importância das leis e de seu devido cumprimento. Assim, a mudança no perfil legislativo transformou os problemas metajurídicos em problemas jurídicos, de tal forma que as estratégias de alargamento do direito para além da legislação passaram a ser substituídas por estratégias de garantia de efetividade da legislação ampliada.

Dessa forma, resultado do embate entre as teorias tradicionais e as teorias sociológicas não foi propriamente uma teoria que sintetizasse as oposições entre ambos, mas uma espécie de atualização das teorias tradicionais, a partir de alguns elementos inspirados na crítica sociológica. A partir da década de 20, as teorias subjetivistas da interpretação foram definitivamente relegadas a um segundo plano e a aplicação silogística e dedutiva do direito cedeu cada vez mais espaço para um raciocínio teleológico centrado na idéia de que a norma deve cumprir suas finalidades sociais. Porém, embora referências à justiça social e aos interesses públicos tenham passado a ser cada fez mais freqüentes, elas sempre foram mitigadas por um forte apego à estabilidade. Não obstante fosse cada vez mais comum admitir que o movimento do direito livre tinha alguma razão em seus questionamentos, essa afirmação quase sempre vinha temperada com a idéia de que a “bravura semi-revolucionária”[242] dessas correntes não poderia ser defendida em todo o seu rigor.

Reconhecia-se, com isso, a importância histórica da crítica realista às teorias tradicionais e a sua função de vanguarda renovadora, mas poucos eram os juristas que estavam dispostos a aplicar tais métodos a sua própria prática. Por conta disso, a postura mais típica é a que podemos encontrar desde Heck, na década de 1910, passando por Carlos Maximiliano e Emilio Betti, nas décadas de 1920 e 1950, respectivamente, e chegando até os dias de hoje, é uma concepção intermediária que busca aliar um discurso normativista com certos aspectos de teleologia social. Essa postura de meio-termo é traduzida de forma exemplar pelo civilista contemporâneo Caio Mário da Silva Pereira:

A posição correta do intérprete há de ser uma posição de termo médio. Sem negar a supremacia da lei escrita como fonte jurídica, pois nisto está a idéia fundamental do ordenamento jurídico regularmente constituído, deverá tomar da escola científica a idéia de que a lei é um produto da sociedade organizada, e tem uma finalidade social de realizar o bem comum. A pretexto de interpretar, não pode o aplicador pender para o campo arbitrário e julgar a própria lei, de recusar-lhe aplicação ou de criar um direito contrário ao seu texto. Se interpretar a lei não é indagar o que alguém disse, mas o que está objetivamente nela consignado, e se na omissão do texto devem-se invocar as forças criadoras dos costumes sociais, da eqüidade, da jurisprudência, das necessidades sociais — a sua aplicação há de atender à sua finalidade social e às exigências do bem comum. Nem o fetichismo da lei e a proclamação da sua perfeição como obra completa de um legislador todo-poderoso e onisciente, nem o excesso oposto do direito livre.[243]

Porém, não obstante vários autores terem buscado sinceramente construir um meio termo entre tradição e sociologia, em certos casos a negação dos pressupostos tradicionais ocorreu mais no nível da retórica que no das concepções de fundo. Isso ocorreu porque parte da teoria tradicional apropriou-se muito mais do discurso sociologista que do conteúdo sociológico, o que pode ser entrevisto no grande apego de Ferrara à segurança e na limitação da Jurisprudência dos interesses às finalidades consagradas pela própria lei. Em casos como esse, apesar de ter havido um afastamento da vinculação dos juízes à interpretação gramatical e à vontade do legislador, isso ocorreu menos por uma acentuação de critérios sociológicos que por uma ampliação da importância da interpretação sistemática.

Nessa medida, o discurso jurídico incorporou expressões tais como interesse público ou finalidade social da lei, mas não lhes conferiu um sentido realmente sociológico nem lhes garantiu uma posição central na prática jurídica. Para muitos juristas, essas expressões servem apenas para dar um verniz sociológico a teorias francamente normativistas, tal como um professor que afirma no primeiro dia de aula que “entre o direito e a justiça, deve-se ficar com a justiça”, para durante o resto do semestre, ensinar aos alunos o modo tecnicamente correto de aplicar as leis e os conceitos jurídicos aos casos concretos e, com isso, capacitá-los a encontrar soluções adequadas ao sistema jurídico.

Assim, embora fosse possível identificar uma certa busca de harmonizar realismo e formalismo, o equilíbrio encontrado quase sempre tendia a privilegiar a estabilidade do formalismo (mais segura, palpável e ligada à ideologia liberal), em detrimento do audacioso sentimento de justiça dos realistas, isso quando não consistia simplesmente na apropriação apenas das expressões sociológicas para dar um verniz de modernidade a teorias que praticamente repetiam alguma das versões do normativismo tradicional.

Além disso, devemos ressaltar que, apesar de terem sido submetidas a críticas incessantes desde o fim do século XIX, em momento nenhum as teses tradicionais deixaram de ter os seus defensores. Na década de 60, por exemplo, o argentino Sebastián Soler afirmava que “lo importante en este tema, y en lo cual nos apartamos del punto de vista de algunos modernos, consiste en subrayar que el juez no crea nada: todos los elementos le son dados, y su tarea es estrictamente de estructuración y ensamblaje”[244]. Para ele, “todo el material manejado y ordenado por el intérprete no es puesto, creado o inventado por él. La totalidad de esos preceptos es derecho vigente, y solamente como tal puede entrar a formar parte de una norma decisoria”[245].

Nos dias de hoje, contudo, embora essas idéias estejam presentes no senso comum, dificilmente se encontrará um autor que as defenda de maneira clara. Porém, basta observar o discurso jurídico efetivamente utilizado nas decisões judiciais para lá encontrar, subjacente às argumentações, a noção de que o juiz está dando ao caso a solução racionalmente extraída do sistema, a partir de um argumento silogístico que concatena, de forma técnica e não política, os conceitos desenvolvidos pela ciência do direito.

2. A Jurisprudência dos interesses

A corrente que melhor representou essa tentativa de harmonização entre segurança e justiça foi a Jurisprudência dos interesses, que consolidou-se na teoria germânica na primeira metade do século XX. Após a unificação da Alemanha, o positivismo científico da pandectística foi gradualmente cedendo espaço a um positivismo legalista, fundado no estudo das leis nacionais elaboradas nas últimas décadas do século XIX. Esse legalismo (que embora se oponha ao romanismo dos pandectistas, na prática faz pouco mais que aplicar a metodologia da jurisprudência dos conceitos ao direito legislado) surge sob profundas críticas, já que as teorias de viés teleológico e sociológico promoveram nessa época uma profunda revisão acerca do sentido do direito e do papel dos juristas.

Sob influência dessas críticas, parte relevante da Jurisprudência alemã tentou encontrar um equilíbrio razoável entre as tendências formalistas tradicionais e as idéias sociológicas então renovadoras, sendo que essa busca de adaptar o normativismo dominante a algumas idéias de cunho teleológico deu origem à Jurisprudência dos interesses. Essa corrente, cujo próprio nome mostra sua contraposição à tradicional Jurisprudência dos conceitos, é uma das mais conhecidas das escolas teleológicas e certamente a que teve maior influência na prática jurídica.

Seu principal expoente foi Philipp Heck, que escreveu suas principais obras no início do século XX e, inspirado pelo finalismo das últimas obras de Jhering, sustentou que a função da atividade judicial era possibilitar a satisfação das necessidades da vida presentes em uma comunidade jurídica. Segundo o próprio Heck, “o escopo da Jurisprudência e, em particular, da decisão judicial dos casos concretos, é a satisfação de necessidades da vida, de desejos e aspirações, tanto de ordem material como ideal, existentes na sociedade. São esses desejos e aspirações que chamamos interesses e a Jurisprudência dos interesses caracteriza-se pela preocupação de nunca perder e vista esse escopo nas várias operações a que tem de proceder e na elaboração dos conceitos”[246].

Seguindo a trilha aberta por Ihering, essa concepção entendia que as normas jurídicas eram uma resposta social aos conflitos de interesses. Nessa medida, a relação entre interesses e normas era dúplice: por um lado, as normas eram produtos dos interesses sociais e, por outro, elas tinham como objetivo regular os choques existentes entre os vários interesses conflitantes. Com isso, os interesses devem ser vistos tanto como causas quanto como objetos das normas. Esse dúplice aspecto conduz o pensamento jurídico a duas operações que se coordenam.

A primeira, é a de investigar historicamente os interesses que levaram à produção de uma determinada regra jurídica[247], pois a interpretação dessa norma deverá sempre levar em consideração que o seu objetivo era satisfazer os interesses que a determinaram. Porém, além de causas, os interesses também são objetos de valoração por parte normas, pois elas ordenam os interesses conflitantes, na tentativa de promover certos valores socialmente relevantes. Para Heck, a finalidade das normas é garantir os interesses que ela julgou mais valiosas e, portanto, a interpretação não se pode limitar à reconstrução histórica dos interesses causais, mas deve promover a realização prática do equilíbrio de interesses que a norma visa a garantir, o que exige um pensamento teleológico.[248]

Como a sociedade encontra-se em constante transformação, uma pesquisa histórica que se limite a identificar os interesses originais que motivaram a criação de uma norma pode levar a soluções que não mais satisfazem os valores que a própria norma visava a garantir. Como a forma de garantir adequadamente um interesse pode ser modificada com o tempo, é preciso “corrigir as idéias apuradas historicamente”[249] e reelaborar constantemente os conteúdos das normas, com o objetivo de adequá-las às novas realidades sociais. Evidencia-se, assim, que, mesmo nesses casos, o que essa concepção defende não é uma propriamente uma investigação sociológica autônoma, mas a admissão de elementos sociológicos que possam servir como base para que se ofereça proteção adequada aos interesses que a própria norma visava a proteger. Nas palavras do próprio Heck, “el juez no tiene que considerar los intereses concretos en la complexión total de su real existencia, sino aquellas notas de los mismos que sean utilizadas en el orden jurídico”[250].

Percebe-se, então, que a Jurisprudência dos interesses não defendia, como o movimento do direito livre, uma análise do direito espontaneamente criado pela sociedade, pois as suas preocupações sociológicas vinham agregadas a uma forte dimensão legalista. Isso fazia com que ele afirmasse que “toda decisión debe ser interpretada como una delimitación de intereses contrapuestos y como una estimación de esos intereses, conseguida mediante juicios e ideas de valor”, mas defendesse também que os valores a serem utilizados não eram os dos juízes nem os da sociedade em geral, mas apenas aqueles contidos na própria lei[251]. Assim, percebe-se que, ao agregar o normativismo ao discurso finalístico, essa concepção não propunha uma análise autônoma dos interesses sociais, mas encarava um estudo dos interesses como parte de um método adequado de interpretação das leis. Tratava-se, pois, de uma teoria dogmática interpretativa que se propunha a levar em consideração os interesses sociais, e não propriamente uma teoria sociológica.

Portanto, frente a um caso concreto, a jurisprudência dos interesses não remete diretamente à pesquisa sociológica, mas à ponderação de acordo com critérios de avaliação explícita ou implicitamente contidos na lei. Como aponta Hespanha, enquanto as escolas sociológicas propunham formas antilegalistas de encontrar o direito, a jurisprudência dos interesses trabalhava dentro dos limites do normativismo. Assim, embora nem sempre se decida com base na letra da lei, “está-se pelo menos a respeitar a avaliação dos interesses legalmente estabelecidos e a partir dela para um construtivismo de outro tipo. Não o da dedução conceitual típica da pandectística, mas o da análise das valorações legais e de sua extensão a casos não previstos”[252].

Ao apresentar o direito como instrumento voltado à realização da finalidade de realizar os interesses sociais, essa concepção possibilitou a integração no discurso jurídico de elementos sociais, econômicos, morais e outros, que eram rejeitados pelo positivismo legalista dominante. Essa tentativa de harmonizar o discurso legalista a certos aspectos sociológicos deu origem a uma concepção que não defendia o abandono nem a superação da lei, mas a aplicação do direito positivo dentro de parâmetros socialmente adequados. Com isso, a Jurisprudência dos interesses foi um passo decisivo na construção das teorias jurídicas que explicitamente tentavam equilibrar os ideais de segurança e de justiça e que vieram a se impor como as concepções hermenêuticas dominantes no senso comum dos juristas, espaço que ocupam até os dias de hoje[253].

Especialmente após a II Guerra Mundial, a Jurisprudência dos interesses tornou-se a teoria dominante na prática jurídica alemã, onde “revolucionou efectivamente a aplicação do direito, pois veio a substituir progressivamente o método de uma subsunção lógico-formal, nos rígidos conceitos legislativos, pelo de um juízo de ponderação de uma complexa situação de facto, bem como de uma avaliação dos interesses em jogo”[254]. Por conta disso, Larenz afirma que ela “deu aos juízes uma consciência sã, tornando frequentemente supérfluas as pseudo-motivações”[255] e facilitando a flexibilização das interpretações no sentido da tomada de decisões socialmente desejáveis e adequadas.

É um meio-termo desse tipo que, por exemplo, orienta as regras de interpretação contidas na Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), que data de 1942 e reflete a teoria tradicional temperada por alguns influxos teleológicos que dominava o senso comum da época. Por um lado ela reafirma o ideal novecentista de um sistema jurídico completo, na medida em que afirma que, “quando a lei dor omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” (LICC, art. 4o). Com isso, a lei oferece ao juiz apenas a possibilidade de utilizar critérios intra-sistemáticos para o tratamento de casos em que a legislação for omissa, fechando-lhe as portas para a utilização da eqüidade ou de algo próximo à livre investigação científica de Gény. Outras legislações, como foi o caso do Código Civil Suíço de 1907, trataram a questão de maneira diversa, afirmando expressamente a possibilidade da eqüidade, pois determina que “deve o juiz, quando se lhe não depara preceito legal apropriado, decidir de acordo com o direito consuetudinário e, na falta deste, segundo a regra que ele próprio estabeleceria se fora legislador”[256].

Apesar dessa vinculação parcial à teoria tradicional, a LICC também demonstra influência das escolas teleológicas, na medida em que afirma que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” (art. 5o). Percebe-se, assim, que esta lei consagra posições muito próximas à Jurisprudência dos interesses de Heck, pois mescla o normativismo tradicional a certos aspectos teleológicos, vinculando o juiz à interpretação da lei, mas também indicando a necessidade de uma investigação sobre os fins sociais que a lei visa a proteger e de uma atualização histórica que adapte a interpretação da norma às exigências sociais do momento de sua aplicação.

3. O sentido objetivo da lei

Uma das principais diferenças entre o novo senso comum e a teoria tradicional do século XIX foi o fato de que nele a vontade do legislador desempenhava um papel bastante diminuído. Embora não tenham cessado as referências à intenção do legislador, elas foram reduzidas tanto em número como em importância, o que pode ser caracterizado como um gradual declínio das teorias subjetivistas, que começou ao final do século XIX e consolidou-se por volta da década de 20.

Enquanto Gény opunha-se apenas ao uso artificial e hipócrita das referências à vontade do legislador, muitos juristas do início do século XX, seguindo a trilha que havia sido aberta na Alemanha pelos defensores da teoria objetivista da interpretação[257], criticaram a própria noção de que a interpretação de uma norma corresponda à identificação da vontade do legislador. Juristas do peso de Vander Eycken[258], na Bélgica, e de Francesco Ferrara[259], na Itália, produziram obras em que opunham-se frontalmente à validade utilização hermenêutica do conceito de vontade do legislador.

Apesar de toda a crítica efetuada pelas escolas sociológicas e pelo fortalecimento das teorias objetivistas da interpretação, a concepção subjetivista ainda era dominante no senso comum dos juristas nas primeiras décadas do século XX[260], havendo várias manifestações em sua defesa por juristas influentes como Capitant, que afirmou, no início da década de 20, que:

Uma teoria nova sustenta que a lei, uma vez promulgada, destaca-se da vontade do legislador e torna-se um organismo independente, vivendo uma vida própria. [...] Essa concepção nos parece inaceitável. A lei não vale senão como declaração de vontade; separada do pensamento que a inspirou, ela perde toda sua força, ela torna-se um texto morto suscetível de receber as mais diversas interpretações. Somente a vontade que a presidiu em seu nascimento lhe confere a solidez e a rigidez que fazem a superioridade do direito escrito. [261]

Entretanto, as teorias subjetivistas foram cedendo espaço aos poucos, tornando-se paulatinamente mais raro que um jurista sustente que a função da hermenêutica jurídica é reconstruir o pensamento original do seu autor. O primeiro passo nesse sentido foi dado pelas teorias objetivistas de autores como Kohler e Wach, que ainda defendiam teses típicas da Jurisprudência dos Conceitos, ligadas a uma análise lógico-conceitual em que não desempenhavam qualquer papel referências às finalidades sociais das normas.

Outros autores insistiam na necessidade de buscar a vontade do legislador, mas admitiram ser possível que “se observe não só o que o legislador quis, mas o que ele quereria, se vivesse no meio atual, enfrentasse determinado caso concreto hodierno, ou se compenetrasse das necessidades contemporâneas de garantias, não suspeitadas dos pelos antepassados”[262]. Contudo, essa gradual substituição da intenção efetiva do legislador histórico por uma abstrata vontade de um legislador racional não passava de uma tentativa relativamente tímida de conciliar as necessidades sociais com o discurso tradicional.

Porém, essas formas disfarçadas de inserir elementos sociológicos no discurso tradicional foram sendo enfraquecidas à medida em que elementos do pensamento finalístico das escolas sociológicas foram sendo assimilados pelo senso comum dos juristas, permitindo um abandono efetivo o discurso subjetivista e uma admissão expressa de critérios teleológicos de interpretação. Essa modificação do senso comum dos juristas ocorreu especialmente por obra de juristas como Francesco Ferrara e Carlos Maximiliano, que buscaram, a partir da década de 1920, atualizar as teorias tradicionais por meio da admissão de algumas das teses sociológicas menos revolucionárias.

· Francesco Ferrara e a mens legis

Uma das expressões mais conhecidas dessa síntese entre as teorias sociológicas e tradicionais encontra-se na clássica obra Interpretação e aplicação das leis, de Francesco Ferrara, publicada em 1921. De acordo com esse jurista italiano, a hermenêutica tradicional incorria em equívoco ao estabelecer como finalidade principal a busca da vontade do legislador (mens legislatoris ou voluntas legislatoris) e sustentava que a função do intérprete seria determinar o sentido objetivo da lei, pois a lei “não é o que o legislador quis ou quis exprimir, mas tão sòmente aquilo que ele exprimiu em forma de lei”.[263]

Segundo Ferrara, cada norma tem em si um sentido imanente e que permanece vivo e que pode não coincidir com a vontade dos redatores da lei. Portanto, o que o intérprete deve buscar não é a voluntas legislatoris, mas a voluntas legis, a vontade da própria lei[264]. Dessa forma, “o intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece como objectivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris”.[265]

Mas onde se pode encontrar essa vontade da lei, distinta da vontade do seu autor? É nesse ponto que Ferrara vincula-se às correntes teleológicas, pois afirma que a mens legis deve ser buscada na finalidade da própria norma, pois a norma deve ser entendida “no sentido que melhor responda à realização dos fins sociais que ela visa a obter”. Por isso, segundo Ferrara, o “juiz há-de ter sempre diante dos olhos o escopo da lei, o resultado prático que ela se propõe conseguir. A lei é um ordenamento de relações que mira a satisfazer certas necessidades e deve interpretar-se no sentido que melhor responda a essa finalidade, e portanto em toda a plenitude que assegure tal tutela.”[266]

Mas onde devem ser buscadas as finalidades de uma norma? Segundo Ferrara, os fins do direito não serão descobertos a partir de uma análise das próprias normas jurídicas nem podem ser deduzidas de um sistema abstrato de valores. Os objetivos do direito precisam ser pesquisados na própria realidade, nos interesses individuais e coletivos, nas exigências econômicas e sociais que brotam das relações entre os homens. Nessa medida, “a interpretação não se desenvolve como método geométrico num círculo de abstracções, mas perscruta as necessidades práticas da vida e a realidade social”[267].

Ferrara, portanto, contrapõe-se à teoria hermenêutica tradicional, pois rejeita tanto a idéia de que interpretar é esclarecer a vontade do legislador quanto a postura de que a atividade judicial deve limitar-se ao conhecimento das normas positivadas. E ao afirmar que a interpretação deve fundar-se na finalidade da norma, a qual somente pode ser identificada a partir de um minucioso estudo das relações sociais, Ferrara mostra ter sido influenciado pelas correntes sociológicas do direito, dentro da vertente teleológica que estava em ascensão no início do século XX.

Porém, apesar de alinhar-se aos juristas que propunham uma renovação nos métodos hermenêuticos e de ter destacado o importante papel da escola do direito livre no sentido de ter renovado as discussões hermenêuticas e contribuído para a superação do logicismo exagerado das teorias tradicionais, devemos ressaltar que Ferrara, que tal como Gény, não optou por uma radicalização do sociologismo, mas buscou um meio termo entre flexibilização e objetividade[268].

Opondo-se às teorias que postulavam uma grande liberdade do juiz na criação do direito, especialmente à escola do direito livre, Ferrara permanecia leal aos ideais de segurança que inspiravam as teorias tradicionais e a sua defesa da supremacia da mens legis sobre a mens legislatoris não implicava uma defesa da liberdade decisória dos juízes, mas a fixação de um critério objetivo para a aplicação do direito, pois entendia Ferrara que “o juiz está submetido às leis, decide como a lei ordena, é o executor e não o criador da lei”[269].

· Carlos Maximiliano e o sentido objetivo da lei

No Brasil, a revisão da teoria tradicional da interpretação, especialmente o gradual descrédito das referências à vontade do legislador, deve-se em grande parte aos esforços de Carlos Maximiliano que, em 1924, escreveu sua célebre obra Hermenêutica e aplicação do direito, por meio da qual divulgou no Brasil as teorias hermenêuticas ligadas às correntes de linha sociológica, tais como as concepções defendidas de Wurzel, Pound e Ehrlich. Embora o sociologismo jurídico fosse uma teoria importante no cenário internacional desde o final do século XIX, foi especialmente com a divulgação proporcionada pela obra de Maximiliano que tais idéias ganharam espaço na teoria hermenêutica nacional.

O objetivo declarado de Maximiliano era combater a hermenêutica então vigente no senso comum, qualificada por ele como atrasada e conservadora. No prefácio da obra, chegou a afirmar que “em toda parte o foro é demasiado conservador; o que a doutrina há muito varreu das cogitações dos estudiosos, ainda os causídicos repetem e juízes numerosos prestigiam com seus arestos”, e, por isso, era preciso “destruir idéias radicadas no meio forense, porém expungidas da doutrina triunfante no mundo civilizado.”[270] Porém, embora Maximiliano fosse influenciado pelas novas idéias sociológicas, ele não manifestava o mesmo arroubo revolucionário de Kantorowicz ou Ehrlich, tendo reconhecido expressamente que adotava uma posição intermediária “entre as estreitezas do passado e as audácias do futuro”[271].

Contra a então dominante teoria hermenêutica, baseada na Escola da Exegese francesa, afirmou que não se podia continuar a atribuir à interpretação o objetivo de revelar a vontade do legislador, justificando sua posição com os argumentos típicos da teoria sociológica. Sustentava, principalmente, que tal vontade não passa de uma ficção, pois é impossível descobrir qual era a intenção original dos autores da norma interpretada.

Afirmava também que a lei não brota do cérebro do seu elaborador, que ela não é fruto de um ato independente de vontade, sustentando que, em nosso pensamento, há uma parte individual mas também uma parte sociológica. Mesmo que o legislador creia exprimir o que pensa, esse pensamento normalmente não é seu, pois é condicionado pelas relações sociais dentro das quais exerce suas funções. Embora não se possa negar completamente a influência da subjetividade do autor sobre a obra, no campo legislativo a relevância da vontade pessoal do autor deve ser relativizada, pois ação do ambiente é normalmente tão decisiva que “o indivíduo que legisla é mais ator do que autor; traduz apenas o pensar e o sentir alheios”[272].

Reconhecia que a doutrina da intenção do legislador foi herdada de tempos em que era mais viável identificar essa vontade, na medida em que era um monarca absoluto que legislava. Porém, o que é a vontade do legislador no caso das democracias atuais, em que a legislação cabe normalmente a um parlamento com centenas de representantes do povo? Várias são as dificuldades na identificação da intenção efetiva de um órgão colegiado.

As palavras dos oradores ou as exposições nem sempre expressam os motivos que efetivamente levaram os parlamentares a aprovar uma lei; pelo contrário, muitas vezes servem justamente para ocultar as reais intenções por trás de argumentos mais palatáveis para a opinião pública.

Além disso, soma das diversas vontades dos vários congressistas não se deixa reduzir a uma vontade comum, única ou consensual. São tantos os posicionamentos que têm que ser levados em consideração que o texto final termina sendo um amálgama de posições incompatíveis, de tal forma que há apenas um acordo aparente. Com isso, muitas vezes o texto resulta demasiadamente impreciso e ambíguo, o que revela claramente a inexistência de um consenso efetivo em sua base.

Ademais, os motivos que levam um parlamentar a aprovar um projeto de lei são os mais diversos. Uns aprovam por concordarem com os objetivos, outros apenas para seguir a orientação do partido, outros ainda para não causar atritos com suas bases, com colegas que lhe poderão ajudar no futuro ou com certos grupos sociais relevantes. Alguns parlamentares rejeitam um projeto por concordar com seus fins e não com seus meios, outros apenas porque querem projetar na mídia uma determinada imagem: progressistas, corajosos, moralistas etc. Alguns votam para atender a pedidos dos financiadores da campanha, da esposa, dos amigos. Frente a essa situação, perguntava Maximiliano: “como descobrir, naquele labirinto de idéias contraditórias e todas parcialmente vencedoras, a vontade, o pensamento, a intenção diretora e triunfante?”[273]

Outro elemento importante na discussão é o fato de que é normalmente frente a casos complexos e novos que nos perguntamos mais seriamente sobre a vontade do legislador. Frente às situações habituais ou pouco complicadas, a intenção do legislador é raramente invocada. Todavia, parece que é justamente nesses casos que vontade dos autores da lei é o menos útil dos guias. Como afirmou Maximiliano:

Se fôssemos, a rigor, buscar a intenção ocasional, precípua do legislador, o encontraríamos visando horizonte estreito, um conjunto de fatos concretos bastante limitado. Quase sempre a lei tem por fundamento um abuso recente; os seus prolatores foram sugestionados por fatos isolados, nitidamente determinados, que impressionaram a opinião, embora a linguagem mantenha o tom de idéias gerais, preceito amplo. O legislador não suspeitou as múltiplas conseqüências lógicas que poderiam ser deduzidas de suas prescrições; não estiveram na sua vontade, nem se encontraram na sua intenção.[274]

Por tudo isso, Maximiliano sustenta que a vontade do legislador é um critério hermenêutico muito problemático e que não deveria ser tratado como o problema central da interpretação. Com a sua promulgação, a norma adquire vida própria, tornando-se autônoma em relação ao legislador e, portanto, cabe ao jurista determinar o sentido objetivo da norma e não esclarecer o sentido desejado pelo seu autor. Afirma, por fim, que, em vez de interpretar olhando para o passado, dever-se-ia interpretar com os olhos voltados ao presente, adaptando a norma às necessidades sociais contemporâneas.

Assim, Maximiliano conclui que o processo de interpretação não pode ser reduzido a uma simples descoberta do sentido desejado pelo autor da lei, mas que deve inserir-se no processo sociológico de adaptação do direito ao contexto social que permanece em constante mutação. Dessa forma, a interpretação não é vista por ele nem como uma expressão da vontade do julgador nem como um esclarecimento do pensamento do legislador, mas como uma atividade executada de acordo com as necessidades sociais. Nesse sentido, chegou a afirmar que “sob qualquer dos seus aspectos, a interpretação é antes sociológica que individual”[275], o que deixa bastante claro ter sido ele influenciado pelas teorias sociológicas/teleológicas que haviam ganhado força no cenário internacional de sua época.

4. Consolidação do argumento teleológico

Não obstante ter defendido certos aspectos coincidentes com as teorias sociológicas, Carlos Maximiliano combatia expressamente o radicalismo subjetivista de Magnaud e de Kantorowicz, afirmando, já na década de 20, que a livre indagação moderada era destinada a um brilhante futuro enquanto os “extremados tiveram a rutilância fugaz de estrelas cadentes”[276]. Esse vaticínio em grande parte realizou-se, tanto que a teoria moderada de Carlos Maximiliano tem-se mantido até os dias de hoje como a principal referência hermenêutica na cultura jurídica brasileira.

Para Maximiliano, o “furacão revolucionário” apontou adequadamente os males da teoria tradicional, mas equivocou-se quanto aos remédios sugeridos, pois buscava substituir o método exegético tradicional (também chamado de dogmático) por um vazio metodológico que não implicaria um avanço, mas um retrocesso que sobreporia a vontade de um só homem à vontade coletiva[277]. Em vez disso, ele propõe que se adote um método histórico-evolutivo, que não se reduzia ao historicismo de Savigny e Hugo.

Para Carlos Maximiliano, se o historicismo alemão teve o mérito de evidenciar a necessidade de uma interpretação histórica, ele não era capaz de promover uma adaptação do direito aos fatos sociais em constante mutação. Assim, em oposição ao historicismo tradicional, aliou-se aos defensores de um método interpretativo histórico-evolutivo, que buscava complementar a pesquisa sobre as origens da norma a ser aplicada com um desenvolvimento atualizador que respeitasse a evolução do direito e da sociedade. Esse método deveria ser capaz de adaptar o direito “às exigências sociais imprevistas, às variações sucessivas do meio” sem que o juiz substituísse o sentido objetivo da lei pela sua vontade individual, pois o intérprete “não cria prescrições, nem posterga as existentes; deduz a nova regra, para um caso concreto, do conjunto das disposições vigentes, consentâneas com o progresso geral”[278].

Baseando-se expressamente em Ferrara, Maximiliano divide a interpretação em dois momentos interconectados, uma primeira etapa de pesquisa histórica que tende a indagar da intenção dos legisladores e dos interesses que produziram a lei, acompanhada de uma segunda etapa, na qual não se busca o fundamento original, mas o fundamento contemporâneo da norma.[279] É por conta dessa soma de um elemento histórico a um elemento atualizador que a teoria recebe o nome de histórico-evolutiva.

Percebe-se, assim, que as conclusões de Maximiliano são bastante próximas às da Jurisprudência dos interesses de Heck[280] (bem como de boa parte da produção hermenêutica no campo do direito até os dias de hoje) e representam um desenvolvimento das idéias finalísticas de Jhering. Tal como Heck e Ferrara, Maximiliano busca identificar os fins que inspiraram o legislador, a partir da presunção de que o legislador tinha certos objetivos em mente e elaborou a lei como uma forma de editar meios razoáveis para atingi-los. Sustenta, assim, que “o espírito da norma há de ser entendido de modo que o preceito atinja completamente o objetivo para o qual a mesma foi feita, porém dentro da letra dos dispositivos. Respeita-se esta, e concilia-se com o fim”[281].

Percebe-se, assim, que o chamado método histórico-evolutivo é característico de um discurso que busca salvaguardar a segurança jurídica a partir de uma valorização da lei como limitação ao arbítrio dos juízes, mas que pretende também garantir a possibilidade de uma flexibilização da literalidade da norma em função de assegurar os interesses sociais predominantes. Esse duplo objetivo faz com que os defensores dessa teoria continuem admitindo os argumentos de ordem sistemática, mas abram também algum espaço para o uso de referências teleológicas baseadas nos interesses sociais.

Porém, o apelo sociológico dessa perspectiva é sempre moderado, pois seus membros tendem a afirmar, tal como Maximiliano, que se deve “apelar para os fatos sociais com reserva e circunspecção, a fim de evitar o risco de fazer prevalecerem as tendências intelectuais do juiz sobre as decorrentes dos textos, e até mesmo sobre as dominantes no meio em que ele tem jurisdição, como sucedeu em França, com o magistrado Magnaud”[282].

Esse sociologismo moderado, que igualmente pode ser chamado de tradicionalismo moderado, é fundado em um ecletismo que termina por acarretar problemas teóricos mais ou menos sérios. Em especial, na tentativa de unir os pontos positivos das escolas tradicionais e das sociológicas, afirma-se que é preciso olhar com ressalvas para os argumentos teleológicos, mas não se oferecem critérios seguros para determinar os casos em que é necessário utilizar as referências à realidade social ou às conseqüências de uma decisão.

Como a ausência desses critérios acaba minando a segurança jurídica que a teoria buscava garantir, surge um risco muito grande de que os argumentos sociológicos sejam sempre preteridos em favor de argumentos mais formalistas, de tal forma que os resultados práticos do método histórico-evolutivo acabem igualando-se aos dos métodos tradicionais, apesar da diferença no discurso de aplicação. Outro risco é o de construir teorias com demasiados pontos de contradição, como em grande medida fez o próprio Carlos Maximiliano, que critica severamente as referências à vontade do legislador em um ponto[283] para depois aceitar a busca dessa intenção como elemento relevante[284].

De toda forma, por mais que se possa apontar defeitos teóricos estruturais nessas teorias, elas têm grande capacidade de orientar um discurso dogmático acerca do direito, pois a tentativa de agregar legalismo e justiça mostrou-se altamente sedutora para os juristas práticos, mais preocupados com a funcionalidade da teoria do que com seu valor epistemológico, com a aceitabilidade social das decisões do que com sua coerência sistemática. Constatação semelhante levou Karl Larenz a admitir que “assim como a Jurisprudência dos interesses é deficiente como teoria, mas foi de grande utilidade prática, a teoria pura do Direito atinge um alto grau como teoria, mas do ponto de vista prático os seus resultados são pobres”[285]. E são justamente as teorias intermediárias, semelhantes à Jurisprudência dos interesses, que dominam o senso comum até os dias de hoje.

Capítulo VII - O Cruzamento dos caminhos: hermenêutica filosófica e jurídica

1. Os limites metodológicos da hermenêutica tradicional

Até meados do século XX, as discussões da hermenêutica jurídica não se envolveram com as da hermenêutica filosófica. A hermenêutica jurídica seguiu seu caminho dogmático e metodológico, desenvolvendo um discurso positivista que culminou no peculiar sincretismo que moldou o senso comum dos juristas no século XX: uma base formalista e sistemática, ligeiramente temperada com argumentos teleológicos. Esse é um discurso que se tornou especialmente sedutor na medida em que ele ofereceu aos juristas uma linguagem na qual eles podiam enxergar a própria prática e falar sobre ela de modo transparente. Essa me parece ser a grande virtude dos discursos de Ferrara e Maximiliano, que oferecem um mosaico pouco coeso e categorias pouco precisas, porém todas elas dotadas de um alto grau de simplicidade. No fundo, eles não oferecem uma metodologia interpretativa, mas apenas algumas categorias básicas e alguns topoi capazes de organizar o discurso de aplicação do direito.

O que os move é uma vontade de sistema, expressada pelo próprio Maximiliano quando afirma que ele buscava sistematizar os processos aplicáveis à determinação do sentido e do alcance das normas[286]. Porém, o que eles oferecem não é uma metodologia interpretativa impessoal e objetiva, mas o esforço de mapear os debates hermenêuticos de sua época e oferecer uma orientação adequada para o discurso prático. Ao tratar do elemento teleológico, por exemplo, Maximiliano afirma que “o hermeneuta usa, mas não abusa da sua liberdade ampla de interpretar os textos; adapta os mesmos aos fins não previstos, porém compatíveis com os termos das regras positivas”[287]. Que significa isso? Uso e abuso são noções vagas, usadas de modo impreciso, e que organizam um discurso tópico. Não se trata de um método científico impessoal, mas de uma organização do discurso dogmático, que se orienta pela virtude prática de uma prudência que nos possibilita usar a liberdade sem abusar dela.

Maximiliano também afirma que o intérprete “deve ter o intuito de cumprir a regra positiva, e, tanto quanto a letra o permita, fazê-la consentânea com as exigências da atualidade”[288]. Essa é uma frase bonita, porém vazia, na medida em que não oferece critério algum para determinar o que é tanto quanto a lei permita. Para esclarecer a sentença anterior, ele diz que o intérprete, “pondo em função todos os valores jurídico-sociais, embora levado pelo cuidado em tornar exeqüível e eficiente o texto, sutilmente o faz melhor, por lhe atribuir espírito, ou alcance, mais lógico, adiantado, humano, do que à primeira vista a letra crua pareceria indicar”[289]. Assim, o apelo da hermenêutica não é para a aplicação de um método predefinido, mas para uma avaliação cuidadosa e prudente do caso concreto. Assim, tais concepções reintroduzem a prudência como um elemento relevante na aplicação do direito, pois somente ela é capaz de discernir os momentos em que a literalidade e a sistematicidade deve ser deixada de lado, em nome da garantia de valores sociais de justiça. E essa prudência é uma capacidade que não se deixa metodologizar, que não se reduz a regras objetivas, mas que apela para um certo bom senso, que cada um de nós julga ter.

Mas a prudência entra silenciosamente pela porta dos fundos, pois a tabuleta na porta da frente continua dizendo que “a Hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar”[290]. Porém, uma avaliação mais cuidadosa do discurso hermenêutico de Maximiliano evidencia que ele não é científico e metodológico, mas dogmático e tópico. E é provavelmente por isso que suas idéias foram tão aceitas entre os “operadores do direito”, que são normalmente dotados de um grande senso prático e de uma profunda recusa por teorias abstratas. Sua atividade é voltada a resolver problemas, a solucionar casos, a oferecer respostas a questões concretas. Por isso mesmo, as categorias que organizam o discurso profissional raramente são aquelas das teorias com maior consistência interna, sendo preferidas as teorias que oferecem categorias adequadas para a formulação de um discurso dogmático percebido como eficaz e legítimo. Assim foi que, a despeito de sua fragilidade conceitual, a jurisprudência dos interesses tornou-se muito forte na Alemanha e as categorias e os topoi apontados por Ferrara e Maximiliano continuam a ser referências importantes para o discurso prático dos juristas. E as tentativas de construir uma dogmática jurídica baseada em um cientificismo sociológico tampouco conduziram a teorias científicas sólidas, mas apenas a uma pseudociência, um sociologismo que não chegou a ser sociologia.

Foi justamente contra a pseudociências dessas perspectivas que Kelsen levantou as críticas que o inspiraram a elaborar uma teoria jurídica adequada aos padrões epistemológicos do neopositivismo.[291] Porém, a despeito de sua coerência teórica, a teoria pura do direito não oferece base adequada para um discurso dogmático, motivo pelo qual ela é uma referência teórica importante, mas com penetração mínima na atividade prática dos juristas. E, no campo da hermenêutica jurídica, a grande virtude da teoria pura do direito foi afirmar de um modo muito claro que os juízes não são capazes de fazer o que eles dizem fazer. Com isso, a concepção de Kelsen acentuou o caráter ideológico e político da prática judiciária, exercendo uma crítica ferrenha ao pseudo-cientificismo do discurso sociológico e ao pseudo-objetivismo do discurso legalista. E, se Kelsen estiver correto, é simplesmente impossível estruturar uma metodologia racional de tomada de decisões jurídicas, na medida em que elas sempre implicam posicionamentos valorativos. Assim, a apropriação que Kelsen faz da primeira virada lingüística resulta em uma afirmação cabal da impossibilidade de uma dogmática científica, que era a pedra filosofal da hermenêutica jurídica.

Schleiermacher, Savigny, Pound, Gény, todos eles buscaram estabelecer uma orientação científica para o discurso hermenêutico, como se fosse possível uma cientificização da atividade decisória. Kelsen porém, ergueu a pretensão neopositivista de que não há como metodologizar o tratamento dos valores, de tal forma que sobre eles a ciência deve seguir o conselho com que Wittgenstein encerra o Tractatus: “acerca daquilo de que se não pode falar [com certeza], tem que se ficar em silêncio”[292]. Com isso, Kelsen abriu uma grande ferida no discurso jurídico, pois diz aos juristas que sua linguagem é criadora de mitos: a existência de uma resposta correta a ser buscada não passa de uma crença ideológica, com funções políticas claras, mas que é incompatível com uma mentalidade científica[293]. Nessa medida, Kelsen terminou por estabelecer um abismo entre teoria científica e prática jurídica, dado que a linguagem da dogmática faz uso corrente de entidades fantasmagóricas que não podem ter sustentação científica alguma.

No lado oposto, os vários fantasmas das teorias de Ferrara, Maximiliano e de Heck eram justamente o que permitiam aos juristas se identificarem com essas propostas, na medida em que elas permitiam que eles dissessem que faziam o que eles próprios acreditavam fazer. Com isso, elas permitiram uma certa reconciliação entre a teoria e a prática, restabelecendo laços que estavam abalados por um discurso positivista impermeável aos valores sociais. E foi justamente ao conferir uma roupagem científica a uma prática prudencial que essas teorias possibilitavam que os juristas se percebessem como aplicadores de técnicas baseadas em uma ciência. E a importância ideológica dessa afirmação é imensa, como deixa entrever a quantidade de esforço despendido no século XX para caracterizar a dogmática jurídica como uma ciência do direito. Porém, custo dessa reconciliação era alto, pois exige a atribuição de caráter científico a teorias dogmáticas que, em vez de oferecerem metodologias interpretativas, apresentavam apenas uma justaposição tópica de conceitos e regras de interpretação.

Por mais que o método histórico-evolutivo, tal como descrito por Ferrara e Maximiliano, tivesse suas linhas gerais claramente estabelecidas, ele constituía uma metodologia bastante imprecisa para a aplicação das normas, especialmente porque senta suas bases em conceitos muito vagos, tais como interesses e necessidades sociais. Nessa medida, tais concepções podiam determinar adequadamente o que os juristas deveriam fazer, mas não esclareciam com precisão o modo como esses objetivos poderiam ser alcançados. Deixavam, então, sem resposta, perguntas do tipo: “Afinal, como, mais exatamente, podem ser identificados os interesses que estão por trás das normas? Como, mais precisamente, é possível adaptar os juízos de valor iniciais às novas realidades sociais?”[294]

Embora essa deficiência metodológica não tivesse impacto prático imediato, ela terminava por enfraquecer no plano teórico as concepções intermediárias, abrindo espaço para críticas elaboradas por perspectivas teoricamente mais sólidas, tais como a teoria pura do direito e as teorias inspiradas pelo positivismo sociológico. Com vistas a suplantar essas dificuldades, alguns juristas reafirmaram que era possível, sim, estabelecer um método jurídico que possibilitasse aos juristas extrair do direito positivo uma solução jurídica para cada caso concreto, mediante procedimentos racionais. O principal esforço nesse sentido foi efetuado pelo italiano Emilio Betti.

2. Betti e a busca de uma metodologia para a hermenêutica jurídica

a) Definição dos problemas a serem enfrentados

O panorama geral da hermenêutica jurídica na década de 1950, que era pano de fundo da teoria de Emilio Betti, tinha várias semelhanças com a situação das hermenêuticas literária e bíblica enfrentada por Schleiermacher cerca de cento e cinqüenta anos antes. Por um lado, as concepções hermenêuticas apontavam um objetivo geral da interpretação mas não tinham um desenvolvimento metodológico que orientasse devidamente a realização prática da atividade interpretativa. Se a tradicional busca da vontade do legislador (correspondente jurídico da intenção do autor) já não dominava mais o discurso hermenêutico do início século XX, ele tinha sido substituído por critérios igualmente vagos, tais como espírito da lei, mens legis, interesses sociais, justiça ou adequação da norma às necessidades sociais.

Além disso, os compêndios de hermenêutica tendiam a estabelecer de forma mais ou menos vaga a finalidade da interpretação como a interpretação do sentido da norma e a oferecer uma tipologia das interpretações fundada nos critérios clássicos de Savigny, mas não ofereciam uma metodologia que fosse capaz de orientar o intérprete no manuseio desses critérios. No máximo, ofereciam, tal como fizera Wolf, um conjunto de regras extraídas da prática que, por maior que fosse o bom-senso contido nesses conselhos e a sua utilidade frente a situações determinada, não constituíam uma metodologia sistemática.

Por fim, a interpretação do direito encontrava-se fragmentada em regras aplicáveis a cada uma das disciplinas jurídicas e que não se deixavam reunir em uma teoria interpretativa comum. Assim, o conhecimento hermenêutico dos juristas limitava-se ao conhecimento de certas regras pontuais que deveriam ser aplicadas a determinados tipos de matérias[295]. Essa situação mostra-se de maneira bastante clara, por exemplo, no fato de toda a segunda metade do Hermenêutica e aplicação do direito de Carlos Maximiliano dedicar-se a explicar, de maneira fragmentária, as regras hermenêuticas consolidadas pela prática nas várias disciplinas jurídicas.

Frente a esse panorama, tal como Schleiermacher fez com a interpretação literária e bíblica, Betti procurou desenvolver uma teoria hermenêutica que englobasse todo o direito (superando a fragmentação em áreas específicas) e que oferecesse uma metodologia sistemática (superando a mera justaposição de regras interpretativas identificadas na prática dos tribunais), fundada em conceitos claros e precisos (superando a vagueza dos conceitos fundamentais tanto das teorias tradicionais quanto das sociológicas).

b) O enquadramento da hermenêutica jurídica nos quadros de uma hermenêutica geral

A pretensão metodológica e científica de Betti não implicava uma desconsideração das críticas que as teorias sociológicas dirigiram às concepções hermenêuticas tradicionais. O que Betti procurava não era retomar as teorias do século XIX, mas elaborar uma nova metodologia, que superasse tanto o formalismo das teorias tradicionais quanto o subjetivismo que ele identificava nas escolas sociológicas. Nesse projeto, sua principal fonte de inspiração foi a harmonização entre legalismo e abertura sociológica realizada pela Jurisprudência dos Interesses de Heck.

Tendo em vista as limitações metodológicas das teorias sociológicas moderadas, especialmente da Jurisprudência dos interesses, Betti propô-se a desenvolver uma teoria hermenêutica que concebesse os conceitos de maneira mais precisa e os organizasse de forma rigorosa, na busca de estabelecer um método para orientar a adaptação das normas às realidades sociais cambiantes. Esse projeto fez com que ele se voltasse à filosofia e desenvolvesse toda uma concepção sobre o que significa interpretar e sobre as peculiaridades da interpretação jurídica, teoria que foi exposta em sua Teoria geral da interpretação, de 1955.

A resposta de Betti relativamente ao significado da interpretação, contrariando várias das tendências hermenêuticas da filosofia de sua época, foi basicamente uma reafirmação da teoria tradicional, descrita no primeiro capítulo deste trabalho, de que os textos representam a objetivação do espírito que o elaborou e que, portanto, entender um texto seria reconstruir o pensamento do autor do texto. Nessa conceituação, torna-se evidente uma similaridade com o pensamento de Schleiermacher, que se torna ainda mais clara quando Betti afirma que “a tarefa do sujeito consiste em tornar a conhecer, em reconhecer naquelas objetivações, o pensamento animador, em repensar a concepção ou em evocar a intuição que aí se revela. Aqui, em suma, o conhecer é um reconhecer e um reconstruir o espírito que, através das formas de sua objetivação, fala ao espírito pensante que se sente a esse assemelhado na humanidade comum. É um reconduzir e um reunir aquelas formas na interioridade que as gerou e da qual foram separadas, um interiorizá-las, transpondo-se todavia o conteúdo em uma subjetividade diversa daquela originária.”[296]

Até este ponto, Betti parece simplesmente transferir para o direito a teoria hermenêutica de Schleiermacher, fundada na congenialidade entre intérprete e autor. Porém, Betti não poderia limitar-se a fazer essa transposição, pois ele era consciente de que, diversamente da interpretação dos textos literários, a interpretação jurídica não tem como único objetivo entender o seu objeto, pois, além de compreender o que o legislador efetivamente quis dizer, o jurista precisa decidir casos concretos com base nas normas.

Frente a essa assimetria, Schleiermacher excluiu a interpretação jurídica de sua hermenêutica geral, especialmente porque os seus interesses eram fundamentalmente teológicos e literários. Emilio Betti, porém, em vez de tratar a hermenêutica jurídica como uma disciplina sui generis, tentou enquadrar a hermenêutica jurídica dentro dos quadros de uma hermenêutica geral. A única forma de resolver o problema da interpretação do direito restringindo-se ao campo específico da ciência jurídica seria desconectar o problema jurídico de uma abordagem filosófica geral, o que significaria postular a autonomia da interpretação jurídica.

Essa saída não se afigurou razoável a Betti, que teve o mérito de, em vez de isolar o direito frente aos outros ramos do conhecimento, colocar a hermenêutica jurídica como um caso especial da teoria geral da compreensão. Assim, “ele transforma o problema jurídico — tal como Schleiermacher transformou os problemas filológico e teológico — em um problema filosófico”[297]. Porém, essa opção metodológica colocou Betti frente a um desafio extremamente difícil: sair do âmbito específico do direito, ingressar na discussão filosófica propriamente dita e, entre os filósofos, desenvolver uma teoria geral da interpretação em que também houvesse espaço para as peculiaridades do campo jurídico.

c) Os tipos de interpretação

Para abordar devidamente as peculiaridades da interpretação do direito, Betti não poderia propor, tal como Schleiermacher, uma unificação dos objetivos da compreensão, pois isso seria ignorar a assimetria por ele percebida entre a interpretação jurídica e a literária. Com isso, Betti vê-se levado a admitir que há mais de um objetivo na atividade hermenêutica, o que o faz dividir as interpretações em três grupos que atendem a diversas funções.

O primeiro grupo, ao qual o interesse de Schleiermacher era circunscrito, é formado pela interpretação que busca meramente entender o seu objeto, sem qualquer preocupação dogmática. O segundo grupo precisaria ir além do entendimento, pois teria como finalidade explicar a outros o entendimento alcançado. Por fim, o terceiro grupo teria como finalidade “extrair do entendimento alcançado uma máxima de decisão ou de conduta, uma orientação para uma tomada de decisão na vida prática”[298]. Estabelecidos esses três objetivos, Betti afirma que esses grupos envolvem atividades diversas (respectivamente, entender, fazer entender e regular o agir) e possuem três funções (cognitiva, reprodutiva e normativa).

Com isso, Betti busca estabelecer as diferenças entre as perspectivas do intérprete de obras literárias (que busca apenas compreender), do historiador (que busca reconstruir um momento histórico para explicá-lo às outras pessoas) e do jurista (que busca tomar uma decisão com base na interpretação).[299] Em relação ao primeiro caso, Betti praticamente repete Schleiermacher ao sustentar que entender é reconstruir o que foi construído, repensar o que foi pensado, repercorrer em sentido inverso, o processo criativo. No segundo caso, ele retoma as teorias historicistas de Dilthey que identificam na compreensão uma base para as ciências humanas. Porém, o que interessa peculiarmente a Betti é analisar o terceiro caso, que era tipicamente ignorado pelas teorias filosóficas da hermenêutica.

d) Os quatro cânones hermenêuticos[300]

Em virtude da função específica da hermenêutica jurídica, Betti sustentava, tal como fizeram tanto Heck como Maximiliano, que a interpretação do direito deveria agregar a um momento inicial de entendimento, um momento posterior de correção, que adaptasse o entendimento inicial às necessidades sociais contemporâneas do momento da aplicação. E esse é o ponto crucial de sua teoria, pois a grande deficiência metodológica das concepções anteriores havia sido não explicar adequadamente o modo como essa adaptação deveria ser feita sem que fosse completamente sujeita ao arbítrio do julgador.

A saída metodológica encontrada por Betti foi oferecer aos juristas quatro cânones, quatro regras básicas de interpretação que, aplicadas de forma combinada, deveriam garantir simultaneamente a segurança jurídica e a correção material das decisões.

O primeiro cânone visa basicamente a garantir a segurança jurídica contra a manipulação ideológica dos intérpretes e determina que “o sentido é algo que não se deve sub-repticiamente introduzir, mas sim extrair das formas representativas”. Portanto, Betti sustenta que a atividade interpretativa envolve a descoberta do sentido da norma e não uma atribuição autônoma de sentido à norma.

O segundo cânone reafirma a regra hermenêutica tradicional de que as partes devem ser interpretadas em função do todo e de que o todo deve ser descrito a partir de uma combinação harmônica das partes. Nas palavras de Betti, “o critério de extrair dos elementos singulares o sentido do todo e de entender o elemento singular em função do todo de que é parte integrante”[301]. Este cânone representa o reconhecimento da importância dos critérios sistemáticos de interpretação e, combinado ao primeiro, retoma a proposta típica de Savigny e dos pandectistas de construir uma ciência jurídica simultaneamente histórica (voltada a descrever e não a criar o direito positivo) e sistemática.

Enquanto os dois primeiros cânones referem-se basicamente ao objeto e ao modo de compreender, o terceiro introduz propriamente a idéia de entendimento, pois exige que o intérprete reconstrua, no interior de sua subjetividade, o pensamento original do autor, em uma atitude ao mesmo tempo ética e reflexiva, que deve ser feita “com humildade e abnegação de si e ser reconhecida em um honesto e resoluto prescindir dos próprios preconceitos e hábitos mentais obstativos”[302]. Percebe-se, assim, que este cânone articula-se com o primeiro e visa a garantir a objetividade do entendimento, o qual, apesar de ser realizado por um sujeito particular, não deve ser uma expressão dos seus valores particulares mas uma expressão do sentido objetivado no próprio texto.

Por fim, o quarto cânone introduz a idéia de correção, por meio da qual o intérprete deve não apenas entender o sentido original do texto, mas compreender o seu sentido de maneira tal que possa reconstruí-lo de forma que se adapte às novas necessidades sociais. Nas palavras de Betti, o intérprete deve “esforçar-se por colocar a própria atualidade vivente em íntima adesão e harmonia com a mensagem que [...] que lhe vem do objeto, de modo que um e outro vibrem em uníssono”[303]. Harmonizando, assim, a mensagem original e o sentido atualizado, a interpretação deveria ser capaz de garantir, a um só tempo, os ideais de segurança e de correção.

3. Hermenêutica e método

Nietzsche, em sua segunda Consideração Intempestiva, falou não só da utilidade, mas também da desvantagem da ciência histórica para a vida. O historicismo, que vê em toda parte um condicionamento histórico, destruiu o sentido pragmático dos estudos históricos. Sua arte refinada de compreensão enfraquece a força do valor incondicional. Seu ápice epistemológico é o relativismo, sua conseqüência, o niilismo. As frases que inciam este parágrafo não são minhas, mas de Gadamer, e traduzem muito bem o sentimento de revolta de Betti contra a radicalização do relativismo historicista levado a cabo pela hermenêutica de inspiração heideggeriana[304].

Betti publicou a sua teoria hermenêutica na mesma época em que Gadamer publicou Verdade e Método, e foi nos debates entre esses dois teóricos que os caminhos da hermenêutica filosófica se encontraram com os da hermenêutica jurídica. De um lado, Betti buscava a construção de um método hermenêutico que superasse as deficiências metodológicas das teorias jurídicas anteriores. Superando a separação que Schleiermacher impôs entre hermenêutica e dogmática, Betti tentou construir um espaço adequado para uma hermenêutica preocupada com a aplicação metodologicamente adequada de normas gerais a casos concretos. Nesse sentido, ele tentou estabelecer uma hermenêutica jurídica adequada aos padrões modernos de cientificidade, buscando sanar os vícios metodológicos das teorias de sua época.

De outro lado, Gadamer buscava desconstruir radicalmente as pretensões metodológicas da hermenêutica e suas ligações com a ciência. Portanto, seu objetivo não era elaborar uma metodologia adequada, mas construir uma alternativa à visão metodologizante da epistemologia moderna. Todas as visões metodologizantes da modernidade, das quais a teoria de Betti é apenas um exemplo, buscam estabelecer um parâmetro hermenêutico a-histórico, ou seja, uma série de critérios cuja validade não dependa dos valores culturais historicamente determinados. Nesse sentido, há uma contraposição fundamental entre o discurso hermenêutico e o discurso científico moderno, pois este sempre propõe uma verdade que deve ultrapassar os contextos históricos.

Isso não significa que os cientistas modernos desconheçam que as verdades que eles propõem são provisórias, na medida em que a evolução das pesquisas tende a demonstrar a falsidade e as limitações das teorias anteriores. Porém, o discurso científico apresenta-se como uma gradual aproximação da realidade, em que um jogo constante de refutação das afirmações anteriores faz com que elas passem a ser consideradas falsas. Assim, a teoria evolucionista de Lamarck não é considerada como uma forma de percepção da realidade a ser medida dentro de um contexto determinado, mas como uma série de afirmações falsas em qualquer contexto.

Essa transcendência do contexto é o que garante a impessoalidade do conhecimento científico e, no campo da hermenêutica jurídica, é o que poderia garantir a neutralidade da aplicação judicial do direito. As teorias modernas buscam construir essa transcendência por meio da fundamentação dos seus critérios básicos, cuja validade precisa estar calcada na sua própria racionalidade, o que as colocaria para além dos valores contingentemente predominantes em uma cultura. Portanto, é com o historicismo radical da hermenêutica gadameriana que modernas teorias da interpretação precisam se confrontar.

E é justamente esse confronto que a teoria de Betti não consegue superar. Que significam os cânones hermenêuticos propostos por Betti? O primeiro cânone reflete o pressuposto de que existe um sentido a ser extraído do texto, sendo nisso reforçado pelo terceiro cânone, que determina a necessidade de que o intérprete abra mão dos seus próprios preconceitos, construindo assim uma interpretação neutra do texto. Já o segundo cânone aponta que esse sentido deve ser descoberto por uma análise do próprio texto, nas relações entre a parte e o todo, o que indica uma reapropriação tanto da hermenêutica clássica plenamente compatível com a vertente sistemática que domina o direito ao menos desde a jurisprudência dos conceitos. Porém, efetuando a mesma abertura do sistema ao mundo que fazia a jurisprudência dos interesses, Betti admite no último cânone que o sentido da norma deve ser atualizado, de acordo com as mudanças sociais.

Ora, a soma desses cânones não oferece uma metodologia interpretativa impessoal, nos moldes dos métodos científicos. Antes, trata-se de uma justaposição tópica de indicações que devem orientar o intérprete, de tal forma que ela não equaciona adequadamente o problema que se propunha a resolver, que era justamente o de superar as deficiências metodológicas das teorias anteriores. Assim, por mais que Betti fosse consciente dessas limitações, ele não foi capaz de superá-las.

Além disso, esses cânones resolvem mal a questão da historicidade, pois repetem a velha forma de transcender o contingente mediante a exclusão do conteúdo. Assim, em vez de definir um conteúdo valorativo, Betti limita-se a oferecer conceitos abertos que serão preenchidos conforme o contexto histórico, especialmente a idéia de correção. Nessa medida, essa teoria não escapa ao historicismo radical da hermenêutica, pois os critérios de correção são definidos justamente pelo contexto histórico contingente. E uma metodologia que faz uso de argumentações que não transcendem ao contexto (como as apreciações valorativas historicamente contingentes) termina por despir-se da impessoalidade que deveria ter um método racional.

Porém, se a teoria hermenêutica de Betti é incapaz de solucionar adequadamente os problemas que se propôs a resolver, isso não acontece porque ela é uma resposta equivocada, mas porque ele se propõe ao impossível: construir uma metodologia formal capaz de resolver problemas materiais. Essa pretensão conduziu Betti à aporia em que se encontram todas as teorias formalistas da modernidade. Elas abrem mão da definição racional do conteúdo da justiça, justamente por serem herdeiras da concepção de Hume de que não há um valor racional. Essa é a estratégia de Kelsen, que reduz a ciência jurídica (não o direito) a uma análise formal de um campo argumentativo. Porém, o formalismo paga um altíssimo preço pela objetividade de suas certezas: a verdade científica é reduzida a um campo muito restrito, em que é possível utilizar o procedimento do raciocínio meramente formal. E desse campo certamente escapam uma grande parte das decisões jurídicas que, como Kelsen muito bem estabeleceu, exigem uma apreciação valorativa por parte do juiz.

Porém, diversamente de Kelsen, Betti tenta formular um sistema formal que possa solucionar as questões materiais, e nisso tenta levar a linguagem para além dos seus limites. Parafraseando Wittgenstein, ele tenta falar o que deveria ser mantido em silêncio, e nisso não pode deixar de formular equívocos. Percebe-se, então, que Betti tentou contrapor-se ao historicismo de Gadamer utilizando um instrumental teórico baseado em uma teoria ingênua da linguagem, que não subsiste às críticas neopositivistas feitas vinte anos antes pelo círculo de Viena. De nada adianta Betti transformar seu axioma no primeiro cânone: por mais que se deseje estabelecer que o sentido do texto é algo a ser extraído racionalmente do sistema, a moderna compreensão da linguagem é incompatível com esse tipo de afirmação. E, ao estabelecer um cânone impossível, a teoria de Betti revela o seu caráter ideológico, contido justamente no seu engajamento no projeto de desenvolvimento de um discurso hermenêutico que harmonizasse os ideais liberais de segurança como os imperativos sociais de justiça. Com isso, torna-se claro que Betti tentou dar uma formulação cientificamente aceitável para as intuições do senso comum, que já estavam presentes nas teorias metodologicamente deficientes que ele se propôs a superar.

Porém, as concepções de Betti não são capazes de contrapor-se nem a crítica kelseniana da ideologização da hermenêutica, nem as críticas historicistas da hermenêutica gadameriana. Essa dupla incapacidade, porém, não é um exclusiva da teoria de Betti, mas é uma característica de todas as tentativas de estabelecer um método formal de interpretação normativa. Nessa medida, a teoria de Betti representa o canto do cisne da hermenêutica moderna, cuja falência é evidenciada pelo fato de que, desde meados do século XX, as teorias hermenêuticas deixaram de insistir na busca de um método objetivo de interpretação.

Isso, porém, não significou o abandono do projeto hermenêutico moderno, mas apenas falência de uma estratégia discursiva específica. Como sentenciou Karl Larenz, em uma frase que com que Alexy inicia sua principal obra, “ninguém mais pode afirmar seriamente que a aplicação das leis nada mais envolva do que uma inclusão lógica sob conceitos superiormente formulados”[305]. A elaboração de um método capaz de ser aplicado impessoalmente e que conduza a um sentido preexistente é uma utopia incompatível com concepções modernas de linguagem e de história. Porém, isso não significa o abandono da busca de uma decisão valorativa racional, que é a pedra filosofal da hermenêutica jurídica moderna, mas uma redefinição das estratégias discursivas, que precisam dar conta aos desenvolvimentos dos giros lingüístico e hermenêutico que marcaram a filosofia do século XX. E é nesse ponto que surge a rede de discursos que forma hermenêutica jurídica contemporânea, com suas múltiplas tentativas de renovar a articulação entre racionalidade, historicidade e linguagem.

Jogo

Como não haviam definido as regras, a coisa não estava clara:

– Precisamos de definir as regras para saber quem ganhou, se eu, se o senhor... – disse o senhor Duchamp a Calvino, recolhidas que estavam já todas as peças e o jogo concluído.

– Mas agora, depois de termos jogado?

– Têm de existir regras... – insistiu o senhor Duchamp – para sabermos quem venceu.

– Mas agora quem define as regras? – questionou Calvino.

– Você ou... eu.

– Então... eu ou você?

– Você começa – propôs o senhor Duchamp –, depois eu termino.

– Não – ripostou Calvino. – Você começa; cada um formula alternadamente uma regra, e eu... defino a última.

– Aceito. Dez?

– Dez regras.

Começaram então, em alternância, a formular regras para o jogo que já haviam jogado, cada um tentando definir o jogo capaz de o fazer, embora a posteriori, vencedor.

Gonçalo Tavares, O Senhor Calvino

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Capítulo VIII - Da teoria da interpretação à teoria da argumentação

1. Entre verdade e validade

A hermenêutica jurídica é uma linguagem na qual pensamos o fenômeno da interpretação do direito. O modelo de compreensão hermenêutica que dominou o senso comum do século XX foi o de que interpretar significa desvendar o conteúdo das normas, a partir da identificação do seu sentido sistemático, o qual poderia, em caso de distorções valorativas evidentes, ser corrigido teleologicamente mediante a aplicação de imperativos de justiça. Essa abertura teleológica do discurso jurídico representou um acirramento da tensão entre justiça e segurança jurídica.

No modelo liberal clássico, essa tensão inexistia porque não havia dúvida de que a segurança jurídica era um dos aspectos mais relevantes da justiça, pois uma ordem jurídica justa não poderia ser influenciada pelas posturas individuais dos juízes. Frente a um modelo em que a autoridade máxima do estado era uma pessoa, o liberalismo acentuou a importância da impessoalidade, como garantia de um tratamento isonômico. Esses foram os tempos em que a garantia da igualdade formal ainda representava um grande avanço na realização dos valores modernos, pois contrapunha-se à existência de relações de escravidão e servidão, bem como a qualquer hierarquia fundada em critérios hereditários.

Porém, uma vez consolidado o processo de urbanização e de industrialização (o que ocorreu em um ritmo diferente em cada país ou região), a igualdade formal entre os homens do sexo masculino passou a ser garantida de forma praticamente universal, de tal forma que ela se esgotou como utopia emancipatória. Restava, é claro, a inclusão de outras categorias nesta liberdade formal, como foi o caso das mulheres e dos homossexuais, que foram paulatinamente conquistando direitos ao longo do último século. Porém, desde o fim do século XIX, todo grupo que conquistou liberdade ou igualdade apenas formais viu-se frente à insuficiência desses direitos.

As injustiças causadas por um tratamento juridicamente igualitário a pessoas econômica e socialmente desiguais tornaram-se cada vez mais patentes, e a luta pela igualdade e liberdade materiais foram a tônica dos movimentos sociais no século XX. Esses movimentos visavam a tornar o direito permeável às desigualdades sociais, o que implicava a transformação das regras jurídicas vigentes, para que elas pudessem regular com um mínimo de justiça as relações sociais em processo de rápida mutação.

No final do século XIX, a garantia da igualdade formal para patrões e empregados era um dos elementos fundamentais da ideologia liberal, e o efetivo rompimento desse padrão ocorreu apenas na década de 1930, quando floresceu a legislação trabalhista. Porém, há um lapso de tempo muito grande entre a modificação dos padrões sociais de aceitabilidade e a mudança das leis que definem os direitos e deveres. Não é à toa teóricos do começo do século XX descreviam a situação vivida como uma guerra dos fatos contra o direito, que já foi delineada no capítulo anterior.

Instaurou-se, então, uma crise de legitimidade, que se manifestou na hermenêutica como uma incapacidade do discurso jurídico de oferecer categorias capazes de adequar o sentido das normas aos valores sociais, de tal forma que as decisões jurídicas eram percebidas como injustas. Assim, o discurso jurídico liberal, que buscava determinar um sentido fixo para as normas (seja na intenção original, seja na adequação sistemática), não era capaz de modificar o sentido normativo sem alterar o texto normativo.

Esse liberalismo produziu um discurso judicial avesso a qualquer consideração de justiça social, a avaliações teleológicas ou a qualquer outro tipo de argumentação que pudesse colocar em questão a segurança jurídica. Foi nesse contexto que se desenvolveram as vertentes do positivismo sociológico, que elaboraram uma postura hermenêutica aberta a elementos metajurídicos, tornando o discurso jurídico mais permeável a argumentos sociológicos, políticos e morais.

Porém, esses elementos metajurídicos foram sendo incorporados ao direito positivo, na medida em que se desenvolveu a legislação do nascente estado social, que agregou elementos teleológicos a um sistema que era deontológico. Isso ocorreu especialmente por meio da valorização dos princípios constitucionais, que ofereciam a base para o desenvolvimento de um discurso teleológico fundado em referências internas ao sistema do direito. Na medida em que os direitos de segunda geração foram agregados ao texto constitucional e que este passou efetivamente do campo da política para o campo jurídico, foi possível que o pensamento sistemático recobrasse sua força, pois o discurso jurídico podia operar a argumentação teleológica com elementos constitutivos do próprio sistema, de tal forma que se tornou desnecessário garantir a legitimidade por meio de categorias metajurídicas.

Com isso, mudou o desafio hermenêutico posto aos juristas, que em vez de enfrentar um déficit legislativo passaram a lidar com um déficit de eficácia dos novos direitos. Já não se tratava mais de abrir o discurso jurídico a outras influências sociais, mas de garantir a aplicação das normas constitucionais, de um modo tal que as questões interpretativas foram traduzidas em tensões entre direitos, o que deu margem especialmente para os desenvolvimentos de uma dogmática dos princípios constitucionais, que resultou na teoria principiológica contemporânea.

Assim, desde meados do século XX, especialmente no campo do direito constitucional, o debate hermenêutico dá-se em torno da elaboração de categorias capazes de orientar essa fusão de deontologia e teleologia, tal como a distinção entre regras e princípios, que aos poucos vai sendo incorporada ao senso comum dos juristas. Esse processo de reelaboração sistemática acarretou um reforço do projeto moderno da busca de uma decisão valorativa racional, de modo que a interpretação continua a ser pensada como um processo racional de determinação do sentido da norma. Com isso, a verdadeira interpretação continuou sendo o objeto da busca dos intérpretes e a pedra de toque do senso comum dos juristas.

Porém, a valorização do historicismo fez com que essa interpretação correta deixasse de ter a imobilidade anterior, pois passou a ser admitido que a própria verdade muda com o tempo, acompanhando as alterações da sociedade. Não obstante, permanecia vivo o ideal de que, em cada momento de aplicação, a interpretação deve ser objetiva e impessoal.

Essa valorização do historicismo e da teleologia permeou o senso comum dos juristas, fazendo com que ele passasse a conter uma certa tensão entre literalidade, sistematicidade e teleologia, que é resolvida mediante uma articulação que tipicamente privilegia os argumentos gramaticais, que se abre à sistematicidade na medida em que identifica antinomias ou que os sentidos literais possíveis sejam colidentes, e que, no limite, possibilita uma abertura intra-sistêmica para a teleologia nos pontos em que o sentido deontológico conduz a absurdos éticos.

Essa articulação do senso comum encontra suas referências teóricas em pensadores da década de 1920 e até hoje organiza o pensamento dogmático, orientando o discurso prático dos juristas. Porém, ela já não responde aos questionamentos que os discursos filosóficos contemporâneos, que se tornaram especialmente sensíveis à ingenuidade que permeia a relação das teorias modernas com a linguagem. O senso comum ainda se constrói sobre o pressuposto de que existem sentidos lingüísticos a serem desvendados por meio de métodos racionais de interpretação, e que uma interpretação racional do direito pode conduzir a uma aplicação técnica (e nessa medida neutra) das normas aos casos concretos. O neopositivismo lógico colocou em xeque essa possibilidade, na medida em que evidenciou os limites das linguagens ordinárias, sustentando claramente a impossibilidade de uma escolha valorativa racional.

Essa negação da possibilidade de escolher racionalmente entre valores conflitantes marca as fronteiras da hermenêutica jurídica moderna, pois ela resulta de uma aplicação reflexiva das exigências modernas de racionalidade. E quando a modernidade passa a se avaliar reflexivamente, torna-se consciente de seus limites, abrindo assim os questionamentos fundamentais do pensamento contemporâneo. O que Kelsen fez foi justamente radicalizar as exigências modernas de racionalidade, e a aplicação dos padrões científicos de racionalidade ao discurso jurídico conduziu à percepção de que a atividade dos juízes é política e não científica. Assim, a crítica neopositivista do discurso jurídico conduziu à separação entre a verdade objetiva da ciência do direito e as crenças ideológicas da política do direito.

Com isso, ficou evidente a ingenuidade fundamental do pensamento hermenêutico moderno: o pressuposto de que existem métodos racionais para a tomada de decisões valorativas. E a crítica de Kelsen, seguindo as exigências modernas de objetividade científica, conduziu à radical afirmação da irracionalidade de toda decisão valorativa. Essa conseqüência da teoria pura do direito têm pouca relevância prática, na medida em que a negação do caráter científico da dogmática jurídica em nada diminuiu a força social da mitologia que organiza o discurso dogmático. Não obstante, essa crítica ainda guarda uma grande relevância teórica, na medida em que ela define que a aplicação do direito é baseada em uma espécie de farsa, na qual os juízes dizem (e pensam) descobrir um sentido que eles inventam de forma consciente ou inconsciente. E, se a dogmática pode continuar sendo ingenuamente mitológica (e esse viés ideológico parece fazer parte constitutiva desse discurso, não se tratando apenas de uma distorção), a hermenêutica jurídica contemporânea já não podem mais se ligar a perspectivas epistemológicas tão deslocadas do atual cenário filosófico.

Por isso mesmo, chamo de hermenêutica jurídica contemporânea o conjunto das teorias que lidam conscientemente com a crítica neopositivista à possibilidade de uma metodologia hermenêutica que conduza a interpretações verdadeiras. Algumas dessas teorias incorporam as críticas e tentam lidar com a interpretação do direito partindo do ponto de que a aplicação das normas envolve decisões valorativas irracionais. Essas são as teorias que eu estaria disposto a chamar de pós-modernas, pois elas tentam inventar caminhos alternativos às aporias que o pensamento moderno cria ao não conseguir atender às suas próprias exigências de racionalidade.

Outras teorias tentam rebater as críticas neopositivistas, mediante a afirmação de que existem modos racionais de se lidar com as questões valorativas. Essas são teorias que tentam reforçar o pensamento moderno, caracterizando que tudo aquilo que os pós-modernos consideram aporias não passam de dificuldades que podem ser superadas a partir de modificações no conceito de razão. Assim, a racionalidade poderia ser mantida como critério de validade, e não apenas de verdade, o que manteria intacto o núcleo do projeto iluminista de modernidade.

Nessa medida, o pensamento hermenêutico contemporâneo é marcado por uma divisão no que toca à sua posição quanto à historicidade dos critérios que permitem a aferição da validade. Um pólo é marcado pela idéia de que uma radical historicização conduz ao abandono da possibilidade de uma crítica externa ao pensamento jurídico, o que colocaria em xeque a tentativa moderna de racionalizar o direito mediante uma aproximação entre validade e verdade. No outro pólo, vigora a noção de que a manutenção de critérios impessoais (ou interpessoais) de racionalidade conduz à necessidade de transcender os contextos culturais historicamente determinados. Nessa oposição, que tematiza explicitamente as tensões entre validade e verdade, encontra-se a rede de discursos que forma o pensamento hermenêutico contemporâneo, que é o objeto deste capítulo.

2. Relendo Aristóteles: o retorno da retórica

O limite da hermenêutica moderna foi a sua busca por métodos que conduzissem à verdade, e os desenvolvimentos filosóficos derivados do giro lingüístico tornaram muito clara a impossibilidade. A afirmação de Wittgenstein de que deveríamos nos manter calados sobre toda metafísica[306] ecoou bastante, aportando no direito especialmente na forma do ceticismo de Kelsen sobre a cientificidade da dogmática. Chamemos esse ponto de aporia kelseniana, que é a afirmação de que não existe um método racional capaz de nos conduzir a uma verdade semântica sobre o direito, na medida em que inexiste um critério racional para orientar as escolhas valorativas.

Assim, não existe (nem pode existir) uma teoria da verdade sobre os juízos de valor, pois os únicos critérios semânticos capazes de possibilitar a escolha entre eles são outros juízos de valor. Dessa maneira, a única forma de lidar com os valores é estabelecer a prevalência de algum ou de alguns deles, mas esse tipo de opção valorativa precisa ser vista como a manifestação de uma posição ético-política, e não de uma escolha racional. Então, a manutenção da objetividade científica exige a exclusão de todo juízo de valor, o que implica a impossibilidade de existir uma metodologia jurídica capaz de proporcionar escolhas valorativas objetivamente válidas.

Para avaliar as conseqüências práticas desse tipo de posicionamento, tomemos, por exemplo, o caso limite do aborto de fetos anencefálicos. Vários juristas defendem que esse tipo de intervenção ofende o direito à vida, na medida em que a vida dos fetos é juridicamente protegida. Outros afirmam que a ausência de atividade cerebral afasta a incidência do direito à vida. Outros, ainda, reconhecem a presença do direito à vida, mas consideram que nesse caso a dignidade da mãe prevalece sobre a vida do feto. Em um caso como esse, qual é a solução correta?

Kelsen diria: não há uma solução correta a se buscar, mas apenas uma decisão a ser tomada, mediante uma escolha discricionária efetuada por uma autoridade constituída. Não se trata de descobrir o sentido correto da norma, porque não existe um sentido correto a ser buscado por via interpretativa. Esse tipo de postura, que Dworkin chama de ceticismo externo[307], causa um estranhamento muito grande nos juristas, pois o seu discurso prático continua apresentando a sua atividade como uma espécie de busca da interpretação correta.

Assim, estabeleceu-se uma real dúvida acerca da identidade entre o que os juristas efetivamente fazem e o que eles acreditam que fazem. Foi a percepção dessa divergência que moveu os realistas a buscarem uma descrição da atividade jurídica capaz de mostrar o que os juristas realmente fazem ao decidir os processos. Contudo, esse tipo de perspectiva não gerou uma hermenêutica porque a inspiração empirista do realismo fez com que os autores vinculados a essa corrente desse prioridade à determinação dos modos como a realidade social condicionava a atuação dos juristas, especialmente dos juízes[308].

Nesse sentido, a descrição realista do direito possibilitava apenas uma relação estratégica com os demais juristas, de modo a tentar prever quais seriam as suas jogadas, dentro de uma visão que apresenta o direito como um grande jogo. Porém, a inspiração empirista do realismo buscava explicações causais para as atitudes dos juristas, o que não deu a devida relevância para a percepção, inspirada pela moderna filosofia da linguagem, de que a atuação dentro de um jogo lingüístico não se deixa explicar por relações de causalidade, pois ele se conduz dentro de uma lógica argumentativa movida por uma rede de intencionalidades.

Assim é que, em vez de observar o direito como fato empírico, vários pensadores começaram a estudar o direito buscando compreender como se dão as interações lingüísticas por meio das quais o direito opera. Aqui, ainda estamos frente a uma perspectiva externa, que busca renovar a descrição da atividade jurídica, sob inspiração das teorias da linguagem. Portanto, existe aqui uma espécie de realismo, mas não se trata mais de um realismo empírico-sociológico, e sim de um realismo lingüístico.

No direito, o precursor desse tipo de perspectiva foi o alemão Theodor Viehweg, com seu Tópica e Jurisprudência, publicado em 1953. Nessa obra, ele se contrapõe à tendência geral de considera o pensamento jurídico como uma forma de pensamento sistemático, e tenta caracterizar uma parcela relevante do raciocínio jurídico como uma espécie de argumentação tópica. Essas aproximação configura uma mudança de perspectiva teórica, numa espécie de giro aristotélico, que começa a levar em consideração a estrutura que os discursos jurídicos efetivamente têm, em vez de buscar definir aprioristicamente as regras formais que os deveriam guiar.

Viehweg se volta para o estudo de Aristóteles e de Cícero, e deles extrai a idéia de que a tópica é uma “techne do pensamento que se orienta para o problema”[309]. Assim, ele se contrapõe à hegemonia do pensamento sistemático, afirmando que cada sistema somente é capaz de responder aos problemas que ele próprio é capaz de reconhecer, de tal forma que, no direito, acentuar a importância do sistema implica admitir que vários problemas relevantes serão invisíveis ou insolúveis. Isso é o que ocorre, por exemplo, com a questão das lacunas, que a visão sistemática precisa considerar apenas aparentes para poder sustentar a sua sistematicidade do direito.

Esse tipo de postura, herdeira da jurisprudência dos conceitos, tende a considerar o direito como um sistema dedutivo, unitário e fechado, mas essa posição não é resultado de uma constatação empírica, mas de uma necessidade metafísica idealizada. E as observações de Viehweg o levam a concluir que não há um sistema unitário, mas uma série de “panoramas fragmentários”, “uma indefinida pluralidade de sistemas” limitados e parciais, de tal forma que o jurista sempre precisa escolher de que sistema ele fala[310]. Assim, o pensamento jurídico não pode ser reduzido busca de descobrir a solução de um problema dentro de um sistema predeterminado e único, pois, quando colocamos o acento no problema, vemos que cada problema nos leva a buscar “um sistema que sirva de ajuda para encontrar a solução”[311].

Com isso, Viehweg propõe uma renovação na descrição da argumentação jurídica. O jurista parte sempre de uma questão jurídica, que a ele se afigura como problema, na medida em que ele se propõe a oferecer-lhe uma solução. Mas essa solução não está predeterminada em um sistema definido e, portanto, não se pode alcançá-la mediante um raciocínio dedutivo. Para que isso fosse possível, era necessário que as premissas do sistema fossem previamente estabelecidas, mas ocorre que esse sistema ideal simplesmente não existe, de tal forma que é preciso um raciocínio tópico, que opera basicamente com a definição das premissas que serão utilizadas na argumentação. Então, frente a um problema interpretativo (como a questão do aborto de anencéfalos, por exemplo), o jurista é colocado em face de um grande repertório de topoi (pontos de vista) que lhe são oferecidos pela tradição em que ele se encontra imerso[312]. A existência do direito à vida e do direito à dignidade, a idéia de tensão entre direitos, o juízo de ponderação, os direitos naturais, as relações sistemáticas, cada um desses elementos pode ser recombinado para a formação de argumentações admissíveis. Uma vez identificado os topoi, é possível uma reelaboração lógico-sistemática, que construa com ele uma argumentação sólida. Porém, a escolha dos topoi é valorativa e, como já foi estabelecido na aporia kelseniana, escapa de toda tentativa de metodologização.

Assim, enquanto a lógica trabalha de uma maneira dedutiva, que deveria ser válida de maneira universal, a tópica envolve uma capacidade de escolha de premissas que se legitimam na medida em que são aceitas pelo interlocutor e, com isso, “o debate permanece, evidentemente, a única instância de controle e a discussão de problemas mantém-se dentro do âmbito daquilo que Aristóteles chamava de dialético”[313]. Essa ênfase na linguagem, no debate e na argumentação mostra a sensibilidade de Viehweg aos desenvolvimentos filosóficos de seu tempo. Contra a busca de erigir grandes sistemas atemporais e unitários, como era ainda o caso da produção de Betti na mesma época, Viehweg afirmou a inescapabilidade do pensamento fragmentário e da argumentação retórica como formas de construção da sociabilidade.

Isso, porém, não o levou a desconsiderar a importância do pensamento sistemático, pois ele reconhecia que, quando um saber assume a forma de um sistema dedutivo, o raciocínio sistemático tende a prevalecer sobre o pensamento tópico[314]. Esse fortalecimento do sistema conduz a uma formalização do discurso, que tende a se apresentar como lógico-dedutivo, mas que até hoje apenas encobriu uma pluralidade de sistemas que não formam uma unidade. Assim é que, no estado atual do direito, ele considerou inescapável a utilização de um pensamento tópico que organizasse a interpretação e que possibilite o estabelecimento de relações entre os vários sistemas parciais.

As construções de Viehweg constituem apenas um primeiro passo na construção de uma teoria tópica, pois limitaram-se a uma tentativa de delimitar as relações entre tópica e sistemática no raciocínio jurídico, esclarecendo em que medida a sistematização do pensamento jurídico não passa de um ideal inacabado e provavelmente inacabável. Nesse sentido, o último parágrafo do Tópica e Jurisprudência é esclarecedor acerca da noção que ele próprio tinha dos limites do seu trabalho e das potencialidades da sua linha de investigação:

Com isto descrevemos alguns dos passos em direção da discussão da ars inveniendi, nos quadros de uma teoria retórica da argumentação, em desenvolvimento. Eles parecem, junto com outros, bastante adequados para modificar, até na sua essência, o modelo de pensamento da investigação jurídica dos fundamentos, tal como ela foi feita até o presente.[315]

Efetivamente, uma teoria retórica da argumentação estava apenas no seu início, e vários foram os juristas que caminharam nessa direção. O principal deles foi Chaïm Perelman, que, auxiliado por Lucie Olbrechts-Tyteca, empreendeu entre 1947 e 1958 um esforço de sistematização das formas de argumentação que gerou o Tratado da Argumentação:a nova retórica. Essa obra marca uma drástica mudança de perspectiva do próprio Perelman, que reflete o esgotamento do cientificismo que inspirou os juristas ligados ao neopositivismo lógico.

Até a II Guerra Mundial, Perelman vinculou-se ao formalismo, uma renovação da teoria kantiana que sustentava a inexistência de valores objetivamente válidos, mas que insistia em buscar uma verdade objetiva na própria forma dos enunciados. Essa é a vertente do positivismo kelseniano, que radicalizou a percepção de Hume de que é impossível uma metodologia jurídica que conduza a uma escolha valorativa racional (o que chamamos aqui de aporia kelseniana), e que por isso mesmo insistiu no desenvolvimento da lógica jurídica, na exata medida em que a lógica é uma teoria das formas. Um dos exemplo mais claro dessa época do pensamento de Perelman é a conclusão do ensaio “Da Justiça”, escrito em 1944, no qual ele reconhece a relatividade das concepções materiais de justiça e aponta para a delimitação da justiça formal, que seria “a parte comum a diversas concepções de justiça, parte que, evidentemente, não esgota todo o sentido dessa noção, mas que é possível definir de uma forma clara e precisa”[316]. Até então, Perelman trilhou os caminhos do neopositivismo, em sua busca por uma clareza e a precisão que somente poderia ser garantida pela aplicação de padrões lógicos, o que mostra que ele estava ele estava plenamente atualizado em relação à filosofia da linguagem do seu tempo.

Porém, após o final da Grande Guerra, ele percebeu que esse tipo de perspectiva, “significava abandonar às emoções, aos interesses e, no final das contas, à violência o controle de todos os problemas relativos à ação humana, especialmente à ação coletiva”[317]. Assim, a resposta do neopositivismo podia ter grande solidez epistemológica, mas a sua extensão ao direito era inviável tanto do ponto de vista político quanto do ponto de vista moral, na medida em que não possibilitava uma solução adequada dos problemas humanos. Essa mesma percepção, especialmente no contexto do pós-guerra, conduziu outros juristas a uma espécie de retorno ao jusnaturalismo, mas esse não foi o caso de Perelman, cuja formação analítica e historicista impedia a afirmação de valores objetivamente válidos.

Então, Perelman notou que era preciso contrapor-se ao relativismo positivista, sem recair em um idealismo jusnaturalista, de tal forma que era preciso construir uma alternativa adequada a ambas essas perspectivas. E a sua intuição estava ligada ao giro pragmático que ocorreu na filosofia da linguagem de meados do século XX: a linguagem não poderia reduzida à lógica, pois existem uma série de padrões que organizam os discursos argumentativos que extrapolam os restritos limites da lógica formal. Assim, enquanto Kelsen somente podia chamar de racional uma afirmação logicamente justificada, dentro de um sistema dedutivo, Perelman alinhou-se aos pensadores que buscavam alargar novamente o conceito de razão, para reintroduzir a razão prática dentro do campo da racionalidade.

Porém, Perelman adotou uma postura ainda mais ousada, defendendo que “não bastava desejar uma concepção mais ampla da razão: cumpria também elaborar uma metodologia que permitisse pô-la em prática, elaborando uma lógica dos juízos de valor que não os fizesse depender do arbítrio de cada um”[318]. Essa lógica dos juízos de valor não podia ser uma lógica formalizada com o mesmo rigor da lógica matemática, mas deveria oferecer elementos capazes de possibilitar a avaliação objetiva da validade de uma argumentação, que é medida em termos de adesão e não de verdade. E, na medida em que a modernidade havia deixado de lado a retórica, pois a perspectiva demonstrativa da ciência moderna é construída justamente por uma formalização que busca anular o campo argumentativo, Perelman chama essa volta aos estudos dialéticos de nova retórica.[319]

3. A reviravolta pragmática no direito

Esse câmbio metodológico caracteriza um passo além do neopositivismo e a inauguração de uma nova forma de percepção dos problemas jurídicos. O que Perelman nega é justamente o postulado humeano de que não há racionalidade nas escolhas valorativas, o que o coloca na trilha da identificação de um outro modo de racionalidade. Mas onde essa racionalidade se radica? Dentro do neopositivismo, que é ainda herdeiro do racionalismo cartesiano, a verdade somente pode ser encontrada dentro de uma teoria semântica de caráter dedutivo, e essa dedução é feita segundo os padrões da lógica formal. E o desafio de Perelman é justamente mostrar que, muito embora seja impossível uma teoria semântica da verdade valorativa, é possível haver uma teoria pragmática sobre o uso correto dos juízos de valor.

A logicização conduz a teorias semânticas na medida em que as relações lógicas são relações formais entre enunciados. Essa formalização possibilita um alto grau de objetividade na medida em que a precisão da linguagem lógico-matemática permite desligar o sentido de um enunciado de qualquer condicionante histórica. Porém, a concentração na lógica não envolve a densificação de um discurso hermenêutico, mas a sua rarefação, na exata medida em que a precisão lógica é vista como uma espécie de antídoto contra a subjetividade inerente a toda apreciação valorativa. Porém, o preço da logicização é demasiadamente alto para o pensamento jurídico, pois o caráter apriorístico das verdades lógicas nos conduz à impossibilidade de desenvolver uma metodologia dogmática adequada para orientar a prática jurídica.

Isso ocorre porque a adequação não é uma categoria que possa ser avaliada com os padrões binários da lógica (verdadeiro e falso), e sim uma categoria que envolve uma distinção entre vários graus de razoabilidade. E essa razoabilidade não pode ser medida de maneira a-histórica e universal, mas apenas com referência a comunidades concretas, pois a adequação de uma determinada postura é definida com referência a um determinado padrão cultural. Porém, dada a complexidade das nossas sociedades, supor que existe um padrão cultural homogêneo que servira como parâmetro para julgar a razoabilidade de um enunciado parece um pressuposto tão idealista e metafísico quanto o axioma naturalista de que há padrões absolutos de verdade.

E é justamente neste ponto que o salto para a pragmática possibilita uma diferenciação de caminhos. A simples afirmação de que a verdade é sempre contextual pode nos remeter a teorias da verdade que busquem definir as interpretações corretas a partir de padrões dedutivos, bastando para isso que fosse definido um paradigma valorativo adequado. Parece-me que esse foi o caminho trilhado pelas teorias teleológicas, que continuaram dedutivistas e semânticas, muito embora postulassem que o padrão hermenêutico de adequação deveria ser construído com referência a critérios meta-legislativos. Porém, como apontou Kelsen, essa é uma via epistemologicamente ingênua, na medida em que não leva em conta o fato de que inexistem padrões lingüísticos adequados para fazer uma aferição desse tipo.

Não é possível identificar, na sociedade, um conjunto definido de valores que possibilite um raciocínio dedutivista. E, ainda que fosse possível essa identificação de uma série de valores fundamentais, as tensões e choques existentes no interior de qualquer sistema valorativo impediriam uma abordagem lógico-dedutiva. Porém, frente a fixação dessa aporia, Perelman notou que ela seria inescapável, desde que a lógica dedutiva fosse o único padrão de avaliação de um enunciado. Isso ocorre porque a objetividade da lógica é garantida mediante uma formalização da linguagem, que garante ao mesmo tempo um altíssimo grau de precisão e a univocidade. Esse tipo de linguagem é fundamental para as ciências, e é ela que permite que todos os físicos de um determinado paradigma entendam exatamente a mesma coisa quando se escreve que “V=Δs/Δt”. Porém, o custo semântico desse grau de precisão é a total impossibilidade de fazer os julgamentos valorativos que estão na base de qualquer regulação jurídica.

As leis da física podem permitir a um perito definir qual foi a velocidade que um automóvel tinha quando ocorreu um determinado atropelamento. Porém, nenhuma regra científica é capaz de determinar em que ponto a velocidade de um automóvel é tão grande que deixa de caracterizar simplesmente a culpa e passa a caracterizar dolo eventual por parte do condutor. Isso ocorre porque essa questão não tem a ver com uma descrição de fatos, mas com a sua avaliação segundo parâmetros que não se permitem formalizar, no sentido de que eles não são passíveis de serem redescritos em uma linguagem precisa, cuja aplicação dispensaria uma interpretação valorativa.

A utopia do neopositivismo aplicado ao direito foi a de que seria possível formalizar, ao menos em parte, os conceitos jurídicos. Porém, o custo desse projeto foi a afirmação de que não há nenhuma racionalidade no uso de conceitos valorativos, justamente porque a impossibilidade de formalização impede o uso da lógica dedutiva em sua aplicação, na exata medida em que eles não se deixam reduzir a nenhuma espécie de cálculo. E o ponto central do pensamento de Perelman, seguindo as trilhas de Aristóteles, é o de que o tipo de discurso que rege a aplicação das normas não é dedutivo, mas argumentativo.

O raciocínio dedutivo, que procede por silogismos, estava ligada a uma teoria semântica, na medida em que a veracidade dos enunciados não deveria depender do seu contexto de uso, mas apenas de sua posição dentro de um sistema conceitual. Nessa abordagem, as idéias de convencimento, consenso, argumentação e auditório não têm nenhum lugar, pois a questão toda é a de verificar se existe conexão lógica entre os axiomas e as teses que se busca demonstrar. Contudo, cinqüenta anos de críticas deixaram suficientemente estabelecido que o direito não opera por silogismos, senão após a definição dos fatos e a interpretação das normas, ou seja, após o estabelecimento das premissas. E o discurso jurídico, como bem esclareceu Viehweg, está mais ligado ao estabelecimento tópico das premissas do que à dedução lógica de suas conseqüências, uma vez que é justamente na fixação dos pontos de partida do raciocínio que operam todas as influências ideológicas e valorativas.

Portanto, se existe um raciocínio jurídico propriamente dito, ele não está nas regras gerais da lógica deôntica, mas justamente nos padrões que organizam a elaboração das premissas, especialmente a definição de um sentido normativo para os textos legais. E é justamente neste ponto que entra Perelman, para reafirmar que Kelsen tem razão ao sustentar que a fixação das premissas não pode ser considerada racional, no sentido de observar uma lógica dedutiva, mas que esse processo não é irracional nem arbitrário, na medida em que ele segue padrões argumentativos que podem ser determinados.

Com isso, Perelman realiza uma abertura pragmática do discurso jurídico, pois admite a impossibilidade de uma metodologia semântica de determinação dos valores corretos (seja ela fundada no sistema jurídico positivo ou no sistema valorativo de uma cultura), mas apenas para sustentar que existem padrões pragmáticos que organizam o discurso que conduz às tomadas de decisão. Portanto, mesmo que não se possa garantir a validade dedutiva de uma sentença, é possível avaliá-la sob a perspectiva da solidez da argumentação que a compõe. Assim, abandonada a idéia metafísica e ingênua de que é possível identificar a interpretação correta de um texto mediante procedimentos dedutivos construídos a partir de um sistema de enunciados semanticamente definidos, as influências lingüísticas e historicistas do pensamento contemporâneo somente deixaram essa porta aberta aos que pretendiam superar o radical relativismo da aporia kelseniana: não há padrões objetivos para se avaliar a veracidade de uma afirmação, mas existem padrões relativamente seguros para se avaliar a consistência da argumentação que serve como justificativa para um determinado enunciado.

4. A vertigem do abismo

O pensamento de Perelman, que segue algumas das trilhas abertas por Viehweg, opera uma clara mudança no discurso da hermenêutica jurídica, que deixa de ser apresentada como um conjunto de métodos que garantem o acesso a uma verdade semântica, e passa a ser visto como um discurso que organiza a argumentação. Com isso, a interpretação de um texto não pode mais ser entendida de maneira desconectada dos argumentos que a justificam, o que é incompatível com o formalismo do pensamento silogístico. Tal virada para a argumentação é muito eloqüente, pois evidencia a falência de uma teoria semântica do direito (pois o formalismo da lógica jurídica é incapaz de orientar as decisões práticas) e o início de uma teoria pragmática, na qual ganha relevância a relação entre o sentido dos textos e os contextos sociais de uso.

Esse giro pragmático aproxima a teoria jurídica da hermenêutica filosófica, na medida em que os tópicos são definidos em um contexto cultural específico, o que abre a possibilidade de pensar o direito de uma forma mais hermenêutica que científica. Porém, uma tal radicalização do historicismo traz para o núcleo do direito o processo de dupla relativização que colocou a hermenêutica filosófica nas fronteiras da pós-modernidade.

Uma primeira onda de relativização jurídica ocorreu quando se colocou em xeque os ideais iluministas de um direito racional universal, movimento esse que ocorreu ainda no século XIX, com a ascensão de um positivismo historicista. Desde essa época, a dogmática jurídica passou a lidar com normas que são válidas apenas na medida em que pertencem a um determinado sistema de direito positivo, cuja validade é limitada no tempo e no espaço. Porém, o positivismo que consolidou a da historicidade do conteúdo do direito continuou buscando um ponto arquimediano para garantir a objetividade do conhecimento jurídico. Assim, por mais que a dogmática jurídica tenha se voltado à análise de legislações positivas, a teoria jurídica continuou em busca de conceitos que dessem conta de explicar a experiência jurídica como um todo, de tal forma que a relativização dos conteúdos normativos não foi acompanhada pela relativização do conhecimento jurídico. Essa é a perspectiva que origina as teorias gerais do direito, que são a tentativa novecentista de construir uma teoria jurídica que articulasse uma forma universal e um conteúdo variável.

Até aqui, nenhuma novidade, pois nos encontramos de novo frente à articulação platônica entre forma e conteúdo, com a qual Platão harmonizou as influências de Parmênides e Heráclito. Na mitologia filosófica, Heráclito é o arauto da vertigem, pois ao afirmação de que tudo muda implica a possibilidade de mudança da própria natureza e da racionalidade humana. Já Parmênides é o seu oposto, em sua afirmação anti-intuitiva de que tudo o que o movimento é ilusório. Platão articula essas duas percepções mediante a afirmação de que asa coisas do mundo físico se alteram, mas que elas seguem padrões imutáveis. Desde então, o pensamento metafísico se concentra na percepção desses elementos que permanecem, desses universais que constituem a essência da realidade, na medida em que conformam o próprio mundo.

Essa articulação platônica está, inclusive, na base do pensamento científico, que busca compreender as leis imutáveis que organizam os fenômenos mutáveis. Portanto, a metafísica básica do pensamento filosófico e científico é justamente a crença na existência desses padrões a-históricos, universais e permanentes. No direito, essa crença se revelou quase sempre na busca de descobrir os valores universais, nos variados projetos que classificamos dentro do rótulo genérico de jusnaturalismo. Porém, a radicalidade da crítica humeana aos valores naturais nos acordou do sono dogmático e nos colocou uma primeira grande vertigem: se não há valores naturais, como é possível fazer uma apreciação valorativa objetiva?

A primeira grande resposta foi a kantiana, que pregou a mutabilidade dos conteúdos e a permanência das nossas formas de organizar os fenômenos, ou seja, da nossa racionalidade. Essa releitura do platonismo está na base do neopositivismo, que olha com vertigem a possibilidade de uma racionalidade relativa e busca seus pontos fixos nos conceitos jurídicos que seriam verdadeiros a priori e que, portanto, organizariam a nossa experiência jurídica. Nesse sentido, a teoria mais refinada foi a de Kelsen: o arquétipo do positivista não quer falar do conteúdo do direito positivo, mas da forma do direito positivo, que é a única coisa que se pode servir como ponto de união de todos os direitos historicamente determinados. E não devemos nos esquecer que a ciência empírica só estuda os fatos em sua concretude para chegar a uma explicação abstrata e formal sobre as leis da natureza.

Portanto, os herdeiros de Platão nunca colocaram em questão que, por mais que os fenômenos se modifiquem, existe algo que permanece. E, na modernidade, esse ponto absoluto de permanência é justamente a racionalidade humana, de tal forma que a passagem para uma pós-modernidade implica o questionamento dessa unicidade da razão. Por isso mesmo que é que a radicalização historicista da hermenêutica provocou vertigens ao apontar para a existência não apenas de um direito positivo específico para cada cultura, mas de conceitos e padrões de validade também específicos e historicamente determinados.

Essa linha de fronteira foi delineada por Nietzsche e foi percebida cada vez com mais clareza, até que ela se colocou como um problema crucial, a partir da década de 60. O historicismo carrega em si o risco da dissolução da razão, da inexistência de pontos fixos, da recusa da objetividade, e todos os teóricos vinculados ao projeto da modernidade buscaram articular com o relativismo historicista algum tipo de perspectiva que salvasse alguma universalidade. Assim é que, frente ao relativismo da verdade das interpretações, os juristas se entregaram à busca do universal no processo argumentativo, que deveria ser o novo ponto de Arquimedes do pensamento jurídico. E, nesse ponto, os juristas não estão isolados, pois todos os teóricos modernos que se comprometeram com uma descrição lingüística do agir humano fizeram um trânsito do controle semântico das verdades para um controle pragmático do processo, pois, se os conteúdos eram admitidamente contingentes, o processo ainda era considerado universal.

Essa universalidade do processo histórico me parece uma espécie de maldição hegeliana, que permeou o pensamento sociológico do começo do século XX e que ainda hoje está na base da percepção dos pensadores que ainda trabalham ligados ao que Nietzsche poderia chamar de uma vontade de sistema. No direito, essa maldição somente começa a ser quebrada apenas quando admitimos, como Viehweg, que é idealizadora toda tentativa de apresentar o direito como um sistema unificado, pois ele não passa de uma mistura de fragmentos de sistemas parciais, que não se deixam unificar e que, nessa medida, somente se deixam aplicar de maneira tópica.

Porém, a ausência de um sistema ainda era inconcebível, de tal forma que as primeira teorias da argumentação simplesmente trasladaram a vontade de sistema da semântica para a pragmática. No campo jurídico, as duas teorias mais expressivas nesse sentido são as de Perelman e de Alexy, que ofereceram teorias da argumentação que são as nossas principais referências nesse tipo de abordagem.

5. Da impessoalidade moderna ao auditório universal

A retórica clássica é um estudo acerca do modo como certas técnicas argumentativas permitem “provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento”[320], de tal forma que a argumentação retórica é sempre medida em relação a sua capacidade de gerar a adesão de um auditório. Nessa medida, os padrões retóricos sempre foram ligados aos discursos cuja função era a de é persuadir. Porém, há uma série de discursos que não se dirigem expressamente a um auditório, na medida em que eles pretendem conter enunciados objetivamente verdadeiros e que, portanto, não são sustentados por meio de argumentos persuasivos, mas por argumentos demonstrativos. Esse é o caso dos discursos da modernidade que são ligados a algum saber, tais como o filosófico, o científico e o dogmático-jurídico.

Na modernidade, portanto, existe uma clara diferenciação entre os discursos teórico e retórico que se resolveu com a primazia do primeiro, pois somente ele é capaz de portar a verdade moderna, que é objetiva por ser impessoal. Nesse ponto, a modernidade se distancia da pré-modernidade, em que a validade objetiva ainda se fundava em critérios tais como a revelação, a , a sabedoria, a autoridade e a tradição. Por isso mesmo é que a modernidade enxergou a retórica como uma espécie de inimiga da verdade, pois o potencial retórico de uma argumentação nada tem a ver com a verdade impessoal que ela demonstre, mas apenas com a sedução pessoal (seja individual ou coletiva) que ela é capaz de produzir, sejam verdadeiros ou não as suas conclusões. Assim foi que os pensadores modernos consideraram racionais as argumentações demonstrativas, ao passo que as argumentações retóricas eram vistas como uma fomentadoras de ilusões e enganos.

Por isso mesmo, teve um caráter revolucionário a tentativa perelmaniana de reintroduzir a retórica no campo da racionalidade, pois esse giro retórico implicava uma redefinição da própria noção moderna de razão. Esse ponto era tão relevante que, logo na primeira frase da nova retórica, Perelman disse que a publicação de um tratado consagrado à argumentação constituía “uma ruptura com uma concepção da razão e do raciocínio, oriunda de Descartes, que marcou com seu cunho a filosofia ocidental dos últimos três séculos”[321].

Com sua obra, Perelman permitiu que fizéssemos uma releitura retórica dos processos de argumentação demonstrativa, mostrando que muitos deles não passavam de pseudo-demonstrações. A longa pesquisa que culminou no tratado da argumentação deixou claro que os procedimentos retóricos não foram afastados discursos modernos, muito embora tais procedimentos deixassem de ser percebidos como elementos de retórica, pois eles foram inseridos em argumentações que pretendiam ser demonstrativas e impessoais. Como esses discursos partiam de topoi que consideravam objetivamente válidos e se desenvolviam segundo procedimentos dedutivos, eles não assumiam sua própria dimensão persuasiva.

Assim, o trabalho de Perelman não foi um libelo a favor da reintrodução da retórica na argumentação, mas um vasto relato que apontava a onipresença da retórica e sugeria que ela fosse percebida tal. Portanto, não se tratou de um projeto de retomada da retórica propriamente dita, mas apenas dos estudos retóricos capazes de nos permitir uma compreensão adequada das práticas argumentativas que nunca deixamos de realizar.

Mas como uma teoria retórica pode compreender uma prática argumentativa demonstrativa e impessoal? O primeiro passo, nesse sentido, é caracterizar que os discursos modernos, apesar de sua estrutura impessoal, devem ser compreendidos como dirigidos a um auditório. Seguido as trilhas da retórica tradicional, esse auditório deveria ser identificado com um grupo de pessoas concreto, às quais a argumentação buscaria persuadir. Esse caminho tende a levar o discurso jurídico a uma fragmentação extrema, pois identificaria para cada argumentação um auditório específico, que poderia ser um juiz, um tribunal, uma sala de aula, a audiência de uma palestra, e assim por diante.

Porém, esse grau de fragmentação do discurso jurídico em discursos concretos dirigidos a auditórios específicos conduz à impossibilidade de se falar em um discurso jurídico geral, mas apenas a justaposição de discursos particulares, dirigidos a auditórios repletos de idiossincrasias. Se, por um lado, essa conclusão é coerente com a intuição realista de que não existem não existem discursos nem auditórios abstratos, mas apenas discursos e auditórios concretos, por outro lado ela é incompatível com o fato de que nossos discursos muitas vezes não se dirigem a auditórios concretos, mas a um auditório abstrato. O auditório a que se dirige um jornal, uma revista ou uma peça de publicidade poder normalmente ser determinado com bastante concretude. Porém, o discurso acadêmico, é composto por argumentos abstratos, que têm a pretensão de valer para além dos seus contextos imediatos.

Esta frase que você está lendo, por exemplo, é por um lado dirigida à banca que avaliará a presente tese de doutoramento, mas por isso mesmo ela é não é dirigida apenas a essa banca, pois o discurso acadêmico não se volta à aprovação concreta de certas pessoas, mas ao assentimento por um auditório muito mais amplo e abstrato. Essa pretensão de transcendência do contexto permeia mesmo os discursos que não pretendem conter uma verdade universal, imutável nem necessária.

E é justamente essa pretensão que separa a nova retórica da retórica clássica, que era voltada apenas para as técnicas de persuasão de um auditório concreto, e não para a identificação das estruturas que regulam a argumentação perante um auditório abstrato. Assim, a adesão de um auditório concreto a uma determinada tese é uma questão de fato, a ser medida em termos de eficácia, mas a possibilidade de um auditório abstrato aderir a uma determinada tese é uma questão de direito, a ser medida em termo de aceitabilidade e não de aceitação. Portanto, o valor objetivo de uma argumentação não pode ser medido em termos de sua aceitação por um auditório particular, mas apenas em termos de sua potencial aceitabilidade perante um auditório abstrato.

Mas que auditório abstrato é esse? Perelman percebe que ele pode ser composto por vários processos de abstração, sendo um auditório de todos os homens, ou dos homens sábios, ou dos participantes de determinado grupo social ou religioso. E isso ocorre porque cada discurso retórico pretende a adesão do outro, mas esse outro varia de acordo com as peculiaridades de cada argumentação. Assim, o outro de um discurso cristão pode ser diferente do outro de um discurso político marxista ou de um discurso literário. Com isso, cada concepção projeta um auditório abstrato ao qual ela própria se dirige.

É nessa passagem dos auditórios concretos para os auditórios abstratos que a nova retórica se distingue da retórica tradicional, pois essa diferenciação é ligada ao problema contemporâneo de descrever retoricamente um discurso que se apresenta como demonstrativo. Nesse ponto, a saída de Perelman foi bastante engenhosa: ele percebeu que o auditório abstrato a que se dirigia o discurso moderno era um auditório vazio, completamente impessoal. Uma das marcas principais do paradigma da modernidade filosófica é que o outro a que ela se dirige não é um auditório concreto, mas o conjunto de todos os indivíduos entendidos como seres racionais. Com isso, esse é o mais abstrato dos auditórios, pois ele é de certa forma dirigido à própria racionalidade, a tal ponto que os discursos modernos chegam a não se perceber como práticas retóricas/persuasivas, mas como práticas teóricas/demonstrativas, que são impessoais tanto no pólo do falante quanto no pólo do ouvinte. Por isso mesmo é que a teoria moderna, seja ela filosófica ou científica, é escrita em terceira pessoa e dirigida a um leitor abstrato.

Essa estrutura argumentativa não surge do acaso. O problema dos discursos modernos se colocaram não era o da aceitação, mas o da verdade objetiva, e isso se explica pelo fato de que eles se dirigiram inicialmente contra uma tradição que os rejeitava. A verdade objetiva e impessoal foi a saída moderna para poder argumentar consistentemente contra uma tradição teológica fundada em critérios de revelação e de autoridade. Portanto, era preciso garantir a possibilidade de uma verdade que fosse absolutamente contrária ao senso comum europeu, como o fato da terra ser redonda e girar em torno do sol. Assim, os textos de Galileu, de Darwin ou de Lavoisier não eram dirigidos a ninguém em especial, pois eles pretendiam ser uma descrição objetiva do mundo, pois eles eram voltados a demonstrar e não a persuadir.

Porém, desde que entendamos que esses discursos são dirigidos ao auditório abstrato que Perelman chamou de auditório universal[322], esse tipo de argumentação pode ser apreendida como uma prática retórica específica. Assim, por mais que esses discursos não se percebessem como expedientes retóricos, uma teoria retórica pode englobá-los na medida em que os considera como uma peculiar forma de argumentação, dirigida ao auditório universal. Por isso mesmo é que Perelman considera que, mesmo no campo das ciências, que são o paradigma do discurso teórico da modernidade, “há menos risco de simplificar e de deformar a situação em que se efetua o processo argumentativo considerar-se como um caso particular, conquanto muito importante, aquele em que a prova da verdade ou da probabilidade de uma tese pode ser administrada no interior de um campo formal”[323], o que o leva a considerar que o discurso teórico pode ser melhor compreendido como uma forma específica de argumentação perante um auditório universal do que como um discurso verdadeiramente impessoal.

Com isso, Perelman pretende afirmar a relevância filosófica e científica da nova retórica, na medida em que a teoria da argumentação passa a oferecer critérios para que perceber e orientar a prática teórica de produzir verdades pretensamente objetivas. Assim, a teoria de Perelman não é especificamente jurídica, mas trata-se de uma teoria geral da argumentação, que é aplicável ao plano do direito apenas na medida em que os juristas, como os filósofos e os cientistas, fazem afirmações cuja validade transcende o seu contexto imediato na medida em que integra a estrutura desses discursos o enunciado de verdades impessoais e objetivas.

A perspectiva retórica introduzida por Perelman implica uma mudança na percepção do direito, mas a idéia de auditório universal não nos leva para tão longe da concepção moderna de razão. Mesmo que chamemos de universais apenas os auditórios abstratos realmente universalizantes, resta em Perelman o problema de que a indicação da existência desse princípio regulador não é acompanhada pela formulação dos critérios que uma argumentação deve cumprir para ser aceita pelo auditório universal da modernidade. Com isso, a teoria da argumentação de Perelman continua sendo uma extensão da retórica, no sentido de que ela implica um esclarecimento dos procedimentos persuasivos e do aspecto persuasivo dos argumentos que se pretendem demonstrativos, mas não oferece uma metodologia capaz de ligar adequadamente persuasão universal e verdade.

Seguindo a intuição de Perelman, chegamos ao limite interno da retórica: ela pode se aproximar da dogmática e inclusive redescrevê-la, mas ela não serve como base para uma dogmática, na medida em que se trata de uma perspectiva eminentemente externa. Perelman propõe uma espécie de universalidade da retórica, oferecendo um discurso que pode interpretar todos os outros, inclusive os dedutivos, como tipos especiais de argumentação retórica. Porém, para poder englobar todos os tipos de argumentação, a retórica não pode se comprometer com a veracidade dos pontos de partida, mas apenas com a adequação entre os topoi utilizados no argumento e os topoi aceitos pelo auditório. Nesse sentido, a retórica se aproxima da neutralidade da lógica, embora essa neutralidade se mostre de maneira distinta nessas disciplinas. A lógica é neutra por ser puramente formal: na medida em que se liga apenas à estrutura dos argumentos, é-lhe indiferente o conteúdo da argumentação.

Já a retórica tem uma acentuada preocupação material, pois a persuasão depende de uma ligação entre os valores do argumento e os valores do auditório. Porém, a elaboração de um argumento persuasivo exige a referência aos topoi, mas não exige uma adesão aos valores neles contidos, na medida em que a aproximação retórica dá-se por meio de escolhas estratégicas. Assim, a retórica é neutra por não ser engajada: ela oferece uma descrição de como selecionamos os topoi e de como essa escolha pode ser argumentativamente eficaz. Porém, não há um critério retórico que possibilite um julgamento da validade objetiva dos topoi, mas apenas um julgamento estratégico de sua utilidade.

Esse caráter neutro da retórica impede a construção de uma dogmática, pois não se pode falar de topoi objetivamente corretos, mas apenas de topoi adequados a determinado auditório. Aparentemente, o conceito de auditório universal poderia servir como um conceito mediador, que permitisse agregar à descrição tópico-retórica um conjunto de topoi que seriam objetivamente válidos, na medida em que ligados a um auditório abstrato universalizado. Porém, que tipo de topoi poderia ser correto para o auditório universal?

Essa resposta não nos é dada pela nova retórica, o que motiva críticas, como a de García Amado, no sentido de que apesar de ser “na configuração das premissas que o juiz intervém de modo decisivo [...], falta na obra de Perelman a indicação de critérios controláveis de racionalidade da atuação valorativa do juiz”.[324] Com isso, ele termina não cumprindo o que prometeu na introdução da Nova Retórica, quando disse expressamente que não bastava subverter a idéia de racionalidade, pois “mesmo que fôssemos além da abordagem positivista, não bastava desejar uma concepção mais ampla da razão: cumpria também elaborar uma metodologia que permitisse pô-la em prática, elaborando uma lógica dos juízos de valor que não os fizesse depender do arbítrio de cada um”[325]. Todavia, o que a nova retórica nos oferece é uma descrição de como lidamos com os juízos de valor e não de como deveríamos lidar com eles. Assim, o que Perelman ofereceu foi uma teoria analítica dos discursos jurídicos (evidenciando os seus elementos, suas estruturas, seus modos de organização), e não uma teoria normativa.

Inicialmente, eu considerava que essa era uma limitação da teoria de Perelman[326], mas hoje creio que não se trata propriamente de uma imperfeição, mas de um posicionamento condizente com os pressupostos da nova retórica e, em especial, com o peculiar conceito perelmaniano de auditório universal. Para Perelman, a retórica em nada pode nos ajudar a fixar esses elementos de uma maneira universalista, especialmente porque o próprio auditório universal não passa de uma abstração construída a partir dos valores dos auditórios concretos. Então, dentro de sua percepção, não existe propriamente um auditório universal, mas vários. Tal sensibilidade aristotélica de Perelman impediu que ele tentasse construir uma dogmática a partir da fixação dos valores que seriam necessariamente aceitos por todos os auditórios universais.

Além disso, a busca dos argumentos universalmente aceitos nos conduziria de volta aos passos do neopositivismo, que tinha razão ao acentuar que os únicos argumentos universalmente válidos eram os da lógica formal dedutiva, pois apenas a formalidade garante a objetividade. E, como o intuito de Perelman era justamente dar um passo além dessa conclusão, mostrando que havia uma racionalidade no modo de argumentação valorativa, tal retorno ao positivismo era completamente descabido. Porém, defender a existência de uma racionalidade no modo de argumentar não significava, de modo algum, que haveria um certo grupo de valores racionalmente válidos. Nesse sentido, Perelman permanecia vinculado à tradição humeana, que negava racionalidade às escolhas valorativas, tanto que a racionalidade atribuída à retórica permanece em um campo meramente estratégico-instrumental.

6. Do auditório universal à pragmática universal

Perelman contribuiu para uma revolução na nossa forma de perceber o direito. Ali onde víamos silogismos baseados em premissas verdadeiras, agora enxergamos argumentos retóricos baseados em topoi que pressupomos serem aceitos pelo auditório a que visamos persuadir. Onde víamos verdade demonstrativa, enxergamos aceitabilidade retórica, e com isso o sistema monolítico que herdamos da jurisprudência dos conceitos parece ter sido substituído por uma intrincada rede de topoi com os quais tecemos argumentos voltados aos auditórios variados. Uma visão muito mais dinâmica e aberta, mas também muito mais imprevisível e complexa.

Entretanto, a vinculação de Perelman a um conceito estratégico de racionalidade impediu que a nova retórica constituísse uma teoria normativa e, com isso, ela não tem a potencialidade de se firmar como uma alternativa para a construção de um discurso jurídico interno. E, sem um discurso interno, nossa capacidade de crítica fica pela metade, pois as teorias externas podem ampliar a nossa potencialidade de compreensão dos problemas, mas elas não nos oferecem categorias adequadas para que nos oponhamos contra uma decisão que julgamos incorreta.

Isso acontece porque a correção é uma categoria interna: ela não se relaciona à estrutura dos discursos, mas aos seus conteúdos. Uma visão externa pode, no máximo, esclarecer que certo posicionamento é a que provavelmente vai ser entendido como correto, mas não faz parte do seu universo qualificar como correta uma decisão. Assim, por mais que a retórica dê um passo além da lógica ao agregar avaliações que não se limitam à forma semântica, a avaliação retórica de um argumento permanece sendo uma análise de estrutura: ela se limita a mostrar que há adequação entre um conjunto de topoi e certas linhas argumentativas.

E, como essa avaliação tipicamente leva em conta os topoi dominantes no senso comum, o juízo de aceitabilidade se converte em uma espécie juízo de probabilidade de aceitação. Portanto, quando uma teoria retórica diz que certo argumento é aceitável pelo auditório a que se dirige, essa não é uma afirmação axiológica, mas apenas fática. Essa distinção relevante é porque, por mais que Perelman tenha afirmado que a aceitabilidade perante o auditório universal era uma questão de direito, a impossibilidade de fixar parâmetros objetivos para tal aceitabilidade converte esse problema novamente em uma questão de fato. Por isso mesmo o auditório universal é uma categoria muito forte enquanto parte de um discurso externo (que reinterpreta o sentido dos argumentos demonstrativos), mas torna-se uma categoria fraca quando se pretende utilizá-la para organizar um discurso interno.

E é justamente na debilidade interna do conceito de aceitabilidade que se concentram as atenções do alemão Jürgen Habermas. Habermas sofreu a influência da filosofia da linguagem que está na base do pensamento de Perelman, e percebeu que a radicalização das perspectivas analíticas conduz para uma cientificização do discurso que, longe de ampliar nossa capacidade de crítica, a embota. E Habermas nota com argúcia que, no mundo contemporâneo, a pretensão de cientificidade é uma das formas mais sofisticadas da ideologia, cuja peculiar eficácia “reside em dissociar a autocompreensão da sociedade do sistema de referência da acção comunicativa e dos conceitos da interação simbolicamente mediada, e em subistituí-lo por um modelo científico”[327]. E, mesmo que tenham abandonado o fetichismo lógico do neopositivismo, as vertentes pragmáticas da filosofia da linguagem continuaram trilhando caminhos cientificizantes, que radicalizaram a impossibilidade da passagem entre o ser e o dever-ser e, nessa medida, continuaram mantendo a primazia dos discursos externos.

No campo das teorias do discurso, essa externalidade faz com que a única categoria que pode ser usada para julgar objetivamente a validade de uma argumentação seja a sua aceitação efetiva ou potencial. Nesse tipo de posicionamento fica evidente a influência da teoria epistemológica de Thomas Kuhn, que traz o consenso para o centro da idéia de verdade. Na medida em que o termo verdade passa a designar uma série de enunciados que são aceitos de maneira consensual por certos grupos sociais, então não faz sentido a busca de critérios semânticos de veracidade, pois esses critérios sempre serão definidos no campo pragmático. Com isso, a verdade deixa de ser uma medida de correspondência entre certos enunciados e o mundo, e passa a ser a correspondência entre certos enunciados e certas crenças compartilhadas.

O abandono da metafísica aparentemente nos conduziu a um relativismo que, impossibilitado de buscar valores naturais, apegou-se ao consenso como único critério de validade. Esse trânsito da universalidade ao consenso se processou inicialmente no campo da política, em que as teorias iluministas do contrato social sustentavam a validade normativa com base em um acordo ideal de vontades, mas os Estados de direito construídos a partir do século XVIII se assentaram sobre constituições que eram compreendidas como consensos reais. E, ao contrário dos direitos naturais, os consensos são fruto da liberdade humana, são históricos e são construídos lingüisticamente, de tal forma que em sua base estão alguns dos valores fundamentais das perspectivas filosóficas da modernidade tardia.

No século XX, após a radicalização popperiana das críticas epistemológicas de David Hume, a admissão da impossibilidade de se demonstrar a veracidade de um enunciado conduziu vários pensadores ao reconhecimento de que toda verdade é histórica e contextual, de tal forma que o consenso ganhou relevância epistemológica. Com isso, a verdade passou a ser tratada com as categorias típicas validade, o que implicou uma inversão da tendência anterior.

Durante a modernidade, houve uma busca de fundamentos objetivos tanto para a verdade quanto para a validade, e ambos esses fundamentos deveriam ser encontrados na própria racionalidade humana. Com isso, a validade dos direitos positivos era retirada de sua ligação aos direitos naturais (especialmente do pacta sunt servanda) e a validade desses direitos naturais não era baseada no consenso, mas em sua auto-evidência. Porém, quando nos tornamos suficientemente reflexivos par aperceber que a evidência racional não é um critério objetivo, outros fundamentos precisaram ser buscados para justificar uma pretensão de veracidade objetiva.

Porém, uma efetiva passagem da verdade ao consenso é incompatível com as perspectivas modernas porque, se o fundamento moderno da validade normativa é o acordo, o fundamento da verdade não pode ser consenso. Isso ocorre porque o pensamento moderno construiu-se na luta contra uma verdade que se apresentava como absoluta, mas que a modernidade tentou apresentar apenas como uma espécie de preconceito compartilhado: uma ilusão de verdade, que não poderia ser confundida com a Verdade. Assim, reduzir a verdade ao consenso implica que a racionalidade não pode servir como um critério objetivo de veracidade e que, portanto, não temos defesa contra as mentiras consensuais. Por isso mesmo é que Habermas não pode admitir que o consenso real acerca de determinado enunciado possa ser uma prova de sua validade.

Para ele, a verdade é sempre uma pretensão que transcende o contexto. A redução da verdade ao consenso não resolve de modo algum o problema, pois os consensos sociais geram crenças, mas não verdades. Ao apagar essa divisão, as teorias do consenso terminam por ficar sem saída, a não ser reconhecer a veracidade dos preconceitos. Nesse ponto, verdade e validade se aproximam, pois a pretensão de validade também transcende ao contexto e remete a algo além de uma crença compartilhada. Portanto, o problema da epistemologia não foi o de procurar inspiração nas estratégias da política, mas o de trazer para a teoria da ciência uma questão mal-resolvida da filosofia política: quando um consenso pode ser considerado um critério objetivo de validade?

A tese habermasiana é a de que nem todo consenso gera validade, pois o consenso nem sempre é a expressão de uma racionalidade. Nesse ponto, Habermas retoma a estratégia moderna de tentar fundar a validade objetiva na racionalidade, e não no acordo. Nesse sentido, há uma aproximação com as teorias contratualistas, que não podiam apresentar um consenso real como fundamento objetivo da legitimidade, mas apresentavam um consenso ideal como resultado necessário da racionalidade prática humana aplicada às questões sociais. Do mesmo modo, como Habermas pretende oferecer uma teoria acerca do fundamento da validade, ele precisa ancorar sua argumentação em um ponto objetivo fora da história.

Porém, Habermas não propõe um retorno ao contratualismo clássico, pois ele não tenta demonstrar que um acordo entre homens racionais conduziria fatalmente à afirmação dos valores de igualdade e de liberdade. Esse tipo de perspectiva tem uma carga semântica demasiadamente pesada e conduz a uma metafísica jusnaturalista que não parece compatível com um pensador que, influenciado pelo linguistic turn, afirma que “cada experiência está lingüisticamente impregnada, de modo que é impossível um acesso à realidade não filtrado pela linguagem”[328]. Após o giro lingüístico, porém, somente o consenso parece um critério razoável de verdade, pois já não se pode mais apelar para a autoridade secular, para a revelação religiosa nem para a evidência moderna. Assim, o que Habermas tentou não foi estabelecer a relação entre validade e consenso (que já estava relativamente consolidada), mas definir que tipo de consenso pode justificar a pretensão de validade veritativa ou normativa de um enunciado. E, seguindo a trilha dos pensadores modernos como Kant e Descartes, Habermas buscou na racionalidade o critério para considerar que um consenso pode conduzir à validade.

Porém, antes de seguir adiante na análise de que tipo de consenso a elaboração dessa categoria de “consenso racional” tem a importante finalidade de manter aberta a nossa capacidade de crítica. Assim, Habermas segue a inspiração marxista de que o pensamento deve ter um potencial emancipatório, tendo compromisso não apenas com descrever o mundo, mas também com transformá-lo. Esse é um desafio contemporâneo à modernidade, que foi revolucionária a seu tempo (na medida em que a impessoalidade era uma grande arma contra a tradição), mas tornou-se conservadora quando as formas modernas de organizar a sociedade se impuseram como hegemônicas. Assim como Tomás de Aquino colocava a razão a serviço da fé (outra razão não lhe interessava), o marxismo colocou a razão a serviço da igualdade que inspirava o socialismo. E o resultado contemporâneo desse tipo de engajamento político são as chamadas teorias críticas, que se propõem a resolver uma dificílima equação: aliar solidez epistemológica e engajamento político, oferecendo critérios que possibilitem justificar a emancipação na racionalidade[329].

Os pensadores ligados às teorias críticas precisam escapar da racionalidade estratégica de Hume, que impossibilita a mescla entre razão e valores, pois, sem que haja algum contato entre essas esferas, ficamos impossibilitados de justificar racionalmente uma opção valorativa. Por isso mesmo é que Habermas se considera um cognitivista, ou seja, alguém que acredita na possibilidade de fazer juízos de verdade sobre enunciados normativos[330]. Para Hume, era impossível afirmar a validade racional de qualquer valor, na medida em que é impossível uma passagem do ser para o dever-ser. Nessa medida, tanto ele quanto os demais defensores desse tipo de posicionamento, o que inclui especialmente os pensadores contemporâneos influenciados pelo relativismo neopositivista, podem ser chamados de não-cognitivistas: eles negam a possibilidade de haver verdade em questões de julgamento valorativo. Porém, seguindo de perto as intuições kantianas, Habermas posiciona-se ao lado dos que acreditam ser possível justificar racionalmente certas posturas axiológicas. Essa possibilidade de uma avaliação axiológica racional possibilita a afirmação de que certos valores são objetivamente válidos e, com isso, contribui para a manutenção de nossa capacidade de crítica, especialmente frente às influências relativistas do positivismo.

A peculiaridade da teoria habermasiana é que ela propõe a existência de uma correção axiológica que não se radica em uma avaliação semântica, mas que passa por uma radicalização do giro pragmático que a filosofia da linguagem operou no pós-guerra. Em termos gerais, Habermas admite a falência das teorias que buscaram critérios semânticos de validade e sempre desembocaram em uma espécie de jusnaturalismo metafísico. Porém, ele também rejeita a dissolução comunitarista que abandonou os ideais universalizantes da modernidade e se contentou em articular, de forma consistente, os tópicos argumentativos dominantes em uma determinada cultura. Esse tipo de perspectiva não deixa espaços abertos para a crítica e a transformação da sociedade porque ficamos completamente despidos de critérios que nos possibilitem fazer uma análise externa da validade dos sistemas axiológicos de uma determinada comunidade. Então, contra o relativismo moral dos positivistas, Habermas defende a idéia de que existem critérios pragmáticos para a fixação da validade objetiva de certas apreciações valorativas, tanto no campo da moral quanto no do direito. Com isso, ele não se opõe às teorias da modernidade, que vinculam validade e razão, mas procura defendê-la com meios adequados aos desenvolvimentos da filosofia da linguagem do século XX.

A estrutura de sua argumentação nos remete, inicialmente, à estratégia utilizada por Hume para dizer que não há valores naturais a serem encontrados na natureza, mas que há certos valores aos quais o homem é naturalmente levado a considerar naturais, em virtude do seu modo de apreender o mundo[331]. Essa estratégia foi ligeiramente alterada por Kant, que buscou identificar o modo humano de apreender o mundo com certas formas inatas de construção da realidade (ou seja, a racionalidade humana) e a retirar dessa natureza humana certas conclusões éticas necessárias[332]. Até este ponto, existiu a tentativa moderna de ligar valores a racionalidade de uma maneira indireta, mostrando que certos valores (notadamente a igualdade, que desempenha papel central em todas essas teorias) podiam ser derivados diretamente da racionalidade humana. Habermas, influenciado pela filosofia da linguagem, admite que essa passagem direta é impossível, e oferece um programa que cria uma passagem indireta, por meio de uma valorização do aspecto pragmático da linguagem, buscando “atribuir às condições intersubjetivas de interpretação e entendimento mútuo lingüísticos o papel transcendental que Kant reservara para as condições subjetivas necessárias da experiência objetiva”[333].

Tal como Kant e Hume, Habermas parte de uma certa descrição do homem, que atribui a ele certas características como sendo naturais. Porém, ao contrário dos seus antecessores, Habermas procura derivar dessa natureza humana valores fundamentais, mas busca nela certos processos necessários que poderiam conduzir naturalmente a certas posturas valorativas. Com isso, ele procurou superar as dificuldades do imperativo categórico kantiano, que era um princípio semântico de universalização, mediante a introdução de um princípio pragmático de universalização que ele chama de princípio discursivo.

A idéia básica é a de que a racionalidade humana se processa mediante a linguagem e que o processo de comunicação segue certos padrões que são necessários, na medida em que são elementos constitutivos da própria possibilidade de uma diálogo racional. Essa concepção envolve a consideração de que, para além da existência de regras racionais para a construção de uma dedução lógica que permita ligar meios a fins (que Habermas chama de razão instrumental), também existe um conjunto de regras que orienta a argumentação racional e que organiza o que ele chama de razão comunicativa. Essa razão comunicativa não deve conter regras semânticas (definições de valores), mas orientações pragmáticas (definições de conduta), que estabeleçam os parâmetros dentro dos quais uma determinada conversação pode se considerar pautada por regras racionais.

Com isso, Habermas acentua o papel da argumentação, pois a validade de uma proposição não pode ser demonstrada (como havia sentenciado Popper), mas pode ser justificada de uma forma racional. Assim, o que Habermas pretender retirar da racionalidade não é um conjunto de enunciados válidos (como faz a tradição jusnaturalista), mas um procedimento argumentativo que possibilite uma justificação racional dos enunciados. Dessa forma, como bem sintetiza Alexy, Habermas remete o conceito de verdade da semântica para a pragmática, na medida em que a justificação de uma afirmação “não deve mais depender da verdade do que é afirmado, como se supunha tradicionalmente, porém, ao contrário, a verdade do que está sendo afirmado depende da justificação da afirmação”[334].

Assim, Habermas operou uma releitura do projeto kantiano, mas em vez de fazer uma análise transcendental das razões pura e prática, ele opera uma espécie de análise transcendental dos discursos puro e prático, buscando identificar os critérios discursivos necessários para a pretensão de racionalidade de uma argumentação. E a sua conclusão foi a de que são quatro os pressupostos de uma comunicação racional[335]. O primeiro é a publicidade e total inclusão de todos os envolvidos, de tal forma que todas as pessoas tenham acesso ao discurso. O segundo é a distribuição eqüitativa dos direitos de comunicação, de modo que todos os participantes devem ter a mesma chance apresentar argumentos. O terceiro é o caráter não-violento de uma situação que admite apenas a força não-coercitiva do melhor argumento, o que exclui as ameaças, os subornos, as promessas ou qualquer outros elementos que não sejam internos ao próprio discurso. O quarto é o da sinceridade dos proferimentos, pois é preciso supor que os participantes atuam em busca de um consenso, e não se limitam a tentar influenciar estrategicamente o comportamento dos outros.

Com isso, o consenso somente poderia gerar a justificação de um enunciado quando ele seguisse os procedimentos pragmáticos que definem um discurso como racional, de tal maneira que a validade não seria fundamentável a priori por uma adequação semântica perceptível por uma razão monológica, mas seria justificada a posteriori, por meio da observância de um procedimento que tende a garantir a racionalidade das conclusões.

Assim, o engajamento crítico de Habermas o levou a dar um passo que o relativismo de Perelman não o permitia: o estabelecimento de critérios capazes de permitir que “normative claims to validity have cognitive meaning and can be treated like claims to truth”[336]. Isso não significa afirmar que as enunciados normativos podem ser verdadeiros (pois esse é um atributo dos enunciados empíricos), mas que a correção normativa é um critério objetivo, de tal sorte que é possível fazer enunciados descritivos verdadeiros acerca da correção de enunciados prescritivos.

Essa abordagem terminava por redefinir o sentido de verdade segundo uma postura procedimental, de tal forma que o critério de veracidade não era a aceitabilidade real, mas uma aceitabilidade ideal segundo a qual “um enunciado seria verdadeiro precisamente se e somente se pudesse resistir, sob os exigentes pressupostos pragmáticos dos discursos racionais, a todas as tentativas de invalidação”[337]. Com isso, Habermas operou uma espécie de trânsito de um ideal de verdade objetiva para um ideal de justificação perante um auditório ampliado, por meio de um discurso que respeitasse a igualdade dos participantes.

Com essa passagem, operada em meados de 1970, Habermas conseguiu atribuir um sentido axiológico para as teorias retóricas, conferindo a elas a possibilidade de organizar um discurso normativo de caráter interno, que ele próprio posteriormente veio a desenvolver tanto na moral (com a ética do discurso, especialmente durante a década de 1980[338]) quanto no direito (que ele passou a abordar expressamente na década de 1990, com a publicação do faticidade e validade[339]I). Porém, ainda no final da década de 1970, Robert Alexy, um outro teórico alemão, partiu da inspiração habermasiana e tentou construir uma teoria normativa do discurso racional.

7. A teoria da argumentação de Alexy

As teorias tópico-retóricas, especialmente as concepções de Perelman, representaram uma tentativa de ampliação do conceito de racionalidade, de tal forma que dele fizessem parte tanto os julgamentos baseados em critérios de verdade quanto aqueles baseados em um critério de aceitabilidade. Porém, como um argumento é aceitável na medida em que ele é construído de acordo com os topoi efetivamente compartilhados por um determinado auditório, a validade desse tipo de construção não consegue transcender os limites do auditório. Com Habermas, já havia ficado claro que essas perspectivas operam um trânsito da verdade para a aceitabilidade, de tal forma que elas terminam por perder a possibilidade de avaliar a correção de um argumento que é aceito de maneira consensual.

Não obstante, tanto ele quanto Alexy consideram que as teorias tópico-retóricas acentuam corretamente que a discussão é a única instância de controle da validade de julgamentos valorativos, “porque não há outra maneira de examinar as pretensões de verdade tornadas problemáticas”[340], mas elas não oferecem critérios capazes de garantir a racionalidade dos discursos jurídicos. Então, seguindo a trilha aberta por Habermas, o também alemão Robert Alexy buscou elaborar uma teoria da argumentação jurídica capaz de oferecer critérios para avaliar se um determinado juízo de valor é racionalmente justificável.

Tal como Habermas, Alexy abandonou expressamente a tentativa de elaborar uma teoria normativa da interpretação composta por critérios semânticos que possibilitem a identificação de uma resposta jurídica dentro de um sistema predeterminado. Em compensação, ele oferece uma teoria normativa da argumentação, composta por uma série de regras que definem o procedimento que uma argumentação deve seguir para ser considerada racional. Tais regras deveriam ser aplicáveis não apenas aos discursos jurídicos, mas a todos os discursos práticos, servindo como parâmetro para a aferição de sua racionalidade. Assim, a teoria de Alexy segue uma estrutura tipicamente kantiana: ele pressupõe que existe algo como uma faculdade universal chamada racionalidade, busca deduzir dessa racionalidade algumas regras que teriam validade a priori e, com isso, pretende que essas regras tenham validade objetiva e universal.

Porém, enquanto Habermas se limita a esboçar a idéia de uma situação ideal de fala, que serve como modelo para os discursos reais, Alexy desenvolve essas regras de uma forma bem mais analítica, oferecendo o esboço do que ele próprio chamou de código de razão prática, que seria “uma sinopse e uma formulação explícita de todas as regras e formas de argumentação prática racional”[341]. Alexy formulou, então, uma série de regras que definiriam o discurso racional prático, sendo que as quatro primeiras, que ele chama de regras básicas, são apresentadas como uma “condição prévia da possibilidade de toda comunicação lingüística que da origem a qualquer questão sobre a verdade ou a correção”[342]. São elas:

1.1 Nenhum orador pode se contradizer

1.2. Todo orador só pode afirmar aquilo em crê.

1.3. Todo orador que aplique um predicado F a um objeto a, tem de estar preparado para aplicar F a todo outro objeto que seja semelhante a a em todos os aspectos importantes

1.4. Diferentes oradores não podem usar a mesma expressão com diferentes significados.

Essas regras básicas definem que um discurso racional precisa ser sempre sincero, baseado em uma linguagem unívoca e pautado por uma consistência lógica. As regras 1.1 e 1.3 não me parecem especialmente densas, pois elas incorporam elementos da lógica formal que não são especialmente ligadas a um discurso normativo. Já a regra 1.2 é muito eloqüente acerca da vinculação habermasiana de Alexy, pois significa afirmar que a comunicação não pode seguir meramente a razão estratégica, mas deve seguir uma racionalidade comunicativa voltada ao entendimento mútuo e não à mútua dominação por meio do discurso. Nessa medida, existe uma ruptura com os ideais da retórica clássica, que era voltada à conquista estratégica da adesão do auditório, e não à busca de um consenso acerca de matérias controvertidas. E a regra 1.4 também é muito significativa, pois implica a adesão à perspectiva neopositivista de uma teoria da linguagem que privilegia a fixação de critérios semânticos definidos para cada termo, de tal forma que a compreensão não seja dificultada por divergências meramente lingüísticas.

Porém, o passo mais relevante é dado na fixação do segundo grupo de regras, que diz respeito à justificação das afirmações. Nesse ponto, Alexy sustenta que “quem faz uma afirmação não só quer expressar uma crença de que algo é o caso, mas também exige implicitamente que o que está sendo dito possa ser justificado”, o que impõe a admissão da regra 2, segundo a qual “todo orador tem de dar razões para o que afirma quando lhe pedem para fazê-lo, a menos que possa citar razões que justifiquem uma recusa em dar justificação”. Essa regra tenta garantir a racionalidade do discurso, na medida em que esta é ligada à justificação apresentada para cada enunciado, e é complementada pelas exigências habermasianas de igualdade, no sentido de que todas as pessoas devem ter direito a participar do discurso, apresentando suas razões e estando livres de coerções externas ao próprio discurso.

O terceiro grupo de regras é relacionado à divisão do ônus de justificar, e implica que precisa de justificativa expressa (3.1) todo tratamento diferenciado entre pessoas o que significa a inclusão do princípio da igualdade como um princípio racional, (3.2) todo questionamento a topoi estabelecidos na comunidade do orador, o que é um princípio de inércia. Além disso, ele estabelece certas regras colaterais sobre a economia argumentativa, no sentido de que (3.3) uma pessoa somente precisa dar novos argumentos quando os anteriores tenham sido contestados e que (3.4) quem introduz elementos emocionais num discurso, que não tenham diretamente ligação com a linha de argumentação, precisa justificar essa introdução. Com essas diretrizes, Alexy tenta evitar que o diálogo se estenda ao infinito, sem uma conclusão, por meio da eterna repetição do exercício do direito ao questionamento conferido pela regra 2. Portanto, o direito a questionar é limitado pela desoneração do dever de argumentar, implicado especialmente pelas regras 3.3 e 3.4.

Mas, além delas, Alexy introduz também regras que regulam o modo específico de argumentação, radicalizando a regra 1.3 com um imperativo de reflexividade que se aparenta muito com a regra de outro que está na base do imperativo categórico kantiano. Essa união de universalidade e reflexividade, que também se encontra no pensamento de Habermas, é que converte a validade do argumento na possibilidade ideal de uma aceitabilidade por parte de todos os envolvidos, o que envolve regras que garantam a reflexividade, de modo todo falante aplique a si mesmo as conseqüências da sua argumentação, a universalidade, de modo que a todos sejam aceitáveis as conseqüências particulares de um argumento.

Alexy introduz ainda regras de tratam das concepções morais racionalmente justificadas e das regras de transição entre tipos de discursos, mas creio que a enumeração das regras até aqui feita já é suficiente para deixar claro que a perspectiva que ele adota é a de que a racionalidade de um discurso deriva da observância de uma série de regras predefinidas, e que deveriam ser parte integrante de uma espécie de razão comunicativa. E, embora o próprio Alexy admita que a observância dessas regras não garante que a concordância seja alcançada, ele considera que a sua observância aumenta “a probabilidade de alcançar acordo em assuntos práticos”[343], formando consensos que sempre estarão abertos a revisão, nos termos das próprias regras do discurso.

Um próximo passo na teoria de Alexy é passar do plano da argumentação prática para o plano da argumentação jurídica, que é encarado como um caso especial da primeira, que lida com argumentos juridicamente em dois planos. O primeiro, que ele chama de justificação interna, tem a ver com a obediência dos critérios gerais da lógica deôntica, especialmente a observação da construção do silogismo. Essa parcela é meramente formal e tem a ver com a coerência lógica da argumentação utilizada, de tal modo que não se trata de uma justificação especificamente jurídica.

Já a justificação externa não está ligada à estrutura lógica do argumento, mas à justificativa das premissas que caracterizam como jurídico o discurso. E como, ao menos desde Viehweg, está muito claro que o problema básico do direito é a fixação das premissas valorativas, é nesse ponto que a teoria de Alexy precisaria dar um passo para além das concepções tópico-retóricas. Não obstante, é justamente nesse ponto que Alexy menos oferece novas perspectivas, recuperando inclusive alguns cânones de interpretação que já estavam bastante combalidos, como a idéia de que devem ter precedência os argumentos que respeitam a vontade do legislador histórico[344].

Com isso, após um grande passo rumo à pragmática, Alexy volta ao tradicional plano semântico da hermenêutica dogmática, buscando estabelecer uma precedência hierárquica entre os vários tipos de argumentação, pois considera que “os participantes do discurso têm de determinar pesos a serem atribuídos às várias formas de argumento em vários contextos de interpretação”[345], para que esses pesos possam ser utilizados como regras gerais. Além disso, são apresentados como justificados os argumentos baseados nas proposições da dogmática jurídica, especialmente quando ela não é disputada por estar “de acordo com a opinião jurídica dominante”[346]. Então, curiosamente, no núcleo de uma teoria da argumentação jurídica, a seleção das formas argumentativas é remetida aos cânones tradicionais de interpretação e às construções da dogmática jurídica, que não são garantidos por uma aceitabilidade racional, mas apenas por uma aceitação histórica dos padrões que fazem parte de uma tradição.

Com isso, apesar de ser inspirada expressamente nas concepções lingüísticas de Habermas, a teoria de Alexy segue um caminho completamente diverso no tocante à abertura da possibilidade de crítica. Por mais que ele insista em afirmar que as condições do discurso ideal habermasiano implicam a manutenção de uma possibilidade constante de reflexão acerca do resultado das argumentações anteriores, a sua teoria assume um caráter eminentemente conservador na medida em que valoriza o princípio de inércia, conjugado à admissão de que os padrões consolidados da dogmática (inclusive de uma hermenêutica dogmática) devem ser aplicados como parâmetros de correção.

Assim, como aponta Miguel Atienza, a teoria de Alexy assume uma postura muito pouco crítica em relação aos parâmetros dogmáticos e discursivos que estão na base do que ela considera uma justificação externa correta, e que são justamente os parâmetros consolidados nos estados contemporâneos de direito. Em vez de adotar a radical reflexividade da hermenêutica, Alexy confere uma relevância pequena à historicidade, de tal forma que ele admite que os topoi argumentativos são construídos historicamente, mas insiste em que isso não significa que as decisões valorativas são arbitrárias porque elas podem ser justificadas numa discussão jurídica racional, configurada por regras que não se apresentam como históricas, mas definidoras de uma racionalidade abstrata.

E o passo que Alexy busca dar além de Habermas o leva a potencializar imensamente as dificuldades da própria teoria do agir comunicativo, que termina por introduzir a igualdade como um elemento da própria racionalidade. Essa introdução de um critério material de racionalidade, que foi duramente criticada por Tugendhat, torna relativamente frágil o projeto habermasiano de fundamentação objetiva da correção normativa, na medida em que a igualdade que ela funda é construída a partir de um dever de tratamento igualitário que é pressuposto na própria idéia de condição ideal de argumentação.

Porém, se alguma metafísica é sempre necessária, conta a favor de Habermas que a igualdade de tratamento é nuclear na percepção moderna do mundo e que esta dificuldade é tematizada pela própria teoria. Assim, mesmo a metafísica residual é tratada de uma maneira reflexiva, o que talvez a torne tão leve quanto possível. Já em Alexy, o conteúdo axiológico é muito maior, pois na passagem para o que ele chama de justificação externa das premissas, ele integra todos os padrões tradicionais do discurso interno do direito como elementos relevantes para a definição da racionalidade de uma argumentação, o que implica uma espécie de legitimação acrítica da dogmática hermenêutica tradicional.

Assim foi que, na teoria de Alexy, os desenvolvimentos da pragmática universal terminaram abrindo caminho a um conservadorismo racionalista. Mesmo que ele diga expressamente que seu interesse na teoria do discurso envolve manter aberta a possibilidade de um diálogo democrático, o estabelecimento de regras constitutivas de um discurso racional e, especialmente, o modo como Alexy validou os cânones tradicionais como critérios de interpretação racional terminou conduzindo a uma espécie de refundamentação das tradições semânticas dominantes. Com isso, tais desenvolvimentos deixaram claro que a ligação entre pragmática universal e discurso ideal pode conduzir ao resultado oposto ao pretendido por Habermas: em vez de deixar aberto o espaço da crítica e da transformação, ela pode terminar por criar novos lugares fixos e novos processos acríticos de legitimação, em que a técnica e a ciência assumem o papel de ideologia.

I received the news in an email almost exactly a year ago. As so often in recent years, Rorty voiced his resignation at the "war president" Bush, whose policies deeply aggrieved him, the patriot who had always sought to "achieve" his country. After three or four paragraphs of sarcastic analysis came the unexpected sentence: " Alas, I have come down with the same disease that killed Derrida." As if to attenuate the reader”s shock, he added in jest that his daughter felt this kind of cancer must come from "reading too much Heidegger.

Início do obituário que Jürgen Habermas escreveu por ocasião da morte de Richard Rorty, em junho de 2007.

Capítulo IX - Para além das teorias da argumentação

1. A falência das teorias da argumentação

As teorias da argumentação representam o canto de cisne da hermenêutica jurídica moderna, que se desenvolveu em dois grandes ciclos. Um primeiro ciclo foi encerrado quando o ceticismo kelseniano fechou as portas de uma teoria semântica da interpretação, que fosse capaz de desvendar os sentidos imanentes aos textos. Este ciclo corresponde, na filosofia, ao primeiro giro lingüístico, que colocou em xeque a possibilidade considerarmos que existe um sentido unívoco a ser descoberto nos enunciados construídos com base nas linguagens ordinárias. Esse tipo de perspectiva conduziu a um relativismo radical, que nega a possibilidade de existência de um método objetivo para avaliar juízos axiológicos.

Tal crítica, porém, não teve influência no senso comum dos juristas, pois este se processa na forma de um discurso interno ao qual a crítica neopositivista não ofereceu nenhuma alternativa. Isso ocorre porque o neopositivismo radicalizou a mentalidade cientificista, que considera racionais apenas os discursos externos, de modo que os padrões de organização dos discursos internos foram excluídos da ciência e transpostos para a ética e a política, onde não é possível uma verdade. Nesse movimento, surgiram uma série de teorias que defendiam a existência de uma grande distância entre o que os intérpretes do direito dizem fazer e aquilo que eles podem fazer ou efetivamente fazem. Essas teorias, que Dworkin veio a chamar de semânticas[347], adotam uma perspectiva meramente externa e negam a própria possibilidade de que haja uma pretensão de racionalidade para os discursos dogmáticos do direito, na medida em que não existem interpretações semanticamente corretas.

Porém, o giro pragmático ocorrido em meados do século XX abriu a possibilidade de uma redescrição da prática interpretativa, que passou a abranger também os elementos pragmáticos envolvidos na compreensão dos textos. O primeiro movimento desse giro envolveu uma mudança apenas no discurso externo, que passou a descrever a prática jurídica por meio de categorias ligadas à argumentação. Essa redescrição ampliou o abismo evidenciado pelas teorias semânticas, pois mostrou que o discurso interno do direito se colocava como sendo demonstrativo e silogístico, quando ele era tópico e retórico. Todavia, esse mesmo giro criou uma nova esperança: o estabelecimento de critérios pragmáticos de validade. Com isso, foi renovada a pretensão moderna de uma racionalidade objetiva, o que possibilitou uma refundamentação dos discursos internos, com base em uma teoria da argumentação. Assim, em vez de buscar uma semântica universal, passou-se à tentativa de definir os critérios de uma pragmática universal, capaz de garantir a validade objetiva de certos padrões axiológicos.

Mais uma vez estamos frente à tentativa moderna de elaborar um discurso filosófico externo que ofereça fundamentação aos discursos internos por meio dos quais as relações de poder efetivamente se organizam. Ressurge, assim, a afirmação moderna de uma historicidade relativa que se mostra na tentativa de articular um conteúdo historicamente variável a uma racionalidade absoluta e imutável. O principal nome ligado a essa tentativa é o de Habermas, cuja teoria do agir comunicativo, baseada no trânsito do ideal semântico de verdade para um ideal pragmático de aceitabilidade racional, ofereceu grandes esperanças para uma nova articulação entre um discurso interno e um discurso externo. Nesse jogo, o discurso externo da filosofia deveria oferecer a base sólida em que um discurso interno pudesse ser ancorado, de forma a garantir a validade objetiva dos seus enunciados. No direito, o desenvolvimento dessas intuições resultou em teorias da argumentação jurídica que passaram de um enfoque descritivo (como a de Perelman) para um enfoque normativo (como a de Alexy), com a função de reestruturar o discurso interno do direito.

Porém, as críticas a que esse tipo de abordagem foram submetidas, especialmente aquelas elaboradas por teóricos pragmáticos como Tugendhat e Rorty, deixaram claro que o discurso externo em que Habermas tenta basear suas descrições já é um discurso interno vinculado aos valores em nome dos quais ele se engaja, notadamente do valor de igualdade[348]. Essas críticas conduziram Habermas a reconhecer que a abordagem procedimental é equivocada, pois a noção de verdade implica uma pretensão de validade incondicional que a aceitabilidade por um auditório ideal é incapaz de oferecer. Isso ocorre porque, ou as exigências ideais impostas seriam tão grandes que nenhum discurso real seria capaz de cumpri-las sequer de modo aproximativo, ou elas seriam tão débeis que não poderiam garantir minimamente condições de validade que permitiriam distinguir um consenso legítimo de um ilegítimo[349].

De fato, Habermas não abandonou expressamente o conceito discursivo de aceitabilidade racional, mas apenas o conceito de assertividade ideal, em que reconhece haver resquícios das concepções semânticas. Para superar essa dificuldade, ele buscou elaborar um conceito pragmático de verdade, que redefine o conceito de aceitabilidade por meio de uma clara deflação no conteúdo universalista do agir comunicativo, dado que uma verdade pragmática somente surge dentro de mundos-da-vida historicamente determinados[350]. Com isso, parece-me que Habermas abandonou sua última grande conexão com a perspectiva fundacionista da racionalidade moderna, que sempre buscou descobrir parâmetros a-históricos que possibilitassem a definição de critérios racionais objetivamente válidos.

Assim, depois de ter operado o trânsito de uma universalista verdade objetiva para uma universalista aceitabilidade ideal, Habermas reduz a herança universalista kantiana, ligando a verdade a um conceito de aprendizado que não se apresenta como a correspondência entre os enunciados e o mundo (critério de uma verdade semântica), nem é resultado de um processo ideal (que reduz verdade a aceitabilidade), mas representa uma espécie de relação interna a um mundo-da-vida, entre as projeções de sentido que ele é capaz de possibilitar e os critérios que ele próprio estabelece para julgar o sucesso das práticas baseadas em tais projeções. Assim, um enunciado é válido na medida em que justifica certezas sobre os fatos que são confirmadas pela experiência, ou seja, na medida em que é capaz de mediar adequadamente a relação dos integrantes de um mundo-da-vida com a realidade em que estão inseridos. Quando as projeções de sentido levam a resultados entendidos como problemáticos, ocorre uma espécie de desestabilização das pretensões de verdade, que conduz à tentativa de sua substituição dos saberes iniciais por outros mais capazes de integrar as novas experiências dentro de um conjunto significativo.

Com isso, Habermas busca a justificativa de um enunciado no fato de ele ser fruto de um processo de aprendizagem, que é apresentado como um processo de mudança evolutiva nos saberes. Essa evolução, contudo, não aponta para um universalismo idealista, pois trata-se da manutenção de um equilíbrio adequado entre as projeções de sentido e os critérios de sucesso que configuram um determinado mundo-da-vida. Tal perspectiva somente teria um viés universalista caso partisse do pressuposto de que existe uma espécie de meta-mundo-da-vida, que nos abarcaria necessariamente a todos. Essa suposição, porém, que seria uma releitura da noção moderna de racionalidade, já não mais parece caber na teoria defendida por Habermas, especialmente na introdução do livro Verdade e Justificação, publicado em 1999.

O próprio Habermas aponta que essa radicalização do historicismo resulta, em especial, dos diálogos que ele travou com Richard Rorty, filósofo que se opunha frontalmente à necessidade de se elaborar uma categoria como a de validade incondicional, mesmo que se reconheça expressamente que esse conceito não passa de uma idealização com objetivos heurísticos[351]. O pragmatismo de Rorty o leva a contrapor-se à intuição platônica de que é preciso elaborar critérios ideais para poder conferir sentido ao mundo, defendendo que “não é necessária uma tentativa de chegar mais perto de um ideal, mas antes uma tentativa de afastar-se mais das partes de nosso passado que nós lamentamos”[352].

Assim, não é por acaso que Habermas e Rorty coincidem na valorização do processo de aprendizado, que se relaciona com a tentativa de superar aquilo que percebemos como erros, ou seja, aquilo que considera errado uma determinada tradição (para usar uma linguagem gadameriana), ou um determinado mundo-da-vida (para usar uma terminologia que Habermas toma emprestado de Husserl). Não se trata de corrigir os erros na busca de descobrir uma verdade metafísica, mas apenas de nos tornarmos “cada vez mais nós mesmos e da melhor maneira possível”[353]. Por isso mesmo, ganhou espaço entre esses autores uma noção de progresso que não envolve a aproximação rumo a um ideal predefinido e que adquiriu um viés fortemente hermenêutico, com a consideração de que “o progresso filosófico ocorre na medida em que encontramos uma maneira de integrar as visões de mundo e as intuições morais que herdamos de nossos ancestrais a novas teorias científicas, ou a novas instituições e teorias sócio-políticas, ou a outras inovações”[354].

Talvez eu esteja fazendo uma interpretação de Habermas que o aproxime demasiadamente de Rorty, tanto que ela tornaria sem sentido alguma das objeções que ele próprio dirigiu ao pensamento habermasiano, especialmente a afirmação de que Habermas “acredita que Kant estava certo em pensar que não podemos passar completamente sem a noção de incondicionalidade”[355]. Embora certas colocações de Habermas apontem para esse ponto[356], a noção habermasiana de que a verdade “por certo, transcende a justificação” pode ser entendida de uma maneira muito mais fraca, especialmente à luz da crítica que ele faz a Rorty no sentido de que ele utiliza categorias que não toleram “diferenciações entre a perspectiva dos participantes e a do observador”[357]. Assim, é o próprio Habermas mapeia as diferenças entre ele e Rorty por meio de uma referência à distinção entre as perspectivas externa (do observador) e interna (do participante), e creio que, a partir dessa chave, é possível compreender melhor tanto a tensão entre essas duas perspectivas e os modos como elas abrem diferentes perspectivas para a hermenêutica jurídica contemporânea.

2. Entre perspectivas externas e internas

Rorty criticou Habermas pela sua incapacidade de abandonar completamente os pressupostos platônicos que sempre se ligam à idéia de uma verdade que transcende a justificação. Habermas, por sua vez, criticou Rorty, acusando-o de adotar uma posição analítica que não abria espaço para um discurso interno, pois é somente da perspectiva do participante que se colocam as questões de legitimidade normativa. Essa tensão não é nova na filosofia contemporânea, e a sua devida compreensão remete a Heidegger, cujas idéias influenciaram ambos os autores.

Heidegger percebeu que a postura científica impossibilitava o discurso interno, na medida em que um olhar puramente externo era incapaz de compreender a significação de um evento. O olhar externo somente tem a potencialidade de elaborar explicações causais e, portanto, ele é desprovido de categorias para compreender adequadamente os discursos organizados de modo finalístico, como é o caso dos discursos éticos e jurídicos. Essa recusa da objetividade científica é que abre a possibilidade de um olhar hermenêutico que possibilita aos sujeitos dotar de significação a sua própria experiência. Assim é que Heidegger se aventura na elaboração de um discurso interno consciente de sua própria interioridade, o discurso do ser que se autocompreende[358].

A leitura gadameriana de Heidegger conduziu a uma historicização radical, em que o sujeito é levado a perceber que sua própria condição histórica condiciona os sentidos que ele pode atribuir aos eventos que ele percebe. Porém, o discurso gadameriano passa do interno para o externo, constituindo uma espécie de metadiscurso que descreve o modo como nós elaboramos discursos internos à tradição de que fazemos parte. E o fato de a teoria gadameriana se perceber como interna a uma tradição não significa que ela deixe de ser externa com relação aos discursos de que trata.

Cada tradição é composta por uma série de discursos valorativamente divergentes, que se tornam compreensíveis contra um mesmo pano de fundo, mas que competem pela definição dos valores fundamentais, e a hermenêutica de Gadamer tentou permanecer relativamente neutra quanto a esse embate. Assim é que a busca de garantir a universalidade da hermenêutica exigiu dela um alto grau de abstração, para que nela coubessem todos os processos que visava a descrever. Com isso, a hermenêutica da Gadamer assumiu basicamente o papel de uma espécie de discurso externo reflexivo, e não de um discurso interno reflexivo, na medida em que tenta não se comprometer com nenhuma das linhas valorativas colidentes que integram a sua própria tradição.

Esse descomprometimento valorativo conduz para um resultado diverso do relativismo absoluto da ciência (que afirma a irracionalidade das questões valorativas) e que aponta para um relativismo relativo, pois envolve a afirmação de que não há critérios internos capazes de definir que conformação uma tradição deveria adotar. E essa me parece ser a crítica fundamental de Habermas a Gadamer, quando aponta que a hermenêutica não dota o intérprete de critérios adequados para criticar tradição em que está inserido.

Com isso, o pensamento de inspiração gadameriana vê-se na complexa situação de definir se a tradição tematizada pela hermenêutica é suficientemente unitária para ter critérios fortes que possibilitem a definição das interpretações corretas (o que daria à hermenêutica um papel conservador), ou ela é suficientemente plural para que os critérios sejam indecidíveis (o que lhe retiraria a possibilidade de optar). E parece que a única opção razoável é considerar que a tradição em que estamos inseridos está entre esses dois extremos: ela nem é monolítica ao ponto de impossibilitar a crítica, nem é fragmentária a ponto de impossibilitar a fixação de um mundo-da-vida relativamente compartilhado.

Nesse contexto hermenêutico, a pergunta pela legitimidade dos padrões normativos hegemônicos pode ser feita (pois fazemos parte de uma tradição que a possibilita) e dispomos de categorias analíticas capazes de desconstruir todas as elaborações culturais que pretendem uma fundamentação metafísica absoluta[359]. Porém, a resposta a essa pergunta somente pode ser realizada por meio da elaboração de um discurso interno que parta de algum tipo de engajamento. Ocorre, contudo, que tanto Rorty quanto Habermas abandonaram o projeto da fundamentação absoluta, o que os fazem aproximar-se da tese de Derrida de que todo discurso interno é construído e que, justamente por isso, pode ser desconstruído por meio do manejo adequado das próprias categorias analíticas elaboradas na modernidade.

Essa afirmação decorre do radical historicismo da hermenêutica, mas ela já não pode ser lida com o tom catastrófico que tinha em meados do século XX. Já não estamos mais em uma época na qual a afirmação do sentido mitológico de todo fundamento soava como uma desqualificação dos discursos fundamentadores. Esse tom de reprovação somente existe quando supomos que uma fundamentação é possível, ou ao menos que é desejável. Hoje, porém, qualificar o fundamento de mitológico é apenas acentuar o fato de que ele é histórico, construído, inventado, e nessa exata medida, humano. Assim, mesmo quando Habermas procura estabelecer a verdade como uma categoria que transcende ao contexto, não cabe mais entender que essa transcendência deva ser compreendida como uma pretensão de fundamentação universal, mas apenas como o reconhecimento de que, dentro do nosso mundo-da-vida, a categoria discursiva verdade aponta para enunciados cuja validade é internamente reconhecida como universal.

Frente à noção de que não há engajamento universalmente obrigatório (como pretendia o primeiro Habermas), autores como Rorty radicalizaram o relativismo e caracterizaram todo engajamento como uma manifestação de liberdade. De liberdade, e não de escolha, pois o engajamento é uma questão de crença e não de justificação. A regra básica das teorias da argumentação era a de que um enunciado somente poderia ingressar no discurso caso ele tivesse uma justificação racional. Porém, parece-me que Rorty concordaria com a afirmação de Derrida de que o fundamento de qualquer norma “não assenta senão no crédito que se lhes dá. Crê-se nelas, tal é o seu fundamento único. Este acto de fé não é um fundamento ontológico ou racional.”[360] Assim, o próprio direito é historicamente fundado (quer dizer, construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis), mas o seu fundamento último, por definição, não é fundado (porque tem caráter claramente mitológico)[361].

E é a admissão de que todo discurso de legitimidade tem um caráter fundante e não fundado que conduz Rorty a defender uma perspectiva pedagógica, por meio da qual nos engajamos no projeto de implementar no mundo os valores aos quais somos ligados por uma questão de fé, e não de razão. Nesse sentido, considero que as críticas de Habermas perdem força, pois os discursos engajados sempre são dotados de um caráter interno e, portanto, o que Rorty propõe não é a crítica vazia de um discurso que permanece apenas no campo de uma análise externa descomprometida. Assim, parece-me que a questão fundamental não está no fato Rorty ser impermeável à perspectiva do participante, mas à divergência no tocante a qual deve ser a perspectiva de quem participa de um discurso.

Habermas, apesar de haver abandonado as tentativas de uma fundamentação universal objetiva, continua engajado no projeto de elaboração de um discurso social centrado da busca de acordo racional, o que implica a consideração de que todo discurso legítimo deve pautar-se pela busca de um conceito epistêmico de validade[362]. Em contraposição, Rorty defende a construção de discursos abertamente ligados à persuasão (que é a chave do engajamento) e não ao convencimento (com base nos valores que estruturam um determinado mundo-da-vida). E creio que a crítica habermasiana volta a ganhar força quando consideramos que nenhum discurso persuasivo se apresenta como uma tentativa de sedução. Essa é a função estratégica do discurso, mas a sua estrutura argumentativa é justamente a de uma retórica que busca utilizar os topoi disponíveis no sentido de mobilizar as crenças do auditório. Por isso mesmo é que o próprio projeto que Rorty apresenta somente se realizaria com a elaboração de discursos persuasivos que assumissem a forma de um discurso interno engajado e dogmático, cuja função não é a de esclarecer o seu próprio caráter fundante, mas a de fundar uma nova mitologia.

Nessa perspectiva, creio que as perspectivas de Habermas e Rorty somente se diferenciam no papel que a racionalidade desempenha nas perspectivas mitológicas que eles buscam implementar. Porém, ambos os caminhos são próximos porque exigem a implantação de um discurso mitológico vinculado a uma perspectiva política democrática, à garantia de uma noção semelhante de dignidade humana, de liberdade e de respeito mútuo.

3. A fundação de uma nova mitologia jurídica

A admissão do caráter histórico de todos os dogmas conduz ao reconhecimento da natureza mitológica dos discursos internos, cada qual deles vinculado a certos critérios de legitimidade. O resultado dessa crença é a idéia de que as perspectivas externas são incapazes de justificar as teorias que descrevem, enquanto as teorias internas são incapazes de encontrar um ponto externo onde se possam ancorar com segurança.

No campo do direito, essa consciência hermenêutica nos afasta das teorias da argumentação fundadas em critérios de racionalidade e razoabilidade (ligadas a uma releitura pragmática da racionalidade moderna) e nos conduz rumo a teorias fundantes de novas mitologias, capazes de formular critérios aptos para organizar a interpretação do direito de acordo com a base simbólica de um mundo-da-vida. Parece-me que a elaboração de tais teorias, reflexivas e conscientes do seu caráter narrativo e mitológico, e transparentes com relação ao seu engajamento ético-político, é o caminho mais produtivo no sentido de responder simultaneamente às demandas historicistas e lingüísticas que estão presentes no debate filosófico contemporâneo, apesar de ainda não estarem presentes no senso comum que organiza os discursos práticos.

Entre as teorias que buscam realizar essa passagem para além das teorias da argumentação, especial relevância tem a concepção de Ronald Dworkin, que elaborou um discurso interno sobre a hermenêutica jurídica que é bastante compatível com as categorias da hermenêutica filosófica. Embora os textos de Dworkin sejam bastante opacos no que toca às suas inspirações teóricas[363], algumas citações esparsas (embora significativas) de Gadamer deixam clara a influência da hermenêutica filosófica na concepção do direito como integridade[364]. Porém, essas citações não significariam muito caso a teoria construída não envolvesse a afirmação de um ideal de coerência narrativa e não apresentasse a interpretação como o desenvolvimento do processo pelo qual uma tradição se envolve na sua autocompreensão.

O discurso de Dworkin é assumidamente interno e persuasivo, e nesse sentido a estrutura argumentativa do livro Império do Direito é bastante eloqüente. Nele, Dworkin tenta definir três grandes linhas da hermenêutica jurídica (correntes semânticas, convencionalistas, pragmáticas), para contrapor a elas sua concepção do direito como integridade. Assim, não se trata de fundamentar a sua teoria, mas de oferecer boas razões para que ela seja preferida às alternativas disponíveis.

A distância com relação às concepções neopositivistas e sua busca de cientificidade é evidente. Kelsen, por exemplo, inicia a teoria pura do direito afirmando que “a Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo — do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial”[365]. Dworkin poderia iniciar afirmando o contrário, algo como o direito como integridade não é uma teoria do direito positivo em geral, pois ela constitui “an interpretation of our own political culture, not an abstratc and timeless political morality”[366]. Longe de buscar afirmativas objetivamente corretas acerca da forma universal do direito, o que Dworkin propõe é apenas uma leitura de sua própria tradição (que ele chama de comunidade) que confira a ela um sentido que seja aceitável perante ela própria.

Nesse sentido, Dworkin é mostra uma sensibilidade hermenêutica muito semelhante à de Gadamer. O que ele faz não é construir um modelo ideal de interpretação e medir sua comunidade em termos de aproximação desse paradigma, mas observar os valores dominantes nos seu próprio mundo-da-vida, para construir um discurso jurídico que seja compatível com ele. Por isso mesmo é que ele critica nas demais teorias o fato de que seu caráter externo impede o afloramento de critérios para avaliar a legitimidade das interpretações. Como ele próprio afirma, o convencionalismo e o pragmatismo “offer themselves as interpretations [...] but the programs they recommend are note themselves programs of interpretation”[367].

Essa consciência faz com que Dworkin se tenha dedicado à elaboração de um discurso interno coerente com os princípios democráticos e liberais aos quais ele está manifestamente vinculado. Então, não se trata de uma teoria jurídica neutra, mas de uma teoria engajada em um determinado projeto político, que ele supõe legítimo na medida em que entende que ele se encontra engastado no mundo-da-vida da comunidade em que se insere. Essa sensibilidade aristotélica poderia ter conduzido Dworkin na mesma trilha de Perelman, rumo à elaboração de uma teoria da argumentação que apenas catalogasse e sistematizasse os topoi argumentativos consolidados em sua tradição. Porém, esse caminho o levaria apenas a reincidir no erro que ela aponta nas demais teorias da hermenêutica jurídica: sua limitação a um discurso externo.

Assim é que Dworkin parte para uma reflexão eminentemente filosófica[368], que analisa a prática jurídica na busca de criar categorias que permitam uma compreensão adequada do seu sentido. Então, sua pergunta não é como a tradição se enxerga?, mas quais são os critérios de legitimidade que oferecem “the best justification of our legal practices as a whole?”. Nesse percurso, ele inventa o conceito de integridade e tece uma longa argumentação na tentativa de explicar que a admissão da existência desse valor (que não pertence daqueles tipicamente reconhecidos na nossa cultura jurídica) permite compreender melhor a nossa percepção da legitimidade das práticas jurídicas e políticas, pois permite uma “narrative story that makes of these practices the best they can be”[369]. Depois de realizar uma delimitação da integridade, comparando-a com os valores de fairness e justice, Dworkin advoga que somente com base nesse valor é que poderemos conferir à prática jurídica um sentido adequado ao que supomos que ela deve ter.

Esse é um exercício propriamente hermenêutico, pois tenta elaborar uma significação capaz de mediar as práticas institucionais de uma sociedade como os valores em que ela está imersa. E não é um exercício desengajado, pois aponta logo no segundo parágrafo da introdução que a concepção jurídica defendida no Law”s Empire “excavates its foundations in a more general politics of integrity, community, and fraternity”[370]. Assim, não se trata de uma investigação acerca dos parâmetros formais da interpretação em geral, mas da busca de elaborar um modelo hermenêutico capaz de servir como base para o discurso interno de uma sociedade que pretende ser democrática.

Creio que essa opção por um discurso interno torna um pouco injusta a constância com que ele acusa as demais teorias de não se adaptarem à realidade que elas visam a interpretar. Ocorre que, na qualidade de discursos externos, elas não têm o mesmo comprometimento de Dworkin com a garantia de que os juristas possam enxergar na teoria um espelho adequado daquilo que eles julgam fazer quando interpretam. Nessa medida, Dworkin ataca no convencionalismo, e especialmente no pragmatismo, a opção por um discurso eminentemente externo, que acentua a impossibilidade de realização dos ideais jurídicos implícitos nos discursos dominantes, especialmente a possibilidade de desvendar o sentido correto das leis.

Já o caráter interno da teoria de Dworkin faz com que ela não se concentre na tensão descritiva entre o que os juízes fazem e o que eles pensam fazer. Em vez disso, ele incorpora a categoria comum de que é preciso buscar a solução correta, e concentra-se na tensão normativa resultante do fato de que os juízes nem sempre fazem o que deveriam fazer. Então, ao redefinir em termos de integridade o papel da interpretação jurídica, Dworkin apresenta um modelo de medição da legitimidade dos discursos judiciais que articula muito bem dois elementos da hermenêutica. De um lado o valor de integridade constitui uma exigência de coerência axiológica (e não apenas lógica) tanto da atividade legislativa quanto da atividade judicial. De outro, essa coerência não é conquistada por meio de uma metodologia interpretativa predefinida, mas por meio de uma interpretação retrospectiva e circular, em que as decisões anteriores são incorporadas a uma narrativa que confere a todas elas um sentido comum.

Com isso, Dworkin acentua que a legitimidade de uma interpretação deve ser medida em termos de uma coerência narrativa, que tenta fazer uma mediação entre a expectativa de segurança (na medida em que as decisões presentes devem ser entendidas como extensão das decisões passadas) e a abertura para o futuro (na medida em que o sentido das decisões passadas é definido a partir dos valores do presente). Esse é o mesmo quadro conceitual da hermenêutica de Gadamer, em que o sentido de um texto é definido a partir da perspectiva interna de um intérprete que não pode se alhear da tradição em que está imerso e que, justamente por isso, não está definitivamente preso às interpretações passadas.

Por tudo isso, creio que a teoria de Dworkin serve como um exemplo bastante elaborado de um discurso interno que trabalha com as categorias desenvolvidas pela hermenêutica filosófica, e que deve ser percebido como uma perspectiva fundante de uma mitologia que se propõe capaz de conferir à prática judicial um sentido compatível com os ideais democráticos que compõem o mundo-da-vida que a teoria se propõe a interpretar. Assim, o critério a partir do qual se pode medir a validade dessa teoria não é a sua correspondência a um mundo objetivo, nem a sua correspondência a valores metafísicos, mas uma espécie de integridade hermenêutica consistente na capacidade de estabelecer uma mediação entre a nossa prática e o nosso imaginário.

E, como toda teoria radicalmente hermenêutica, a concepção de Dworkin oferece uma mitologia circular, que avalia a si mesma com base nos critérios interpretativos que ela propõe. Esse não é o caso das mitologias cientificistas, que precisam fixar arbitrariamente um ponto de fuga, para construir com base nele a objetividade de sua perspectiva. Esse não é o caso das mitologias religiosas, em que os dogmas são indiscutíveis pelo seu caráter de revelação. Esse não é o caso das mitologias metafísicas, baseadas em alguma espécie de evidência racional. As mitologias reflexivas é que são as mitologias hermenêuticas, que medem a sua validade de uma maneira histórica (pois vinculada a uma tradição definida, e não a uma razão universal) e circular (porque aplicam a si mesmas os valores que fundam). Assim, podemos avaliar a teoria de Dworkin com base na sua capacidade de conferir coerência axiológica à grande narrativa dos discursos hermenêuticos sobre o direito, de forma a oferecer uma mediação adequada entre a prática interpretativa e os valores do mundo-da-vida.

Nesse ponto, creio que se fecha uma das voltas no círculo da hermenêutica jurídica, pois a historicidade que inspira essa percepção é tão radical quanto aquela que está presente na hermenêutica filosófica desde Gadamer. Esse tipo de matriz discursiva já se desvinculou completamente da vontade de fundamentação que movia os pensadores modernos em sua constante tentativa de elaborar uma razão para além da história. Com isso, conquistamos no direito a possibilidade um discurso interno reflexivo, transparente tanto quanto à sua estrutura tópica, quanto à sua finalidade retórica e à sua função mítica. E creio que o novo ciclo que se abre envolve justamente a compreensão das implicações que essa radicalização da historicidade imporá sobre o discurso jurídico e dos modos como ela poderá transbordar do discurso filosófico para o senso comum.

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Este trabalho não tem conclusão, no sentido típico da palavra, porque ele não se apresenta propriamente como a tentativa de confirmação de uma hipótese. Em vez disso, ele conta uma história. Uma das possíveis versões da história do desenvolvimento da mentalidade hermenêutica, no Livro I, e das aventuras da hermenêutica jurídica nos dois últimos séculos, no Livro II. Em especial, ele narra uma visão de como a historicidade afirmou-se gradualmente nesses dois âmbitos hermenêuticos.

Vendo em perspectiva, eu imaginei que usaria a primeira pessoa muito mais do que efetivamente foi usada. Espero que em momento algum me tenha escondido atrás da terceira pessoa impessoal, com a qual costumamos conferir uma pseudo-neutralidade às nossas posições idiossincráticas. Penso, ao fim desse percurso, que o narrador nem sempre precisa aparecer de modo tão claro, convertendo a narrativa em meta-narrativa. Porém, nos momentos em que considerei relevante assumir a pessoalidade das observações, tentei fazê-lo de forma tão clara que, durante todo o texto, o leitor pudesse entender que é da minha perspectiva que a história é contada.

A função que imagino para esta narrativa em particular é a de contribuir para a conformação do imaginário hermenêutico dos juristas. Sempre acreditei que a maior falha da minha graduação foi a ausência de um estudo hermenêutico mais denso. Em especial, fui muito inconsciente da minha própria historicidade, o que foi acentuado por causa da peculiar mistura de uma formação analítica em filosofia com uma formação dogmática no direito. Esses dois tipos de perspectiva são formas correlatas de uma aplicação acrítica do discurso científico, na busca utópica por um lugar de fala que se torna objetivo por ser impessoal. E este livro, que nasceu das aulas de hermenêutica que tenho ministrado para graduandos em direito, é minha parte no esforço de evitar que esse tipo de limitação se perpetue.

Hoje, penso que a consciência da historicidade impõe a percepção de que todo discurso é narrativo e, portanto, pessoal. O que aqui se faz não é uma teoria social, no sentido de ser uma descrição do mundo humano a partir de um ponto neutro, que se pretende capaz de revelar as redes estruturais permanentes que subjazem aos fenômenos em eterna transformação. A esse equilíbrio platônico, prefiro a radicalidade de Hieráclito, para quem tudo muda. É uma outra metafísica, vá lá! Mas quem escapa dela? E quem deseja escapar?

Todos os sentidos do mundo são metafísicos, e portanto a vida não pode escapar da metafísica sem perder sua significação. Só existe vida significativa do lado de dentro do mundo da vida e, portanto, não podemos abdicar de algum discurso interno. Podemos relativizar sua validade, podemos manter uma crítica reflexiva, mantendo-nos atentos aos nossos próprios preconceitos, mas não podemos escapar de todo engajamento. Essa é a lição dos Caminhos da Liberdade de Sartre: o exercício da liberdade dá-se pelo engajamento, pois é por meio dele que atribuímos sentido à nossa existência gratuita. E a lição de Camus, no Homem Revoltado, é a de que embora esse engajamento não seja puramente fruto de opções conscientes, ele sempre envolve a realização de escolhas. Assim, a busca da neutralidade científica, especialmente no direito, representa uma espécie de fuga do peso da responsabilidade que todos os juristas temos pela vida do outro.

O destino dos outros nos pesa, e esse não é um problema científico, mas moral. Nisso, creio que Dworkin está correto: o problema da existência de uma resposta correta nada tem de epistêmico, pois ele é ético. Acredito que, de um ponto de vista externo, Kelsen esteja correto ao afirmar que os juristas fazem coisas muito diversas das que eles dizem fazer e que não existe uma verdade valorativa a ser buscada. Porém, é no discurso interno que os juristas conferem sentido a sua própria atividade, e faz parte desse sentido organizar os discursos na busca de uma solução correta.

Correto, é claro, não pode ser entendido como a designação de uma propriedade platônica das coisas (que existe no mundo em si das coisas eternas), mas apenas como uma qualidade discursiva (que existe no mundo para nós de nossas invenções lingüísticas). Assim como não existe uma interpretação correta do Guardador de Rebanhos, não existe uma interpretação correta da Constituição de 1988. Porém, a invenção do correto instaura uma ordem do discurso que nos permite desenvolver processos de diálogo capazes de conduzir a uma intersubjetividade efetiva.

Entendo (ou penso entender) a desconfiança habermasiana sobre o potencial conservador e autoritário da intersubjetividade real, e toda conseqüente tentativa de estabelecer critérios racionais que permitam distinguir o consenso do anti-consenso, assim como Lyra tentava distinguir o direito do antidireito. Nessa posição está a questão jusfilosófica fundamental, que é a da legitimidade. Porém, creio que as leituras de Nietzsche, Sartre e Foucault me tornaram insensível a essas tentativas modernas de extrair a legitimidade da racionalidade. Não sou capaz de compreender que os critérios de legitimidade derivam da observância de formas racionais de discursividade, mas apenas que eles implicam a imposição de certos parâmetros morais. Assim, na contramão das teorias do discurso e da argumentação, não consigo crer que o convencimento racional tem alguma coisa a ver com a instauração das ordens de discurso que configuram nossos mundos simbólicos.

Partindo desse ponto, termino por considerar que toda teoria é uma narrativa mitológica, que tem como função a elaboração ou o reforço dos mitos a partir dos quais conferimos sentido à nossa experiência. Trata-se de um esforço de construção de uma mitologia fundante e não de um sistema fundado. Por isso mesmo é que o objetivo geral desta obra é menos demonstrar do que seduzir. Trata-se de desconstruir as perspectivas des-historicizadas (e só se desconstrói o construído) para que o seu lugar simbólico possa ser ocupado por uma perspectiva efetivamente hermenêutica. E esse é justamente o fio condutor de uma história que narra a gradual implantação de uma consciência histórica na hermenêutica jurídica.

É claro que uma narrativa que abrange um objeto tão grande e complexo está repleta de lacunas, mas o objetivo não era o de traçar mapas específicos de todas as correntes e de suas relações, mas a de esboçar uma espécie de mapa-múndi. Porém, o traçado do mapa geral é feito também por meio de um mosaico de mapas mais específicos, em que abordo com maior cuidado algumas das teorias que considerei paradigmáticas, na medida em elas me parecem relevantes para a compreensão dos movimentos mais amplos. E é a partir da combinação dessas concepções que tento traçar as linhas de força que conduzem o argumento da narrativa, que busca encontrar um enredo que permita contar todas essas versões como partes de uma mesma história, com o objetivo de permitir, ao final, que possamos vislumbrar um pouco do que ainda há por vir.

Nesse sentido, o objetivo que busquei alcançar foi muito próximo do que Dworkin chama de integridade, pois não se trata de encontrar um sentido imanente aos fatos, mas de traçar uma perspectiva capaz de oferecer sentido narrativo aos elementos essenciais que compõem o mosaico de fenômenos que se resolveu alinhavar. E esse ideal de integridade não me parece outra coisa senão a busca hermenêutica de compreender a nossa experiência como um conjunto de acontecimentos que são dotados de um sentido. Um sentido que não é descoberto, mas elaborado de forma retrospectiva, com o objetivo explícito de estabelecer uma visão de mundo que nos permita compreender nossa própria história de uma maneira simultaneamente significativa e reflexiva.

É claro que todo sentido envolve uma certa idealização, na medida em que não existem sentidos empíricos. O sentido, visto de fora, é uma espécie de ilusão criada dentro dos jogos de linguagem com os quais apreendemos o mundo. Porém, visto de dentro, é ele que confere significação aos nossos atos. Mais que isso, olhar de dentro significa atribuir sentidos, de tal forma que toda perspectiva interna envolve a aplicação de uma ordem significativa. Cada uma dessas ordens, que Gadamer chama de tradições, nos fornece as perspectivas com as quais observamos o mundo. Portanto, por mais que as tradições sejam tipicamente opacas a si mesmas, é possível tentar construir espelhos que nos mostrem nosso próprio olhar.

A construção desses espelhos é o objetivo da hermenêutica, que é o discurso com o qual falamos do nosso próprio modo de ver o mundo. Então, uma perspectiva hermenêutica sobre a hermenêutica jurídica precisa trabalhar na dissolução dos lugares privilegiados, dos pontos a-históricos de onde o discurso jurídico costuma ser proferido. Por isso mesmo é que, na narrativa deste trabalho, o pano de fundo é o modo como a hermenêutica filosófica foi gradualmente adquirindo o senso de sua própria historicidade e de como, no direito, esta radical consciência histórica ainda está em processo de implantação.

Essa historicização da hermenêutica fez com que o seu discurso transitasse gradualmente de uma perspectiva interna para uma externa. No início, ela descrevia os modos como tradicionalmente se interpreta e, a partir dessa descrição externa, pretendia construir uma teoria normativa interna de como se deve interpretar. Essa passagem imediata do externo para o interno tem um conteúdo ideológico evidente, pois envolve uma legitimação acrítica dos padrões interpretativos hegemônicos, na medida em que pressupõe a validade dos cânones. No direito, nos duzentos anos que medeiam as teorias de Savigny e Alexy, esse trânsito foi realizado sob diferentes formas.

Esses são os dois séculos de positivismo iluminista, em que a historicização é feita pela metade. Admitiu-se a historicidade dos conteúdos normativos, mas não a historicidade da racionalidade a partir da qual esses conteúdos são percebidos e trabalhados. Esta é, portanto, uma historicidade científica, que buscou garantir a própria objetividade mediante a elaboração de um discurso absolutamente externo. Já a historicidade hermenêutica é conquistada quando se admite a historicidade do próprio olhar, o que conduz a uma perspectiva relativamente externa, consciente (ou apenas crente?) de que nenhum sujeito pode ser externo a sua própria historicidade.

Ninguém é externo a si mesmo, e por isso a hermenêutica se opõe à mitologia objetivizante da ciência, que se mantém sobre uma conturbada diferenciação entre sujeito e objeto. Todavia, a hermenêutica não se coloca como uma verdade para além da ciência, mas uma mitologia alternativa, fundada no historicismo radical.

Mas o que ganhamos com isso? Para que uma mitologia a mais, neste mundo que já é repleto delas? Talvez Habermas tenha razão e a hermenêutica não ofereça uma perspectiva adequada para a crítica social. Mas, pessoalmente, creio que a hermenêutica nos conduz melhor ao próprio objetivo da teoria crítica de construir um espaço de reflexão e manter aberta a possibilidade do diálogo. Assim, em vez de insistir na tentativa de construir uma ponte para o universal, por meio da razão, mais útil me parece contribuir para um pensamento que não busca fundamentação alguma. E a mitologia circular da hermenêutica, que impede a formação de lugares cristalizados e de verdades permanentes, parece-me oferecer o melhor repertório de categorias para nos ajudar a construir uma sociedade de indivíduos mais livres para assumirem e exercerem suas próprias autonomias.

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Desse ponto de vista, a validade não pode ser descrita em termos de uma idéia de justiça material a priori nem com uma categoria formal. Idéias de validade são construções metafísicas erguidas sobre uma falsa interpretação da força vinculante presente na consciência moral. Como todas as outras ciências, o estudo do direito deve ser, em última análise, um estudo de fenômenos sociais, da vida de uma comunidade humana; e a teoria jurídica deve ter como objetivo a interpretação da validade do direito em termos de eficácia social, ou seja, de uma certa correspondência entre a idéia normativa e o fenômeno social.” [tradução livre] [Ross, On law and justice, p. 68.]


  1. Descartes, Discurso sobre o método, p. 32. ↩︎

  2. Para Heidegger, o homem é um ente que não se limita a pôr-se frente aos outros entes, mas que se caracteriza justamente por compreender o ser das coisas, especialmente o seu próprio, reconhecendo um sentido e não apenas existência às coisas. [Heidegger, Ser e tempo, pp. 39 e ss.] ↩︎

  3. Esse mundo pleno de significação é chamado, na tradição fenomenológica inspirada em Husserl, de Lebenswelt, ou seja, de mundo da vida. Assim, o mundo da vida não é apenas uma visão de mundo (Weltanschaaung) que temos, mas é um mundo no qual habitamos, é o que chamamos mais propriamente de Realidade. ↩︎

  4. Sobre a Hermenêutica, vide Livro I. ↩︎

  5. Vide Gadamer, Verdade e método. ↩︎

  6. Por exemplo: a primeira carta define o tema geral, a terceira complementa o sentido da primeira, a sétima fala da situação atual do consulente e a nona relaciona-se com os seus medos e desejos. [Vide Greene, O Tarô mitológico, p. 215] ↩︎

  7. Gadamer dizia que “é tarefa da hermenêutica esclarecer o milagre da compreensão” [Vide Gadamer, Verdade e método II, p. 73]. ↩︎

  8. Por mais que os cientistas saibam que o saber científico é histórico e provisório, ele é visto também como uma espécie de aprendizado e evolução, que representa um esclarecimento constante e crescente da realidade objetiva, por meio do uso de uma racionalidade cujos critérios não são históricos, mas necessários. ↩︎

  9. Habermas, Verdade e Justificação, pp. 282 e ss. ↩︎

  10. Lyotard, A condição pós-moderna, pp. 58 e ss. ↩︎

  11. O conceito de personagem conceitual eu tomo emprestado de Guattari e Deleuze. Vide Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, p. 10. ↩︎

  12. Poe, A carta. ↩︎

  13. Por acaso, um valor que tanto pode ser conservador (quando conduz descrições compatíveis com a tradição dominante) quanto revolucionário (quando se contrapõe a elas, especialmente à falsa neutralidade que muitas concepções se arrogam). Assim, o caráter conservador/revolucionário do positivismo não está na própria teoria, mas na sua relação com as demais teorias. Um positivismo dominante é conservador, tanto quanto um positivismo contra-hegemônico pode ser profundamente revolucionário, por colocar em questão o valor das tradições consolidadas. ↩︎

  14. “Com Platão, se inicia um grande mito ocidental: o de que há antinomia entre saber e poder. Se há o saber, é preciso que ele renuncie ao poder. Onde se encontra saber e ciência com sua verdade pura, não pode mais haver poder político. Esse grande mito precisa ser liquidado. Foi esse mito que Nietzsche começou a demolir ao mostrar, em numerosos textos já citados, que por trás de todo saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber.” (Foucault, A verdade e as formas jurídicas, p. 51) ↩︎

  15. Essa é uma das crenças fundamentais que orienta esta pesquisa e ela não admite fundamentação. Por isso, aqui me limito a enunciá-la. ↩︎

  16. Veríssimo, Um Certo Capitão Rodrigo. Em: Veríssimo, O continente. ↩︎

  17. Rosa, Grande Sertão: Veredas. ↩︎

  18. Sobre a metodologia dos comentadores, vide Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica européia, p. 129. ↩︎

  19. Sobre o usus modernus, vide Wieacker, História do direito privado moderno, pp. 225 e ss. ↩︎

  20. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 362. ↩︎

  21. Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica européia, p. 123. ↩︎

  22. Hobbes, Leviatã, p. 113. ↩︎

  23. Sobre esse tema, ver Ross, Direito e justiça, pp. 287. ↩︎

  24. Vide Ross, Direito e justiça, pp. 287 e ss. ↩︎

  25. Cf. Villey, Seize essais de philosophie du droit dont un sur la crise universitaire, p. 23 [tradução livre]. E continua Villey: “Esse fato mostra-se bastante claramente em um dos conceitos de direito mais repetidos da história: a do jurisconsulto romano Celso, que definia o direito como a arte do bom e do eqüitativo. Quase toda vez que essa frase é dita nos dias de hoje, antiga concepção de direito é repetida, mas não compreendida. O direito não era entendido como o conjunto de regras boas e eqüitativas, mas como uma qualidade das decisões e condutas que são boas e eqüitativas. A concepção do direito como conjunto de regras é bastante recente, mas introduziu-se de tal modo em nosso senso comum que é difícil perceber que é possível pensar de modo diverso. Certas regras são jurídicas porque são justas. Certas decisões são jurídicas porque são boas. Certas condutas são jurídicas porque são eqüitativas.” ↩︎

  26. Ross, Direito e justiça, p. 288. ↩︎

  27. A evidência era o critério básico de verdade para as ciências e para a filosofia desde Descartes (séc. XVII). ↩︎

  28. Sobre esse tema, convém ler o modo como Thomas Hobbes enuncia as várias regras do direito natural nos capítulos XIV e XV do Leviatã. ↩︎

  29. Villey, Seize essais de philosophie du droit dont un sur la crise universitaire, p. 23 e ss. [tradução livre] ↩︎

  30. www.direitoshumanos.usp.br/counter/Doc_Histo/texto/Direitos_homem_cidad.html ↩︎

  31. Tal como veio a fazer, por exemplo, o bom juiz Magnaud, no final do século XIX. Vide Perelman, Lógica jurídica, pp. 96. ↩︎

  32. CF. Villey, Seize essais de philosophie du droit dont un sur la crise universitaire, p. 24. ↩︎

  33. E houve alterações tanto no conteúdo e abrangência das leis (que abarcaram uma maior gama de assuntos e passaram a tratá-los de modo mais exaustivo), quanto nos modos de se legislar e de se ensinar o direito. ↩︎

  34. Lei extravagante é a denominação normalmente utilizada na linguagem jurídica para designar as leis que não são códigos, ou seja, leis que tratam de um ponto específico de uma determinada matéria, em vez de sistematizar todo um campo do direito. ↩︎

  35. Vide Gilissen, Introdução histórica ao direito, p. 335. ↩︎

  36. Hespanha, Justiça e litigiosidade, p. 13. ↩︎

  37. Almeida, Ordenações Filipinas, p. 728. Atualizei o texto desta citação e das demais para o português moderno, pois o texto publicado é um fac-símile de uma edição publicada em 1870, editada por Candido Mendes de Almeida e republicada pela Fundação Calouste Gulbenkian. ↩︎

  38. Almeida, Ordenações Filipinas, p. 728. ↩︎

  39. Almeida, Ordenações Filipinas, p. 729. ↩︎

  40. Sobre esse tema, vide Hespanha, Justiça e litigiosidade, capítulo I. ↩︎

  41. Essa relevância especial da segurança jurídica serve como pano de fundo para o desenvolvimento de todo o positivismo formalista posterior, sendo comuns afirmações como as do jurista português Domingues de Andrade, no sentido de que “a vida e o espírito postulam um direito recto, quer dizer, justo e oportuno: um direito que harmonize a pura justiça que valore e julga a realidade existente, aspirando a estruturá-la segundo um modelo ideal, com o efectivo e relativo condicionalismo dessa mesma realidade, — um direito, no fim de contas, que estabeleça a justiça do possível ou a possível justiça. Mas por outro lado a vida pede também, e antes de tudo, segurança, e portanto um direito certo, ainda que seja menos recto. A certeza do direito, sem a qual não pode haver uma regular previsibilidade das decisões dos tribunais, é na verdade condição evidente e indispensável para que cada um possa ajuizar das consequências de seus atos, saber quais os bens que a ordem jurídica lhe garante, traçar e executar os seus planos de futuro.” [Domingues de Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, p. 54] ↩︎

  42. Sobre este ponto, vide Olivecrona, Law as fact, p. 35. ↩︎

  43. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 376. ↩︎

  44. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 377. ↩︎

  45. Vide Bobbio, O positivismo jurídico, p. 67. ↩︎

  46. Bonnecase, La pensée juridique française, p. 511. ↩︎

  47. Bobbio, O positivismo jurídico, p. 72. ↩︎

  48. O Código Civil francês de 1804 foi publicado com o nome de Code Civil des Français (Código Civil dos Franceses) e, em 1807, a sua segunda edição foi publicada com o nome com que entrou para a história: Code Napoléon (que é normalmente traduzido como Código de Napoleão). Neste trabalho, utilizaremos indistintamente os termos Code Civil e Código de Napoleão para fazer referência a esse código. ↩︎

  49. Laurent, Cours, I, p. 9. Citado por Bevilaqua, Teoria geral do direito civil, p. 41. ↩︎

  50. Foucault, A ordem do discurso. ↩︎

  51. E talvez o papel do legislador fosse mais importante na teoria política que na atividade política efetiva. ↩︎

  52. Capitant, Introduction à l”étude du Droit Civil, p.95. ↩︎

  53. Baudry-Lacantinerie, Traité théorique et pratique de droit civil, t. I, p. 207, 1907. Citado por Soler, La interpretación de la ley, p. 20. ↩︎

  54. Esse recurso aos trabalhos afirmação era sobretudo relevante na França porque o processo de feitura do Código Civil de 1804 foi bastante documentado, de tal forma que havia um vasto material de consulta acerca dos posicionamentos dos seus autores, o que estimulou a escola tradicional francesa a valorizar sobremaneira o recurso aos trabalhos preparatórios. [Vide Aubry et Rau, Cours de droit civil, 1o tomo, p. 244; Mazeaud, Leçons de droit civil, 1o tomo, 1o vol., p. 127.] Porém, mesmo que não haja uma documentação adequada dos debates parlamentares e que em alguns casos essa vontade seja de difícil identificação, a busca de descobrir a intenção do legislador tentava fazer com que os juízes se afastassem de seus valores pessoais e procurassem descobrir a vontade de um legislador que efetivamente existiu. Dessa forma, a busca da intenção do legislador funcionava como uma maneira de conferir objetividade e previsibilidade às decisões judiciais. ↩︎

  55. Aubry et Rau, Cours de droit civil, 1o tomo (ou t. I, como na citação anterior), p. 241. ↩︎

  56. Montesquieu, Do espírito das leis, p. 137. ↩︎

  57. Bonnecase, La pensée juridique française, p. 290. ↩︎

  58. Vide Gilissen, Introdução histórica ao direito, p. 334. ↩︎

  59. O princípio da irretroatividade define que as normas somente podem ser aplicadas a situações ocorridas após a sua entrada em vigor, não atingindo os fatos anteriormente ocorridos. ↩︎

  60. A própria possibilidade de realizar interpretações autênticas tinha opositores severos, como Savigny, que ainda em 1802 afirmava ser descabido falar em interpretação autêntica, “porque quando o legislador como tal esclarece uma lei, aparece uma nova lei que tem sua origem na primeira, de modo que não se pode falar em uma interpretação daquela.” [Savigny, Metodologia, p. 12.] De forma semelhante, em 1921, Ferrara observava que “a chamada interpretação autêntica não é verdadeira interpretação, mas funda a sua eficácia de modo autônomo na declaração de vontade do legislador: é uma lei com efeito retroactivo”. [Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p.134.]. Não se trata, contudo, de uma técnica jurídica absolutamente descartada. Em 2002, por exemplo, quando o Tribunal Superior Eleitoral interpretou uma norma de forma contrária aos interesses de boa parte do Congresso Nacional, houve quem cogitasse de fazer uma lei interpretativa, fixando entendimento diverso do conferido pelo TSE, dado que modificações introduzidas por uma lei nova não poderiam ser aplicada às eleições em curso naquele mesmo ano. Embora esse projeto não se tenha realizado, a sua cogitação deixa claro que o recurso às leis interpretativas não deixou de fazer parte do repertório legislativo. ↩︎

  61. Mazeaud, Leçons de droit civil, 1o tomo, 1o vol., p. 138. ↩︎

  62. No caso dos juristas franceses, era vedado até mesmo o recurso aos trabalhos preparatórios quando o sentido da norma era evidente. [Vide Mazeaud, Leçons de droit civil, 1o tomo, 1o vol., p. 138] ↩︎

  63. Aubry et Rau, Cours de droit civil, 1o tomo, p. 243. ↩︎

  64. Aubry et Rau, Cours de droit civil, 1o tomo, p. 247. ↩︎

  65. Savigny, Metodologia, p. 12. ↩︎

  66. Vide Bobbio, O positivismo jurídico, p. 81. ↩︎

  67. Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica européia, p. 177. ↩︎

  68. Uma exceção foi a obra de Aubry e Rau, juristas de Estrasburgo que elaboraram uma exposição sistemática do direito civil semelhante à abordagem típica dos textos germânicos da época. Porém, não obstante essa peculiaridade ter feito com que alguns estudiosos não os classificassem como membros da Escola da Exegese, Julien Bonnecase ressalta que, embora Aubry e Rau não adotassem a metodologia exegética pura (baseada em um esclarecimento pontual das normas do código), eles defendiam as idéias típicas da escola, como a valorização da lei e da vontade do legislador. ↩︎

  69. Esse fato é citado por Bobbio, O positivismo jurídico, p. 83. ↩︎

  70. Aubry et Rau, Cours de droit civil, 1o tomo, p. 23, nota 2. ↩︎

  71. Aubry et Rau, Cours de droit civil, 1o tomo, p. 23, nota 2. ↩︎

  72. Bonnecase, La pensée juridique française, p. 535. ↩︎

  73. Bonnecase, La pensée juridique française, p. 540. ↩︎

  74. Bonnecase, La pensée juridique française, p. 290. ↩︎

  75. Essa reação sociológica contra as teorias tradicionais é assunto do capítulo IV. ↩︎

  76. Vide Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 26. ↩︎

  77. O que não quer dizer uma completa recusa do conceito de direito natural, que permanecia como base ideológica de sustentação do poder, especialmente na vertente contratualista do jusnaturalismo. ↩︎

  78. Sobre a escola histórica, vide Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica européia, pp. 179 e ss. ↩︎

  79. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 380. ↩︎

  80. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 380. ↩︎

  81. Savigny, Metodologia, pp. 6-7. ↩︎

  82. Savigny, Metodologia, pp. 6-7. ↩︎

  83. Savigny, Metodologia, p. 42. ↩︎

  84. Savigny, Metodologia, p. 13. ↩︎

  85. Savigny, Metodologia, p. 14. ↩︎

  86. Essa postura continuou tendo defensores de peso na Alemanha, como Enneccerus, que mais de cem anos após Savigny, defendia que deveria ser buscada a vontade da lei, entendida esta como a vontade do legislador que chegou a ter expressão na lei. [Enneccerus, Derecho civil, p. 206] ↩︎

  87. Soler, La interpretación de la ley, p. 9. ↩︎

  88. Savigny, De la vocación, p. 40. ↩︎

  89. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 448. ↩︎

  90. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 446. ↩︎

  91. Savigny, De la vocación, p. 48. ↩︎

  92. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 446. ↩︎

  93. Corrente concentrada na França e que, no séc. XVI, propunha-se “a reformar a metodologia jurídica dos comentadores no sentido de restaurar a pureza dos textos jurídicos da Antiguidade” [Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica européia, p. 137] ↩︎

  94. Menezes Cordeiro, Introdução, p. LXXXIII. ↩︎

  95. Vide Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 15. ↩︎

  96. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 13. ↩︎

  97. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 13. ↩︎

  98. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 454. ↩︎

  99. Vide o item D deste capítulo, que trata da escola histórica germânica. ↩︎

  100. Vide o item E deste capítulo, sobre a Jurisprudência dos conceitos. ↩︎

  101. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, pp. 27-28. ↩︎

  102. Naquela época falar-se-ia apenas de átomos, pois ainda não eram conhecidas as partículas subatômicas. Porém, as inovações da ciência contemporânea em nada alteram a comparação de Jhering, pois até hoje a Química e a Física buscam descobrir os elementos fundamentais indivisíveis que compõem a matéria. ↩︎

  103. Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 176. ↩︎

  104. Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 176. ↩︎

  105. Descartes, Discurso sobre o método, p. 44. ↩︎

  106. O reducionismo cartesiano é inspirado na matemática, como se pode depreender do seguinte trecho, que, mutatis mutandis, poderia ter sido escrito por um autor vinculado à pandectística: “essas longas cadeias de razões, todas simples e fáceis, de que os geômetras costumam se utilizar para chegar às demonstrações mais difíceis, haviam-me dado oportunidade de imaginar que todas as coisas passíveis de cair sob domínio do conhecimento dos homens seguem-se umas às outras da mesma maneira e que, contanto que nos abstenhamos somente de aceitar por verdadeira alguma que não o seja, e que observemos sempre a ordem necessária para deduzi-las umas das outras, não pode haver, quaisquer que sejam, tão distantes às quais não se chegue por fim, nem tão ocultas que não se descubram.” [Descartes, Discurso sobre o método, p. 45] ↩︎

  107. Windscheid, Diritto delle pandette, p. 74. ↩︎

  108. Cf. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 492. ↩︎

  109. Para uma visão geral das posições desses autores, vide Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, pp. 19 e ss. ↩︎

  110. Isso não quer dizer, contudo, que essa corrente estava isenta de bases fortemente metafísicas, pois era fundada na crença de que é possível construir um sistema lógico-abstrato a partir da observação do direito empiricamente observável, crença essa que não pode ser fundamentada, mas que é o pressuposto de trabalho adotado pelos pandectistas. ↩︎

  111. Wundt, Logik, vol. III, 4a ed., 1921. Citado por Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, p. 31. ↩︎

  112. Na tentativa de diferenciar os conceitos de prescrição e decadência, por exemplo, conceitos que até hoje apresentam dificuldades aos juristas, Windscheid esclareceu o significado de cada um a partir de suas partes constitutivas e criou a teoria que ainda hoje é predominante, a qual envolve a criação de um novo conceito (pretensão) que permitiria descrever melhor certas peculiaridades do direito civil que antes não eram bem percebidas porque descritas com base em conceitos confusos. ↩︎

  113. Neste ponto, cabe lembrar que a codificação alemã é resultado da sistematização promovida pela Jurisprudência dos Conceitos e, portanto, os textos originais da Jurisprudência dos Conceitos não poderiam seguir a ordem estabelecida pelo código, tal como fez a Escola da Exegese. ↩︎

  114. Puchta, Lehrbruch der Pandekten, I, 36. Citado por Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 22. ↩︎

  115. Hegel, Filosofia do Direito. ↩︎

  116. Esse entendimento predominou no direito brasileiro até que a Constituição da República de 1988 veio a permitir expressamente a condenação de pessoas jurídicas por crimes ambientais e contra o consumidor. ↩︎

  117. Não se deve confundir interpretação subjetivista com subjetiva, pois o que a Escola da Exegese buscava era a interpretação objetivamente correta, mas a partir da reconstrução daquilo que foi efetivamente pensado pelo legislador que elaborou a norma interpretada. ↩︎

  118. Acerca das idéias de Savigny, vide o ponto D deste capítulo. ↩︎

  119. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 35. ↩︎

  120. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 37. ↩︎

  121. Sobre esse tema, vide Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica européia, p. 192. ↩︎

  122. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 525. ↩︎

  123. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 528. ↩︎

  124. Todas as informações sobe a elaboração do BGB são retiradas de Wieacker, História do direito privado moderno, pp. 536 e ss. ↩︎

  125. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 540. ↩︎

  126. Reale, Lições preliminares de direito, p. 7. ↩︎

  127. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 21. ↩︎

  128. A concepção do direito como sistema remonta ao jusracionalismo do século XVIII e está presente em todas as vertentes da teoria tradicional. Porém, é na pandectística alemã que ela adquiriu uma formulação precisa, derivada da tentativa de sistematização lógico-formal do pensamento jurídico. Sobre esse tema, vide (?) ↩︎

  129. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 494. ↩︎

  130. Tal como ocorreria se houvesse uma contradição insanável dentro da mesma lei, por exemplo, se um artigo atribuísse uma competência privativamente a um órgão e outro artigo atribuísse a mesma competência privativamente a um órgão diverso. ↩︎

  131. Vide Windscheid, Diritto delle pandette, p. 73. ↩︎

  132. Foucault, A ordem do discurso, p. 25. ↩︎

  133. Dworkin, Taking Rights Seriously. ↩︎

  134. Hobsbawm, A era do capital, p. 349. ↩︎

  135. Citado por Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 10. ↩︎

  136. Hobsbawm, A era do capital, p. 19. ↩︎

  137. A obra-prima de Zola é Germinal, publicada em 1855, que trata das condições de vida dos trabalhadores de uma mina de carvão. ↩︎

  138. Warat, Introdução geral ao direito, vol. I, p. 53. ↩︎

  139. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 375. “A tese de que o Direito é, segundo a sua própria essência, moral, isto é, de que somente uma ordem social moral é Direito, é rejeitada pela Teoria Pura do Direito, não apenas porque pressupõe uma Moral absoluta, mas ainda porque ela, na sua efetiva aplicação pela jurisprudência dominante numa determinada comunidade jurídica, conduz a uma legitimação acrítica da ordem coercitiva do Estado que constitui tal comunidade. Com efeito, pressupõe-se como evidente que a ordem coercitiva do Estado própria é Direito.” Cabe ressaltar que, neste trecho, a palavra jurisprudência é utilizada no sentido de teoria jurídica. ↩︎

  140. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 371. ↩︎

  141. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 647. ↩︎

  142. Saleilles, Prefácio, p. XIV. ↩︎

  143. Vide Beudant, Cours de droit civil français, p. 118. ↩︎

  144. Ehrlich, Fundamentos da sociologia do direito. ↩︎

  145. Holmes, O caminho da lei, p. 430. ↩︎

  146. Holmes, citado por Morris, Os grandes filósofos do direito, p. 423. ↩︎

  147. Bodenheimer, Teoría del Derecho, p. 351. ↩︎

  148. Vide Rocha, Epistemologia jurídica e democracia, p. 41 e ss. ↩︎

  149. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, pp. 151 e ss. ↩︎

  150. Vander Eycken, Méthode positive de l”interprétation juridique, p. 14. ↩︎

  151. O conceito de senso comum teórico dos juristas é desenvolvido por Luis Alberto Warat, especialmente no início de sua Introdução Geral ao Direito, vol. I. ↩︎

  152. Indicadora desse processo era a popularidade do juiz Magnaud, testemunhada inclusive por Gény, que a ele se opunha. (GÉNY, 1954: 293) ↩︎

  153. Kohler, Une nouvelle conception des études juidiques, p. 171. Citado por Bevilaqua, Teoria geral do direito civil, p. 44. ↩︎

  154. Saleilles, Prefácio, p. XV. ↩︎

  155. Capitant, Introduction à l”étude du Droit Civil, p. 97. ↩︎

  156. Vide, por exemplo, Holmes, O caminho do direito, Em: Morris, Os frandes filósofos do direito, pp. 425 e ss. ↩︎

  157. Ballot-Beaupré, Le centenaire du Code civil. Paris, 1904, p. 27. Citado por: Ost, François e Kerchove, Michel van de. Entre la lettre et l”esprit: les directives d”interprétation en droit. Bruxelles: Bruylant, 1989. Texto original: “Le juge ne doit pas s”attacher à rechercher obstinément quelle a été, il y a cent ans, la pensée des auteurs du Code en rédigeant tel ou tel article (...). La justice et la raison commandent d”adapter libéralement, humainement, ce texte aux réalités ent aux exigences de la vie moderne.” ↩︎

  158. Vide Bentham, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação.Em: Morris, Cearense (org.). Os Grandes filósofos do direito. Martins Fontes, 2002, pp. 261-262. ↩︎

  159. “A própria natureza mostrou ao homem o caminho que deve seguir a fim de conquistar o outro para sua finalidade, é o caminho de se vincular a finalidade de um com o interesse do outro homem. Toda nossa vida humana baseia-se nesse princípio.” [Jhering, O fim no direito. Em: Morris, Clarence (org.). Os Grandes filósofos do direito, p. 401]. ↩︎

  160. Vander Eycken, Méthode positive de l”interprétation juridique, p. 14. Texto original: “Le point de vue positif que nous avons adopté attribue une importance primordiale au but social; celui-ci correspond, dans chaque cas, au plus considérable des intérêts en présence; aussi, le prendre en considération, c”est d”introduire les valeurs sociales dans le raisonnement, c”est animer par les intérêts de la vie les formules abstraites du droit.” ↩︎

  161. Jhering, citado por Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 52. ↩︎

  162. Vide, por exemplo, Capitant [Introduction à l”étude du Droit Civil, p. 99], que, apesar de defender vários dos pressupostos teóricos da Escola da Exegese, reconhece a impossibilidade de reduzir a hermenêutica a um método determinado. ↩︎

  163. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 39. ↩︎

  164. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 159. ↩︎

  165. Vide Gény, Méthode d”interprétation et sources en droit privé positif, vol. 2, p. 293. ↩︎

  166. A regra geral do direito civil era (e continua sendo) a da responsabilidade subjetiva, ou seja, uma pessoa somente pode ser obrigada a pagar indenização a outra se restar comprovado que o autor do dano procedeu com dolo (intencionalmente) ou com culpa (mediante negligência, imprudência ou imperícia). Nos casos citados (acidente de trabalho e contrato de transporte), muitas vezes é quase impossível demonstrar a culpa do empregador ou transportador, fato que dificultava sobremaneira que os empregados e usuários pudessem ser indenizados pelos danos sofridos em relação a essa atividade. Nesses casos, a jurisprudência Magnaud estabeleceu que deveria ser aplicada a regra da responsabilidade objetiva (também chamada de responsabilidade pelo risco), ou seja, a pessoa que sofresse o dano teria direito a indenização mesmo que não pudesse comprovar a culpa do empregador ou transportador. ↩︎

  167. Vide Gény, Méthode d”interprétation et sources en droit privé positif, vol. 2, p. 295. ↩︎

  168. Quando uma dívida é judicialmente cobrada, mediante um processo que tecnicamente é chamado de execução judicial, o Poder Judiciário arrecada certos bens do devedor para leiloá-los e saldar a dívida com o resultado da venda. Chama-se de penhora o ato mediante o qual o Poder Judiciário apreende o bem a ser leiloado e, nesses casos, o Judiciário tanto pode apreender fisicamente o bem, quanto pode deixá-lo na posse do devedor, hipótese em que o devedor é constituído como fiel depositário do bem. Nesse caso, se o depositário desviar o objeto penhorado, ele pode vir a sofrer várias sanções, inclusive ser preso. ↩︎

  169. Esses casos são relatados em Gény, Méthode d”interprétation et sources en droit privé positif, vol. 2, p. 296 ↩︎

  170. Até hoje, a Lei Penal brasileira prevê a vadiagem como contravenção penal, definindo-a como “entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita” (art. 59 da Lei de Contravenções Penais). ↩︎

  171. Na época, a lei francesa somente admitia o divórcio quando um dos cônjuges praticasse atos que violassem as obrigações conjugais, não sendo suficiente a mera decisão consensual de desfazer a união. ↩︎

  172. Vide Gény, Méthode d”interprétation et sources en droit privé positif, vol. 2, p. 297 ↩︎

  173. Gény, Méthode d”interprétation et sources en droit privé positif, vol. 2, p. 299. ↩︎

  174. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 83. ↩︎

  175. Gény, Méthode d”interprétation et sources en droit privé positif, vol. 2, p. 301. ↩︎

  176. Gény, Méthode d”interprétation et sources en droit privé positif, vol. 2, p. 301. ↩︎

  177. Gény, Méthode d”interprétation et sources en droit privé positif, vol. 2, p. 301. ↩︎

  178. Gény, Méthode d”interprétation et sources en droit privé positif, vol. 2, p. 303. ↩︎

  179. Mazeaud, Leçons de droit civil, p. 128. ↩︎

  180. Gény, Méthode d”interprétation, Tomo I, p. 264. Texto original: “La loi n”est pas autre chose qu”une volonté, émanant d”un homme ou d”un groupe d”hommes.” ↩︎

  181. Gény, Méthode d”interprétation, Tomo I, p. 266. Texto original: “Je n”admets comme contenu légitime de la loi, à dégager par son interprétation, que ce que ses auteurs ont voulu et ont su exprimer dans son injonction.” ↩︎

  182. Gény, Méthode d”interprétation, Tomo I, p. 67. Texto original: “De telle sorte que, sous le prétexte de mieux respecter la loi, on en pervetit l”essence. Et, c”est ainsi que, chez les jurisconsultes, qui affichent la plus scrupuleuse vénération pour le texte légal, on rencontre parfois des idées absolument personnelles, attribuées audacieusemente au législateur. Cette dénaturation de la loi ne serait que demi-mal, à mon gré, si elle était avouée et ouvertement pratiquée. Mais, ce qui en fait le principal danger, c”est l”hypocrisie qui la couvre.” ↩︎

  183. Gény, Méthode d”interprétation, Tomo I, p. 67. Texto original: “Ne serait-il pas, non seulement plus sincère, mais mieux adapté aussi au but supérieur de l”élaboration du droit positif, de reconnaître aux conceptions subjectives leur vrai caractère, et de leur laisser, dans le domaine de l”interprétation, le champ d”applicacion qui leur est dû?” ↩︎

  184. Gény, Méthode d”interprétation, Tomo I, p. 266. “Cette volonté peut seule former l”objectif essentiel de toute interprétation proprement dite de la loi.” ↩︎

  185. Gény, Méthode d”interprétation, Tomo II, p. 306. ↩︎

  186. Gény, Méthode d”interprétation, Tomo II, p. 78. ↩︎

  187. França, Hermenêutica jurídica, p. 30. ↩︎

  188. França, Hermenêutica jurídica, p. 57. ↩︎

  189. Vide Warat, Introdução geral ao direito, vol. I, p. 76. ↩︎

  190. Vide Warat, Introdução geral ao direito, vol. I, p. 77. ↩︎

  191. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 70. ↩︎

  192. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 70. ↩︎

  193. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 70. ↩︎

  194. Wieacker, História do direito privado moderno, p. 671. ↩︎

  195. Camargo, Hermenêutica e argumentação, p. 94. ↩︎

  196. Warat, Introdução geral ao direito, vol. I, p. 80. ↩︎

  197. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p.70. ↩︎

  198. Isso é feito, por exemplo, por Francesco Ferrara. [vide Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, pp. 166 e ss. ↩︎

  199. Warat, Introdução geral ao direito, vol. I, p. 80. ↩︎

  200. Heck, El problema de la creación del derecho, p. 67. ↩︎

  201. Vide Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p.73, Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, pp. 127 e ss., Pereira, I**nstituições de direito civil, p. 133. ↩︎

  202. A vertente anglo-saxã do positivismo normativista é chamada normalmente de jurisprudência analítica (ou escola analítica de jurisprudência) e teve em Austin seu teórico mais destacado. ↩︎

  203. Holmes, The common law, p. 1. ↩︎

  204. Pound, Introduction to the Philosophy of Law, 1922, p. 99. Citado por Bodenheimer, Teoría del derecho, p. 352. ↩︎

  205. Cardozo, The nature of the judicial process, 1921, pp. 96 e 135. Citado por Bodenheimer, Teoría del derecho, p. 356. ↩︎

  206. Nas quais não cabe incluir a ala radical do movimento do direito livre, dado que a inspiração voluntarística e subjetivista dessa corrente era anticientífica e não propriamente sociológica. ↩︎

  207. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 52. ↩︎

  208. Kelsen nasceu em Praga, mas foi criado em Viena, quando ambas as cidades faziam parte do Império Austro-Húngaro, que não sobreviveu à I Guerra Mundial. ↩︎

  209. Neste contexto, a expressão teoria normativa do direito não indica uma teoria que estabelece normas sobre como o direito deve ser (o que seria contrário todos os pressupostos kelsenianos), mas uma teoria que estuda o direito sob um enfoque normativo (e não sociológico, político, ético, psicológico ou qualquer outro). ↩︎

  210. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 52. ↩︎

  211. Observe-se a pureza não é uma característica do direito, mas da teoria, o que significa que Kelsen não considerava o direito era um objeto puro nem que a criação do direito era isenta de interesses políticos nem que ele era desvinculado da estrutura social ou política de uma comunidade. Ele pretendia afirmar apenas que a ciência do direito deveria ter um objeto e um método puros, ou seja, deveria estudar apenas as normas, sem partir para considerações ideológicas, políticas, sociológicas, psicológicas ou quaisquer outras que escapassem à mera descrição do fenômeno normativo. ↩︎

  212. Como quase todo teórico, Kelsen modificou várias de suas concepções ao longo do tempo, de modo que alguns conceitos relevantes são descritos de modo diverso em suas principais obras, que são a 1a versão da Teoria Pura do Direito (1933), a Teoria Geral do Direito e do Estado (1945), a 2a versão da Teoria Pura (1960) e a obra póstuma Teoria Geral das Normas (1973). As suas idéias sobre interpretação, porém, permanecem fundamentalmente as mesmas desde a publicação da 1a edição da Teoria Pura do Direito, o que torna dispensável uma análise da concepção hermenêutica descrita em cada um dos livros citados e possibilita uma descrição geral da teoria kelseniana da interpretação. ↩︎

  213. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 1. ↩︎

  214. Kelsen, Teoria pura do direito, 1ª versão, p. 103. ↩︎

  215. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 364. ↩︎

  216. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 364. ↩︎

  217. Habermas, Técnica e ciência como ideologia, p. 78. ↩︎

  218. Concepção essa que, embora recusada pela concepção de Kelsen, está presente em certas vertentes menos refinadas do positivismo que contribuíram para a formação do nosso senso comum teórico. ↩︎

  219. Segundo o próprio Kelsen, “a interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação “correta”. Isto é uma ficção de que se serve a Jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal é somente realizado aproximativamente. Não se pretende negar que esta ficção da univocidade das normas jurídicas, vista de uma certa posição política, pode ter grandes vantagens. Mas nenhuma vantagem política pode justificar que se faça uso desta ficção numa exposição científica do Direito positivo, proclamando como única correta, de um ponto de vista científico objetivo, uma interpretação que, de um ponto de vista político subjetivo, é mais desejável do que uma outra. Neste caso, com efeito, apresenta-se falsamente como uma verdade científica aquilo que é tão-somente um juízo de valor político.” [Kelsen, Teoria pura do direito, p. 370.] ↩︎

  220. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 79. ↩︎

  221. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 371. ↩︎

  222. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 371. ↩︎

  223. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 366. ↩︎

  224. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 369. ↩︎

  225. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 370. ↩︎

  226. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 370. ↩︎

  227. Kelsen, Teoria pura do direito, p. VI. ↩︎

  228. Kelsen, Teoria pura do direito, 1ª. ed., p. 5. ↩︎

  229. Lembremo-nos da crise do capitalismo mundial em 1929, do acirramento das tensões ligadas ao movimento sindical e da ascensão dos governos totalitários, especialmente o nazismo e o fascismo, durante a década de 30. ↩︎

  230. Llewellyn, “The constitution as an Institution” (1934), citado por Bodenheimer, Teoría del derecho, p. 362. ↩︎

  231. Frank, Law and modern mind (1930), citado por Bodenheimer, Teoría del derecho, p. 363. ↩︎

  232. Llewellyn, contudo, discorda frontalmente dessa abordagem psicanalítica de Frank, acusando-a de utilizar conceitos imprecisos e inconsistentes. [vide Llewellyn, Jurisprudence, p. 105] ↩︎

  233. Bodenheimer, Teoría del derecho, p. 363. ↩︎

  234. Vide Bodenheimer, Teoría del derecho, p. 362. ↩︎

  235. Llewellyn faz referência expressa a esses dois autores como suas principais influências [Llewellyn, Jurisprudence, p. 103] ↩︎

  236. Llewellyn chega mesmo a tratar o realismo como uma perspectiva comportamental (behavior aproach) acerca do direito. [Llewellyn, Jurisprudence, p. 28] ↩︎

  237. Nessa medida, o realismo jurídico diferenciava-se da sociologia de Ehrlich, pois, enquanto este se voltava para um amplo estudo das dimensões jurídicas do comportamento social, o realismo limitava seu conceito de direito à atividade jurisdicional do Estado. ↩︎

  238. Llewellyn, Jurisprudence, p. 136. ↩︎

  239. Bodenheimer, Teoría del derecho, p. 361. ↩︎

  240. Inclusive da sociological jurisprudence de Holmes e Cardozo, que não por acaso vieram ambos a se tornar juízes da Corte Suprema norte-americana (Supreme Court). ↩︎

  241. Vide Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, pp. 71 e ss. e Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, pp. 66 e ss. ↩︎

  242. Termo utilizado por Carlos Maximiliano para se referir a Kantorowicz. [Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. XIII] ↩︎

  243. Pereira, Instituições de direito civil, p. 134. ↩︎

  244. Soler, Interpretación de la ley, p. 162. ↩︎

  245. Soler, Interpretación de la ley, p. 166. E continua Soler: “Además de la tarea de intelección, que, según hemos visto, no puede ser eliminada, existe sin duda una operación de selección de materiales normativos y de agrupamiento de ellos dentro de la estructura de los principios decisorios, tarea en la cual asume tanta importancia la aceptación e inclusión de ciertos preceptos como el rechazo y descarte de otros, a los cuales se considera impertinentes o inaplicables al caso concreto. La afirmación de que ese aspecto de la tarea es un acto voluntario y creador es una afirmación equívoca que de hecho ha sido entendida en un sentido negador de la validez efectiva de la ley y para otorgar al juez la facultad de instituir una norma, o la de decidir libremente.” ↩︎

  246. Heck, citado por Pessôa, A teoria da interpretação jurídica em Emilio Betti, p. 27. ↩︎

  247. Como essa visão leva em conta os interesses como causa da elaboração de normas jurídicas, Heck falava de “interesses causais” ou “interesses genéticos”. [vide Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, pp. 57 e ss.] ↩︎

  248. Heck, El problema de la creación del derecho, p. 76. ↩︎

  249. Heck, citado por Pessôa, A teoria da interpretação jurídica em Emilio Betti, p. 29. ↩︎

  250. Heck, El problema de la creación del derecho, p. 74. ↩︎

  251. Heck, El problema de la creación del derecho, p. 74. ↩︎

  252. Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica européia, p. 199. ↩︎

  253. Sobre a formação desse novo senso comum, vide o próximo capítulo. ↩︎

  254. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 68. ↩︎

  255. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 68. ↩︎

  256. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 67. ↩︎

  257. Engish, Introdução ao pensamento jurídico, pp. 165 e ss. ↩︎

  258. Vander Eycken, L”interprétation juridique, p. de 1907. ↩︎

  259. Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. de 1921. ↩︎

  260. Vide Enneccerus, Derecho civil, pp. 204 e 206. ↩︎

  261. Capitant, Introduction à l”étude du Droit Civil, p. 96. No mesmo sentido, podemos citar a seguinte posição de Eneccerus: “Con ello no pretendemos adherirnos a la escuela del derecho libre, porque una cosa es autorizar el juez a desechar cuando conduzca al absurdo cualquier interpretación, aun la literal, y el absurdo no pueda suponerse querido por el legislador y otra, muy diversa, autorizar-le a juzgar sobre la justicia y oportunidad de las soluciones indudablemente queridas por el legislador.” [Enneccerus, Derecho civil, p. 229] ↩︎

  262. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 47. ↩︎

  263. Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 134. ↩︎

  264. Deve-se deixar claro que a expressão vontade da lei é metafórica, não implicando personalização da lei nem afirmação de que a norma tem uma vontade psicológica, mas significando apenas que “a norma encerra uma vontade objetivada, um querido (voluto) independente do pensar dos seus autores, e que recebe um sentido próprio” [Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 137] ↩︎

  265. Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 135. ↩︎

  266. Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 137. ↩︎

  267. Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 141. ↩︎

  268. Ferrara chega a afirmar que “cumpre evitar os excessos: duma parte o daqueles que por timidez ou inexperiência estão estrictamente agarrados ao texto da lei, para não perderem o caminho (e muitas vezes toda uma era doutrinal é marcada por esta tendência, assim acontecendo com a época dos comentadores que se segue imediatamente à publicação dum código); por outro lado, o perigo ainda mais grave de que o intérprete, deixando-se apaixonar por uma tese, trabalhe de fantasia e julgue encontrar no direito positivo ideias e principios que são antes o fruto das suas locubrações teóricas ou das suas preferências sentimentais.” Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 128. ↩︎

  269. Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 111. ↩︎

  270. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. XII. ↩︎

  271. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. XIII. ↩︎

  272. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 20. ↩︎

  273. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 24. ↩︎

  274. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 26. ↩︎

  275. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 31. ↩︎

  276. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 85. ↩︎

  277. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, pp. 79 e 85. ↩︎

  278. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, pp. 47 e 48. ↩︎

  279. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 154. ↩︎

  280. Entretanto, devemos ressaltar que não há citações diretas da obra de Heck no texto de Maximiliano. ↩︎

  281. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 152. ↩︎

  282. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 160. ↩︎

  283. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, pp. 18 e ss. ↩︎

  284. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 153. ↩︎

  285. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 82. ↩︎

  286. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 5. ↩︎

  287. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 154. ↩︎

  288. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 277. ↩︎

  289. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 277. ↩︎

  290. Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1. ↩︎

  291. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito. ↩︎

  292. Wittgenstein, Tratado Lógico-filosófico, 6.54. ↩︎

  293. Kelsen, Teoria pura do direito. ↩︎

  294. Pessôa, A teoria da interpretação jurídica em Emilio Betti, p. 36. ↩︎

  295. Situação, aliás, que é a mesma dos dias de hoje, dado que o senso comum dos juristas continua a ser composto basicamente pelas teorias de meio-termo formuladas no início do século XX. ↩︎

  296. Betti, citado por Pessôa, A teoria da interpretação jurídica em Emilio Betti, p. 57. ↩︎

  297. Pessôa, A teoria da interpretação jurídica em Emilio Betti, p. 103. ↩︎

  298. Betti, citado por Pessôa, A teoria da interpretação jurídica em Emilio Betti, p. 106. ↩︎

  299. Vide Pessôa, A teoria da interpretação jurídica em Emilio Betti, p. 94. ↩︎

  300. As informações sobre Betti têm como por base Pessôa, A teoria da interpretação jurídica em Emilio Betti, pp. 106 e ss. ↩︎

  301. Betti, citado por Pessôa, A teoria da interpretação jurídica em Emilio Betti, p. 108. ↩︎

  302. Betti, citado por Pessôa, A teoria da interpretação jurídica em Emilio Betti, p. 110. ↩︎

  303. Betti, citado por Pessôa, A teoria da interpretação jurídica em Emilio Betti, p. 111. ↩︎

  304. Gadamer, Verdade e método II, p. 51. ↩︎

  305. Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica, p. 17. ↩︎

  306. Witgenstein, Tratado Lógico-filosófico, 6.54. ↩︎

  307. Dworkin, Law”s Empire, p. 78. ↩︎

  308. Esse empirismo é especialmente claro em Alf Ross, que afirma expressamente em sua principal obra que “o pensamento subjacente ao realismo jurídico é o desejo de compreender o direito em conformidade com as idéias de natureza, problemas e métodos da ciência, tal como desenvolvida pela moderna filosofia empirista. Várias correntes filosóficas — empirismo lógico, a filosofia de Upsala, a escola de Cambridge e outras — convergem na rejeição da metafísica, na cognição especulativa baseada na apreensão a priori pela razão. Há apenas um mundo e uma cognição. Toda ciência trata do mesmo conjunto de fatos, e todos os enunciados científicos sobre a realidade — ou seja, todos os que não são puramente lógico-matemáticos — estão sujeitos a testes experimentais. ↩︎

  309. Viehweg, Tópica e Jurisprudência, p. 33. ↩︎

  310. Viehweg, Tópica e Jurisprudência, pp. 36 e 80. ↩︎

  311. Viehweg, Tópica e Jurisprudência, p. 33. ↩︎

  312. Viehweg não fala expressamente em tradição, que é um termo da teoria gadameriana, cuja elaboração é contemporânea às suas formulações. Porém, ambas essas visões são complementares, de tal forma que a apropriação do termo de Gadamer me parece adequada para elucidar o pensamento de Viehweg. ↩︎

  313. Viehweg, Tópica e Jurisprudência, p. 42. ↩︎

  314. Viehweg, Tópica e Jurisprudência, p. 43. ↩︎

  315. Viehweg, Tópica e Jurisprudência, p. 107. ↩︎

  316. Perelman, Ética e Direito, p. 66. ↩︎

  317. Perelman, Lógica jurídica, p. 137. ↩︎

  318. Perelman, Lógica Jurídica, p. 137 ↩︎

  319. Perelman, Tratado da argumentação: nova retórica, p. 5. ↩︎

  320. Perelman, Tratado da argumentação, p. 4. ↩︎

  321. Perelman, Tratado da argumentação, p. 1. ↩︎

  322. De fato, Perelman não faz essa distinção conceitual entre auditório abstrato e auditório universal, pois ele trata todos os auditórios que aqui chamei de abstratos como auditórios universais vinculados a certos auditórios particulares que o projetam. Porém, considero que apresentar o auditório universal como uma forma específica dos auditórios abstratos torna mais compreensível a teoria, especialmente no caso de auditórios o próprio Perelman chama de universais e que não me parecem merecer essa denominação, como é o caso dos cientistas que se dirigem aos seus pares ou dos artistas que se dirigem a uma vanguarda [vide Perelman, Tratado da argumentação, p. 38]. Assim, o importante desses auditórios não é propriamente a sua universalidade, mas a pretensão de que o seu assentimento confere algum tipo de validade objetiva a uma linha argumentativa. ↩︎

  323. Perelman, Teoria da argumentação, p. 52. ↩︎

  324. García Amado, Teorías de la tópica jurídica, pp. 322-323. ↩︎

  325. Perelman, Lógica Jurídica, p. 137 ↩︎

  326. Costa, O princípio da razoabilidade na jurisprudência do STF, p. 30. ↩︎

  327. Habermas, Técnica e ciência como ideologia, p. 74. ↩︎

  328. Habermas, Verdade e justificação, p. 39. ↩︎

  329. Esse tipo de posicionamento teve grande repercussão na UnB com o humanismo dialético de Roberto Lyra Filho, que tem a mesma inspiração marxista de Habermas, mas oferece uma resposta que se relaciona pouco com a hermenêutica, na medida em que ele propõe a dialética como uma forma de acesso ao real sentido da história. Creio que essa divergência se explica, ao menos em grande medida, pelo contexto histórico imediato em que esses autores desenvolvem suas teorias. Onde a validade social evidentemente não está ligada ao consenso, parece fora de lugar discutir os limites do próprio consenso como critério de validade. E, enquanto Habermas trabalhava em uma Europa democrática, refletindo sobre critérios que possibilitassem evitar que o consenso resultasse em injustiças, Lyra trabalhava no contexto de uma ditadura, em que o desafio premente era construir categorias capazes de permitir uma avaliação crítica das normas positivadas por um Estado que não tinha compromisso com a democracia. E existe uma grande diferença entre lidar com os limites do relativismo (que é o que faz Habermas) e combater uma determinada metafísica conservadora (que é o que faz Lyra). Assim, parece razoável que a oposição de Lyra entre direito e antidireito não seja fundada em uma perspectiva lingüística que busca lidar com os limites do consenso democrático, mas em uma perspectiva ontológica, que busca estabelecer possibilidades de insurreição contra o próprio poder estatal. Com isso, o pensamento de Habermas desemboca em uma hermenêutica, que tenta possibilitar uma compreensão adequada do direito vigente, e o pensamento de Lyra desemboca em uma ontologia, que busca abrir espaço para direitos que não são reconhecidos. ↩︎

  330. Habermas, Moral consciousness and communicative action, p. 42. ↩︎

  331. Hume, Tratado da natureza humana. Em Morris (org.), Os grandes filósofos do direito, p. 189 e ss. ↩︎

  332. Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes. ↩︎

  333. Habermas, Verdade e justificação, p. 39. ↩︎

  334. Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica, p. 93. ↩︎

  335. Habermas, Verdade e justificação, p. 46. ↩︎

  336. Habermas, Moral Consciousness and communicative action, p. 68. ↩︎

  337. Habermas, Verdade e Justificação, p. 46*.* ↩︎

  338. Vide Habermas, Moral Consciousness and communicative action, cuja primeira edição é de 1983. ↩︎

  339. Vide Habermas, Between facts and norms, cuja primeira edição é de 1992. ↩︎

  340. Habermas, Verdade e justificação, p. 49. ↩︎

  341. Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica, p. 186. ↩︎

  342. Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica, p. 187. ↩︎

  343. Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica, p. 200. ↩︎

  344. Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica, p. 239. ↩︎

  345. Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica, p. 240. ↩︎

  346. Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica, p. 249. ↩︎

  347. Dworkin, Law”s Empire, p. 31. ↩︎

  348. Uma avaliação interessante dessas críticas é feita por Juliano Benvindo, no artigo Será que a comunicação emancipa?. ↩︎

  349. Habermas, Verdade e justificação, p. 48. ↩︎

  350. Habermas, Verdade e justificação, p. 48. ↩︎

  351. Rorty, Grandiosidade universalista. Em: Souza, Filosofia, Racionalidade, Democracia, p.214. ↩︎

  352. Rorty, Grandiosidade universalista. Em: Souza, Filosofia, Racionalidade, Democracia, p.224. ↩︎

  353. Rorty, Pragmatismo, filosofia analítica e ciência, p. 21. ↩︎

  354. Rorty, Pragmatismo, filosofia analítica e ciência, p. 21. ↩︎

  355. Rorty, Grandiosidade universalista. Em: Souza, Filosofia, Racionalidade, Democracia, p. 228. ↩︎

  356. Como a afirmação de que “uma idealização das condições de justificação absolutamente não precisa partir das propriedades “densas” da cultura que é cada vez a nossa, mas pode começar nas propriedades formais e processuais de práticas de justificação em geral, difundidas em todas as culturas”. Habermas, Verdade e Justificação, p. 254. ↩︎

  357. Habermas, Verdade e Justificação, p. 254. ↩︎

  358. Heidegger, El ser y el tiempo, p. 26. ↩︎

  359. Derrida, Força de lei, p. 26. ↩︎

  360. Derrida, Força de lei, p. 22. ↩︎

  361. Derrida, Força de lei, p. 25. ↩︎

  362. Para Habermas, “o conceito-chave da teoria pragmática da significação não é a verdade, mas um conceito generalizado, empregado epistemicamente, de validade no sentido de aceitabilidade racional.” Habermas, Verdade e Justificação, p. 131. ↩︎

  363. Dworkin cita pouco os autores que inspiraram as suas construções teóricas. Também cita muito pouco aqueles aos quais ele se contrapõe, pois, especialmente no Law”s Empire, ele se contrapõe às correntes que ele descreve, mas não indica claramente as teorias que as compõem. ↩︎

  364. Dworkin, Law”s Empire, pp. 55 e 62. ↩︎

  365. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 1. ↩︎

  366. Dworkin, Law”s Empire, p. 216. ↩︎

  367. Dworkin, Law”s Empire, p. 226. ↩︎

  368. No sentido que Guattari e Deleuze dão para a filosofia, considerando-a “a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos”. Vide Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?, p. 10. ↩︎

  369. Dworkin, Law”s Empire, p. VII. ↩︎

  370. Dworkin, Law”s Empire, p. VIII. ↩︎