Costa, Alexandre. O Princípio da Razoabilidade na jurisprudência do STF no século XX. Brasília, Thesaurus, 2008.

Introdução

O presente texto é uma análise da jurisprudência do STF, realizada em 1999, como parte da minha pesquisa de mestrado. Ele traça a evolução do princípio de razoabilidade no STF, desde os seus antecedentes até as primeiras decisões que passaram a realizar uma efetiva realização do controle de razoabilidade com referência expressa a este princípio. Durante a primeira década do século XXI, a mudança na composição Corte conduziu a um incremento do ativismo judicial, o que gerou uma ampliação do controle de razoabilidade, de tal forma que o número de referências aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade não cessa de se expandir. Essas inovações tornam necessária uma análise do sentido atual desse princípio, para avaliar em que medida existe continuidade ou ruptura com a função desempenhada por esse topos argumentativo na jurisprudência da década de 1990. Porém, a avaliação dessas diferenças somente pode ser feita em comparação com o sentido desse princípio nos primeiros anos de sua utilização pelo STF, motivo pelo qual creio que se justifica a publicação do presente livro, que constitui um balanço, realizado no último ano do século XX, acerca da função argumentativa desempenhada pelos argumentos que se utilizam do princípio da razoabilidade.

1. Entre prescrição e descrição

Toda teoria jurídica deve combinar dois elementos, um descritivo e outro normativo, de forma a ser tanto uma teoria sobre uma certa realidade quanto uma teoria para essa mesma realidade. Ela não deve ser apenas um sistema de conhecimentos abstratos, mas um conjunto de conhecimentos voltados para uma prática adequada. Em outras palavras, ao mesmo tempo que uma teoria jurídica precisa descrever um certo conjunto de fenômenos, também deve ela oferecer uma orientação adequada para a atividade jurídica.

Essas duas pretensões não são excludentes, mas em vários momentos pode surgir entre elas um conflito. Um dos grandes pontos de tensão é o fato de a realidade ser por demais complexa, tão complexa que toda teoria implica necessariamente uma série de simplificações. Ademais, uma teoria que refletisse toda a complexidade do mundo seria tão inútil quanto um mapa de escala 1:1. É preciso, pois, escolher os fatos relevantes[1] e construir uma teoria que explique devidamente as relações existentes entre eles. Os elementos considerados irrelevantes são sempre deixados à margem da teoria, o que faz com que toda concepção tenha um certo campo de esclarecimento e outro de ocultação[2]. Mas como devemos escolher os fatos relevantes? Com base em cada resposta possível a essa pergunta, podemos construir uma concepção teórica diferente.

Um dos critérios mais importantes para a definição dos elementos cientificamente relevantes é a facilidade da sua manipulação pelo pesquisador. Por exemplo, é mais difícil trabalhar com juízos de valor que com objetos empíricos. Dessa forma, é muito mais fácil construir uma teoria que trate apenas de fatos acessíveis aos nossos sentidos que uma teoria que também envolva juízos de valor. Os fatos empíricos têm uma realidade objetiva[3], enquanto a subjetividade dos valores dificulta enormemente um trabalho científico sobre eles. Tanto que, por definição, os juízos de valor não são objetos possíveis de uma ciência, no sentido positivista do termo, já que o positivismo somente admite conhecimento científico sobre fatos empíricos.

Para o positivista, os juízos de valor são escolhas arbitrárias, simples manifestações da vontade subjetiva de um indivíduo, as quais não podem ser orientadas por critérios racionais. Assim, um dos perigos do positivismo — especialmente do positivismo jurídico — é o de simplificar demasiadamente a realidade, na medida em que não leva em conta os juízos de valor como elementos cientificamente relevantes. E uma simplificação excessiva da realidade pode dar margem a uma teoria a tal ponto simplista que não se torna capaz de responder convenientemente à exigência de ser uma descrição adequada da realidade. Resolver um problema jurídico com base em uma teoria desse tipo seria como planejar uma viagem de Brasília a Belo Horizonte a partir de um mapa-múndi: nessa escala, a simplificação é tão grande que o mapa torna-se inútil para resolver problemas muito particulares. E as questões jurídicas são quase sempre muito específicas, visto que as peculiaridades do caso concreto são normalmente relevantes para a sua decisão.

Um perigo diverso está na tendência à idealização. Ao invés de elaborarmos uma teoria que explique um determinado conjunto de fenômenos, podemos desenvolver uma “realidade” ideal, que terá uma função mais normativa que descritiva: um paradigma para que moldemos a sociedade à sua imagem e semelhança, e não uma descrição do que efetivamente ocorre. Construído esse modelo, os conceitos jurídicos passariam a ser aceitos na medida em que guardassem coerência com o sistema, e não na medida em que correspondessem à realidade. Esse ideal de sistematicidade leva-nos a tentar construir sistema de conhecimentos tão completo[4] e coerente[5] quanto possível, o que pode conduzir-nos a um afastamento cada vez maior frente à própria realidade que buscamos descrever. Em grande parte isso ocorre porque, embora nosso conhecimento tenha pretensão de sistematicidade, a realidade é complexa e assistemática. Esse é um dos perigos fundamentais das concepções de tendência racionalista[6], que buscam construir conceitos jurídicos a priori[7], pois apenas tais conceitos podem ser devidamente fundamentados[8]. Esse também é um perigo constante nas perspectivas teóricas de viés dogmático, pois, estabelecidos os pressupostos da teoria[9], essas noções deixam de ser problematizadas e os novos conceitos serão medidos de acordo com a sua adequação aos dogmas e não à realidade.

Uma perspectiva meramente descritiva da ciência do Direito não nos parece um enfoque consistente, especialmente porque lhe falta a própria possibilidade de construir um conceito adequado do seu objeto. Além disso, seria ingenuidade perseguir uma concepção teórica unicamente descritiva, na medida em que a mera definição do que se deve entender por Direito já implica uma tomada de posição valorativa, ou seja, uma manifestação do caráter normativo da teoria. Ao mesmo tempo, parece-nos inadequada uma teoria simplesmente normativa, que busque orientar a realidade mas não se preocupe devidamente em fundamentar essa orientação em uma descrição adequada dos fenômenos jurídicos. Uma teoria como essa tenderia a produzir conceitos jurídicos a priori, a partir dos quais seria construída uma dogmática jurídica cada vez mais distante da realidade e que, justamente por causa desse distanciamento, não seria capaz de oferecer uma orientação adequada à atividade prática dos juristas.

Acredito, pois, que uma teoria jurídica deve buscar uma harmonia entre essas duas pretensões. Deve assumir expressamente o seu aspecto normativo, admitindo claramente as posições valorativas que a compõem e buscando servir como uma orientação adequada para o desenvolvimento do Direito. Todavia, essa orientação deve ser construída tendo como base uma descrição consistente da realidade, e não fundar-se em pretensos conceitos jurídicos a priori, os quais tendem a conduzir-nos a uma idealização exagerada. Uma boa descrição é, portanto, um pré-requisito necessário para que se desenvolva uma orientação consistente[10].

A tendência dogmática da cultura jurídica brasileira não estimula devidamente as pesquisas de caráter descritivo — que sempre podem conduzir a um questionamento dos dogmas estabelecidos —, dando preferência a estudos que apenas dêem continuidade às perspectivas teóricas já consolidadas ou que analisem as novas situações com base nos conceitos estratificados na teoria jurídica tradicional. Embora os juristas não tenham chegado a abandonar as referências à jurisprudência dos tribunais ou à prática jurídica, muitas vezes essas considerações são superficiais e ancilares, feitas mais por imperativos de estilo que por sua integração no projeto argumentativo do trabalho. Além disso, as pesquisas de jurisprudência são muitas vezes demasiadamente parciais: o pesquisador escolhe os casos que lhe interessam ou as partes mais interessantes dos acórdãos, tal como faz um advogado em busca de subsídios para suas postulações. Isso indica um uso da pesquisa jurisprudencial como mera ferramenta de comprovação da existência dos conceitos jurídicos a priori pressupostos pelo pesquisador ou como meio de corroboração das teses pré-formuladas[11]. Todavia, consideramos mais adequado enfocar a atividade jurisdicional como uma instituição criadora de direitos e de conceitos jurídicos originais e que, por isso, merece um estudo mais sério e consistente.

Feitas essas considerações, podemos dizer que esta obra vai um pouco contra a corrente, na medida em que tem como principal objetivo fornecer uma descrição adequada da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o princípio da razoabilidade. Assim, este trabalho enquadra-se mais no esforço descritivo que no normativo, o que é ao mesmo tempo seu ponto forte e sua limitação. Por um lado, julgamos que a descrição aqui feita pode servir como fundamento para uma série de possíveis desenvolvimentos dos aspectos especificamente normativos de uma teoria da razoabilidade. Embora toda descrição implique uma tomada de posição valorativa, acreditamos que nosso marco teórico é suficientemente aberto para servir como base de desenvolvimentos teóricos orientados por concepções as mais distintas.

Por outro lado, essa abertura dificulta sobremaneira a elaboração, nos quadros deste mesmo trabalho, de uma teoria mais completa e consistente sobre o princípio da razoabilidade, pois isso implicaria fazermos uma série de escolhas valorativas bem mais profundas que as necessárias para uma simples descrição. E cada opção valorativa significa um risco para a aceitabilidade de uma teoria, na medida em que a pluralidade de valores da sociedade atual indica que a probabilidade de discordâncias valorativas[12] é bem maior que a de aceitação. Dessa forma, uma atenção maior ao elemento normativo provavelmente causaria uma perda razoável na utilidade do aspecto descritivo da teoria — o qual tem prioridade neste trabalho. Por tudo isso, concentraremos nossas atenções na descrição da jurisprudência do STF.

2. Objeto e estrutura da obra

Desde o início da década de 1990[13], o Supremo Tribunal Federal, no exercício do controle de constitucionalidade, tem tomado decisões que empregam como fundamento expresso o princípio da razoabilidade ou proporcionalidade[14]. Apesar de não ser expressamente previsto na Constituição Federal de 1988, esse princípio tem sido utilizado na jurisprudência da Corte para a avaliação da constitucionalidade de leis, de atos administrativos e de decisões judiciais. Além disso, há leis criadas nos últimos anos que, provavelmente inspiradas na jurisprudência do STF, já fazem referência a tal princípio[15]. Mas o que pretende dizer o Supremo Tribunal quando afirma que uma lei, um ato ou uma sentença são contrários ao princípio da razoabilidade? Colocando a pergunta de forma mais precisa: que função desempenham, na jurisprudência do STF, as referências a tal princípio? Essa é a pergunta que este trabalho visa a responder.

3. Dificuldades metodológicas e pragmáticas

Para que seja possível cumprir esse objetivo, é preciso enfrentar algumas dificuldades metodológicas. A primeira delas advém do fato de o STF ser um órgão colegiado e, portanto, não ter uma vontade ou uma razão próprias. Nesse contexto, o que significa afirmar que o Tribunal tem um posicionamento? Se isso quer dizer que há um consenso entre todos os seus membros, muito poucos seriam os entendimentos que poderiam ser atribuídos ao Supremo — ou a qualquer outro órgão colegiado. Assim, para que possamos caracterizar um posicionamento como o entendimento da Corte, não devemos exigir unanimidade, mas apenas a sua admissão por uma razoável maioria. Mas quando devemos considerar que um membro da corte admite certo entendimento? Quando ele expressamente o afirma, não há dúvida. Entretanto, não podemos dizer que toda decisão do STF expressa um posicionamento da Corte. Um caso exemplar é o do julgamento do RMS 16.912/67[16], no qual o Tribunal tomou sua decisão por uma maioria que não foi formada em torno de um argumento comum, mas de fundamentações divergentes, várias delas incompatíveis entre si.

Essa é uma das dificuldades resultantes do modo pelo qual o Tribunal toma suas decisões. No Supremo Tribunal Federal, apenas o relator tem a obrigação de fundamentar seu voto[17] e, para a contabilização dos votos, não importa se as justificativas apresentadas são idênticas ou ao menos compatíveis, bastando que sejam idênticas as conclusões — ou seja, os posicionamentos no sentido de acolher ou rejeitar os pedidos feitos pelos litigantes. Não é por outro motivo que apenas as decisões — e não os fundamentos — fazem coisa julgada. Na Suprema Corte norte-americana e no BVerfG, para citar as cortes constitucionais com maior prestígio internacional, exige-se que nas decisões do tribunal a maioria dos membros não apenas chegue a um acordo quanto aos resultados, mas também quanto ao fundamento. Quando esses tribunais julgam um processo, eles não apenas estabelecem a decisão de um caso concreto, mas oferecem a opinião da corte sobre uma questão jurídica. E quando o resultado de um julgamento não é apenas uma decisão, mas um posicionamento, as decisões futuras tornam-se mais previsíveis e controláveis.

Essa ausência de uma opinião da Corte, aliada à falta de necessidade de fundamentar cada voto[18], cria outro fenômeno que dificulta bastante a análise da jurisprudência do Tribunal: o “voto com o relator”. O que significa votar com o relator? Significa a concordância apenas com a decisão ou também com os fundamentos? Quando um ministro vota com o relator, ele pode querer dizer tanto uma coisa quanto outra. O grande problema é que o singelo “voto com o Exmo. Sr. Ministro Relator” não nos oferece informações suficientes para que identifiquemos o real significado do voto. Essa incerteza não cria maiores problemas em questões razoavelmente estratificadas na jurisprudência ou naquelas em que os ministros tiveram chance anterior de manifestar sua opinião pessoal. Todavia, em questões novas, em relação às quais a doutrina é incipiente e a jurisprudência é insegura, o problema mostra-se com toda a sua força. E é nessa última categoria que se enquadra o princípio da razoabilidade.

Como veremos, dos onze ministros, apenas três já se referiram expressamente a tal princípio — e nem sempre de uma forma muito consistente. Os ministros restantes, em algum momento, já acompanharam relatores que utilizaram esse princípio como fundamento de suas argumentações. Teriam esses ministros reconhecido tacitamente a validade do argumento? Ou teriam eles expressado apenas sua concordância com o resultado, mas não com os fundamentos apresentados? Não temos subsídios suficientes para responder a tal pergunta. É por isso que, desde já, admitimos a impossibilidade de oferecer uma resposta adequada à primeira questão que colocamos: o que pretende dizer o Supremo Tribunal quando afirma que uma lei, um ato ou uma sentença são contrários aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade?

No atual estado da jurisprudência, qualquer tentativa de responder essa pergunta seria muito mais uma proposta para guiar a jurisprudência futura que uma descrição da jurisprudência passada. É preciso, então, restringir a nossa pergunta, de tal forma que ela possa ser respondida com base no material empírico disponível: não buscaremos definir o papel que têm as referências aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade na jurisprudência do STF, mas definir o papel que tais referências desempenharam nos discursos dos ministros que fizeram referência a tais princípios. Trata-se de um tema razoavelmente despretensioso — mas que acreditamos que possa conduzir a algumas conclusões interessantes, não apenas quanto ao princípio da razoabilidade, mas também quanto ao modo pelo qual o Tribunal toma suas decisões.

Capítulo I - Antecedentes do princípio da razoabilidade no STF

1. Falta de razoabilidade como requisito para admissão de recursos extraordinários

A utilização do termo razoabilidade na jurisprudência do STF tornou-se constante especialmente a partir de 1963, ano em que o Tribunal expediu a Súmula 285, segundo a qual “não sendo razoável a argüição de inconstitucionalidade, não se conhece do recurso extraordinário fundado na letra c do art. 101, III, da Constituição Federal”. Essa posição foi reforçada pela edição da Súmula 400, em 1964, afirmando que “decisão que deu razoável interpretação a lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário pela letra a do art. 101, III, da Constituição Federal”[19]. A aplicação dessas duas súmulas teve como objetivo retirar da competência do STF a revisão de atos judiciais que fossem razoáveis. Com isso, busca-se estabelecer que não é papel da Corte garantir que cada caso concreto seja resolvido de acordo com a melhor interpretação possível[20], mas apenas o de evitar a subsistência de decisões irrazoáveis. Mas o que se deve considerar como razoável nesse contexto?

Para responder devidamente a essa questão, devemos relembrar a teoria positivista da interpretação, especialmente na sua versão kelseniana. Para Kelsen, toda norma tinha um certo grau de indeterminação, o que faz com que ela deva ser vista como uma moldura que define ao juiz um certo campo de interpretações possíveis.[^21] A escolha entre essas diversas opções não pode ser feita com base em critérios jurídicos — já que estes se esgotam na definição da moldura — mas necessariamente deverá orientar-se por critérios meta-jurídicos, ou seja, por critérios que escapam a qualquer orientação da metodologia da ciência do direito. A partir dessa constatação, Kelsen — assim como H. L. A. Hart —, reconhece que o juiz tem autoridade para escolher qualquer das soluções juridicamente possíveis. Na medida em que não há um parâmetro objetivo para definir a opção juridicamente mais adequada, qualquer das soluções é aceitável, cabendo a escolha ao agente estatal competente[21].

Segundo a teoria positivista tradicional não se pode exigir dos agentes estatais que façam a melhor opção ou interpretação possível, mas apenas exigir que se atenham ao sentido literal possível das normas. E isso acontece justamente porque o positivismo, na medida em que considera arbitrário qualquer juízo de valor, não oferece critérios jurídicos para orientar uma escolha entre a várias interpretações logicamente consistentes com o sistema jurídico. Podemos identificar aqui uma concepção bastante similar à que reconhece ao administrador um campo de intangibilidade na sua atividade discricionária: o chamado mérito administrativo, que envolve as questões de conveniência e oportunidade. E isso não acontece por acaso — ambas são resultados dos princípios positivistas da interpretação jurídica.

Entendemos, pois, que a Súmula 400 é um reconhecimento expresso da noção positivista[22] de que não existe uma e apenas uma decisão juridicamente correta a priori para cada caso concreto. Quando o Tribunal afirma que decisões diversas da que ele tomaria podem ser válidas, ele admite que na atividade judicial estão envolvidas duas operações distintas. Em todos os casos, o juiz deve avaliar a questão utilizando critérios jurídicos e buscar para ela uma solução juridicamente fundamentada. Todavia, há hipóteses em que mais de uma solução serão juridicamente possíveis, casos em que será necessária a escolha entre diversas interpretações aceitáveis. E vários são os conceitos criados para denotar esses casos: as decisões discricionárias de Aarnio, os hard cases do common law, as decisões tomadas dentro da indeterminação das leis apontadas por Kelsen[^24]. Os critérios que podem orientar essa opção são os mais variados, e certamente o Tribunal, se levado a conhecer da questão, deve escolher fundamentadamente uma dentre as várias soluções possíveis.

Pudemos identificar na jurisprudência a afirmação de que são razoáveis certos critérios para a execução, de fixação de honorários, de escolha de peritos, de motivos para decretar e manter a prisão do réu em processo penal etc. Todos esses atos relacionam-se com o campo da discricionariedade do juiz e, nesse âmbito, as referências à razoabilidade normalmente são utilizadas para evitar o conhecimento de um recurso ou indeferir um processo sem a necessidade de avaliar o seu mérito. Com isso, o apelo ao argumento da razoabilidade adquiriu um grande valor na chamada jurisprudência defensiva, por meio da qual o STF, frente ao trabalho excessivo que precisa efetuar, opta por soluções processuais que permitem julgar questões com um mínimo de esforço. Entretanto, não devemos identificar nessa linha jurisprudencial apenas uma defesa do STF frente ao número exagerado de processos, pois é compatível com o papel de uma corte suprema abster-se de julgar o mérito de todos os casos em que se sustenta que uma decisão judicial é inadequada. Além disso, essa concepção é plenamente harmônica com o positivismo, que ainda hoje é o paradigma jurídico dominante.

O STF, embora podendo fazer o contrário, estabeleceu para si mesmo a regra da não-intervenção no campo de discricionariedade judicial. Considera, há mais de 25 anos, que uma decisão razoável — leia-se, uma decisão que se enquadra na moldura estabelecida pelas normas jurídicas — não pode ser revista apenas com base no argumento de que existe uma interpretação mais adequada[23]. Caso o juiz tenha-se mantido dentro do sentido literal possível das normas positivas, não se deve invalidar sua opção valorativa.

É certo que, nesses casos a referência à razoabilidade adquiriu um conteúdo jurídico definido, pois se trata de um argumento que normalmente se considera suficiente para afastar da competência do Supremo o julgamento do mérito de um recurso. Para utilizar uma linguagem hermenêutica, a referência à razoabilidade foi elevada à posição de um topos jurídico, uma afirmação que pode servir como premissa para uma argumentação jurídica porque a sua validade não é questionada pelo senso comum. Todavia, não entendemos que essa utilização caracterize um controle de razoabilidade. Pelo contrário, essa escolha do STF de não rever as decisões judiciais que estejam dentro da moldura construída pelas normas positivas implica justamente a recusa[24] do controle de legitimidade: considera-se válida não apenas a opção mais adequada, mas qualquer interpretação que se atenha ao sentido literal possível.[25]

2. RE 18.331 (1951)

RE 18.331, julgado em 21.9.1951, rel. min. Orozimbo Nonato.[26]

Em 1949, o Município de Santos elevou o imposto de licença sobre cabines de banho em 1.000%. Marques & Viegas, alegando que esse aumento inviabilizaria a sua atividade econômica, ingressou em juízo argüindo a inconstitucionalidade da majoração. O juiz de primeiro grau acolheu o pedido, mas a sentença foi reformada pelo Tribunal de São Paulo. Levado o caso ao STF, este referiu-se expressamente à doutrina da Suprema Corte norte-americana de que “o poder de taxar é o poder de deixar vivo” [the power to tax is the power to keep alive] e reconheceu que há limites constitucionais ao poder de tributar. Esse julgamento contribui para a fixação do entendimento de que os princípios constitucionais têm força normativa e precisam ser observados pelos agentes estatais. Isso é o que reconhece expressamente o Tribunal de São Paulo, na decisão recorrida, ao fixar os limites da controvérsia: “a majoração taxada de inconstitucional o seria por estar colidindo com o princípio da liberdade de exercício de qualquer profissão, assegurada pelo artigo 141, § 14 da Constituição vigente”[27].

A argumentação utilizada para resolver o problema foi muito interessante. Seguindo o posicionamento vitorioso no Tribunal paulista, o STF verificou que o aluguel do estabelecimento aumentou, na passagem de 1948 a 1949, de Cr$ 82.000,00 para Cr$ 150.000,00. Durante esse mesmo período, ainda que tenha sido reconhecidamente alto o aumento do imposto sobre cabines de banho, o montante do tributo atingiu apenas Cr$ 19.272,30. Ou seja, o aumento do imposto correspondia a apenas 1/3 do aumento do aluguel. Por isso, o Judiciário concluiu: “manifesto é, pois, que a contribuição devida ao Fisco não se mostra onerosa nem absorvente dos lucros. Absorvente e onerosa é a orientação adotada na exploração de seu negócio, capaz de consumir a quase totalidade de seus lucros. E só por isso não fica inibido o Fisco de arrecadar seus tributos legitimamente lançados.”[28]

Nos Estados Unidos, esse problema seria provavelmente tratado nos quadros do due process of law[29] e, na jurisprudência alemã atual, por meio do princípio da proporcionalidade. Isso acontece porque esse caso envolve a avaliação de uma opção valorativa do governo, o que prima facie indicaria a ocorrência de um controle de razoabilidade. Todavia, ao invés de identificar no caso analisado a aplicação de um modelo próximo ao esses institutos — o que envolveria a avaliação da razoabilidade das opções legislativas frente aos pesos dos princípios em jogo e orientada pela busca de uma harmonização entre os valores conflitantes —, percebemos uma aplicação ainda muito rígida dos princípios: somente é ilegítimo o imposto que aniquile a atividade particular.

Por trás dessa orientação, certamente existe uma referência — ainda que indireta e implícita — a uma noção geral de proporcionalidade e razoabilidade: os aumentos de imposto devem ser razoáveis, a carga imposta deve ser proporcional à capacidade contributiva. Entretanto, por mais que haja um pretensão difusa à proporcionalidade, o controle judicial ainda tem como requisito uma incompatibilidade absoluta frente à norma constitucional: a simples criação de dificuldades, por maiores que sejam, não é entendida como suficiente para caracterizar a inconstitucionalidade de uma lei. Não identificamos aqui, portanto, um passo no sentido da adoção de um controle de razoabilidade propriamente dito, mas a expressão de uma preocupação jurisprudencial anterior e que é um dos pré-requisitos para o próprio desenvolvimento de um controle dessa espécie: a concepção de que os princípios constitucionais precisam ser observados por todos os agentes estatais, de que os princípios não são apenas um compromisso moral ou uma orientação política, mas que eles têm força normativa e devem ser obedecidos.

A idéia de que se deve reconhecer força normativa aos princípios constitucionais é relativamente nova no Direito e há muito pouco tempo estratificou-se na jurisprudência de vários países, inclusive do nosso. Atualmente, tende-se a admitir que a aplicação de princípios aos casos concretos sempre exige do jurista uma avaliação da dimensão que Dworkin chama de peso[30]. Todo imposto onera a atividade econômica, mas é preciso definir algum limite que não possa ser ultrapassado. Todavia, nesse caso o Tribunal entendeu que o imposto somente violaria o princípio caso a atividade fosse inviabilizada. Não consideramos que esse tratamento rígido dos princípios constitucionais deva ser considerado um controle de razoabilidade em sentido estrito. Não se trata de avaliar se o peso que o legislador atribuiu aos princípios em jogo foi adequado, mas apenas de verificar se a atividade foi inviabilizada ou não, o que indica um tratamento dos princípios como se fossem regras.

Não se entendia que a citada disposição constitucional estabelecia uma exigência no sentido de que a tributação não onerasse excessivamente as atividades econômicas. O STF reconhecia nesse dispositivo apenas uma proibição de o Estado inviabilizar uma atividade produtiva devido a um aumento da carga tributária. Dessa forma, uma tributação que impossibilitasse a atividade econômica seria inconstitucional, mas seria válido o tributo que simplesmente dificultasse o exercício da profissão, não importando em que grau. Nessa época, a questão principal ainda era submeter o Estado aos mandamentos da Constituição, não se cogitando ainda de um tratamento mais flexível dos princípios constitucionais. Não havia ainda um reconhecimento jurisprudencial da dimensão de peso dos princípios jurídicos, especialmente porque não existia o ativismo judicial necessário para que fosse reconhecida a possibilidade de o Judiciário avaliar se fôra adequado o peso que o Executivo ou o Legislativo atribuíram aos princípios relacionados a uma determinada questão.[31]

3. RMS 16.912 (1967)

RMS 16.912, julgado em 31.8.1967, rel. min. Djaci Falcão.[32]

Trata-se de um caso no qual vários membros do Tribunal envolveram-se em uma discussão sobre os limites do controle judicial de constitucionalidade e da atividade legislativa do Estado. Na cidade de Suzano, havia um Cartório do Primeiro Ofício de Notas e Anexos — o qual abrangia o Registro de Imóveis. Em agosto de 1964, a lei 8.101 do Estado de São Paulo criou como serventia autônoma o Cartório do Registro de Imóveis e Anexos na Comarca de Suzano. O projeto que o legislativo enviou à sanção dispunha que, para o provimento desse novo cartório, deveria ter prioridade absoluta o então Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais do distrito da sede, para compensá-lo da perda do anexo de tabelionato. Por considerar essa disposição imoral, o Governador do Estado a vetou, mas mesmo assim, decidiu prover no cargo o seu beneficiário.

Inconformado, o titular do cartório do qual o registro de imóveis foi desmembrado[33] ingressou com mandado de segurança contra a nomeação feita pelo Governador, argüindo a inconstitucionalidade do artigo 126 da referida lei (que criava o ofício independente) e de seu parágrafo único (que criava a prioridade em favor do Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais)[34]. O mandado foi indeferido na origem, o que possibilitou o recurso ao Supremo. O acórdão recorrido afirmava:

Para o impetrante, a opção estaria viciada por uma falsa causa, pois a compensação representa um bis in idem, visto que o beneficiado já havia recebido compensação, consistente, nos termos do art. 23, parágrafo único, da própria L. 5.235, de 1959, que criou a comarca de Suzano, com a atribuição dos anexos de distribuidor, contador e partidor, e não optara, naquela emergência, para ofícios de notas da mesma classe em outras comarcas. A opção conferida pelo art. 126 e seu parágrafo violou, frontalmente, o princípio da igualdade de todos perante a lei, criando a lei uma serventia com dono certo.

Não obstante o veto, não titubeou o ilustre Chefe do Executivo estadual em prover o Oficial do Registro das Pessoas Naturais na nova serventia, pois não considerou a opção inconstitucional, mas somente imoral.

Argumenta-se, primeiramente, que a lei é concebida como uma regra geral, não devendo um indivíduo apenas, ou um grupo de pessoas [sic]. Mas, como assinala Giorgio Del Vecchio, essa característica não é absoluta ou essencial, pois casos há em que a lei possa cogitar de uma certa relação individual. Daí, e com toda razão, haver declarado o ilustre impetrado que nenhuma inconstitucionalidade se poderia vislumbrar na espécie dos autos, devendo-se enxergar, quando muito, um caso de imoralidade.

Por outro lado, não parece reger o princípio da isonomia o provimento das serventias, a não ser quando se impeça, por motivos pessoais e inaceitáveis, concorra a ele determinada pessoa. Tem-se observado, como regra, nos primeiros provimentos de serventias, a livre escolha feita pelo Executivo, e, no caso, essa prerrogativa foi exercida pelo Legislativo, com a disfarçada anuência do Executivo. [...]

O dispositivo em foco poderá ser havido como imoral, mas não apresenta o vício de inconstitucionalidade, que lhe querem atribuir.[35]

O então governador, considerando que a opção do legislativo não era inconstitucional, mas apenas imoral, determinou a nomeação da pessoa escolhida pelo legislador, e o Tribunal Estadual reconheceu que aí havia, quando muito, apenas um caso de imoralidade — o que não justificava a anulação do ato. Interessante é observar que o Judiciário reconhecia a possibilidade da não aplicabilidade do princípio da isonomia ao caso — argumento que hoje não seria admissível. Além disso, também seria difícil reconhecer a imoralidade do ato e sustentar a sua constitucionalidade frente à Constituição de 1988, dado o reconhecimento da moralidade como um valor necessário à Administração Pública (art. 37, caput). Mas à época era outra a Constituição e também eram outros os valores dominantes.

O relator, Djaci Falcão, acolheu a tese da ofensa ao princípio da isonomia, que deveria reger o preenchimento de quaisquer cargos públicos. Adaucto Cardoso, que vota em seguida, admite a inconstitucionalidade, mas apenas porque entende que a competência para prover os cargos é do Chefe do Executivo, e não do Legislativo. Eloy da Rocha, por sua vez, entende que o fato de a titularidade da serventia ser vitalícia torna necessário que haja alguma compensação para a sua perda parcial, sendo necessário ao menos seguir o costume e atribuir ao tabelião o direito de optar pela titularidade de qualquer das partes resultantes do desmembramento.

Já Prado Kelly entende que há inconstitucionalidade porque a atribuição de preferência foi introduzida pelo Legislativo em projeto de competência exclusiva do Judiciário, mas que com isso não se buscou atender nenhum objetivo de interesse público, mas apenas um favorecimento pessoal — o que seria inadmissível. Esse posicionamento é reforçado pelo fato de ter sido o desmembramento da serventia a única emenda proposta pelo legislativo ao projeto do Judiciário, o que o faz defender que o caput (criação do novo cartório) existe em função do parágrafo (que cria a prioridade).

Adalício Nogueira não seguiu exatamente os fundamentos de nenhum dos ministros que votaram anteriormente embora tenha retomado alguns dos argumentos já apresentados: afirmou que a lei era inconstitucional porque tinha um caráter privatístico, visando apenas ao interesse exclusivo do seu beneficiário. Após esses votos iniciou-se uma discussão entre Prado Kelly, Aliomar Baleeiro e Victor Nunes, que levou Prado Kelly a admitir expressamente[36]:

O que estava em causa era um velado desrespeito ao princípio da legalidade. Esse princípio, associado ao da igualdade jurídica, pressupõe que a lei tenha efeitos gerais. É um resguardo da própria autoridade do Legislativo, e é uma garantia para os cidadãos. Admito o exercício da faculdade de emenda atribuída ao legislador, mas verifico que, no caso concreto, ele usou daquela faculdade com desafio do fim pressuposto na Constituição e nas normas que regem a disciplina do órgão. Por quê? Porque, em vez de prover em relação ao bem público, atendeu a um interesse pessoal menos legítimo. É este o ponto; e só com esta limitação eu admitiria a pesquisa da intenção do legislador, a fim de dar por comprovado o détournement de pouvoir.[37]

Mas o posicionamento mais interessante é o de Victor Nunes Leal, que se contrapõe ao entendimento de Prado Kelly:

Acho que é a noção de abuso que permite ao Judiciário exercer uma função moderadora no controle da ação de outros poderes. Tanto a noção de uso, como a de abuso, não têm definição muito precisa, mas a jurisprudência as vai construindo lentamente, com os seus precedentes. Aliás, é importante notar, é à base de noções não muito precisas, não completamente definidas no texto legal, que a jurisprudência realiza suas mais valiosas construções.[38]

A defesa desse posicionamento leva Aliomar Baleeiro a perguntar-lhe se ele admitia a existência de desvio de poder fora do caso de inconstitucionalidade — entenda-se, fora do controle típico de constitucionalidade, que envolve a incompatibilidade com uma regra ou princípio expressos no texto constitucional. Em resposta, Victor Nunes reconhece que admite um controle desse tipo, mas apenas dentro de certos limites.

Em primeiro lugar, prefiro usar, a esse respeito, a noção de abuso, e não de desvio de poder. Pela doutrina francesa, que mais longamente elaborou o conceito, o desvio de poder configura, não apenas quando o ato deixa de atender a um fim de interesse público, mas também quando, pressuposto pela norma jurídica determinando fim de interesse público, o ato é praticado com outra finalidade, ainda que de interesse público. O desvio de poder, nesta segunda modalidade, conduziria, por via indireta, à incompetência da autoridade, porque ela só seria competente para praticar o ato em razão do fim de interesse público que fôra pressuposto pelo legislador para o uso daquela competência.

Eu não aceitaria, com tal extensão, esse conceito de devido de poder, no controle sequer da ação administrativa. [...] [Mas] admito-a [a primeira modalidade: ausência de fim de interesse público] em caso de ostensivo afastamento dos princípios que regem a conduta do Congresso, isto é, em caso de abuso, desde que seja abuso manifesto.

Quando digo isso, é claro que não me coloco inteiramente fora do campo da argüição de inconstitucionalidade, porque essa não se traduz somente na violação de norma expressa. Também se traduz em violação de princípio constitucional. Havendo abuso evidente do Congresso, sempre é possível enquadrar esse abuso na infração de algum princípio constitucional, como agora está fazendo o eminente Relator, que viu no parágrafo questionado uma restrição ao poder, que tem o Executivo, e não o Congresso, de fazer nomeações para os cargos públicos criados em lei.

Mas a noção do abuso, a meu ver, é que concorre para configurar a violação de certos princípios constitucionais, pois através da noção de abuso é que o Poder Judiciário, que julga em caso concreto, pode ter o pleno discernimento de certas questões.

A noção de abuso é controvertida, tanto no direito civil, como no processual, como no administrativo, como também no constitucional. Mas, controvertida ou não, ela vai fazendo o seu caminho vitorioso na doutrina e na legislação. Antes, nossa lei quase a desconhecia. Agora a proclama em diversos textos. Como juiz, estou nessa linha.[39]

Aliomar acusa esse pronunciamento de ser uma tentativa de fazer com que o Supremo Tribunal Federal retome a jurisprudência da Suprema Corte na Era Lochner:

Acredito, com todo o respeito a V. Excia., que acaba V. Excia. colocando o problema, dentro do Supremo Tribunal Federal, nos termos em que foi posto na Corte Suprema dos Estados Unidos no período anterior a 37, da oligarquia judiciária, do despotismo, governo e — o poder dos juízes. Aí nós já estaríamos muito além do que a Constituição nos dá, e ela já deu ao STF o que nenhuma Constituição do mundo deu ao Poder Judiciário. Nem a dos Estados Unidos. O poder de o Supremo Tribunal Federal declarar inconstitucional, em tese, uma lei do Estado, e agora também uma lei da União, é coisa inédita na terra. Se nós agora tomássemos nas mãos essa atribuição, como os juízes americanos tomaram desde o período inicial do século XIX até 37, achando que podemos também anular aquilo que nós reputamos abuso de poder do Congresso, não há limite.[40]

Em resposta, argumentou Victor Nunes, em trecho que mereceria ser mais conhecido:

Sr. Presidente, espero ter explicado por que não aceito uma noção exagerada do controle judiciário. Infelizmente, não podemos fazer agora, um estudo monográfico sobre o tema. Temos que nos limitar ao enunciado de algumas idéias gerais. Mas eu ponderaria ao eminente Ministro Aliomar Baleeiro que a diferença entre o Supremo Tribunal do Brasil e a Corte Suprema dos Estados Unidos não me parece tão grande.

É certo que a Corte Suprema não tem o poder, que agora temos, por norma expressa, de examinar a constitucionalidade de uma lei, em tese. Mas, de outro lado, é comum nos Estados Unidos o uso do test case. [...] O test case pode ser até uma demanda simulada, ou construída, dando pretexto, ou motivo, ao Tribunal para emitir julgamento de constitucionalidade.

Em segundo lugar, pelo princípio de stare decisis, a decisão da Corte Suprema, que fulmina uma lei, é respeitada de imediato por todos os Poderes. Nenhum deles, nos Estados Unidos, deixou de acatar, em termos genéricos, tais decisões. [...] Portanto, independentemente do poder normativo da Corte, uma decisão sua em matéria constitucional tem, por tradição, efeito normativo. [...]

Somos, talvez, mais racionalistas que os anglo-saxões. Por isso, traduzimos esse efeito numa norma de competência do Supremo Tribunal Federal, pois nossa tradição era em sentido oposto. Por isso, não me parece maior essa nossa competência que a da Corte Suprema. Mas nós exercemos a nossa de modo diferente. [...] Talvez até tenhamos menos poderes que a Corte Suprema [...]

Mas também à Corte Suprema se faz a acusação de estar invADIdo a esfera legislativa. Presentemente, a Corte Warren tem sido censurada, precisamente, por estar usurpando funções do legislativo, na opinião dos críticos. Mas isto resulta, em grande parte, tal vez em maior parte, de ser a Constituição americana muito sintética, com algumas disposições muito genéricas, de ser uma Constituição antiga, escrita em condições históricas específicas e que deve ser aplicada em situações completamente diversas. Por isso, a Corte vai interpretando o mesmo texto, que é genérico, de modo diferente, à medida que mudam as condições sociais.

Por que não fazemos o mesmo? Porque não podemos? Não. É porque temos tido Constituições minuciosas, praticamente regulamentares. Nos pontos em que nossas Constituições têm sido omissas, ou têm usado fórmulas amplas, o Supremo Tribunal Federal procedeu como a Corte Suprema. [...] Quando a Constituição se utiliza de uma fórmula ampla, vaga, imprecisa, o Supremo Tribunal é que deve determinar o seu sentido, dar-lhe conteúdo, estabelecer os seus limites.

No tocante à ação do congresso, que é passível de se traduzir em abuso, evidentemente, esse abuso só pode ser reconhecido e proclamado pelo Supremo Tribunal Federal em razão de princípios constitucionais e não pelo arbítrio dos juízes. Mas há princípios constitucionais tão genéricos que ao próprio Tribunal incumbe defini-los.

Este é o temperamento que estabeleço na questão que estamos aflorando. A intervenção da Corte dependerá, então, dos elementos que vierem nos autos, da evidência com que deles possa emergir o abuso, que é de si mesmo noção pouco precisa.

No caso, não me parece que exista essa evidência quanto ao caput do artigo questionado, porque ele se limitou a desmembrar um cartório, que é fato habitual. Quanto ao parágrafo, sim, porque o legislador, nas próprias palavras com que enunciou seu pensamento, revestidas de vigor inusitado em leis dessa natureza, deixou escapar o seu propósito de puro favoritismo.[41]

Esta discussão sobre os limites do poder de controle exercido pelo Judiciário e dos limites do poder legislativo foi a mais completa que encontrei nos votos do STF. Embora não fale em proporcionalidade ou razoabilidade[42], trata diretamente dos limites do poder legislativo nas suas escolhas discricionárias, da exigência de um mínimo de legitimidade. Anteriormente, já se havia tentado abordar o problema com referência ao desvio de poder. Nesse caso, Victor Nunes afirma que o melhor argumento não é o desvio, mas o abuso de poder que ocorreria nos casos em que não fosse aceitável o reconhecimento de que a norma buscou atingir um interesse público. E é interessante notar que ele conhecia o trabalho da Corte Warren e o aprovava — o que indica alguma influência da doutrina do substantive due process nas idéias de Victor Nunes.

Como vimos na avaliação do princípio da proporcionalidade na Alemanha, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade são muitas vezes utilizados como argumentos para anular normas que apresentam uma fundamentação real ilegítima, embora a fundamentação explicitada fosse aceitável — fatos que podem ser qualificados como desvio ou abuso de poder. Isso ocorreu no Caso das Farmácias e no Caso dos Confeitos de Chocolate, por exemplo. As preocupações que alguns membros do Supremo demonstram, no final da década de 60, são as mesmas que levaram ao desenvolvimento do princípio da proporcionalidade na Corte Alemã — que à época não exercia influência significativa sobre o Direito Brasileiro[43].

A solução proposta por Victor Nunes[44], contudo, não parecia gozar de um grande apoio dentro do próprio Supremo: entre os dez ministros restantes, o único que votou em sentido semelhante foi Eloy da Rocha. Por outro lado, a reação de Aliomar Baleeiro foi veemente, considerando que a noção de abuso de poder equivalia às idéias da Suprema Corte pré-37, ou seja, do substantive due process na sua forma mais radical. Esse posicionamento conservador[45] parece ter sido compartilhado pelos demais ministros do Supremo: embora quase todos tivessem percebido a falta de legitimidade da norma[46] a maioria optou por buscar argumentos de índole formal, como o de invasão de competência ou da falta de generalidade da norma[47]. E foi o próprio Victor Nunes que, em um trecho anteriormente citado mas que vale a pena relembrar, deu a chave para compreender esse processo: “havendo abuso evidente do Congresso, sempre é possível enquadrar esse abuso na infração de algum princípio constitucional, como agora está fazendo o eminente Relator, que viu no parágrafo questionado uma restrição ao poder, que tem o Executivo, e não o Congresso, de fazer nomeações para os cargos públicos criados em lei.”[48]

Aparentemente, podemos identificar nesse voto de Victor Nunes, a semente do controle de legitimidade no Supremo Tribunal Federal. Esse tipo de controle era rejeitado àquela época, mas hoje tende a implantar-se de modo mais firme na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal — especialmente pelas menções ao princípio da razoabilidade (ou proporcionalidade), ao devido processo legal e também às mudanças que vêm ocorrendo no tratamento da igualdade (que passa a exigir a razoabilidade como critério de validade das discriminações). Todavia, devemos ressaltar que a possibilidade de controle dos atos discricionários foi posteriormente negada pelo próprio Victor Nunes Leal que, em uma conferência proferida no início da década de 80, reafirmou a teoria tradicional do controle dos atos administrativos:

No que respeita ao controle judicial do ato discricionário, foi-me atribuído pensamento radical, que não cheguei a externar, mas que foi deduzido de expressões incorretas de meu próprio texto. [...] Os trechos de minha autoria, de que terá resultado aquela conclusão, certamente utilizavam a expressão atos discricionários, sem qualquer esclarecimento definidor.[...]

Em que consistem esses aspectos discricionários dos atos administrativos? Para usar poucas palavras, consistem na conveniência e oportunidade do ato. A apreciação dessa conveniência — que pressupõe o interesse público, envolvendo a utilidade, a razoabilidade e a adequação do ato — é confiada, pelo legislador à Administração pública ao seu prudente critério, à sua liberdade de escolha e opção. O mesmo se diz da oportunidade do ato, cabendo à administração a escolha do momento supostamente mais conveniente ao interesse público.[49]

Em outro texto, Victor Nunes deixa bem claro os limites que entende cabíveis ao controle judicial dos atos administrativos, e que são mais estreitos que a atual teoria dominante — que tem como base a doutrina francesa do détournement de pouvoir. Afirmou ele que o administrador não é vinculado pela finalidade implícita na norma, mas que o seu ato deixará de ser discricionário — e passará a ser arbitrário — apenas no momento em que a finalidade que o orientar for ilegal, ou seja, quando a sua prática não servir como realização de qualquer interesse público, quando se puder identificar uma “manifesta preponderância do favoritismo, da perseguição, ou do puro proveito pessoal do agente”[50].

Verificamos, pois, que Victor Nunes considerou inválida a norma discutida nesse processo porque a ela faltava uma finalidade de interesse público, mas recusava a possibilidade de um controle de razoabilidade das escolhas discricionárias. No entanto, essa referência ao abuso de poder é muito importante, pois é a evolução dessa teoria — e também do desvio de finalidade — que introduzirá no Direito Administrativo uma possibilidade mais concreta de controle de razoabilidade, mediante a instituição da finalidade de interesse público como um critério de validade dos atos administrativos. Mas esse câmbio somente viria a consolidar-se cerca de duas décadas depois.[51]

E aqui cabe colocar uma pergunta à qual não poderemos dar uma resposta definitiva neste trabalho: qual foi a influência da Ditadura Militar nesse prolongado abandono da doutrina do abuso de poder praticado por agentes estatais?[52] É possível que a ideologia conservadora que se manteve no poder por tantos anos não admitisse — tal como Aliomar Baleeiro — a possibilidade de que o Supremo desenvolvesse um papel mais ativo no controle dos outros poderes. De fato, a doutrina que herdamos daquela época — e também dos períodos anteriores — é a de que o mérito dos atos administrativos[53] não era sujeito a avaliação judicial. Apenas com a Constituição de 1988, e a redemocratização do país, o controle dos abusos dos poderes retomou com alguma força seu desenvolvimento.[54]

4. HC 45.232 (1968)

HC 45.232, julgado em 21.2.1968, rel. min. Themístocles Cavalcanti.[55]

Em fevereiro de 1968, o Tribunal efetuou uma das operações de controle de constitucionalidade mais dignas de nota entre as realizadas no período de ditadura militar pós-64. Por meio do HC 45.232, questionou-se a constitucionalidade do artigo 48 da Lei de Segurança Nacional [Decreto-lei nº 314, de 1967], que dispunha:

Art. 48. A prisão em flagrante delito ou o recebimento da denúncia, em qualquer dos casos previstos neste decreto-lei, importará, simultaneamente:

I - na suspensão do exercício da profissão;

II - na suspensão do emprego em atividade privada;

III - na suspensão de cargo ou função na Administração Pública, autarquia, em empresa pública ou sociedade de economia mista, até a sentença absolutória.[56]

Vemos, assim, que o mero recebimento da denúncia resultaria na suspensão do exercício da profissão, ponto esse que foi declarado inconstitucional pelo STF. O voto condutor do acórdão foi elaborado pelo relator Themístocles Cavalcanti, que demonstrou clara inspiração na jurisprudência norte-americana.

Não é preciso que esteja expressa a garantia, basta que ela decorra do sistema político e do conjunto dos princípios expressos. Não tenho dúvida que isto ocorre na espécie porque o rigor das medidas previstas na lei que estamos examinando grita contra a essência dos princípios humanos que se resumem no direito de sobrevivência, que somente a condenação pode limitar o direito ao trabalho, bem com a normas expressas que assegurem o exercício profissional e as relações de trabalho no âmbito da empresa privada. [...]

Infelizmente não temos em nossa Constituição o que dispõe a Emenda nº 8 da Constituição Americana, onde se proíbem a exigência de fianças excessivas, as penas de multa demasiadamente elevadas e a imposição de penas cruéis e fora do comum ou de medida [sic] (cruel and unusual punishment).[57]

Nesse particular, a expressão de medida cruel, encontrada no texto americano, bem caracteriza a norma em questão, porque, com ela, se tiram ao indivíduo as possibilidades de uma atividade profissional que lhe permite manter-se e a sua família. Cruel quanto à desproporção entre a situação do acusado e as conseqüências da medida.

Mas não só o art. 150, § 35, pode ser invocado. Também o caput do art. 150 interessa, porque ali se assegura a todos os que aqui residem o direito à vida, à liberdade individual e à propriedade. Ora, tornar impossível o exercício de uma atividade indispensável que permita ao indivíduo obter os meios de subsistência, é tirar-lhe um pouco de sua vida, porque esta não prescinde dos meios materiais para a sua proteção.

A vida não é apenas o conjunto de funções que resistem à morte, mas é a afirmação positiva de condições que assegurem ao indivíduo e aos que dele dependem, dos recursos indispensáveis à subsistência. Não quer dizer que o Estado deva proporcionar esses recursos, mas não pode privar o indivíduo de exercer atividades que o prive de obter esses recursos, sem que pelo menos haja uma decisão judicial que o prive legitimamente de sua liberdade de exercer atividade lícita.

O direito à vida de que fala o artigo 150 da Constituição evolui com os problemas do momento e depende dos temas que afetam o indivíduo ou a comunidade. Pontes de Miranda aponta os direitos da mulher, direitos provenientes de discriminações raciais que afetam, em certos lugares, as próprias condições de vida do indivíduo. A apreciação, portanto, há de verificar no caso concreto.

No caso presente, em relação àqueles que são privados dos meios de subsistência por força de uma medida que se excede em rigor às próprias penas do Dl. 314, não tenho dúvida em considerar essa medida preventiva como ofensiva dos direitos inerentes à vida e aos direitos fundamentais do homem.

Assim, concedo em parte a ordem aos pacientes, por considerar inconstitucional no que se refere ao exercício de profissões liberais e de emprego em entidade privada, porque a aplicação da medida vem privar os pacientes dos meios de subsistência, garantia implícita na Constituição, porque decorre da garantia expressa no art. 150 da Constituição que assegura a todos a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, e dos princípios implícitos a que se refere o § 35 do art. 150. É, portanto, um direito que decorre também do regime adotado pela Constituição.

Por esses mesmos fundamentos não me parece que sofram a mesma restrição as limitações impostas aos que exercem função pública em Administração centralizada ou descentralizada, porque a suspensão não os priva dos meios de subsistência de acordo com a legislação vigente.[58]

A argumentação de Themístocles Cavalcanti funda-se em dois posicionamentos básicos. O primeiro é o de que é possível declarar a inconstitucionalidade de uma norma mesmo quando ela não viola dispositivo literal da Constituição. Não é por outro motivo que ele invoca a jurisprudência da Suprema Corte norte-americana, a qual opera — por via interpretativa — uma renovação nos conceitos utilizados pela Constituição para adequá-los aos valores do momento histórico atual. Dessa forma, esse ministro assenta as bases para o segundo posicionamento relevante — o de que o direito à vida não é apenas o de não ser morto, mas também o de ter condições de manter a própria sobrevivência.

Com isso, Themístocles Cavalcanti propõe um interpretação extensiva da garantia do direito à vida, conferindo a essa cláusula um conteúdo que antes não lhe havia sido reconhecido pelo STF. Com base nesse argumento, considerou inconstitucional o dispositivo que vedava aos acusados em processo criminal o direito de desenvolver suas atividades profissionais, na medida em que isso significaria impedi-los de garantir o próprio sustento. Não podemos, pois, concordar com Gilmar Mendes quando afirmou que:

Um exame mais acurado da referida decisão, com a utilização dos recursos da moderna doutrina constitucional, haveria de demonstrar que, em verdade, a Corte se valeu da cláusula genérica de remissão contida no art. 150, § 36, da Constituição de 1967, para poder aplicar, sem risco de contestação, a idéia de razoabilidade ou de proporcionalidade da restrição como princípio constitucional.[59]

Não entendemos que houve uma ponderação sobre a razoabilidade da pena impugnada. A utilização dos princípios constitucionais foi por demais rígida para que identifiquemos um controle de legitimidade propriamente dito. O que se fez foi estender o conteúdo da garantia do direito à vida para abranger também o direito de exercer atividades econômicas essenciais para a sobrevivência. Mas essa garantia constitucional continuou sendo interpretada como se fosse uma regra, e não como um princípio propriamente dito. Não se levou em consideração o peso relativo do direito à vida ou das finalidades que levaram o legislador a estabelecer a sanção preventiva.

Se um raciocínio como esse houvesse sido realizado, a conclusão mais consistente seria dar razão ao voto de Evandro Lins e Silva, que concedia o habeas corpus com base no argumento que não se pode punir alguém pelo mero fato de ser suspeito de um crime. Mas apenas esse ministro operou um controle de razoabilidade propriamente dito, pois foi ele o único que sustentou expressamente a falta de razoabilidade da norma impugnada.

Essa tese é corroborada pelo fato de que o Tribunal não julgou inconstitucional a previsão de afastamento do cargo no caso de funcionários públicos, sob a alegação de que esse afastamento importava uma redução salarial, mas não a supressão completa dos vencimentos — já que eles seriam colocados em disponibilidade e não desligados do serviço público. Não houve, pois, um posicionamento judicial no sentido de reconhecer que o recebimento da denúncia era uma causa ilegítima para o afastamento de um funcionário público de seu cargo ou para a proibição de que um profissional liberal exerça suas atividades. Houve apenas a constatação de que impedir que uma pessoa tenha algum tipo de rendimento significa impedi-la de sobreviver.

Entretanto, isso não diminui a importância do julgamento, o único que identificamos em que o STF contrapôs-se claramente a uma decisão relevante do Poder Executivo durante o governo militar, e no qual foi vencedora a tese de que é possível declarar a inconstitucionalidade de leis com base em princípios constitucionais não escritos. Mas devemos ressaltar que essa decisão foi proferida ainda no governo de Castello Branco, antes da edição do AI-5, que marcou o início do período de maior repressão.

5. ERE 63.752 (1968)

ERE 63.752, julgado em 5.12.1968, rel. min. Victor Nunes.[60]

Nesse caso, julgado às vésperas da edição do AI-5[61], o STF reafirmou[62] que o Judiciário deveria avaliar apenas as formalidades extrínsecas dos atos demissórios fundados no AI-1[63]. Nesse caso, um agente penitenciário foi demitido sem que a ele fosse garantido um efetivo direito de defesa. Embora tenha havido a nomeação de um advogado para defender os interesses do funcionário público — que não fora encontrado em seu local de trabalho nem em sua residência —, isso serviu apenas para suprir o requisito formal, tendo esse defensor desempenhado, como observou o então min. Evandro Lins, o papel de advogado do diabo, que mais auxiliou a acusação que a defesa. Contudo, a maioria do Tribunal entendeu que a deficiência na defesa fora causada pela conduta do próprio funcionário, já que este não se deixou encontrar, e que a Corte não precisava avaliar a qualidade da defesa oferecida pelo curador. A ementa do acórdão foi assim redigida:

I - O controle judicial da legalidade de demissão com base no A.I.-1 era restrito à observância das formalidades extrínsecas, dentre as quais a defesa efetiva do acusado.

II - Não vicia a demissão o obstáculo criado à defesa pelo próprio acusado, que, sendo funcionário, não foi encontrado na repartição, nem em sua residência, apesar de aí procurado por vezes. Aliás, a defesa foi feita por curador dativo da Ordem dos Advogados.

Duas foram as vozes que se voltaram mais fortemente contra essa decisão: a do próprio relator, o min. Victor Nunes Leal (cujo voto transcrevemos abaixo) e do min. Evandro Lins, por ele citado:

Os votos vencidos entenderam que a defesa ficou prejudicada. O processo administrativo correu celeremente, de 1 a 6 de outubro de 1964. No dia 9, um oficial de Gabinete fez uma breve súmula do caso e, na mesma data, o Governador Ademar de Barros assinou a demissão. O defensor nomeado não recebeu intimação, nem se utilizou do prazo de 48 horas, que lhe foi concedido. Observou o Senhor Ministro Evandro Lins que ele estava à disposição da Delegacia e " contra os interesses do patrocinado, apressou-se em oferecer as suas razoes". Não foi um defensor, como quer a lei, mas um autêntico "advogado do diabo", colaborando com a autoridade sindicante. Seu silencio teria sido mais útil, porque além do dia 9 a demissão não poderia ter sido assinada. Lembrou o Sr. Ministro Evandro Lins o julgamento silencioso de Beryer e a famosa carta de Rui Barbosa sobre os deveres da defesa.

O Sr. Ministro Adalício Nogueira, que também pedira vista, como o fizera o Sr. Ministro Evandro Lins, observou que "houve açodamento na tramitação do processo", mas o caso era de "investigação sumária, insuscetível, portanto, das delongas permitidas às formalidades ordinárias". [...]

Nos casos confrontados, cuida-se do princípio da defesa. As situações não são inteiramente iguais, mas o embargante sustenta, como sustentou no recurso, que defesa fictícia equivale a falta de defesa. No julgamento do mérito, é que se verá se a defesa foi eficaz, ou se foi formalidade ilusória que se cumpriu, como disse o Sr. Ministro Evandro Lins, em desfavor do acusado. E o Sr. Ministro Adalício Nogueira, que também foi voto vencedor, teve como satisfatória a defesa, nos termos em que se desenrolou o processo, pela natureza sumária da investigação.

Peço vênia para divergir. Se o defensor dativo dispunha de 48 horas, seu elementar dever lhe impunha procurar um entendimento pessoal com o funcionário, para se orientar no cumprimento de seu munus, pois ele não tinha sido sequer interrogado. Defesa produzida sem a mínima cautela profissional não é defesa. E, se o advogado tivesse deixado escoar-se o prazo sem dizer uma palavra, seria transposta a data limite para que o Governador pudesse praticar o ato, como observou o Sr. Ministro Evandro Lins. No caso, portanto, o oferecimento da defesa foi lesivo ao funcionário.[64]

Em sentido contrário, Aliomar Baleeiro novamente funciona como porta-voz da linha conservadora, afirmando que “a impressão causada pela leitura é de que não havia nenhuma perseguição. O homem não era nenhum político, nenhuma personalidade. Era funcionário obscuro da penitenciária. E, através do que se lê das poucas peças que existem nos autos, verifica-se que não era um santo, de maneira nenhuma”. Verificamos que, por afirmar que não havia elementos que caracterizassem uma perseguição política e de que os autos indicam que o funcionário não era nenhum santo, Aliomar Baleeiro conclui que não se há de examinar se a defesa foi ou não viciada. Com isso, o Tribunal reforça a postura de aceitar apenas argumentos formais como fundamento para a anulação de atos do Executivo. E é por isso que Siqueira Castro identifica essa decisão como um dos frutos do ambiente autoritário daquela época.[65]

6. RCL 849 (1971)

RCL 849, julgada em 10.3.1971, rel. min. Adalício Nogueira (Caso da Censura).[66]

Este foi um julgamento traumático. À época, o único legitimado para propor uma ação direta de constitucionalidade — então chamada de representação por inconstitucionalidade — era o Procurador-Geral da República que, ressaltemos, era indicado pelo Poder Executivo. Para evitar que as demandas contrárias aos interesses do Executivo deixassem de ser apreciadas pelo Supremo, criou-se a possibilidade de o Procurador-Geral oferecer a representação e opinar pela improcedência do pedido. O Regimento Interno do STF previa essa possibilidade no artigo 20, dispondo que o Procurador-Geral da República poderia encaminhar a representação com parecer em contrário.

Em 1970, o Movimento Democrático Brasileiro – MDB solicitou ao então Procurador-Geral da República, Xavier de Albuquerque, que oferecesse representação contra o Decreto-lei n° 1.077, de 26.1.1970, que instituía a censura prévia. Por discordar dos fundamentos apresentados, esse pedido foi indeferido e arquivado pelo Ministério Público. Irresignado com essa decisão, o MDB ingressou com a reclamação em análise perante o STF, solicitando que fosse dado seguimento ao processo abstrato de controle de constitucionalidade. Defendendo o seu posicionamento, Xavier de Albuquerque argumentou:

Não estão em causa, na presente Reclamação, as razões que me levaram a proferir o despacho impugnado, o que me dispensa de justificá-lo neste momento. Dizem elas com o próprio mérito da argüição de inconstitucionalidade que o reclamante me pediu que formulasse, e, como é curial, só poderiam ser objeto da apreciação do eg. Tribunal se, ao invés de como procedi, as deduzisse eu em parecer contrário à representação que, sem embargo, houvesse entendido de formular.[67]

Após uma longa discussão sobre a admissibilidade da reclamação, o Tribunal termina por conhecer o pedido e parte para a análise do mérito. Votaram pela improcedência os ministros Bilac Pinto e Thompson Flores, que admitiram o argumento do Procurador-Geral. Interessante é notar que, até esse momento, ninguém sequer fez referência à questão de fundo: a constitucionalidade da censura prévia. O único ministro que faz referência a esse ponto é Adaucto Cardoso, cujo pronunciamento vale a pena transcrever:

Min. Adaucto Cardoso: Sr. Presidente, encontro-me diante de uma encruzilhada deveras difícil. Leio o art. 2o, da L. 4.337, de 1.6.64, que declara de maneira peremptória:

“Se o conhecimento da inconstitucionalidade resultar de representação que lhe seja dirigida por qualquer interessado, o Procurador-Geral da República terá o prazo de 30 (trinta) dias, a contar do recebimento da representação, para apresentar a argüição perante o Supremo Tribunal Federal.”

Considero o § 1o do art. 174, do Regimento Interno, cuja letra é a seguinte:

“Provocado por autoridade ou por terceiro para exercitar a iniciativa prevista neste artigo, o Procurador-Geral, entendendo improcedente a fundamentação da súplica, poderá encaminhá-la com parecer em contrário”.

Tenho ouvido da parte de alguns dos eminentes desta Corte que exerceram o cargo de Procurador-Geral da República o argumento de autoridade de que sempre consideraram prerrogativa deste o oferecimento da representação. É de ver-se que defendem com ênfase um ponto de vista assentado não no exercício do cargo de juiz desta Corte, mas no exercício da alta função de Chefe do Ministério Público Federal.

Por outro lado, Sr. Presidente, a conjuntura em que nos vemos e o papel do Supremo Tribunal Federal estão a indicar, para minha simplicidade, que o art. 2o, da L. 4.337, de 1.6.64, o que estabeleceu para o Procurador-Geral da República foi o dever de apresentar ao STF, em prazo certo, a argüição de inconstitucionalidade formulada por qualquer interessado.

O nobre Dr. Procurador apreciou desde logo a representação, não para encaminhá-la, com parecer desfavorável, como lhe faculta o Regimento, mas para negar-lhe a tramitação marcada na lei e na nossa Carta Interna. Com isso, ele se substituiu ao Tribunal e declarou, ele próprio, a constitucionalidade do DL. 1.077-70.

Essa é para mim uma realidade da qual não sei como fugir.

Min. Luiz Gallotti: — O Regimento, que está em vigor com força de lei (Const., art. 120, parágrafo único, c) diz que o Procurador-Geral poderá encaminhar a representação, com o parecer contrário. Poderá, diz o Regimento. A prova de que o Procurador não declarou a constitucionalidade é que será livre a qualquer interessado trazer-nos, por outras vias, a matéria, e então o Tribunal decidirá.

Min. Adaucto Cardoso**:** Considero o argumento de Vossa Excelência com o maior apreço, mas com melancolia. Tenho a observar-lhe que, de janeiro de 1970 até hoje, não surgiu, e certamente não surgirá, ninguém, a não ser o Partido Político da Oposição, que a duras penas cumpre o seu papel, a não ser ele, que se abalance a argüir a inconstitucionalidade do decreto-lei que estabelece a censura prévia.

Então escritores ou empresas não poderão fazê-lo?

V. Excia. está argumentando com virtualidades otimistas, que são do seu temperamento. Sinto não participar das suas convicções e acredito que o Tribunal, deixando de cumprir aquilo que me parece a clara literalidade da L. 4.337, e deixando de atender também à transparente disposição do art. 174 do Regimento, se esquiva de fazer o que a Constituição lhe atribui e que a L. 4.337 já punha sobre seus ombros, que é julgar a constitucionalidade das leis, ainda quando a representação venha contestada na sua procedência, na sua fundamentação, pelo parecer contrário do Procurador-Geral da República.

É assim que entendo a lei, que entendo a Constituição, e é assim também que entendo a missão desta Corte, desde que a ele passei a pertencer, há quatro anos.

O meu voto, portanto, Sr. Presidente, é pela procedência da reclamação.[68]

Logo após, votaram os ministros Djaci Falcão e Eloy da Rocha, ambos acompanhando o relator. Este último apresentou como argumento que era possível que qualquer pessoa que se sentisse lesada colocasse em funcionamento o controle difuso de constitucionalidade e, em decorrência dessa afirmação, os ministros Adaucto Cardoso e Luiz Gallotti colocam suas posições de forma muito clara:

Min. Adaucto Cardoso: Ninguém quererá expor-se às represálias que uma tal demanda suscitará.

Min. Luiz Gallotti: Não vi ninguém sujeito a represálias pelo só fato de pleitear em juízo.[69]

Votaram os outros ministros, e todos eles posicionaram-se no sentido da improcedência da reclamação. Vale a pena transcrever o final do voto de Luiz Gallotti — o único ministro nomeado antes de 1964 e que continuava no Tribunal —, com o qual encerra-se o julgamento. Após sustentar que qualquer pessoa poderia argüir a inconstitucionalidade pelo sistema difuso, afirmou ele que:

Isso responde ao argumento do eminente Ministro Adaucto Cardoso. É verdade que S. Excia. entende, com um pessimismo que considero desmedido, que não há um cidadão, uma empresa, neste País, com a coragem necessária para requerer, no caso, um mandado de segurança ou outro remédio que seja cabível.

Assim, não há excesso de otimismo de minha parte, mas excesso de pessimismo da parte de S. Excia. E a realidade mostra que a razão está comigo, porque inconstitucionalidades dos Governos da Revolução já têm sido argüidas perante este Tribunal, e algumas têm sido acolhidas.[70]

Não obstante o otimismo de Luiz Gallotti, Adaucto Cardoso renunciou à magistratura devido à sua inconformação com o desfecho desse caso[71]. E dois anos depois, Xavier de Albuquerque foi investido no cargo de ministro do Supremo.

7. RP 930 (1976)

RP 930, julgado em 5.5.1976, rel. min. Cordeiro Guerra.[72]

No RE 70.563[73], julgado em 18.3.1971, avaliou-se a constitucionalidade do art. 7o da Lei 4.116/62, o qual dispunha que “somente os corretores de imóveis e as pessoas jurídicas, legalmente habilitados, poderão receber remuneração como mediadores na venda, compra, permuta ou locação de imóveis, sendo, para isso, obrigados a manterem escrituração dos negócios a seu cargo”. Nesse processo, todos os ministros acompanharam o voto do Relator Thompson Flores —­ que por sua vez remeteu-se a certas partes do voto que o então ministro Rodrigues Alckmin havia proferido na Apelação Cível 149.473, julgada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP, tendo sido declarada unanimemente a inconstitucionalidade do referido artigo.

Na RP 930, enfrentou-se novamente o problema da constitucionalidade da Lei 4.116/62, agora contestada em sua totalidade, sob o fundamento de que essa norma limita o exercício da liberdade de profissão sem que haja uma motivação excepcional. A ação foi proposta por Moreira Alves, na qualidade de Procurador-Geral da República, com a finalidade de “evitar que os advogados sejam impedidos de proceder a alienações de bens imóveis que lhe são confiados pelos seus clientes através de inventários e ações de despejo e outras, como vem ocorrendo freqüentemente, prejudicando os interesses dos próprios espólios e do público em geral”[74]. Além disso, argumentou-se que a declaração de inconstitucionalidade do artigo 7o da referida lei, ocorrida no RE 70.563, implicaria a condenação da totalidade da lei.

Ao avaliar a questão, o relator Cordeiro Guerra reconheceu expressamente que “a liberdade não é incompatível com a regulamentação profissional inspirada no bem comum” e que a complexidade do mundo moderno poderia justificar a regulamentação de uma série de profissões. Quanto ao caso em análise, perguntou-se:

Será que, com isso, se visa assegurar o bem comum ou restaurar as corporações de ofício, extintas desde a Revolução francesa e decadentes desde o século XVI, pelo forte aumento populacional, o desenvolvimento da indústria moderna e o rápido progresso tecnológico?

Estou que a Lei 4.116 não viola o princípio constitucional da liberdade do exercício de profissão, a todos assegurado, apenas regulamenta a seleção e a disciplina, no interesse público, da profissão de corretor de imóveis, o que é constitucionalmente permitido, por inspirada no interesse da coletividade.

No entanto, a maioria dos ministros recusou esse argumento e alinhou-se ao entendimento de que o exercício da profissão de corretor de imóveis não exige nenhuma capacitação especial e que, portanto, nenhuma limitação é possível ao exercício de tal profissão, pois a Constituição estabelecia expressamente esta regra. A linha vencedora teve como base os posicionamentos de Rodrigues Alckmin, que remeteu-se aos fundamentos que tinha exposto na Apelação Cível 149.473 do TJSP e retomados cinco anos antes no julgamento do RE 70.563. Esse ministro apresentou o voto que havia proferido naquele processo e reconheceu que a conseqüência lógica de toda a sua argumentação não seria a inconstitucionalidade apenas do art. 7o, mas de toda a Lei n° 4.116/62. Manifestou-se o min. Rodrigues Alckmin da seguinte forma:

Assenta-se [...] que a liberdade de exercício de profissão, se pode ser limitada, somente o pode ser com apoio na própria permissão constitucional (“observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer”) e de maneira razoável. E ao Poder Judiciário cabe, induvidosamente, em face da lei que regulamenta o exercício profissional, examinar, à luz desses critérios, a legitimidade da regulamentação.

Quais os limites que se justificam, nas restrições ao exercício de profissão? Primeiro, os limites decorrentes da exigência de capacidade técnica. [...] Mas se a lei ordinária pode exigir, regulamentando o exercício profissional, condições de capacidade que não sejam atinentes exclusivamente à técnica, nem por isso as condições podem ser arbitrárias ou ilimitadamente estabelecidas pelo legislador ordinário. Tais condições (de capacidade técnica, moral, física, ou outras) hão de ser sempre exigidas pelo interesse público, jamais pelos interesses de grupos profissionais ou de determinados indivíduos.

Que diploma, que aprendizado, que prova de conhecimento se exigem para o exercício dessa profissão [corretor de imóveis]? Nenhum é necessário. Logo, à evidência não se justificaria a regulamentação, sob o aspecto de exigência, pelo bem comum, pelo interesse público, de capacitação técnica. [...]

De fato, para ser corretor de imóveis, será preciso que o candidato apresente um atestado “de capacidade intelectual e profissional e de boa conduta, passado por órgão de representação legal de classe”. Ora, desde que não há aprendizado ou escola para ensino do exercício dessa profissão, cuja vulgaridade é patente, fiar-se em atestado de “capacidade profissional” é algo inadmissível. E desde que o “ingresso” na profissão depende de um registro; e que esse registro depende de tal atestação do “órgão de representação legal da classe” (não, de exibição de diploma ou título obtido em concursos oficiais ou oficialmente fiscalizados e reconhecidos), é claro que o que se tem, nitidamente, é uma corporação que poderá, a benefício dos que a ela pertençam, excluir ou dificultar o ingresso de novos membros, reservando-se o privilégio e o monopólio de uma atividade vulgar, que não reclama especiais condições de capacidade técnica ou de outra natureza. [...]

A regulamentação dessa profissão, portanto, em princípio, já não atende às exigências de justificação, adequação, proporcionalidade e restrição, que constituem o critério de razoabilidade, indispensável para legitimar o poder de polícia. [...]

Ora, no caso da pretendida corporação, Ordem ou “Conselho” de corretores de imóveis, já foi visto que essa profissão não podia, diante da Constituição Federal, ser regulamentada, porque critério algum de razoabilidade justifica a regulamentação. [...] Do exposto, pode-se concluir:

A Constituição Federal assegura a liberdade de exercício da profissão. O legislador ordinário não pode nulificar ou desconhecer esse direito ao livre exercício profissional (Cooley, Constitutional Limi­tations, pág. 209, “...Nor, where funda­mental rights are declared by the constitu­tions, is it necessary at the same time to prohibit the legislature, in express terms, from taking them away. The declaration is it­self a prohibition, and is inserted in the constitution for the express purpose of operating as a restriction upon legis­lative power"). Pode somente limitar ou disciplinar esse exercício pela exigência de condições de capacidade, pressupostos subjetivos referentes a conhecimentos técnicos ou a requisitos especiais, morais ou físicos.

Ainda no tocante a essas condições de capacidade, não as pode estabelecer o legislador ordinário, em seu poder de polícia das profissões, sem atender ao critério de razoabilidade, cabendo ao Poder Judiciário apreciar se as restrições são adequadas e justificadas pelo interesse público, para julgá-las legítimas ou não.

Verificamos nesse voto uma forte influência da teoria norte-americana do devido processo legal. Em primeiro lugar, fala do critério da razoabilidade como requisito indispensável para a legitimidade do poder de polícia e, desde a Era Lochner, há um posicionamento claro da Suprema Corte no sentido de que a razoabilidade é um limite ao exercício do poder de polícia nas questões relativas ao trabalho. Além disso, para ressaltar a necessidade de se respeitar o livre direito ao exercício profissional, Rodrigues Alckmin cita Thomas Cooley, um dos clássicos norte-americanos da segunda metade do século XIX. Outro ponto interessante do voto de Rodrigues Alckmin foi a citação por ele feita do jurista argentino Bartolome A. Fiorini:

No hay duda que las leyes reglamentarias no pueden destruir las libertades consagradas como inviolables y fundamentales. Cual debe ser la forma como debe actuar el legislador cuando sanciona normas limitativas sobre los derechos individuales? La misma pregunta puede referirse al administrador cuando concreta actos particulares. Si el Estado democrático exhibe el valor inapreciable con caráter absoluto como es la persona humana, aqui se halla la primera regla que rige cualquier clase de limitaciones. La persona humana ante todo. Teniendo en mira este supuesto fundante, es como debe actuar con carácter razonable la reglamentación policial. La jurisprudencia y lógica jurídica han instituido cuatro principios que rigen este hacer: 1º) la limitación debe ser justificada; 2º) el medio utilizado, es decir, la cantidad y el modo de la medida, debe ser adecuado al fin deseado; 3º) el medio y el fin utilizados deben manifestarse proporcionalmente; 4º) todas las medidas deben ser limitadas. La razonabilidad se expresa con la justificación, adecuación, proporcionalidad y restrición de las normas que se sancionen.

Embora trate-se de uma remissão ao Direito argentino, reconhecemos aqui uma influência indireta do devido processo legal, na medida em que o substantive due process of law foi introduzido na cultura jurídica argentina ainda em meados do século por Juan Francisco Linares, em uma obra sugestivamente chamada de Razonabilidad de las leyes: El “debido proceso” como garantía inominada en la Constitución Argentina[75]. Essa influência da teoria jurídica norte-americana foi evidenciada no voto do min. Leitão de Abreu, o qual merece ser lembrado principalmente em vista da análise minuciosa que procedeu sobre o significado do termo razoabilidade:

Assentada essa premissa, [Rodrigues Alckmin] examina em que termos se devem entender as condições de capacidade (técnica, moral, física e outras), para evitar que, sob color de uma falsa proteção ao interesse público, se verifique simples volta ao gozo de privilégios de todo incompatíveis com o regime democrático. Avultam aí três noções, todas do maior relevo: capacidade, interesse público e regime democrático. A todos envolve, contudo, a razoabilidade com que, na censura judiciária, se deve proceder, a fim de averiguar se a lei ordinária, que restringiu a liberdade profissional, com o estipular condições para o exercício de certa atividade, no caso a de corretor de imóveis, se concilia com o texto constitucional, segundo a inteligência que impende conferir-lhe.

Notória é a influência exercida, na hermenêutica do direito constitucional norte-americano, pelo critério da razoabilidade, cuja fecundidade se revelou, de modo todo especial, na exegese das Emendas V e XIV da Constituição Federal, nas quais se estabelece que nenhuma pessoa pode ser privada da vida, da liberdade ou propriedade sem processo legal regular “without due process of law”. [...]

Transparente ou diáfano, à primeira vista, o significado do termo razoabilidade, recobre-se, todavia, inesperadamente, de sombras, quando, numa segunda inspeção, se apanhar o exato perfil do seu conteúdo conceitual. Por isso mesmo, adverte, inicialmente, famoso dicionário jurídico, no verbete relativo à palavra razoável: “Não seria razoável esperar uma definição exata do vocábulo “razoável”. “A razão,” — continua — “varia nas suas conclusões de acordo com a idiossincrasia do indivíduo, bem como da época e circunstâncias, nas quais ele pensa. O raciocínio que construiu a antiga lógica escolástica ressoa nesse caso como tinido de um brinquedo de criança”[76]

A perplexidade que assaltou a esse dicionarista, quando chamado, por dever de ofício, a desenhar, precisamente, os traços do vocábulo razoabilidade, nada tem de estranho, pois essa atitude intelectual é comum, em presença de termos análogos. Doutor entre os doutores, Agostinho não vacila em confessar: se ninguém me pergunta o que é o tempo, eu o sei. Mas se precisar explicá-lo a quem me inquira sobre isso, não o sei. Diversa não é, em substância, sobre o mesmo tema, a posição de Pascal, que, depois de indagar se alguém poderá definir a citada noção, observa não ser indispensável tentar fazê-lo, uma vez que todos percebem o que se quer dizer quando se fala no tempo, sem explicitação maior. Detendo-se, entretanto, no exame do problema, acaba por sublinhar que “as definições são feitas unicamente para designar as coisas que se nomeiam e não para lhes revelar a natureza”[77]

Termo genérico, de que não é razoável, segundo o dicionarista, a que me referi, esperar uma definição exata, todos devem perceber, consoante a lição de Pascal, o que se quer dizer com a voz razoabilidade. No campo do Direito, conserva o termo razoável essa amplitude, oferecendo a sua conceituação, diante disso, as dificuldades inerentes ao seu caráter, para falar ainda a linguagem pascaliana, de termo primeiro ou de palavra primitiva, insuscetível, por isso mesmo, de definição, pois esta supõe termos precedentes, que sirvam a explicá-lo. Todavia, no uso jurídico, o vocábulo razoável assume, por vezes, feição relativa ou particularizada, consoante as circunstâncias do discurso ou a acepção especial com que é empregado. “Quando aplicado em relação a medidas legislativas” — explica outro repertório jurídico, — (razoável) “significa dentro de limites próprios, conveniente ou apropriado ao fim que se tem em vista”[78].

Na espécie, cuida-se, precisamente, de saber se a regulamentação, — pois de regulamentação, de modo expresso, se trata — estabelecida pelo ato legislativo acoimado de inconstitucional, se manteve dentro em limites próprios, convenientes ou apropriados ao fim que teve em vista a Carta Política, ou, em outras palavras, se a mencionada regulamentação se efetuou de modo razoável. Demorei-me na análise da questão sem encontrar objeção, que me parecesse válida, aos argumentos pelos quais, com lógica impecável, o Ministro Rodrigues Alckmin demonstra que, ao invés de conveniência entre a proposição constitucional, que assegura o livre exercício, de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer, e o diploma legal que, com base na parte final desse preceito, regulamenta a profissão de corretor de imóveis, o que existe é flagrante e irremediável conflito ou repugnância.

Todavia, não é possível fazer uma avaliação precisa da influência dessa argumentação baseada na razoabilidade no julgamento do processo. Por um lado, apenas Rodrigues Alckmin e Leitão de Abreu fizeram referência expressa ao critério da razoabilidade. Entretanto, dois dos ministros que compuseram a maioria (Eloy da Rocha e Xavier de Albuquerque) votaram com base em um argumento formalista que já havia sido adiantado por Rodrigues Alckmin: sustentaram que o requisito de inscrição em um conselho não pode ser entendido como uma condição de capacidade.

Por fim, o min. Thompson Flores, que havia sido o relator do RE 70.563, afirmou apenas que a invalidação de toda a Lei 4.116/62 era uma conseqüência logicamente necessária do julgamento do referido Recurso Extraordinário. E devemos ressaltar que os trechos do voto de Rodrigues Alckmin citados por Thompson Flores naquele processo não foram aqueles nos quais se fazia referência ao critério da razoabilidade. Tudo isso impede que identifiquemos com clareza quais foram os fundamentos que levaram os demais ministros a acompanharem o voto de Rodrigues Alckmin, especialmente porque esse ministro aliou argumentos de ordem material e formal.

De toda forma, há um ponto que não pode deixar de ser ressaltado nessa utilização da teoria do devido processo legal A introdução do devido processo legal se fez em defesa do postulado liberal da garantia da livre iniciativa e concorrência, com o objetivo de excluir do âmbito de regulação estatal uma certa atividade econômica. Verificamos, assim, que embora a RP 930 tenha sido julgada na década de 60, a teoria do devido processo que influencia o STF é a da Era Lochner, que se encerrou em 1937. Duas décadas após a Suprema Corte ter abandonado o devido processo legal como instrumento de intervenção no campo econômico, o STF utilizou as noções desenvolvidas no início do século para proteger a liberdade do exercício profissional. E também devemos ressaltar que o interesse que motivou a argüição de inconstitucionalidade foi o de que os advogados pudessem intermediar a venda de imóveis relacionados a processos nos quais eles funcionassem, especialmente em questões de inventário e partilha.

8. RE 70.278 (1970)

RE 70.278, julgado em 13.11.1970, rel. min. Adaucto Cardoso.[79]

Em 1946, a administração decidiu fechar a Enfermaria do Hospital São Francisco de Assis, no antigo estado da Guanabara. Paulo Gomes Brandão, que exerceu as funções de chefe da enfermaria por mais de 25 anos, foi afastado do serviço público e, inconformado, ingressou na justiça pedindo a sua reintegração e a reabertura da unidade hospitalar. O tribunal de segundo grau julgou procedente o pedido, determinando a reabertura da enfermaria e assegurando a Paulo Gomes Brandão o direito de exercer a respectiva chefia. A União recorreu ao Supremo, sustentando que a decisão do tribunal atentava contra o princípio da separação de poderes e utilizando como conceito chave da argumentação a idéia de discricionariedade.

[S]e para a prática de determinados atos, a competência da Administração é estritamente estabelecida na lei, que lhe determina quando e como deve agir, em outros casos a lei deixa a autoridade administrativa livre para a prática do ato, não só no que respeita à oportunidade ou conveniência, mas também quanto a escolha da forma ou meio de executá-lo. Esses atos são chamados discricionários e aqueles vinculados. [...]

A faculdade de discernir sobre a conveniência e a oportunidade de manter fechada ou em funcionamento determinada unidade hospitalar é exclusivamente da Administração. [...]

Realmente a decisão posterga o princípio da independência dos Poderes, invADIdo área de restrita competência da Administração Pública, ao mandar reabrir e equipar una enfermaria de hospital, fechada por conveniências do serviço público que o Poder Judiciário não pode examinar, nem julgar.[80]

O julgamento nesse sentido foi unânime, o que reforça o sentido de self-restraint presente na jurisprudência do Supremo, especialmente no voto de Aliomar Baleeiro no RMS 16.912[81].

9. RP 1.054 (1984)

RP 1.054 , julgada em 4.4.1984, rel. min. Néri da Silveira.[82]

Nessa representação, argüiu-se a inconstitucionalidade do artigo 86 da Lei n° 4.215/63, que dispunha:

Art. 86. Os magistrados, membros do Ministério público, servidores públicos, inclusive de autarquias e entidades paraestatais e os funcionários de sociedade de economia mista, definitivamente aposentados, ou em disponibilidade, como os militares transferidos para a reserva remunerada ou reformados, não terão qualquer incompatibilidade para o exercício da advocacia, decorridos dois anos do ato que os afastou da função.[83]

Sustentava-se que esse dispositivo legal — integrante do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil — ofendia o artigo 153, § 23 da Constituição Federal de 1964, que afirmava ser livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições de capacidade estabelecidas em lei. Argumentava-se que o referido artigo criava uma discriminação injustificada, a pretexto de manter a independência profissional e evitar a concorrência desleal. Em defesa da validade do dispositivo, sustentou-se que:

O critério do legislador: oportunidade, conveniência, e política de realizar o bem comum, no caso, protege a magistratura e também os advogados, poderá, por alguns ser considerado severo, justo ou injusto, longos os dois anos, menor ou maior o prazo, mas o critério é do legislador, e, não fere, data maxima venia, a Constituição.[84]

O Relator, min. Néri da Silveira, afirmou:

Assegura a Constituição, portanto, a liberdade do exercício de profissão. Essa liberdade, dentro do regime constitucional vigente, não é absoluta, excludente de qualquer limitação por via de lei ordinária. [...] Mas também não ficou ao livre critério do legislador ordinário estabelecer as restrições que entenda ao exercício de qualquer gênero da atividade lícita. Se assim fosse, a garantia constitucional seria ilusória e despida de qualquer sentido. Que adiantaria afirmar “livre” o exercício de qualquer profissão, se a lei ordinária tivesse o poder de restringir tal exercício, a seu critério e alvitre, por meio de requisitos e condições que estipulasse, aos casos e pessoas que entendesse? É preciso, portanto, um exame aprofundado da espécie, para fixar quais os limites a que a lei ordinária tem de ater-se, ao indicar as “condições de capacidade”. E quais os excessos que, decorrentes direta ou indiretamente das leis ordinárias, desatendem à garantia constitucional. A fixação desses limites decorre da interpretação da Constituição e cabe, assim, ao Poder Judiciário. [...]

E ainda que por força do poder de polícia, se possa cuidar, sem ofensa aos direitos e garantias individuais, da regulamentação de certas atividades ou profissões, vale frisar, ainda, que essa regulamentação não pode ser arbitrária ou desarrazoada, cabendo ao Judiciário a apreciação de sua legitimidade. [...]

Observa, a este respeito, Fiorini (Poder de Polícia, págs. 149 e segs.):

No hay duda que las leyes reglamentarias no pueden destruir las libertades consagradas como inviolables y fundamentales. Cual debe ser la forma como debe actuar el legislador cuando sanciona normas limitativas sobre los derechos individuales? La misma pregunta puede referirse al administrador cuando concreta actos particulares. Si el Estado democrático exhibe el valor inapreciable con caráter absoluto como es la persona humana, aqui se halla la primera regla que rige cualquier clase de limitaciones. La persona humana ante todo. Teniendo en mira este supuesto fundante, es como debe actuar con carácter razonable la reglamentación policial. La jurisprudencia y lógica jurídica han instituido cuatro principios que rigen este hacer: 1º) la limitación debe ser justificada; 2º) el medio utilizado, es decir, la cantidad y el modo de la medida, debe ser adecuado al fin deseado; 3º) el medio y el fin utilizados deben manifestarse proporcionalmente; 4º) todas las medidas deben ser limitadas. La razonabilidad se expresa con la justificación, adecuación, proporcionalidad y restrición de las normas que se sancionen. [...] La jurisprudencia de nuestro país, y en especial la norteamericana, condensa en muchos de sus fallos las cuatro reglas expuestas bajo la denominación de “razonabilidad” aunque no la determinen en forma expressa y positiva.

La razonabilidad, cuando se refiere a la medida dictada por la gestión policial, debe hallarse jusificada, realizada en forma adecuada y sacrificando minimamente los ámbitos individuales. La justa y razonable reglamentación de los derechos declarados como fundamentales para la existencia humana en sociedade, halla en el “due process of law” de la jurisprudencia norteamericana substancial solución sobre este objeto juridico que algunos califican “standard juridico.” [...]

Assenta-se, portanto, que a liberdade de exercício de profissão, se pode ser limitada, somente o pode ser com apoio na própria permissão constitucional ( “observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer”) e de maneira razoável. E ao Poder Judiciário cabe, induvidosamente, em face da lei que regulamenta exercício profissional examinar, à luz desses critérios, a legitimidade da regulamentação.[85]

Todavia, apesar da referência expressa à doutrina argentina — onde o princípio da razoabilidade foi o nome dado ao devido processo legal, importado dos Estados Unidos —, uma passagem posterior deixa claro que o min. Néri da Silveira não admite a possibilidade de um controle de razoabilidade:

Não cuida, de outra parte, o dispositivo impugnado de interditar o acesso ao desempenho da advocacia, de forma definitiva, a todos aqueles a que se dirige, mas, apenas, lhes obsta a atividade profissional de advogado, por um biênio, lapso de tempo esse que o legislador ordinário, em seu juízo, considerou conveniente estipular, desde o afastamento das atividades tidas, legalmente, como incompatíveis com essa profissão. Se os motivos de conveniência para estabelecer esses interstício, entre o afastamento das funções mencionadas no art. 86, do Estatuto, e a possibilidade de início ou retomada do exercício da advocacia, justificam sua extensão, ou não, constitui matéria insuscetível de censura neste juízo de constitucionalidade da regra em apreço, sendo, porém, isento de dúvida que, em seu favor, militaria, ao menos, um critério de razoabilidade, segundo a acepção que lhe emprestou o ilustre Ministro Leitão de Abreu, na Representação 930-DF.

Poder-se-ia, talvez, asseverar que não se justificaria a proibição, quanto a detentores de cargos de menor relevo, como alguns dentre os mencionados no art. 86, do Estatuto. Coube, todavia, ao legislador ordinário, dentro da margem de atuação que a Constituição lhe reserva, formular o juízo de conveniência e de interesse público, que não considero desarrazoado, quanto à inclusão de servidores públicos, civis e militares, que menciona, no âmbito do dispositivo em apreço.[86] [grifos nossos]

Verificamos, assim, que embora Néri da Silveira faça referência à teoria argentina da razoabilidade[87] — retomando uma citação de Fiorini que já havia sido feita por Rodrigues Alckmin em 1976[88] —, a concepção decisiva para a sua tomada de posição ainda é a positivista: caso a decisão do legislador esteja dentro da moldura estabelecida pelo direito positivo, ela é válida. Isso indica que ele utiliza a expressão razoabilidade fora do contexto de um controle de razoabilidade propriamente dito, pois uma regra razoável é aquela que simplesmente encontra-se nos limites do sentido literal possível do direito positivo.

Já a argumentação de Moreira Alves segue por uma outra linha. Em um primeiro momento, este ministro busca estabelecer precisamente um conceito de condições de capacidade para, em seguida, afirmar que o exercício anterior de um cargo público nunca poderia ser enquadrado nesse conceito, pois nada tem a ver com a capacitação do indivíduo para o exercício da profissão. Portanto, a limitação impugnada não seria válida porque a constituição prevê que o único fundamento aceitável para o limite ao exercício de uma atividade profissional é a exigência de capacitação especial. Afirmou Moreira Alves:

Ora, é evidente que, com relação a magistrado inativo não há que se pretender que sofra ele, por causa da inatividade, qualquer redução da independência necessária ao advogado. E propiciação de captação de clientela, como já o demonstrei, não é condição de capacidade de qualquer natureza[89].

Não há igualmente qualquer condição de capacidade que justifica o impedimento, por dois anos, dos membros inativos do ministério público de advogarem contra quaisquer pessoas de direito público ou de atuarem em processos judiciais ou extrajudiciais que se relacionassem abstratamente, de modo direto ou indireto, com as funções do cargo que exerceram ou do órgão a que serviram. A inatividade afasta a alegação de redução de capacidade de independência em face de quaisquer pessoas de direito público; e, no tocante a atuação em processos em que poderia vir a atuar se estivesse em atividade, o impedimento ao inativo não encontra, obviamente, qualquer justificativa sequer de moralidade, até porque o impedimento, nesse particular, pressupõe o exercício das funções do cargo ou do órgão.

E o mesmo se verifica, também, com tabeliães, escrivães, escreventes, oficiais dos registros públicos e quaisquer funcionários e serventuários da Justiça. Qual a condição de capacidade que não é preenchida por eles para ficarem, por dois anos, a partir do início da inatividade incompatibilizados com o exercício da advocacia em qualquer comarca de todo o território nacional?[90] [grifos nossos]

Com isso, Moreira Alves busca afirmar que a lei impugnada é contrária ao texto da constituição, e não que os meios escolhidos pelo legislador não eram adequados para a finalidade que eles buscavam atingir. Por meio de uma interpretação de um dispositivo constitucional, Moreira Alves consegue estabelecer uma contradição direta entre o texto da lei e o texto da constituição — um tipo de argumentação bastante persuasivo e que se repetirá, por exemplo, na RP 1.077, que analisaremos em seguida. Por meio dessa operação hermenêutica, um problema que poderia ter sido enfrentado por meio de um controle de razoabilidade[91] foi reduzido a um problema de constitucionalidade formal, de tal forma que a lei impugnada não foi entendida como uma escolha ilegítima entre as formalmente possíveis, mas como uma escolha inviável porque externa à moldura construída a partir do sentido literal possível da Constituição.

De toda forma, convém chamar atenção para o fato de que Moreira Alves faz referência ao problema da legitimidade, ao analisar a norma segundo critérios de moralidade. Todavia, essa análise é tangencial e acessória, limitando-se à afirmação, sem qualquer justificativa especial, de que somente haveria uma justificativa moral para se os servidores estivessem no exercício regular de suas funções, e não na inatividade. Caso o ministro tivesse dado maior importância a essa linha argumentativa, seu posicionamento provavelmente seria convertido em um controle de razoabilidade propriamente dito. Todavia, verificamos que o problema de legitimidade foi percebido mas relegado a uma questão acessória, o que o coloca como parte dos obiter dicta e não do holding.

O voto de Francisco Rezek também caminha por uma via formalista. Ao invés de atacar a limitação como arbitrária, afirma apenas que a União não pode limitar a possibilidade de exercício profissional de pessoas que não mais estão nos seus quadros ativos. Percebe-se, assim, que Rezek não entende haver um problema de legitimidade, mas de competência.

Oscar Corrêa acompanha o voto do relator por entender que o legislador agiu dentro dos limites constitucionais, que permitiam a limitação do exercício profissional em casos especiais: “a medida pode ser injusta. Ela me parece justa. Posso discordar do critério adotado, mas não vejo contrastar com o § 23 nem com o § 1o do mesmo artigo 153 da Constituição”[92] e não há qualquer ofensa ao princípio da igualdade. Mais uma vez temos uma clara expressão das idéias positivistas de que as apreciações valorativas do tribunal não podem ser critérios válidos para a declaração da inconstitucionalidade.

Por fim, convém destacar o principal argumento usado por Rafael Mayer, pois há uma referência expressa à ligação entre igualdade e razoabilidade, bem como à jurisprudência norte-americana:

Uma discriminação não razoável torna a lei inconstitucional, com se vê inclusive nos precedentes da jurisprudência da Corte Suprema Americana, referidos em precedentes de nossa Corte. Esse aspecto de discriminação em bloco, sem uma razão apoiada na natureza dos fatos e das coisas me convenceu da existência do vício maior.[93]

Temos, aqui, a expressão nítida de um controle de razoabilidade, pois não se afirma haver uma incompatibilidade formal entre a lei e a constituição, mas uma incompatibilidade valorativa. Todavia, percebe-se que essa posição precisa fazer referência aos padrões tradicionais do princípio da igualdade, o que reduz a questão de um tratamento arbitrário a um certo grupo de pessoas a uma questão de isonomia. Esse voto de Rafael Mayer indica que o controle de razoabilidade somente é aceito sem maiores resistências quando efetuado dentro dos limites do princípio da igualdade. Todavia, essa posição ilustra bem o fato de que o âmbito de aplicação desse princípio vem sendo elastecido com o tempo, na busca de fazê-lo abranger situações que somente podem ser caracterizadas como discriminações por meio de um grande esforço hermenêutico. Acreditamos que, na atualidade, o princípio da igualdade tem chegado aos seus limites de elasticidade, o que tem garantido sucesso a alguns esforços de substituir o princípio da igualdade pelo da razoabilidade em certos campos determinados, especialmente o dos concursos públicos[94].

Verificamos nesse caso o início de um conflito entre as concepção positivista que exige a redução de toda questão jurídica a um problema formal — de relação lógica entre normas positivas — e uma percepção acurada de que certas normas podem ser ilegítimas porque contrárias certos valores que devem ser respeitados. Todavia, as preocupações valorativas, por mais importantes que sejam para o desfecho do processo, não transparecem claramente nas opiniões exteriorizadas pelos membros do Tribunal, permanecendo sempre implícitas ou em um segundo plano.

10. RP 1.077 (1984)

RP 1.077, julgada em 28.3.1984, rel. min. Moreira Alves.[95]

Essa representação argúi a inconstitucionalidade da Lei n° 383/80, do Estado do Rio de Janeiro, por força da qual as taxas relativas aos serviços judiciais deveriam ser, em regra, calculadas à razão de 2% do valor da causa — aumentado em 50% caso funcionasse o Ministério Público[96]. Moreira Alves inicia seu voto com um longo argumento no sentido de afirmar que a taxa judiciária é uma das espécies do conceito técnico de taxa no Direito Tributário, a qual é uma espécie de tributo que visa a remunerar o Estado pelos serviços públicos prestados. Em seguida, diferencia taxa judiciária (tributo pago pelo autor para ter direito à atividade dos órgãos judiciários), custas (despesas com os atos que se praticam no curso do processo) e emolumentos (remuneração a que têm direito os funcionários forenses ou auxiliares do juízo, como o perito e o assistente técnico).

A taxa judiciária, inclusive pelo sistema constitucional vigente — em que ela, custas e emolumentos são exclusivamente remuneratórios de serviços prestados pelo Estado — só se justifica como contraprestação à atuação de órgãos da Justiça (assim, o Juiz e o Ministério Público, quando não é parte) cujas despesas não são cobertas por custas e emolumentos. Já com relação aos atos extrajudiciais (que são os de registro ou notariais) estes são integralmente satisfeitos, no tocante a despesas e a remuneração, pelas custas e emolumentos, tanto assim que os Cartórios de Notas ou de Registro não oficializados se sustentam, com larga margem de proveito para seus titulares.[97]

Sendo — como já se acentuou — a taxa judiciária, em face do atual sistema constitucional, taxa que serve de contraprestação à atuação de órgãos da justiça cujas despesas não sejam cobertas por custas e emolumentos, tem ela —como taxa com caráter de contraprestação — um limite, que é o custo da atividade do Estado dirigido àquele contribuinte. Esse limite, evidentemente, é relativo, dada a dificuldade de se saber, exatamente, o custo dos serviços a que corresponde tal contraprestação. O que é certo, porém, é que não pode taxa dessa natureza ultrapassar uma equivalência razoável entre o custo real dos serviços e o montante a que pode ser compelido o contribuinte a pagar, tendo em vista a base de cálculo estabelecida pela lei e o quantum da alíquota por ela fixado.[98] [grifos nossos]

Por isso, taxas cujo montante se apura com base em valor do proveito do contribuinte (como é o valor real do pedido), sobre a qual incide alíquota invariável, tem necessariamente de ter um limite, sob pena de se tornar, com relação às causas acima de determinado valor, indiscutivelmente exorbitante em face do custo real da atuação do Estado em favor do contribuinte. Sobre este julgamento, Gilmar Mendes afirmou que:

Talvez a decisão proferida na Representação n. 1077, de 28.03.84, contenha um dos mais inequívocos exemplos de utilização do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso entre nós, uma vez que do texto constitucional não resultava nenhuma li­mitação expressa para o legislador.[99]

Todavia, não identificamos a ocorrência de controle de razoabilidade nesse caso. Toda a argumentação de Moreira Alves visa a estabelecer um conceito estrito de taxa jurídica, entendendo esse instituto como sendo uma contraprestação a serviços efetivamente prestados. Ora, a necessidade que as contraprestações sejam proporcionais às prestações não tem fundamento no princípio específico da razoabilidade. Trata-se de uma exigência geral de proporcionalidade que permeia todo o Direito e que tem fundamento em noções abstratas e formais de justiça, observáveis mesmo nos quadros do paradigma positivista.

As expressões princípio da proporcionalidade e princípio da razoabilidade designam instrumentos jurídicos para o exercício de um controle de legitimidade das escolhas valorativas dos agentes estatais, no exercício da sua discricionariedade. Não devemos confundir esses princípios com exigências gerais e abstratas de proporcionalidade, razoabilidade, igualdade ou justiça. E, no caso analisado — especialmente no voto de Moreira Alves —, não se trata de um controle de razoabilidade, mas de um controle formal de legalidade. Este ministro propõe um conceito estrito de taxa, no qual está implícita a idéia de retribuição. Ora, se as taxas são contraprestações, então o seu valor deverá ser idêntico — ou ao menos razoavelmente equivalente — à prestação do Estado. Por isso, se o administrador não observa essa regra de equivalência, ele ultrapassa o campo reservado à sua discricionariedade[100]. E essa conclusão pode ser formalmente derivada do conceito de taxa — o que localiza esse raciocínio no controle formal de constitucionalidade[101].

É certo que o Tribunal poderia ter optado por enfrentar o problema utilizando critérios de razoabilidade, ao invés de argumentos meramente formais. Embora a questão pudesse ter sido resolvida por meio de um controle de razoabilidade, temos que ressaltar que o único ministro que acenou com a possibilidade de um controle desse tipo foi Aldir Passarinho, ao considerar que a cobrança da taxa nos termos da lei impugnada poderia resultar uma denegação de justiça[102]. Eventualmente, poderíamos até falar que houve um controle de razoabilidade encoberto por argumentos formais, que são juridicamente menos controvertidos. Sabemos que essa é uma prática possível e até certo ponto corrente. Em um ponto interessante do julgamento do RMS 16.912, o min. Prado Kelly admitiu que, por trás da discussão formal, havia uma questão de fundo que era percebida por todos mas que não era expressamente enfrentada pela maioria[103]. Todavia, não parece adequado caracterizar o fundamento jurídico de uma decisão a partir das suas conseqüências. Embora o resultado do julgamento tenha sido invalidar uma lei que contrariava o princípio da razoabilidade[104], o argumento usado foi meramente formal, fundado nas conseqüências lógicas do conceito técnico-jurídico de taxa. Portanto, não julgamos adequado identificar aqui uma aplicação do princípio da razoabilidade.

11. RE 111.400 (1987)

RE 111.400, julgado em 10.4.1987, rel. min. Carlos Madeira.[105]

O artigo 78, §2o da Lei Complementar n° 35 — Lei Orgânica da Magistratura Nacional — prevê, quanto ao concurso para juiz de direito, que “os candidatos serão submetidos a investigação relativa aos aspectos moral e social, e a exame de sanidade física e mental”. Ao regulamentar o concurso para juiz do Rio de Janeiro, o Tribunal Estadual dispôs que, antes das provas e o exame dos títulos, havia um “etapa” na qual os candidatos precisariam ser aprovados.

Art. 26. Logo a seguir, cada membro da Comissão declarará se o candidato preenche os requisitos de irrepreensível procedimento na vida pública e particular e da capacidade física e mental necessária ao bom desempenho do cargo, de modo a que possa continuar a prestar provas.

Parágrafo único — Essas declarações serão feitas por escrito, mediante as palavras “sim” ou “não”, e conservadas em sigilo idêntico ao das notas, recolhendo-se numa sobrecarta especial, as pertinentes a cada candidato.

Alguns candidatos que foram reprovados nessa fase interpuseram mandado de segurança contra o ato que os reprovara, o qual foi denegado pelo Tribunal sob os seguintes argumentos:

A falta de fundamentação do julgamento por parte de cada membro da Comissão, que se limita a declarar “sim” ou “não, não atenta contra a necessidade de publicidade do concurso. [...] O julgamento acerca do procedimento irrepreensível do candidato na sua vida pública e particular não pode deixar de ser subjetivo, porquanto subentende um confronto com os próprios valores subjetivos e morais dos examinadores, e dos objetivos necessários ao exercício da profissão, e absolutamente nada tem que ver com a exigência de publicidade do concurso. O concurso é necessariamente público — mas não podem e não devem ser públicas as razões ou motivos determinantes do julgamento do examinador, inclusive em razão das singularidades do concurso de ingresso na magistratura, cujo exercício exige certas qualidades e aptidões de natureza moral não tão exigíveis noutras profissões. Eis porque o preceito em apreço é tradicional, tendo sido sempre reiterado em sucessivos Regulamentos de Concurso. E eis porque os candidatos hão de declarar que conhecem e aceitam as suas prescrições.[106]

O STF não acolheu essas razões por dois motivos. O primeiro, de ordem formal, é que a Lei Orgânica da Magistratura exigia uma investigação sob aspectos morais, mas nada dizia sobre uma apreciação de consciência por parte dos examinadores, de forma que o regulamento teria ido além da lei. O segundo motivo, que é o que nos interessa neste trabalho, é que houve violação do princípio da isonomia — do qual o concurso público é um corolário. Manifestou-se assim o ministro Carlos Madeira:

Mais grave que o vício formal, parece-nos, contudo, a inconstitucionalidade material do dispositivo impugnado. [...]

Ora, acentuávamos no memorial referido,” se é certo que o art. 97, caput, admite o condicionamento aos cargos públicos a requisitos estabelecidos em lei, esta não o pode subordinar a pressupostos que façam inócuas as inspirações do sistema de concurso público (art. 97, §1o[107]), que são um corolário do princípio fundamental da isonomia.

Daí, naquele caso — de veto menos ostensivamente arbitrário que o da espécie —, a argüição de inconstitucionalidade receber o aval de eminentes juristas consultados, especialmente de Oswaldo Trigueiro e Seabra Fagundes (cujas conclusões, no particular, originalmente expostas e parecer anterior — RDA 109/280 —foram, então, textualmente endossadas por Hely Lopes Meirelles.

A exigência constitucional do concurso púbico não traduz mera opção pelo procedimento técnico da seleção de servidores capazes, fundada no interesse exclusivo da administração pública. Um dos objetivos do sistema de concursos públicos, acentuou Seabra Fagundes, é democratizar o acesso aos cargos públicos: igualdade de oportunidade para todos, acima e além de influências pessoais.

Ora, advertia o mestre, “o condicionamento final da habilitação de candidatos a juízo estritamente subjetivo da administração, invalida, na prática, o regime de mérito, pois torna inconseqüente a isenção no apreciar as provas de capacidade intelectual. Os aprovados nelas poderão ter o acesso à carreira impedido por ato relacionado com os fatores que o administrador aprecia e julga como livremente entende, ou seja, sem nenhuma vinculação a dados objetivos”.

O perigo da discriminação abusiva não é abstrato. Por isso, com saber jurídico e muita experiência vivida, Trigueiro denuncia o grave risco de violação da própria regra da isonomia: “a pretexto de falta de aptidão, equilíbrio ou sobriedade, a junta responsável pelo concurso poderá, na realidade, discriminar em razão de sexo, raça, credo religioso ou convicção política. Invocando discricionariamente qualquer daquelas razões, a junta poderá fechar as portas do Itamaraty às mulheres (quando estas, numericamente, ameaçarem o predomínio masculino) tanto quanto aos mulatos, aos judeus e aos muçulmanos, aos candidatos oriundos das camadas sociais menos desenvolvidas”.

De sobra, além de inconciliável com a exigência constitucional do concurso público, e com o princípio de isonomia, que a inspira, a eliminação de candidatos, mediante “julgamento de consciência” de uma comissão administrativa — por mais qualificada que seja a sua composição —, esvazia e frauda outra garantia básica da Constituição, qual seja, a da universalidade da jurisdição do Poder Judiciário.

Tanto vale proibir explicitamente a apreciação judicial de um ato administrativo, quanto discipliná-lo de tal modo que se faça impossível verificar em juízo a sua eventual nulidade.[108]

Esse acórdão traz à luz um dos problemas derivados da forma pela qual nossos tribunais tomam suas decisões. Como somente é necessário o acordo quanto ao dispositivo, não se pode saber se o tribunal tomou a decisão por causa do argumento material (o qual o relator expressamente afirmou ser mais importante) ou pelo argumento formal, que foi acolhido no único voto que não se limitou a seguir o relator. Sobre o peso do argumento da violação dos princípios constitucionais, é mesmo interessante verificar a linguagem da ementa deste processo:

Concurso para ingresso na magistratura de carreira. Julgamento de consciência dos membros da Comissão de Inscrição. Ilegalidade.

O julgamento secreto, sem motivação, dos requisitos da irrepreensível vida pública e privada e da capacidade física e mental necessária ao bom desempenho do cargo de Juiz, sendo reiteração arbitrária das provas já feitas, importa segundo juízo, de índole subjetiva, não previsto na Lei Orgânica da Magistratura, que afronta garantias individuais do candidato. Ilegalidade do artigo 26 do Regulamento do Concursos para Magistratura de Carreira do Estado do Rio de Janeiro, da redação de 1981.[109]

Embora o min. Carlos Madeira tenha analisado as escolhas valorativas do legislador e proposto argumentos materiais de inconstitucionalidade — buscando analisar a razoabilidade de existirem decisões administrativas sem fundamentos — a ementa limita-se a apontar a ilegalidade da avaliação subjetiva, que é o argumento formal: a inadequação aos quadros estabelecidos pela Lei Orgânica da Magistratura, e não a questão dos princípios. Esse entendimento parece ser corroborado pela afirmação do relator de que é “patente que a discricionariedade do ato não elide, em nosso sistema, o controle jurisdicional da inexistência material e da inadequação jurídica dos seus motivos, assim como eventual desvio de finalidade”[110].

Esse processo parece marcar uma época de transição. Por um lado, há manifestações expressas no sentido de um controle de razoabilidade. Por outro, ainda há uma tendência muito forte a preferir argumentos meramente formais. É interessante notar que isso ocorre no momento em que o Brasil está em meio a um processo de redemocratização: o Presidente da República, embora eleito indiretamente, já era um civil e estávamos às vésperas da edição da Constituição de 1988.

12. A influência da Ditadura Militar pós-1964

Até o início da década de 90, alguns ministros do STF esforçaram-se por desenvolver um controle de razoabilidade, mas essas iniciativas não tiveram maiores repercussões e o Tribunal continuava a decidir os casos apenas fazendo referência a argumentos formais. É certo que muitas dessas justificativas funcionavam apenas para ocultar, sob um manto de formalismo, os juízos de valor que orientavam as decisões. Alguns autores entendem operações desse tipo como aplicações implícitas[111] ou inconscientes[112] do controle de razoabilidade. Todavia, identificamos nessa operação de camuflagem um indício muito forte de que tal controle não parecia aceitável, que não se podia admitir que um Tribunal invalidasse uma lei por não considerar adequadas as opções valorativas a ela subjacentes. No ano de 1989, Carlos Roberto Siqueira Castro fez um interessante balanço do controle de razoabilidade dos atos estatais:

Nada obstante, vigora no Brasil uma perigosa indisposição, tanto doutrinária quanto jurisprudencial, para o controle meritório dos atos discricionários, de que o ato legislativo é quiçá o exemplo mais expressivo, o que constitui uma autêntica e infeliz tradição de nossa doutrina. [...] Essa excessiva deferência de nossa ordem jurídica às competências discricionárias do Poder Público, notadamente no campo do poder de polícia, bem revela a idolatria do Estado no Brasil e sua feição autoritária, em cujo âmago descansa a proeminência e a incontrastabilidade dos agentes governamentais em face do cidadão comum. Essa distorção institucional resultou em que, a pretexto da incolumidade do mérito dos atos e programas da Administração, importantes aspectos das liberdades civis ficassem à míngua de qualquer proteção. Isto se deu de forma ainda mais acentuada nos períodos ditatoriais que ciclicamente o destino tem imposto ao nosso País. Nesses, sobretudo nos sucessivos governos militares pós-1964, a plataforma desenvolvimentista, respaldada no militarismo, na tecnocracia e no capital estrangeiro, tudo enfeixando o sistema repressivo "autoritário-burocrático'', resultou, no plano jurídico, no fenômeno que poderíamos designar de "administrativização" do Direito Constitucional, que se caracteriza pelo amesquinhamento do ideário e da teoria constitucionalista, cujos venerandos temas foram substituídos pelo binômio "segurança e desenvolvimento", com a colaboração não raro servil e indecorosa de juristas oficiais ligados ao Direito Administrativo, isto sem o menor apreço aos direitos individuais e coletivos em face do Estado. No torvelinho desse autoritarismo jurídico, a Constituição e o remanescente das liberdades públicas nela consignadas, a despeito de toda sorte de atos institucionais e complementares que mutilaram a ambas, acabaram tragadas pelo poder discricionário das autoridades executivas, poder esse que mais se deslumbrou na medida da enganosa e forjada eficiência e dos êxitos governamentais oficialmente propalados, tudo, é claro, na companhia de muita violência institucional e da complacência dos órgãos e instituições competentes para exercer algum tipo de controle sobre a superpresença desse Estado Administrativista que tudo podia e que não devia contas a ninguém. [113]

É oportuno lembrar que, no plano da legislação dita "revolucionária" do período pós 1964, notadamente com o advento do famigerado Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, a judicial review sobre os atos de natureza punitiva e demissória ficou restrita ao exame das formalidades extrínsecas, tendo os nossos Tribunais declinado até mesmo do ofício inarredável de verificarem acerca da existência dos motivos ensejadores dos atos editados por essa via espúria, com isso contrariando concepção doutrinária tradicional e de superior acatamento.[114]

Na realidade, poucos, pouquíssimos foram no direito brasileiro os pronunciamentos que se dispuseram a abrir uma fresta para o horizonte verdadeiramente ilimitado do substantive due process of law, que representa hoje um genuíno aferidor de justiça nas conflitivas relações protagonizadas pelo Estado, de um lado, os indivíduos e a sociedade civil, de outro.[115]

Após o golpe de 64, o único processo em que identificamos uma intervenção do Supremo nas posições mais relevantes do Executivo foi a declaração de inconstitucionalidade de alguns artigos da Lei de Segurança Nacional[116]. Mas esse foi um caso excepcional, e que provavelmente teve um importante papel para que, no ano seguinte, os três ministros de linha mais liberal fossem compulsoriamente aposentados, com base no recém editado AI-5, de 13.12.1968: justamente Victor Nunes Leal, o ministro que defendeu de forma mais consistente um controle judicial do abuso de poder legislativo; Evandro Lins e Silva, o único que alinhou-se a Victor Nunes para exigir uma avaliação material — e não apenas formal — dos atos do executivo no HC 45.232[117], e Hermes Lima. Vale a pena transcrever o testemunho de Victor Nunes Leal sobre essa época:

Nem sempre, nos primeiros anos da Revolução de 1964, foram cordiais, mas, ao contrário, tumultuadas, as relações entre o Supremo Tribunal e o Poder Executivo, influenciado pelo predomínio militar. Culminou essa fase com a aposentadoria compulsória, em 16 de janeiro de 1969, com apoio no Ato Institucional no 5, de três ministros do Supremo Tribunal (Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e este orador), seguindo-se a inativação voluntária de Gonçalves de Oliveira, Presidente, e do decano Lafayette de Andrada.

Já anteriormente — como alternativa desse afastamento que era propugnado em áreas ortodoxas da Revolução — havia o Governo elevado a composição do Supremo Tribunal de onze para dezesseis ministros. Com a ulterior aposentadoria de cinco, sobreveio o Ato Institucional no 6, de 1o de fevereiro desse mesmo ano, que restaurou o número anterior de onze ministros.

Como as vicissitudes da nossa mais alta Corte contribuem para acentuar o seu perfil histórico, pareceu-me que não seria desarrazoado, na comemoração dos nossos cursos jurídicos, relembrar alguns fatos mal conhecidos, ou totalmente ignorados, que ajudam a compor o quadro do relacionamento executivo-judiciário. [...]

De mais graves conseqüências, foi a concessão, pelo Supremo Tribunal, de alguns habeas corpus que deram lugar a protestos do Governo. No caso do Governador Mauro Borges, o Presidente Castello Branco levou a público, em uma nota oficial, a sua inconformidade, mas acatou a decisão. Resolveu, depois, o caso político de Goiás, mediante intervenção federal, seguida de impeachment, pela Assembléia Estadual, que tinham sido caminhos jurídicos lembrados no julgamento da Corte.

De outra feita, tendo havido vacilação no cumprimento de habeas corpus, o Presidente do Supremo Tribunal, em comunicação a um comandante militar, empregou o verbo advertir, com o significado de dar-lhe ciência, ou de notificá-lo das conseqüências jurídicas de eventual desrespeito à decisão. O ilustre militar, de alta hierarquia, reclamou ao Presidente Castello Branco, porque o Presidente da República, e não o Supremo Tribunal, é que tinha competência para adverti-lo, o que equivalia a impor-lhe pena de advertência.

O Chefe de Governo encaminhou o ofício ao Supremo Tribunal e este, em sessão pública, aprovou a resposta do Ministro Ribeiro da Costa. Nela se esclarecia, em termos altos, que tinha havido uma notificação ou intimação, de natureza processual, e não uma advertência de caráter disciplinar; nem havia relações deste gênero entre a presidência da Corte e os Comandos Militares. Com isso se encerrou o mal-entendido e foi cumprido o habeas corpus.

Naqueles primeiros anos da Revolução de 1964 não havia, em algumas áreas do Governo, a nítida compreensão — ou aceitação — de que o papel do Supremo Tribunal não era interpretar as normas constitucionais, institucionais ou legais de acordo com o pensamento ou interesse revolucionário, mas interpretá-las consoante o seu próprio entendimento. Havia reservas, menos ou mais explícitas, à independência do Judiciário, que era, não obstante, um poder da república, justamente o que haveria de dizer a última palavra quanto à inteligência das leis e da Constituição. Chegou mesmo a circular em Brasília voto mimeografado de um juiz de outro tribunal, defendendo aquela posição castrense, o que motivou profunda irritação no Ministro Ribeiro da Costa, Presidente do Supremo.

Mais tarde, certamente, o sistema jurídico da Revolução se foi desdobrando para cobrir a superfície até então ocupada pelo direito anterior, que era de inspiração liberal. E também se ampliaram as situações em relação às quais ficou obstada a apreciação judiciária de atos do Governo.

Quanto ao Presidente Castello Branco, parecia claro o seu propósito de conviver, em mútuo respeito, com o Supremo Tribunal. Por isso, preferiu aumentar-lhe a composição, de onze para dezesseis, a fim de nomear, como nomeou, de uma assentada, cinco novos ministros, todos com qualificação moral e intelectual mais que suficiente. A boa disposição de Castello fora simbolicamente anunciada ao país, desde o começo do seu Governo, quando visitou o Supremo Tribunal, insistindo em se dirigir de forma atenciosa, e até cordial, a cada um dos ministros. Idêntico gesto tiveram — talvez pelo seu exemplo — os sucessivos presidentes militares.

Não obstante, corriam, naquela época, rumores de que o Tribunal seria atingido pela Revolução. Pessoa de minhas relações, que me parecia bem informada, avisou-me que haviam falado ao Presidente — mas não identificou o mensageiro — de um suposto trabalho de três ministros do Supremo Tribunal, entre os quais eu, no sentido de se formar, ali, um bloco hostil ao Governo.[118]

Sabendo dessas informações, Victor Nunes enviou uma sutil mensagem ao Presidente, na qual afirmou que:

Quando rumores de todos os lados inquietavam nosso espírito e nos perturbavam o trabalho, era natural que nos preocupássemos com o destino da nossa instituição, que é fiel do equilíbrio federativo, da harmonia dos poderes, dos direitos individuais e, portanto, chave do regime democrático-representativo em que vivemos. Mas entre essa justificada ansiedade, que sua visita amiga contribuiu para dissipar, e o propósito de articular, entre nós, um grupo oposicionista, vai a distância de um abismo. Qualquer de nós repeliria de pronto essa tentativa, como também a de formar no Tribunal uma bancada governista. Assumir posições políticas, num ou noutro sentido, seria totalmente contrário à missão constitucional do Tribunal, prestigiada por venerável tradição que todos estamos empenhados em preservar.[119]

Tudo isso ocorreu no início do regime militar, tendo a mensagem acima sido datada de 16 de junho de 1964. Durante esse tempo, havia uma grande pressão para que as autoridades constituídas antes do golpe militar fossem afastadas, inclusive os ministros do Supremo. Como testemunhou Aliomar Baleeiro:

Os quadros políticos do Brasil, ligados ao passado, foram gradualmente aniquilados, sobretudo no Congresso, entre 1964 e 1969. Não faltaram pressões para renovação da composição do Supremo Tribunal, visando aos ministros, que, antes de sua nomeação, haviam colaborado nos dois últimos governos.

Algumas delas vieram à luz e tiveram eco até em sessões públicas da Corte. Resistiu a tudo isso o presidente H. Castello Branco, que tinha a esperança de recuperar em prazo breve, a normalidade constitucional, poupando a mais alta Corte do país a medidas violentas, como as de Vargas em 1931 ou as então recentes na Argentina, após a derrubada do General Perón.

H. Castello Branco, leitor assíduo da História, sabia bem que Lincoln obtivera a elevação do número dos Justices, a fim de modificar a posição política da Corte Suprema, predominantemente sulista, em relação a certas medidas militares na Guerra da Secessão, e não ignorava a tentativa de F. D. Roosevelt, em 1937[^122]. A aposentar os juízes, preferiu o precedente norte-americano. Pode ele manter a composição do Tribunal durante ano e meio. Mas os fatos políticos do inverno e da primavera de 1965 mudaram rapidamente as circunstâncias até a crise interna da revolução, em outubro daquele ano.[120]

Assim, em outubro de 1965, a Emenda Constitucional n° 16 e o Ato Institucional n° 2 operaram uma reforma judiciária que elevou de 11 para 16 o número de membros do STF, sob o argumento de que era preciso ampliar o número de ministros em virtude do grande aumento de processos — e um dos ministros que ingressou nessas vagas foi Aliomar Baleeiro, autor do testemunho acima citado. Embora o Presidente Castello Branco não tenha demonstrado a intenção de fazer qualquer ação contrária aos ministros efetivados antes de 1964, a ampliação da composição do Tribunal era um claro movimento para aumentar a influência das idéias revolucionária e do próprio Poder Executivo[121]. O Court packing plan[^125], planejado por Roosevelt para dar um fim à Era Lochner, mas vetado pelo Legislativo americano, foi aplicado no Brasil, sem maiores cerimônias, pelo governo militar. Incidentes como esse provocaram uma série de reações por parte de membros do Tribunal. Em especial, Ribeiro da Costa, então Presidente da Corte, publicou um artigo no qual “conclamava a retornar aos quartéis os militares que se deixaram empolgar pela militância política e pelo gozo do poder”[122]. A resposta do Ministro da Guerra, Marechal Costa e Silva, foi imediata, em um discurso acalorado para oficiais das forças armadas. Segundo Victor Nunes:

O ímpeto de Ribeiro da Costa foi aceitar a polêmica pública, pois não somente ele, mas também o Tribunal, tinha sido atingido. Entretanto, aos seus colegas mais comedidos pareceu evidente que o debate não seria construtivo. A solidariedade mais expressiva que, em um desagravo do Tribunal, devíamos ao nosso presidente, melhor se traduziria em um ato nosso e não dele. As um ato de nossa indisputável competência, que por isso não se pudesse questionar em sua legalidade. Não evitaríamos que viesse a ser criticado sob o ângulo político, mas isso resultaria do seu sentido de desagravo.[123]

A solução encontrada foi prorrogar o mandato de Ribeiro da Costa como Presidente do STF por mais um ano, ato que foi justificado por uma explicação de motivos bastante clara, em cuja redação envolveram-se vários membros do Tribunal:

O Supremo Tribunal Federal, cujas prerrogativas constitucionais estão protegidas pela afirmação de sua independência, não poderia deixar de participar das vicissitudes do momento presente. É quando avulta, com singular envergadura, a figura de seu Presidente, que representa o Tribunal, como Chefe de um dos poderes da República, o Poder Judiciário. Entre seus deveres irrenunciáveis está o de defender a integridade e a competência da instituição, desfazendo incompreensões, alertando os demais Poderes, esclarecendo a nação de que a justiça tem por missão aplicar a Constituição e as leis e resguardar os direitos individuais, com inteira fidelidade aos princípios do regime democrático.[124]

Em outubro de 1967, dentre ministros que compunham o Tribunal no momento do golpe limitar, apenas seis ainda permaneciam no STF: Luiz Gallotti, Gonçalves de Oliveira, Lafayette de Andrada, Victor Nunes, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva[125]. Foi com essa composição que o Tribunal declarou a inconstitucionalidade artigo 48 da Lei de Segurança Nacional, no único julgamento da época em que o STF contrapôs-se frontalmente a uma decisão importante do Executivo. Entretanto, como tratou-se de uma decisão unânime — envolvendo, portanto, o voto dos ministros indicados pelos militares, que compunham a maioria do Tribunal —, não cremos que tal posicionamento possa ser entendido como uma das causas da intervenção do Executivo no STF que ocorreu no início de 1969, por meio do recém editado Ato Institucional n° 5 (AI-5), de dezembro de 1968.

Em janeiro de 1969, com base no AI-5, o Presidente Costa e Silva aposentou compulsoriamente três ministros da Corte — Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima —, fato que provocou a renúncia de outros dois: Gonçalves de Oliveira, o então Presidente da Corte, e Lafayette de Andrada. Podemos sentir amargor nas palavras de Victor Nunes quando ele afirmou que “como as aposentadorias foram decretadas nas férias do Tribunal, a sua tribuna a nenhum de nós ficou disponível, para uma simples declaração — e ninguém tinha sido sequer acusado, nem convocado a defender-se”[126].

Com isso, a composição do Supremo Tribunal tornou-se ideologicamente homogênea: todos os ministros haviam sido escolhidos pelo governo militar. Assim, afastados os membros “indesejáveis”, o Presidente Costa e Silva pôde reduzir novamente o número de componentes da Corte: não era mais necessário evitar que os ministros não alinhados aos “ideais revolucionários” formassem um bloco de oposição ao governo. Assim, por meio do Ato Institucional n° 6, de 1.2.1969, a composição do composição do STF voltou a ser de 11 membros.

Desde esse momento até meados da década de 80, há uma imensa lacuna no tocante ao controle de razoabilidade. Nessa época, o único caso marcante de controle de razoabilidade nada teve a ver com direitos humanos, mas apenas com a liberdade de exercício de profissão e em um caso no qual eram feridos os interesses da influente classe dos advogados[127]. Durante esse período, consolidou-se em nossa cultura jurídica uma extrema deferência ao dogma da separação dos poderes, um respeito quase mítico ao chamado mérito administrativo e à discricionariedade legislativa, idéias bastante condizentes com um regime autoritário no qual as escolhas valorativas dos governantes não podiam sequer ser contestadas pela sociedade, quanto mais anuladas pelo Poder Judiciário.

Capítulo II - O controle de razoabilidade no STF

A ausência quase absoluta de um controle judicial de razoabilidade começou a ser revertida a partir da redemocratização do país, especialmente com a entrada em vigor da Constituição de 1988, que é caracterizada por uma grande valorização dos direitos fundamentais e pela tentativa de estabelecer critérios mais rígidos para o controle das atividades estatais, especialmente com vistas a evitar os abusos cometidos durante a Ditadura Militar. Não tardou muito para que o Supremo Tribunal Federal começasse a oferecer respostas a essas propostas inovadoras — embora devamos admitir que até o presente momento a atuação do STF no controle de razoabilidade é bastante tímida, como resultado da postura self-restraint dominante no Tribunal.

1. ADI(MC) 223 (1990)

ADI(MC) 223, julgada em 5.4.1990, rel. min. Paulo Brossard.[128]

a) Descrição dos argumentos

A importância desse processo é ressaltada pelo min. Paulo Brossard, de forma enfática, logo nas primeiras linhas do relatório:

O caso é de singular gravidade e importância. Desprezados aspectos circunstanciais, ele nos coloca diante desta indagação: a Constituição ontem promulgada solenemente e jurada publicamente está em vigor e a todos obriga ou é mero ornamento, a ser observada si et in quantum, conforme as conveniências e oportunidades?[129]

Por meio desse processo foi impugnada a Medida Provisória n° 173/90, que vedava a possibilidade de concessão de liminares em mandados de segurança e em ações ordinárias e cautelares, bem como a execução das sentenças antes do trânsito em julgado, quando as ações se relacionassem a um certo grupo de medidas provisórias — uma dezena de medidas, que formavam o coração do plano econômico do governo baixado em março de 1990 pelo presidente Fernando Collor de Mello, recém empossado. Embora o caso fosse muito complexo, por exigir o exame de mais de cem dispositivos, Paulo Brossard reconheceu que a petição inicial tratou o árduo tema com extrema ligeireza, o que deixou todo o trabalho de análise por conta do STF.

A proibição, em abstrato, da concessão de medidas provisórias em alguns casos, não era inédita — nem mesmo atípica — no Direito brasileiro. No entanto, foi a primeira vez em que se operou uma vedação tão ampla. Mas, além da vedação de liminares, houve a proibição da execução de sentenças sem trânsito em julgado, o que podia estender muito a duração dos processos. É certo que a medida não excluiu da apreciação do Judiciário, de forma absoluta e terminante, os temas referidos. No entanto, ao proibir as liminares e as execuções provisórias, ela posterga a execução das sentenças “a uma data incerta e o diferimento da proteção judicial pode acarretar a consumação da ameaça e a irreparabilidade do dano”[130]. E, em alguns casos,

[...] qualquer procrastinação significaria o abandono do cidadão ao arbítrio da autoridade, sem que se pudesse levantar o escudo protetor da lei maior na defesa do seu direito, condenado por medidas de duvidosa constitucionalidade ou transparente inconstitucionalidade.

Estabelecer, sumariamente, que em tais ou quais situações, o cidadão não poderia obter o benefício supremo da lei com a celeridade, de ordinário, possível, importaria, de fato, em reconhecer que é ilusória, porque tardia, a proteção judicial, e a tábua de direitos individuais se transformaria em mero adorno, como essas flores artificias, que servem para todas as estações e quaisquer solenidades.[131]

Interessante é observar que o voto de Paulo Brossard não faz qualquer referência à razoabilidade, à proporcionalidade ou ao devido processo. Entretanto, parece claro que estamos frente a um controle de razoabilidade. O Poder Executivo editou uma medida provisória com um objetivo muito claro: evitar que a concessão de liminares inviabilizasse o Plano Collor. E devemos ressaltar que um mero juízo de adequação entre meios e fins seria absolutamente inútil nesse caso, dado que o meio utilizado é idôneo para alcançar a finalidade da norma. Por isso, toda a argumentação de Paulo Brossard volta-se para outro ponto: a demonstração de que a finalidade do Executivo era ilegítima, na medida em que contrária aos valores constitucionais.

[A] Constituição arrola entre os direitos sociais a “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”, art. 7o, VI. Não me parece prudente impedir, praticamente, o uso do mandado de segurança para proteger direito líquido e certo a respeito de salário. Eu não teria inserido essa cláusula na Constituição, porque os ciclos econômicos têm o capricho de desafiar e afrontar o legislador. Mas o legislador quis e esculpiu a norma na lei fundamental e só me cabe respeitá-la e cumpri-la. De modo que afasto a incidência da Medida Provisória n° 173 quanto à de n° 154 [que institui novo sistema de reajuste de preços e salários], no que se refere ao mandado de segurança.

As demais medidas. [...] apresentam um elemento comum. Todas versam matéria tributária, direta ou indiretamente. [...] Se o contribuinte está obrigado a pagar o imposto, legalmente definido e regulado, é claro que ele não está obrigado a sofrer um desfalque em seu patrimônio, que a tanto significa o desembolso de uma quantia indevida, e tem ele o direito, líquido e certo, de resistir à exigência ilegal. [...] Não me parece que seja lícito diminuir o mandado de segurança, que supõe direito líquido e certo, inclusive em matéria constitucional, como é a que está em causa. [...] Como privar o contribuinte de defender-se com eficácia, podando o mandado de segurança de suas virtudes específicas, que dele fazem uma ação sumaríssima [...]?

Para chegar-se a esses desvios, é preciso recorrer ao subsolo do Estado Novo. Como se sabe, criado pela Constituição de 34 e disciplinado pela Lei n° 191, de 1936, o mandado de segurança foi esquecido pela Carta de 37. O Código de Processo Civil, de 1939, cuidou dele, mas o fez à sua maneira. Não o admitiu contra ato do Presidente da República, de Ministros de Estado, Governadores e Interventores (art. 319) acrescentando que “não se dará mandado de segurança quando se tratar: de impostos e taxas, salvo se a lei, para assegurar a cobrança, estabelecer providências restritivas da atividade profissional do contribuinte” (art. 320, IV). Afinal, era o Código do Estado-Novo. Isto para não falar num passado mais recente e ainda mais triste, quando o Executivo, de maneira absoluta e terminante, afastou majestaticamente, a sindicabilidade dos seus próprios atos por parte do Poder Judiciário, AI 2, art. 19, AI-5, art. 11. Este expedientes, compreensíveis àqueles tempos de ditadura pura e simples, não me parecem compatíveis com o regime constitucional.[132]

Já o min. Celso de Mello não afirma que a finalidade da norma é ilegítima. Ele admite implicitamente que são possíveis limitações ao direito de tutela jurisdicional — recusando expressamente apenas a sua eliminação. Afirma ele em seu voto:

[O] direito ao processo constitui, ele próprio, expressão das liberdades públicas, ineliminável por ato estatal.[133]

A medida presidencial impugnada fere, a meu ver, a instrumentalidade do processo cautelar, pois virtualmente neutraliza, em situações de grave e iminente perigo para o direito da parte, os próprios fins institucionais a que se destina. Com a interdição decretada pelo ato ora questionado, torna-se possível consolidar, de modo irreversível — circunstância essa que se revela extremamente grave — a lesão causada ao direito material do autor.

É preciso acentuar que limites de ordem ética (prudente discrição judicial) e de ordem jurídica (meios institucionalizados de contracautela, previstos no ordenamento legal) atuam como causa de contenção de eventuais abusos cometidos pelo magistrado no desempenho do seu poder cautelar geral. Já existem, desse modo, em nosso direito, mecanismos de proteção e de preservação dos legítimos interesses do Estado, quando potencialmente ameaçados.[134]

Embora admita, em abstrato, a possibilidade de limitações à concessão de liminares, Celso de Mello sustenta que tais limitações devem ser justificadas e argumenta que há no ordenamento jurídico suficientes limites ao poder de cautela — o que tornaria desnecessária a instituição dos limites previstos na MP 173/90. Além disso, Celso de Mello utiliza um outro topos importante: a manutenção dos dispositivos impugnados dá margem à impossibilidade de o Judiciário corrigir uma lesão a direito, o que implica a exclusão, em certos casos, não apenas do direito à prestação cautelar, mas do próprio direito ao processo. E implícito está nessa colocação que o interesse público de evitar abusos na concessão de liminares tem um peso menor que o princípio de acesso à justiça. Mais uma vez, temos uma referência direta à regra de amplo acesso ao Judiciário, mas nenhuma menção ao devido processo legal ou ao princípio da razoabilidade. Tampouco invocou tais conceitos o min. Sepúlveda Pertence, que defendeu postura diversa dos votos precedentes e inaugurou a linha que viria a ser majoritária. Afirmou ele:

O caso — e isso ficou evidente nos dois magníficos votos que acabamos de ouvir — não é apenas juridicamente de extremo relevo; ele é institucionalmente preocupante, por suas implicações com o eventual cerceamento, e por medida provisória, da plenitude do controle jurisdicional da legitimidade da ação do Poder Público, que é uma das marcas mais salientes do nosso regime. [...]

A inovadora alusão à plenitude da garantia jurisdicional, não apenas contra lesão mas também contra a ameaça a direito, não pode ficar sem conseqüências, como se se tratasse de um mero reforço retórico. Ela dá ênfase à função preventiva da jurisdição. [...]

Agora, eu não sei realmente como dizer, como imaginar, em um laboratório, o que pode surgir de mandados de segurança, ações ordinárias, ações cautelares decorrentes de medidas provisórias que cuidam de temas tão diversos como a extinção e dissolução de entidades da Administração direta e indireta; que se metem em relações de Direito Econômico — desde relações de direito econômico público até relações privadas, ao estabelecer normas de reajustamento de preços e salários —, que reforma, a fundo, numerosas leis de regência dos principais impostos federais: e finalmente a grande Medida de Reforma Monetária. [...] [O] que me choca, realmente, na Medida Provisória 173, são a generalidade e a imprecisão. Não se trata apenas de proteger leis de emergência. Repito: se fez uma reforma, que eu não tenho como avaliar neste momento as suas repercussões, uma reforma diversificada da Legislação Tributária Federal e até se chegou ao Direito Privado, ao Direito Cambial. [...]

Por isso, Senhor Presidente, depois de longa reflexão, a conclusão a que cheguei, data venia dos dois magníficos votos precedentes, é que a solução adequada às graves preocupações que manifestei — solidarizando-me nesse ponto com as idéias já manifestadas pelos dois eminentes Pares — não está na suspensão cautelar da eficácia, em tese, da medida provisória.

O caso, a meu ver, faz eloqüente a extrema fertilidade desta inédita simbiose institucional que a evolução constitucional brasileira produziu, gradativamente, sem um plano preconcebido, que acaba, a partir da Emenda Constitucional 16, a acoplar o velho sistema difuso americano de controle da constitucionalidade ao novo sistema europeu de controle direto e concentrado. Mostrei as dificuldades que vejo na suspensão cautelar da eficácia da própria lei em tese. [...]

Assim, creio que a solução estará no manejo do sistema difuso, porque nele, em cada caso concreto, nenhuma medida provisória pode subtrair ao juiz da causa um exame da constitucionalidade, inclusive sob o prisma da razoabilidade das restrições impostas ao seu poder cautelar, para, se entender abusiva essa restrição, se a entender inconstitucional, conceder a liminar, deixando de dar aplicação, no caso concreto, à medida provisória em que, em relação àquele caso, a julgue inconstitucional, porque abusiva.[135]

Esse último parágrafo é o que nos interessa de forma mais específica. Observemos a linguagem utilizada: o Judiciário pode utilizar o conceito de abuso para declarar a inconstitucionalidade de um ato normativo — no caso, uma medida provisória. E quando se deve considerar abusiva uma restrição? Segundo Sepúlveda Pertence, quando elas não forem razoáveis. Aquilo que não é razoável é abuso e, por isso, é inconstitucional. Vemos aqui uma retomada dos conceitos utilizados pelo min. Victor Nunes Leal, mais de duas décadas antes. E vemos também a grande preocupação de marcar a diferença entre o atual sistema constitucional e as regras vigentes nas épocas de ditadura — seja o Estado Novo, seja o regime militar pós-64.

Além disso, devemos ressaltar a percepção dos limites do controle abstrato de constitucionalidade. Sepúlveda reconhece explicitamente que a generalidade da vedação instituída pela MP n° 173/90 pode se mostrar arbitrária em vários casos concretos. Todavia, a simples exclusão desses limites daria margem a outras arbitrariedades — essas por parte do Judiciário, e que poderiam colocar em risco um programa político crucial para a vida do país. E, na busca de encontrar uma solução que harmonize os interesses em jogo, Pertence propõe a utilização de um modelo de controle mais adequado para lidar com as peculiaridades de cada caso: o controle concreto realizado pelo sistema difuso. E essa engenhosa solução vai ser apoiada pela maioria dos membros do Tribunal.

Devemos ressaltar que o STF se encontrava em um dilema político-jurídico de dificílima solução, e quem melhor expressou a angústia dos membros do Tribunal foi o min. Sydney Sanches, que traduziu em seu voto tensão que envolveu esse julgamento e as grandes incertezas que havia na época — tanto referentes aos resultados do Plano Collor quanto relativas às possíveis conseqüências da declaração da inconstitucionalidade da MP n° 173 — e demonstrou uma consciência clara da responsabilidade política do Supremo Tribunal Federal:

Preciso, também, levar em consideração o requisito do periculum in mora. E aqui fico entre dois perigos. O perigo de eventual lesão a direitos individuais e o perigo de perecimento da própria Nação, diante da devastação econômica e da decadência social que a vinham afligindo. Pode um juiz da Suprema Corte preocupar-se com aspectos políticos levados em consideração na elaboração das leis, incluídas as medidas provisórias?

Penso que pode e deve.

A preocupação política do juiz, quando alimentada e exteriorizada com idealismo, sem partidarismos, sem facciosismos, só pode valorizar a sua meditação de conteúdo meramente técnico jurídico.

Diante desse quadro, pergunto a mim mesmo: qual o mal maior? Permitir expressamente as medidas liminares que porão por terra um plano político-econômico, que, se tem as imperfeições próprias da elaboração humana, não deixa de ter o nobre propósito de tentar um retorno à estabilidade econômica e social e um recomeço de desenvolvimento? Ou tolerar, temporariamente, que essas medidas não sejam permitidas, ao menos enquanto se desconhecem os efeitos do plano, se vier a ser aprovado pelo Congresso Nacional?

Vejo-me diante desse dilema. E confesso que, como juiz, como militante do direito, como entusiasta da Justiça, sempre sinto imenso amargor quando de alguma forma se limita a atuação do Poder Judiciário. Mas será que esse cerceamento temporário não se justifica, ao menos em homenagem ao interesse maior da nação, que não vive só de Judiciário?

Sei que nos encontramos diante de uma decisão dificílima. Seja sob o aspecto jurídico, seja sob o aspecto político. Essa decisão mais difícil ficou, diante da autoridade moral e intelectual dos eminentes Ministros Paulo Brossard e Celso de Mello, o primeiro não tolerando cerceamento de liminares em mandados de segurança, e o segundo não tolerando cerceamento de liminares de um modo geral.

Vou ficar com a solução que, salvo melhor juízo, a mim me parece mais interessante para o País, mais prudente para a Nação, mais atenta ao profundo sentimento de brasilidade, que ocupa o coração de todos nós. Não desprezo outra circunstância: toda a coletividade brasileira foi, de uma forma ou de outra, atingida pelas Medidas Provisórias de que se trata e, no entanto, segundo pesquisas de opinião pública, ainda as prestigia. Não sei até quando, é verdade.

Essa solução desvela um outro aspecto de conveniência: é que ficará entregue ao Congresso Nacional, formado, apenas e tão-somente, por homens e mulheres escolhidos pelo Povo, em eleições livres e soberanas, o poder de acolher, ou não, a medida agora impugnada, de rejeitá-la, até por inconstitucionalidade, se assim lhe parecer, ou de emendá-la segundo as conveniências que encontre. E isso nos próximos dias.

Penso que o Supremo Tribunal Federal, deferindo a medida cautelar aqui pleiteada. [...] estará até estimulando a concessão de medidas liminares por todos os Juízos e Tribunais e com isso contribuindo, ainda que involuntariamente, para jogar por terra as esperanças de todo o Povo, de uma recuperação econômica e social, ao menos a médio ou até a longo prazo.

É claro que tais esperanças podem desvanecer no torvelinho das circunstâncias (maxime quando os conflitos de interesses acabam ditando as soluções históricas), ainda que ocorra a preservação do plano que ora se submeta ao Congresso Nacional, pois ele próprio pode ser mal sucedido. É impossível, porém, a esta altura, um prognóstico a respeito.

Não é improvável que eu próprio me arrependa, um dia, de estar votando, como voto agora, premido pelo dilema a que me referi. Mesmo em se tratando de simples medida liminar. Mas voto com a consciência jurídica tranqüila. E com a consciência política esteiada na fé e na esperança de um Brasil melhor para todos os brasileiros e para os que aqui vivem.

Indefiro a medida liminar, [...] acompanhando, pois, com esses fundamentos, o voto do eminente Ministro Sepúlveda Pertence. [136] [grifos nossos]

O min. Célio Borja também indeferiu o pedido de liminar, mas sem admitir expressamente motivações políticas. Adotou esse ministro o argumento de que “os atos de autoridade pública são suscetíveis, em tese, de lesar direitos individuais — e lesá-los gravemente. Não basta, porém, a mera potencialidade do dano para que se antecipe a tutela judicial, mas é mister seja ele iminente e irreparável”[137].

Já o min. Octavio Gallotti argumenta que se deveria optar pela solução cujas potenciais conseqüências danosas fossem menos graves. A proibição em abstrato das liminares apenas adiaria o resultado das ações, o que não deveria afetar a eficácia das sentenças transitadas em julgado. Já a concessão abusiva de liminares criaria uma situação dificilmente reversível, o que justifica a sua opção por essa saída.

O min. Aldir Passarinho não considerou que havia qualquer violação ao preceito constitucional de plenitude da jurisdição. Entendendo que o caso em exame não diferia substancialmente de todas as outras limitações — tradicionalmente aceitas — afirmou que “o excesso de liminares, com resultados danosos para a economia pública, em várias ocasiões da vida nacional, é que sempre motivaram as leis que as impediam, na salvaguarda de interesses maiores do país. Na espécie dos autos, tais interesses são ainda de maior relevo, pelo que possam significar para os resultados do Plano”[138].

Já o voto do min. Moreira Alves, dado em seguida, interessa-nos expressamente pela sua referência direta ao devido processo legal. Embora Celso de Mello tenha feito referência apenas indireta ao devido processo — quando falou em garantia do direito ao processo — e Sepúlveda Pertence não tenha argumentado com base no due process, Moreira Alves reconstrói esses dois votos da seguinte forma:

O Sr. Ministro Celso de Mello, por concordar com o relator quanto à extensão da inovação contida no inciso XXXV do artigo 5o da Constituição (a alusão à ameaça a direito) e por entender que a vedação da concessão de liminares vulnera o processo cautelar, que é uma das três espécies de processo existentes, o que a torna inconstitucional em toda a sua extensão, inclusive sob o aspecto do *due process of law*, conclui pela concessão integral do pedido; e, finalmente, o Sr. Ministro Sepúlveda Pertence, considerando que, em tese, a vedação de concessão de liminar não é inconstitucional, só sendo quando desarrazoada, em face do princípio constitucional do devido processo legal — o que, no caso, é de difícil apreciação em ação direta de inconstitucionalidade de medida provisória que se reporta a uma série de outras cuja inconstitucionalidade não está em causa —, indefere a liminar requerida.[139]

O interessante é que Moreira Alves utiliza essa reconstrução[140] dos argumentos para afirmar que o devido processo legal, expressamente garantido na Constituição, configura uma exigência de racionalidade mínima dos atos de governo. Em seguida, afirma que a limitação às liminares e cautelares não é completamente desarrazoada e que, portanto, não caberia declarar a sua inconstitucionalidade com base nesse dispositivo. Por essa ser uma das únicas referências ao devido processo legal, vale a pena transcrever o raciocínio de Moreira Alves:

Começo pelo princípio constitucional do due process of law, oriundo do direito norte-americano, de conceito tão impreciso que o Justice Felix Frankfurter chegou a afirmar que a sua essência não admite os limites inseguros de uma conceituação; que os exemplos de suas aplicação e de seus significados em manual jurídico como o Words and Phrases, editado em 1940, em Mineápolis, ocupam mais de uma centena de páginas; e que o verbete respectivo do Novissimo Digesto Italiano não é assinado por jurista italiano ou norte-americano mas por um “cientista político”. E mais: conceito que tem variado no tempo, perdendo seu significado primitivo (que foi acolhido nos USA por cerca de um século) restrito ao campo dos procedimentos irregulares e iníquos das autoridades executivas e judiciárias especialmente no terreno processual penal, para, paulatinamente, passar a permitir que o Poder Judiciário declare, como inconstitucionais — e nos Estados Unidos da América só há esse controle no caso concreto —, leis que se apresentem de tal forma aberrantes da razão que possam ferir, indiretamente, direitos constitucionais. Ora, parece difícil sustentar-se que vedação de medida liminar quanto a relações jurídicas resultantes de plano econômico de emergência — e ninguém nega que o país atravessa a mais grave crise econômica de sua história até pelas condições que os tempos modernos apresentam —, quer em mandado de segurança, quer em ação ordinária ou em ação cautelar, seja tão aberrante da razão que se afigure desarrazoada, quando é certo que, há mais de trinta anos — inclusive sob a vigência da democrática Constituição de 1946 —, as liminares em mandado de segurança (que era instrumento processual constitucional inscrito entre as garantias individuais) foram restringidas amplamente por uma série de leis sucessivas (a última das quais decorrente de conversão de medida provisória), inclusive com referência à liberação de mercadorias, bens ou coisas de procedência estrangeira em geral, e quanto a prestações de natureza alimentar como pagamento de vencimentos de servidores públicos, vedações essas se impuseram, não em razão da natureza mesma dessas relações jurídicas, mas, precipuamente, por suspeita de que o Poder Judiciário tornasse de uso comum o abuso de concessões que, na época, se fizeram.[141]

O esforço de Moreira Alves para conferir um conteúdo próprio à previsão constitucional da garantia do devido processo é louvável. No entanto, a reconstrução que ele fez dos votos de Celso de Mello e de Sepúlveda Pertence, afirmando que eles estão a usar o critério do devido processo, não nos parece adequada — especialmente quanto a esse último, pois o primeiro ainda chega a falar de direito ao processo, o que pode ser entendido como uma alusão indireta ao procedural due process. Mas o argumento básico de ambos esses votos é a questão do acesso à justiça, que não pode ser reduzido — ao menos sem uma justificativa consistente — ao devido processo.

Observemos também que o conceito que Moreira Alves apresenta de devido processo legal é bastante restritivo. Embora aponte a passagem do procedural para o substantive due process, não reconhece a possibilidade de se utilizar esse conceito para anular as leis que forem contrárias aos princípios constitucionais, a não ser quando sejam absolutamente “aberrantes da razão”. Essa forma de colocar o devido processo indica uma grande dose de self-restraint, pois estabelece limites muito estreitos ao controle de legitimidade. Muitas coisas podem não ser razoáveis no entendimento do Tribunal e nem por isso podemos qualificá-las de “aberrantes da razão”.

Não parece que possamos qualificar a limitação do poder cautelar como uma aberração frente à racionalidade, embora vários tenham sido os ministros que a consideraram ilegítima. Além disso, devemos notar que o conceito de devido processo legal expresso por Moreira Alves é bem mais restrito que o conceito de due process of law utilizado pela Suprema Corte norte-americana. Mesmo após 1937, a Suprema Corte tem reconhecido uma amplitude muito grande à garantia do devido processo.

Embora o controle do campo econômico tenha diminuído, cresceu gradativamente a aplicação do instituto no âmbito social. Também devemos notar que o devido processo ainda é um teste que se desenvolve por meio de dois padrões distintos: razoabilidade mínima e escrutínio estrito. Mesmo que haja tendências para unificar esses testes — ou ao menos evitar uma distância tão grande entre eles —, há limitações que são avaliadas de forma mais estrita que outras.

E Moreira Alves não enfrentou devidamente a questão crucial do processo: o problema da legitimidade da restrição. O seu argumento limita-se à afirmação de que a cultura jurídica brasileira há muito admite limitações à concessão de liminares e que, portanto, o estabelecimento de uma nova limitação — especialmente em um momento de crise — não pode ser considerado como aberrante da razão. Trata-se de uma argumentação metodologicamente problemática, na medida em que se utiliza a jurisprudência pré-constitucional como critério para a interpretação da Constituição atual — especialmente quando consideramos que o julgamento ocorreu em abril 1990, apenas um ano em meio após a promulgação da Carta de 1988 e que, durante esse lapso, não houve tempo para que fossem rediscutidas as antigas posições do STF à luz da nova ordem constitucional.

Moreira Alves também não discutiu as diferenças entre o contexto político atual e o que inspirou a maior parte das limitações até hoje vigentes — ponto que foi levantado tanto por Paulo Brossard como por Sepúlveda Pertence. Além disso, foi ressaltado por vários ministros que a questão problemática não era a possibilidade de instituir limitações, mas a validade de uma limitação tão ampla e relativa a dispositivos de constitucionalidade tão duvidosa. Ainda assim, o argumento de Moreira Alves deu motivos para que elas recebessem o mesmo tratamento das restrições anteriores, sem levar em conta as diferenças entre elas.

Assim, identificamos novamente a influência das concepções positivistas: Moreira Alves não analisa a questão da legitimidade das leis impugnadas, limitando-se a afirmar que restrições ao poder cautelar do juiz são admissíveis no ordenamento jurídico brasileiro. Já que restrições dessa espécie são formalmente aceitáveis, cabe ao legislador decidir se é oportuno ou conveniente estabelecê-las, desde que não sejam “aberrantes da razão”[142].

b) Dificuldades inerentes ao processo de tomada de decisão no STF

Estamos frente a um caso claro de controle de razoabilidade. De todos os ministros que se manifestaram, apenas Célio Borja furtou-se de analisar as opções valorativas do Executivo e utilizou um argumento meramente formal, ao afirmar que é pressuposto da concessão de liminar a iminência do dano e não apenas a sua potencialidade. Todos os outros ministros manifestaram seus juízos de valor sobre a opção valorativa subjacente à MP n° 173/90.

Paulo Brossard afirmou que a finalidade da norma era ilegítima. Celso de Mello sustentou que a restrição era desnecessária e que, nesse caso, deveria ter precedência o princípio do acesso ao Judiciário. Sepúlveda Pertence reconheceu que os limites impostos pela MP poderiam mostrar-se ilegítimos, mas apenas quando avaliados frente às peculiaridades do caso concreto. Sydney Sanches ponderou cuidadosamente os interesses políticos em jogo. Octavio Gallotti, avaliando o peso dos valores em jogo, propôs o topos de que deveria ter prevalência a solução que não gerasse resultados irreversíveis. Aldir Passarinho e Moreira Alves julgaram que as finalidades da norma e a gravidade da situação justificavam as restrições impostas.

Por um lado, essa pluralidade de argumentos reforça a tese de que o controle de razoabilidade pode operar-se por meio de vários conceitos. Por outro, ele ilustra muito bem as imensas dificuldades que o modo de tomada de decisão do Supremo Tribunal Federal acarreta para a fixação de critérios jurisprudenciais de tal controle. Cada ministro utilizou uma fundamentação diferente, e não há qualquer esforço para a uniformização dos argumentos — não existe sequer a tentativa de definir uma linha jurisprudencial consistente.

Além disso, os votos denunciam a quase inexistência de comunicação: eventualmente há um elogio, mas mais por estilo que por necessidade. Apenas Moreira Alves fez menção aos argumentos utilizados por dois dos ministros que votaram antes dele — Pertence e Celso de Mello —, mas a essa descrição não se seguiu nenhum comentário, nenhuma crítica. Percebemos que não há um diálogo entre posicionamentos diversos, mas apenas uma justaposição de votos.

O resultado desse processo é que há uma solução para o caso concreto, mas não podemos extrair do acórdão uma interpretação consistente da Constituição. Considera o Tribunal que as restrições impugnadas violam o direito de acesso ao Judiciário? Considera que as soluções que geram resultados irreversíveis devem ceder lugar àquelas cujas conseqüências podem ser mudadas? Considera que as leis “aberrantes da razão” são contrárias ao devido processo legal? Reconhece os limites do controle abstrato de constitucionalidade? Nenhuma dessas perguntas pode ser respondida adequadamente, pois apenas alguns ministros posicionaram-se sobre elas. Não é possível extrair desse acórdão algo como o posicionamento do Tribunal sobre a questão julgada.

Parece razoável que o Legislativo adote um processo de decisão dessa natureza[143], pois são vários os interesses em jogo e várias as motivações que podem levar alguém a apoiar ou combater. O resultado é que não é possível identificar qual a vontade do legislador histórico — mas isso não causa muitos problemas porque as decisões legislativas não precisam ser motivadas. O contrário ocorre quanto aos atos judiciais, que devem ser fundamentados.

Qual o fundamento do voto de Moreira Alves ou de Celso de Mello? Isso nós podemos identificar e consideraríamos absurda a ausência de qualquer motivação no voto de qualquer ministro. Mas qual é o fundamento da decisão do Supremo? A essa pergunta não temos possibilidade de oferecer uma resposta adequada. E não teríamos mesmo no caso de uma decisão unânime, já que o “voto com o relator” significa apenas uma adesão à decisão, e não aos fundamentos apresentados.

Embora estejamos familiarizados com esse procedimento, não se trata do procedimento judicial típico, seja na tradição romano-germânica, seja no common law. Inicialmente, a Suprema Corte norte-americana adotava procedimento semelhante. Mas, no início do século passado, por influência do Chief Justice John Marshall, que entendia que a ausência de um posicionamento único prejudicava o prestígio das decisões, passou-se a julgar cada processo com uma opinião da Corte, embora fosse reservada aos juízes a liberdade de manifestar suas opiniões individuais, sejam concorrentes ou dissidentes.[144]

Na Alemanha, a necessidade de uma decisão única era ainda mais rígida. Apenas em 1971 os juízes conquistaram o direito de oferecer opiniões dissidentes — que, na Alemanha, só são permitidas no BVerfG, e em nenhum outro tribunal[145]. Em ambos os casos, exige-se dos juízes uma efetiva troca de opiniões e uma tentativa de formar um consenso entre os membros da Corte — sem o qual a decisão é impossível.

c) Apreciação de cautelares e liminares

Quanto a esse processo, convém ainda fazer uma última observação. É interessante notar a freqüente referência à razoabilidade nas apreciação pelo STF de medidas cautelares e pedidos de liminar em ações diretas de inconstitucionalidade. Note-se que esses casos não envolvem um controle de razoabilidade de atos estatais, mas a fixação dos parâmetros que o Supremo elege para praticar seus próprios atos discricionários. É bastante delicada a avaliação da conveniência de se suspender liminarmente a eficácia de uma norma jurídica, e para orientar sua própria conduta nesses casos o STF vem utilizando o critério da razoabilidade. Em vários desses casos, fala-se de razoabilidade como equivalente à plausibilidade jurídica do pedido, como critério para avaliar a viabilidade da suspensão provisória da vigência do ato normativo impugnado.

Na ADI(MC) 1.047, rel. min. Sepúlveda Pertence, julgada em 25.03.1998, considerou-se razoável a alegação de competência privativa da União para legislar sobre registros públicos e esse foi um dos elementos que levou à suspensão de lei estadual sobre a privatização de serventias oficiais. Observemos, contudo, que a referência à razoabilidade surgiu apenas na redação da ementa, não sendo parte do voto condutor do acórdão, que afirmava apenas “a patente plausibilidade desta argüição”— o que indica uma identificação, nesse contexto específico, entre plausibilidade e razoabilidade. Outro exemplo interessante podemos encontrar na ADI(MC) 489[146], julgada ainda em 1991, na qual o min. Sepúlveda Pertence considerou que um benefício concedido a secretários de Estado para fins de contagem de tempo para aposentadoria não era suficientemente irrazoável para justificar a suspensão liminar da lei questionada.

Essas considerações nos levam a perceber um aspecto interessante do controle judicial de razoabilidade. Por um lado trata-se da avaliação pelo Tribunal de atos discricionários realizados por outros poderes ou outros órgãos do Judiciário. Mas ao mesmo tempo, a própria operação do controle de razoabilidade configura o exercício de uma função discricionária: na avaliação da razoabilidade de atos praticados por terceiros, o Tribunal tem a necessidade de apelar para os seus próprios juízos de valor. Logo, o critério de razoabilidade que ele aplica para os atos cuja análise lhe é submetida também deve orientar a sua própria decisão.

Na ADI(MC) 223, que analisamos acima, podemos verificar o grande esforço de alguns ministros para justificar a razoabilidade da sua própria decisão discricionária. Sydney Sanches traduz claramente o seu dilema enquanto julgador e explicita os motivos que o levaram a escolher o seu posicionamento. Sepúlveda Pertence fez observações importantes sobre os limites do controle abstrato de normas e sobre os problemas das liminares em ações diretas de inconstitucionalidade. Esses são argumentos que visam a persuadir a sociedade da razoabilidade das opções valorativas do Tribunal no exercício das suas próprias funções discricionárias e que, portanto, têm importância fundamental para a legitimidade das decisões do Supremo. Esse aspecto dúplice é importante porque os critérios que o STF fixar para o controle de razoabilidade deverão ser utilizados para avaliar a legitimidade das decisões do próprio Tribunal.

2. ADI(MC) 855 (1993)

ADI(MC) 855, julgada em 1o.7.1993, rel. min. Sepúlveda Pertence.[147]

A referência expressa ao princípio da razoabilidade veio apenas com o julgamento, em 1993, da ADI(MC) 855. Esse processo foi um marco porque foi a primeira vez em que se utilizou expressamente o princípio da razoabilidade ou proporcionalidade como fundamento para a suspensão da vigência de uma norma. Trata-se de um caso sui generis, em que a Lei n° 10.248/93 do Paraná estabelecia a necessidade de pesagem dos botijões de gás no momento da venda, para garantir que os compradores estavam recebendo a quantidade correta. Assim dispunha a lei:

Art. 1º. É obrigatória a pesagem, pelos estabelecimentos que comercializarem GLP - Gás Liqüefeito de Petróleo, à vista do consumidor, por ocasião da venda de cada botijão ou cilindro entregue e também do recolhido, quando procedida à substituição.

Parágrafo único. Para efeito do disposto no caput deste artigo, os Postos revendedores de GLP, bem como os veículos que procedam à distribuição a domicílio, deverão portar balança apropriada para essa finalidade.

Art. 2º. Verificada a diferença menor entre o conteúdo e quantidade líquida especificada no botijão ou cilindro, o consumidor terá direito a receber, no ato do pagamento, abatimento proporcional ao preço do produto.

Art. 3º. Caso se constate, na pesagem do botijão ou cilindro que esteja sendo substituído, sobra de gás, o consumidor será ressarcido da importância correspondente, através de compensação no ato do pagamento do produto adquirido.[148]

Inconformada, a Confederação Nacional do Comércio ingressou com a medida cautelar, pedindo a suspensão da vigência da lei por violação do princípio da razoabilidade. Para fundamentar essa afirmação, juntou-se um parecer do INMETRO - Instituto Nacional de Metrologia, Normatização e Qualidade Industrial — órgão do Ministério da Justiça competente para questões de metrologia — que afirmava a inviabilidade prática do procedimento exigido pela lei paranaense, por razões de ordem técnica:

Esta autarquia [INMETRO], visando assegurar a fidelidade de tais transações comerciais, realiza periodicamente, através dos seus órgãos estaduais conveniados, a fiscalização quantitativa do produto ora em tela, com a verificação sistemática do peso do botijão vazio (tara).

A utilização de balança como preconiza a referida lei seria prejudicial devido à necessidade de conterem dispositivos de predeterminação da tara, de nível, bem como travas especiais, trazem um grau elevado de desgaste e desregulagem, o que poderia prejudicar as medições. Cabe ainda acrescentar que no caso das balanças que não fossem facilmente retiradas da carroceria, o consumidor teria que subir na mesma para acompanhar a pesagem. Quanto ao uso de manômetros, não atendem a finalidade proposta por ser a indicação do GLP em unidade de massa e não em unidade de pressão.

Esclarecemos, que nos casos em que o consumidor recebe o botijão em locais distantes do veículo, não haverá praticidade na proposta, pela necessidade do consumidor e entregador terem que retornar ao veículo para conferência do produto. Não obstante, todas as empresas distribuidoras de GLP devem possuir um selo aprovado pelo INMETRO, que deve ser oposto à válvula do botijão de forma a garantir a conservação da quantidade de produto contido no recipiente, bem como a permitir a constatação de qualquer irregularidade pela violação do referido selo. [149]

Essencialmente, o parecer afirmava que o procedimento de pesagem dos botijões aumentaria o preço ao consumidor sem garantir que estes recebessem a quantidade exata de gás. Esses argumentos técnicos foram essenciais para o julgamento da causa — ao menos para a concessão da suspensão provisória da lei impugnada — pois, como o Relator afirma em seu voto:

Eles servem, de um lado — como proficientemente explorados na petição — não só para lastrear o questionamento da proporcionalidade ou da razoabilidade da disciplina legal impugnada, mas também para indicar a conveniência de sustar — ao menos, provisoriamente — as inovações por ela impostas, as quais, onerosas e de duvidosos efeitos úteis — acarretariam danos de incerta reparação para a economia do setor, na hipótese — que não é de afastar — de que se venha ao final a declarar a inconstitucionalidade da lei.[150]

É interessante observar que o único voto divergente constante do acórdão foi o do Ministro Marco Aurélio, que é justamente o membro do Tribunal que mais freqüentemente se utiliza do princípio da razoabilidade nas suas fundamentações[151]. Entretanto, o seu raciocínio é interessante porque, em primeiro lugar, recusa os argumentos de ordem formal que foram admitidos pelo Relator[152], para em seguida afirmar que “na aquisição de gás, não se adquire em si o bujão, mas o peso [d]a quantidade de gás que nele se contém”. Por isso, considera que a política que inspirou a lei era acertada e que “a experiência deve prosseguir”. Percebe-se, assim, que o min. Marco Aurélio admitiu a necessidade do controle de razoabilidade, embora tenha chegado a uma conclusão diversa da da maioria.

A grande importância deste acórdão está no fato de que o Supremo admitiu a possibilidade da suspensão de uma lei porque os meios por ela instituídos não eram adequados para a consecução dos fins a que ela se propunha. Verificou-se um descompasso entre as finalidades da norma e o seu conteúdo. Dentro do grande espectro de discricionariedade que cabia ao legislador, a sua opção mostrou-se valorativamente irrazoável porque não era adequada à consecução dos fins que a norma visava a atingir. Nesse processo, as informações de ordem técnica oferecidas pelo INMETRO foram decisivas para que os membros do Tribunal se convencessem de que as inovações trazidas pela lei paranaense trariam diversos danos para o setor de venda de GLP, sem que se trouxesse qualquer benefício para a sociedade. Entretanto, como é típico da jurisprudência dos países inseridos no modelo jurídico romano-germânico, não é dada uma importância maior ao papel das decisões enquanto momentos para a fixação de precedentes. Vejamos o voto do min. Sepúlveda Pertence:

Estou em que concorrem, no caso, os pressupostos da cautelar requerida.

\2. A transcrição dos trechos decisivos da petição inicial são bastantes a evidenciar a plausibilidade da argüição deduzida contra a lei estadual questionada, sob o prisma da invasão de área de competência da União.

\3. De sua vez, os esclarecimentos de fato – particularmente a manifestação do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial – INMETRO, do Ministério da Justiça, são de múltipla relevância para este julgamento liminar.

\4. Eles servem, de um lado – como proficientemente explorados na petição – não só para lastrear o questionamento da proporcionalidade ou da razoabilidade da disciplina legal impugnada, mas também para indicar a conveniência de sustar – ao menos, provisoriamente – as inovações por ela impostas, as quais, onerosas e de duvidosos efeitos úteis – acarretariam danos de incerta reparação para a economia do setor, na hipótese – que não é de afastar – de que se venha ao final a declarar a inconstitucionalidade da lei.

Finalmente, à primeira vista, os mesmos esclarecimentos especializados, que instruem a petição, permitem duvidar que, dadas as contingências técnicas a que tem de submeter-se, o mecanismo de distribuição de gás liquefeito, até hoje submetido a um regramento uniforme em todo o país, possa admitir variações regionais, impostas em nome da proteção do consumidor, parece, hão de ter, no setor de que se cuida, soluções nacionais.

Defiro, pois, a cautelar: é o meu voto. [153]

Embora o fundamento apresentado tenha sido suficiente para resolver o caso, não se deixa clara a diferença entre holding e obiter dicta[^158]. Não se explicita a importância para a decisão do fato de que essa norma cria uma série de obrigações para todo um setor econômico, o que exigiria o investimento de muito capital. Ao mesmo tempo, não se adota um fundamento único — ao lado do princípio da razoabilidade, admite-se também a plausibilidade de vícios formais: falta de competência legislativa e necessidade de haver regramento uniforme sobre a matéria em todo o país. Todos os argumentos são colocados lado a lado, e todos eles apontam no sentido da suspensão da vigência da lei impugnada. O peso de cada um não fica claro, nem pode ser distinguido pelo contexto. Mesmo na ementa, a violação do princípio da razoabilidade não é colocada inequivocamente em primeiro plano. Vejamos a ementa do acórdão:

Gás liqüefeito de petróleo: lei estadual que determina a pesagem de botijões entregues ou recebidos para substituição a vista do consumidor, com pagamento imediato de eventual diferença a menor**: argüição de inconstitucionalidade fundada nos arts. 22, IV e VI (energia e metrologia), 24 e §§, 25, § 2o, 238, além de violação ao princípio de proporcionalidade e razoabilidade das leis restritivas de direitos**: plausibilidade jurídica da argüição que aconselha a suspensão cautelar da lei impugnada, a fim de evitar danos irreparáveis a economia do setor, no caso de vir a declarar-se a inconstitucionalidade: liminar deferida.[154] [grifos nossos]

A partir do modo como foi feita a referência ao princípio da razoabilidade — introduzida pela conjunção além —, podemos entender que se trata apenas de um argumento de reforço: existe um problema formal intransponível mas, além disso, podemos apontar inconstitucionalidades materiais. Também devemos ressaltar que os ministros que formaram a maioria (com exceção do relator Sepúlveda Pertence) nunca vieram a utilizar o princípio da razoabilidade em processos por eles relatados[155] — fato que pode indicar que o resultado final foi mais influenciado pelos argumentos formais sobre competência que pela invocação do princípio da razoabilidade.

O votos vencidos também não reconhecem ao argumento da razoabilidade uma relevância maior. Em sentido contrário, poderíamos deles inferir que a sua importância era reduzida, na medida em que Moreira Alves[156] recusou a interpretação da maioria apenas sob o fundamento de que havia competência concorrente dos estados-membros, o que afastaria a tese da inconstitucionalidade formal. E, afastada a tese de inconstitucionalidade formal, nada obstaria que a lei fosse considerada válida.

Verificamos, assim, a grande importância que tinha o argumento formal relacionado à competência legislativa, o que indica que, tomado individualmente, o argumento material pode não ter sido apoiado pela maioria dos ministro. Entretanto, supondo que cada um dos argumentos apresentados seria suficiente para fundamentar a conclusão do Tribunal, podemos afirmar que resta fixado o precedente de que, segundo o princípio da razoabilidade, é inválida uma lei que não possua uma adequação entre suas finalidades e os meios escolhidos para a realização desses objetivos[157]. Como se trata do primeiro caso expressivo de utilização do princípio da razoabilidade, não se poderia esperar que houvesse remissões a julgamentos anteriores. Todavia, seria conveniente que o STF tivesse deixado mais claro o que entende por razoabilidade, pois esse posicionamento serviria como orientação para as decisões posteriores.

De qualquer forma, trata-se da aplicação mais consistente do princípio da razoabilidade que o Supremo já efetuou. Ao contrário do que será feito em momentos posteriores, o critério de razoabilidade utilizado remete apenas a um senso comum que — supõe-se — deveria ser partilhado pelos juristas, mas tem uma base muito mais firme: as informações técnicas fornecidas pelo INMETRO. Por se tratarem de informações objetivas, torna-se possível identificar com clareza os critérios utilizados para afirmar a inexistência de uma adequação entre meios e fins.

Infelizmente, mesmo que a medida cautelar tenha sido julgada ainda em 1993, a Ação Direta de Inconstitucionalidade propriamente dita ainda não foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal. Esperamos que o STF aproveite o julgamento desse processo como um momento propício para superar as deficiências metodológicas que a sua jurisprudência ainda possui quanto ao controle de razoabilidade — especialmente definindo de forma mais clara o que o Tribunal entende por princípio da razoabilidade.

3. AGRAG 153.493 (1993)

AGRAG 153.493, julgado em 25.10.1993, rel. min. Marco Aurélio.[158]

Ainda em 1993, o min. Marco Aurélio afirmou que a falta de correção monetária no pagamento dos precatórios ofendia o princípio da razoabilidade. Contudo, devemos ressaltar que, mais uma vez, o princípio da razoabilidade foi utilizado como um argumento de reforço. No seu voto, Marco Aurélio reconheceu que, seguindo-se o procedimento utilizado pela União para a satisfação dos precatórios[159] e mantendo-se a inflação no patamar de 30% ao mês, o valor do pagamento poderia ser equivalente a apenas 5% da dívida. Esse descompasso seria a razão da irrazoabilidade desse sistema de correção.

O problema hermenêutico que Marco Aurélio procurava resolver é bastante delicado. O artigo 100, §1o da Constituição afirma expressamente que “é obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1o de julho, data em que terão atualizados seus valores, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte”. Se o sistema de correção que Marco Aurélio buscava invalidar fosse estabelecido por uma norma infraconstitucional, poder-se-ia simplesmente justificar a invalidade desta regra com base em uma violação do princípio da razoabilidade.

No entanto, sustentar a inconstitucionalidade de uma norma constitucional originária[160] por ferir um princípio constitucional não escrito é uma linha argumentativa que dificilmente seria aceita. Assim, ao invés de afirmar que a própria norma constitucional não era razoável, Marco Aurélio sustentou que faltava razoabilidade à interpretação corrente do § 1o do artigo 100 da CF — o que o levou a propor uma nova interpretação desse artigo. Ele defendeu que a atualização à qual o artigo 100, § 1o se refere tem como única função dar ao Estado uma previsão sobre o montante dos gastos e que a correção monetária do débito não se esgota nessa atualização de valores.

Para defender essa posição, Marco Aurélio centrou seus argumentos na interpretação do artigo 33 do ADCT[161] e sua influência na interpretação do artigo 100. O referido artigo 33, ao mesmo tempo que prevê uma moratória para o pagamento dos precatórios, estabelece um sistema de correção que possibilita uma atualização adequada do valor da dívida e a sua integral quitação. Aparentemente, tal artigo estabelece apenas uma exceção à regra do artigo 100, o que exigiria uma interpretação restritiva do dispositivo. Todavia, Marco Aurélio propôs uma interpretação finalista do artigo 33 do ADCT, identificando nele a intenção legislativa de romper com o modelo anterior de correção monetária dos precatórios. Afirmou expressamente em seu voto que “o artigo 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias objetivou colocar termo final às verdadeiras pensões vitalícias que se constituíram a partir da óptica da impossibilidade de indexação dos precatórios”.

Interessante é que Marco Aurélio identificou o sistema de correção em 1o de julho como um modelo da Constituição de 1967, não obstante ele ter sido expressamente reafirmado no artigo 100 da atual Constituição. O argumento que desenvolveu fundava-se na idéia de que “a nova ordem constitucional trouxe à balha, no tocante à satisfação dos débitos pela Fazenda, contexto tendente a acabar com o círculo vicioso notado no âmbito do Judiciário sob a égide da Constituição pretérita”. Assim, concluiu que:

O artigo 33 previu uma moratória e a impôs, derrubando o dogma da inviabilidade da indexação. Logo, não cabe, a esta altura, persistir na esdrúxula forma de satisfação dos débitos pela Fazenda, emprestando-se à regra do § 1o do artigo 100 da Lei Máxima exegese não consentânea com o princípio da razoabilidade. A previsão no sentido de os valores serem atualizados, considerada a data de apresentação do precatório, revela a necessidade de o Estado contar com parâmetros que lhe permitam, numa visão prognóstica, preparar-se para a liqüidação do débito. Longe está de estabelecer o extravagante modo, que era a de satisfação parcial da dívida, tendo em vista o valor nominal. Por tais razões, nego acolhida ao pedido formulado neste regimental.[162] [grifos nossos]

Percebemos, assim, que a resposta oferecida por Marco Aurélio não está simplesmente em considerar inadequado o sistema de correção instaurado pela Constituição, mas em afirmar que a interpretação corrente do artigo 100, §1o não é harmônica com a finalidade exposta no artigo 33 do ADCT — o que nos obrigaria a interpretar a regra do artigo 100 de outra forma. E é apenas nesse ponto que entra a referência ao princípio da razoabilidade. Tendo em vista toda a argumentação anterior, essa referência seria absolutamente dispensável, pois o argumento central era a interpretação teleológica do artigo 33 do ADCT e sua influência na interpretação do artigo 100. Aparentemente, a remissão ao princípio da razoabilidade funcionou apenas como uma fórmula retórica para qualificar como desarrazoado o modelo de correção que vigeu durante a Constituição de 1967, não desempenhando esse conceito um papel de relevo na argumentação contida no voto. Já na ementa, parece que o princípio da razoabilidade desempenha uma função mais importante:

FAZENDA PUBLICA - DÉBITO. A regra contida no § 1o do artigo 100 da Constituição Federal há de ter alcance perquirido em face não só do princípio da razoabilidade e do objetivo nela previsto, como também do preceito transitório do artigo 33, com o qual almejou-se colocar ponto final no esdrúxulo quadro decorrente da jurisprudência pretérita a Carta de 1988, no sentido de que os valores devidos pela Fazenda seriam pagos, até o fim do exercício seguinte, considerados os precatórios apresentados até 1o de julho, oportunidade em que seria feita a correção respectiva. A ordem jurídica constitucional não contempla resultado que deságüe no privilégio de a Fazenda satisfazer os respectivos débitos em periódicas e irrisórias prestações sucessivas e, o que é pior, com interregno que suplanta a unidade de tempo “ano”. A referência à atualização, inserta no § 1o do artigo 100, outro sentido não tem senão o de proporcionar ao Estado uma visão prognóstica do débito a ser satisfeito até o fim do exercício seguinte, pelo valor real e, portanto, a liquidação definitiva. Versando a controvérsia sobre a insuficiência do depósito realizado, não há como cogitar-se da expedição de novo precatório.

Na argumentação contida na ementa, a importância dada ao princípio da razoabilidade foi próxima à conferida à interpretação teleológica do artigo 33 do ADCT, embora este último argumento continuasse tendo uma posição de maior destaque. Todavia, em nenhum momento Marco Aurélio explicou de que modo o princípio da razoabilidade deveria influir no julgamento — ele limitou-se a afirmar que a interpretação usual do artigo 100 da CF ofende esse princípio, mas não ofereceu qualquer justificativa para isso. Se o princípio da razoabilidade fosse um conceito estratificado na jurisprudência do Supremo, essa utilização poderia ser justificada pelo consenso existente sobre a função argumentativa do uso desse princípio. No entanto, por se tratar de um conceito novo na jurisprudência, sobre o qual não se consolidou nenhuma posição consensual, tal utilização parece inadequada.

Marco Aurélio utiliza o princípio da razoabilidade como um topos, um lugar a partir do qual se constrói um argumento retórico, voltado à persuasão dos interlocutores, e não à demonstração de um raciocínio. Trata-se de um argumento fundado em um topos jurídico, ou seja, em um ponto de partida valorativo que precisa ser compartilhado pelos interlocutores para que possa ser admitida a validade das conclusões — operação que também é feita tanto pela jurisprudência norte-americana (na qual o due process é um topos) como pela alemã (na qual o princípio da proporcionalidade é um topos). De acordo com a teoria da argumentação de Perelman, esse seria um procedimento necessário em todos os casos que envolvem a avaliação de atos que envolvem exercício do poder discricionário.

O problema que identificamos no julgamento em análise não é a utilização da razoabilidade como um topos[163], mas a ausência de justificação das opções valorativas tomadas. Isso faz com que a remissão à razoabilidade transforme-se em uma mera remissão ao senso comum dos juristas, um argumento retórico de persuasão voltado para a invocação de uma identidade ideológica entre o emissor e o receptor: a fundamentação é feita com base em uma suposta identidade ideológica e não com base em argumentos racionalmente aceitáveis. A simples referência à razoabilidade — e não a avaliação racional e discursiva da razoabilidade do ato estatal — pretende funcionar como fundamento suficiente de uma decisão judicial. Como a ausência de correção monetária no pagamento de precatórios ofende as minhas noções pessoais de justiça, sou levado a concordar com o resultado do argumento de Marco Aurélio. Da mesma forma, todos aqueles que compartilham essa crença também estarão satisfeitos com a decisão. Entretanto, não podemos deixar de observar que a solução admitida pelo Tribunal parte do pressuposto de que esse posicionamento valorativo é objetivamente válido.

Por fim, devemos notar que nesse caso o STF procedeu ao controle de razoabilidade de uma decisão do próprio legislador constituinte. Parece claro que o fundamento mais importante — embora implícito — tenha sido uma avaliação de adequação entre meios e fins e a conclusão de que o modelo constitucional de reajuste do valor dos precatórios não era adequado para o fim de corrigir monetariamente a dívida. No entanto, como a invalidação de dispositivos constitucionais não parece aceitável, o caso foi enfrentado como uma questão de controle de razoabilidade da interpretação do artigo 100 da CF, que recebeu do Supremo um entendimento diverso do que lhe vinha sendo conferido há décadas — tendo em vista que foi mantido o mesmo sistema de correção vigente frente à Constituição de 1967.

A imprecisão dos termos utilizados pela Constituição fez com que a interpretação proposta por Marco Aurélio não tenha ultrapassado de forma clara os limites do sentido literal possível da norma. No entanto, também não parece razoável que a Constituição regule uma mera operação contábil — a atualização de valores com o objetivo único de facilitar a previsão do montante que deverá ser pago. Por isso, consideramos que a justificativa apresentada por Marco Aurélio serviu apenas para encobrir o controle de razoabilidade da decisão do constituinte — a partir da afirmação de que não se controlava a razoabilidade da norma, mas apenas a sua interpretação —, conferindo maior aceitabilidade ao seu argumento.

4. ADI 966 e ADI 958 (1994)

ADI 966 e ADI 958, julgadas em 11.5.1994, rel. min. Marco Aurélio.[164]

Nesses processos[165], discutiu-se a constitucionalidade da Lei n° 8.713/93, a qual estabelecia que apenas poderiam lançar candidatos à Presidência da República (para a eleição de 1994) os partidos que tivessem obtido um mínimo de 5% dos votos apurados na eleição para deputados federais de 1990, distribuídos em pelo menos um terço dos Estados, ou que tenham representantes na Câmara dos Deputados que somem um mínimo de 3% da composição da casa.[166] Argumentou-se que esta lei violava a Constituição Federal de 1988 porque estabelecia condição de elegibilidade não prevista na Carta, a qual exigia apenas a filiação partidária, não importando a envergadura do partido. Além disso, a condição criada levava em conta a atuação passada do partido, e não a sua presente representatividade. Por fim, argumentou-se que tal disposição cria um tratamento desigual entre os partidos, ferindo assim o princípio da isonomia.

As novas disposições, inegavelmente de caráter restritivo considerada a autonomia dos partidos políticos, assegurada constitucionalmente, não podem subsistir. [...] Em última análise, o artigo 5o da Lei n° 8.713/93 encerra especificidade limitadora que não se contém no inciso V do § 3o do artigo 14 da Constituição Federal, no que dispõe, relativamente à elegibilidade e em homenagem aos partidos políticos, sobre a suficiência da filiação partidária, pouco importando a grandeza numérica da agremiação política, tendo em vista votos obtidos em certa eleição e momentânea representação na Câmara dos Deputados do partido que venha a dar respaldo ao candidato. [...]

Na verdade, em relação aos partidos criados após a eleição mencionada na lei, tais condições afiguram-se até mesmo inatingíveis. A uma, porque, não tendo participado do pleito, logicamente não tiveram candidatos votados. A duas, porquanto, considerado o que normalmente ocorre na vida político-partidária, a adesão de parlamentares a um recém-criado partido exsurge no campo da exceção, isto quando não se abandonam os padrões observados pelo homem.

Registro ainda, que a Carta de 1988 não repetiu a anterior no que condicionava o funcionamento dos partidos políticos ao atendimento de exigências, dentre as quais uma que restou inserta, com quase todas as letras, na nova lei eleitoral – a do desempenho eleitoral na última eleição. Ao contrário, homenageou a autonomia partidária. Indaga-se, diante de tal quadro, era dado ao legislador ordinário impor restrições aos partidos políticos? Cabia-lhe substituir o legislador constituinte da Lei Básica Federal em vigor, no que não repetiu a pretérita? Mais ainda: fazendo-o, poderia dispor sobre percentuais, número de representantes na Câmara, à livre discrição e com nefastas repercussões em campo sensível que é o da atuação política das minorias, olvidando que a proteção a estas tem dignidade constitucional? Por que cinco por cento dos votos nas eleições de 1990, distribuídos por percentagem de Estados – regra inspirada na Carta de 1969, inciso II do § 2o do artigo 152 – ou número de representantes na câmara dos Deputados igual a dezesseis? Que critérios foram utilizados nessa fixação e quais os efeitos dela decorrentes, consideradas as circunstâncias reinantes? [...]

O dispositivo [art. 17, IV da CF] não tem o condão de abrir ao legislador ordinário a possibilidade de limitar a participação nos certames eleitorais, dos pequenos partidos, afastando, assim, a representação das minorias. Nítida é a diferença entre a atual Carta e a anterior. Na de 1969, dispôs-se, mediante a regra do inciso do §2o do artigo 152 – minimizando-se o princípio da autonomia partidária e o desempenho em igualdade de condições – que o funcionamento dos partidos políticos fica jungido à filiação de pelo menos dez por cento de representantes na Câmara dos Deputados e no Senado Federal que tivessem, como fundadores, assinado os atos constitutivos ou apoio expresso em votos de cinco por cento do eleitorado que participara da última eleição geral para a Câmara dos Deputados, distribuídos, pelo menos, por nove Estados, com o mínimo de três por cento em cada um deles.

Nota-se, isto sim, que o legislador ordinário, em última análise revelado pela atuação dos grandes partidos considerados dados fáticos já conhecidos, diante da extirpação das condições fixadas na Carta pretérita pelo legislador constituinte de 1988, resolveu reeditá-las, colocando em segundo plano os pequenos Partidos registrados definitivamente no Tribunal Superior Eleitoral, alguns deles tendo apresentado candidatos nas últimas eleições. Olvidara-se tratar-se de matéria incompatível com as novas regras constitucionais e que somente poderia estar compreendida e disciplinada na própria Carta, como ocorria com a anterior.[167]

Como podemos ver, o Relator Marco Aurélio sustentou que uma disciplina como essa não poderia ter sido instituída por lei ordinária e ressaltou que da diferença de tratamento entre as Constituições de 1969 e 1988 se deveria concluir que a atual Carta não permite a criação de limitações como a impugnada. Esse raciocínio foi refutado pelo min. Francisco Rezek que afirmou que:

Quando o legislador maior estabelece regras de extraordinária plasticidade e conforto para que se fundem partidos políticos, o mínimo que se pode esperar é que o legislador ordinário estabeleça limites à participação dessas agremiações no processo eleitoral. Ter como premissa a liberdade ampla de criação de partidos e ao mesmo tempo limitar a prerrogativa do legislador ordinário para estabelecer requisitos de participação efetiva no processo eleitoral, seria lançar a semente de um quadro caótico.

O que agora se põe em causa, como bem ponderou o relator, é a questão de saber se é lícito o que o legislador ordinário fez ao restringir a participação de micro-partidos no processo eleitoral deste ano. Coloca-se em mesa a tese de inconstitucionalidade do artigo 5o e §§ da Lei de 93; traz-se à colação e ao confronto o preceito isonômico no seu estado de pureza, tal como se estampa na cabeça do artigo 5o da Constituição de 1988. Tivemos ocasião de discutir, por mais de uma vez, esse preceito. Sabemos da dificuldade e da sutileza do processo mental que um juiz deve empreender para dizer, acaso, que determinado produto do legislador ordinário agride, na Constituição, a regra da isonomia considerada na sua expressão pura, como se estampa na cabeça do artigo 5o.

No caso da carreira diplomática, que este plenário examinou nos últimos dois meses, e onde me coube proferir um voto de desempate, destaquei este argumento: quando nos defrontamos com a afirmação de que o legislador pecou por ofensa à Carta ao estabelecer, no texto ordinário, uma discriminação incompatível com o preceito isonômico, é fundamental — porque afinal de contas legislar é discriminar, é dar tratamento desigual a pessoas, a instituições e a situações desiguais — saber se determinada discriminação ultrapassa os limites de razoabilidade e afronta, por isso, a isonomia.

Quer parecer-me que tal não é o caso. Ao fundar-se no pressuposto de que a criação de partidos políticos, no Brasil contemporâneo, foi extremamente facilitada pela Carta de 88, e de que a participação no processo eleitoral há de ser, em certa medida, disciplinada limitativamente, não estabeleceu o legislador ordinário uma discriminação de algum modo ofensiva à razão, à moral, a qualquer dos valores que o direito se propõe proteger.[168]

Já o min. Ilmar Galvão chega à conclusão oposta:

Se fosse constituinte, não hesitaria, um minuto sequer, em aderir às razões tão bem expendidas pelo Sr. Ministro Francisco Rezek para estabelecer, na Constituição, normas capazes de afastar inconvenientes, como os que se ensejam, principalmente numa eleição como a próxima, com candidatos em número quase ilimitado, em face do elevado número dos partidos políticos. No entanto, não estou elaborando, aqui, norma constitucional, mas simplesmente interpretando a Constituição. Verifico que inexiste a menor dúvida de que os princípios invocados na inicial não foram considerados pela Carta.[169] [grifos nossos]

Votando em seguida, o min. Carlos Velloso retomou a argumentação de que a limitação ao número de partidos era necessária ao país e, em uma operação que eleva sue ponto de vista pessoal ao status de necessidade jurídica objetiva, considera constitucional a regra:

Na Alemanha, onde se pratica o voto distrital misto, os partidos somente elegem representantes no Parlamento se tiverem obtido 5% dos votos em eleições nacionais ou regionais[170]. Tudo isso é dito para mostrar uma tendência, em direito constitucional, em direito eleitoral comparado, no sentido da exigência da representatividade nacional dos partidos. É que esta representatividade nacional é tanto necessária na medida em que é preciso afastar dos prélios eleitorais as denominadas legendas de aluguel, partidos políticos que não têm caráter nacional, que não têm representatividade nem autenticidade, que navegam ao sabor de conveniências e de ajustes, por isso mesmo perniciosos numa pugna eleitoral séria.

Assim, Sr. Presidente, tenho como salutares e benfazejas as providências legislativas no sentido de fortalecer os partidos políticos, somente permitindo que participem das eleições para a chefia do Poder Executivo os partidos que tenham representatividade no âmbito em que ocorrerá a escolha. A Constituição do Brasil não impede que tais providências sejam adotadas, ao contrário, autoriza-as, ao exigir que os partidos tenham caráter nacional, conforme está inscrito no seu art. 17, inciso I. Ao exigir a Constituição, no inciso I do art. 17, que os partidos políticos tenham caráter nacional, inegavelmente autorizou o legislador ordinário a estabelecer mecanismos de aferição desse caráter nacional.

Ora, penso que nada melhor para aferir se um partido político ostenta esse requisito do que exigir que o partido tenha obtido um certo percentual de votos para a câmara dos Deputados, ou que conte com certo percentual de representantes nessa Casa.[171]

O min. Sepúlveda Pertence contradisse essa referência à exigência de caráter nacional:

Um [partido], independente do seu desempenho eleitoral, já demonstrou, nos termos da lei, uma organização nacional, uma difusão nacional da sua organização. E é isso que a Constituição reclama, data venia, quando condiciona a liberdade de criação de partido ao seu caráter nacional, é o caráter nacional da organização do partido.[172]

E continuou:

Pode dizer-se que é arbitrária a existência de um certo percentual de diretórios municipais em nove Estados. Por que não em dez? Mas, todo critério numérico é evidentemente em si mesmo arbitrário.[173]

O problema é extremamente grave. Afora a EC 11/78, ainda ao texto da Carta de 69, que ficou sem aplicação, trata-se do primeiro esforço, no direito eleitoral brasileiro, para a racionalização do quadro partidário, cujas repercussões, sobre a racionalidade da vida política e parlamentar e sobre a racionalidade da administração do processo eleitoral, não preciso enfatizar [...]

Nesse ponto, creio que esse primeiro ensaio brasileiro de racionalização, o da Lei n° 8.713, é moderado: exigiu-se um coeficiente mínimo de desempenho eleitoral nas últimas eleições para o Congresso ou para as Assembléias Legislativas, ou um mínimo de representantes atuais na Câmara dos Deputados ou nas Assembléias, apenas para a apresentação de candidatos às eleições majoritárias; e ainda se abre uma alternativa, ao permitir que, mesmo nas eleições majoritárias; partidos que não tenham chegado ao patamar mínimo estabelecido se coliguem e alcancem, somados, esse patamar e possam concorrer, em coligação, aos pleitos majoritários.

Entendo – e aqui me parece um ponto essencial – absolutamente razoáveis essas restrições que são, repito, moderadas. Fosse outro o quadro – já antevejo os argumentos ad terrorem, de hábito – outra seria a minha conclusão.

Restrições desarrazoadas, aí sim, poriam em cheque não só o valor da isonomia, que é relativa, mas outro valor fundamental, específico do tema, qual o pluripartidarismo. De tal modo que, se se pretendesse reviver aqui aquelas restrições da primitiva Lei Orgânica – quando, a pretexto de regular a liberdade de criação de partidos, o que efetivamente se buscou foi tornar efetivamente impossível, inviável, a criação de outros partidos que não os dois consentidos pelo Regime Militar, outra seira minha convicção. Mas não é disso que se trata, e o quadro já está posto no próprio mapa, publicado pela Justiça Eleitoral, de quantos partidos, no âmbito nacional, poderão, isolados, lançar candidatos à Presidência da República e quantos, em cada Estado, poderão concorrer ao governo da unidade federada.[174] [grifos nossos]

Vemos, aqui, que embora Sepúlveda Pertence não tenha referência ao princípio da razoabilidade, ele afirmou que a razoabilidade é um critério que deve ser utilizado para avaliar as restrições de direitos — e liga a idéia de razoabilidade à de moderação. Também podemos identificar a consciência de que as restrições a direitos devem levar em consideração os diversos valores jurídicos envolvidos, como a isonomia e o pluripartidarismo. Além disso, podemos ver que dentro do discurso de Pertence, a razoabilidade funcionou como um critério para o controle de atos discricionários, ou seja, dos atos que envolvem a arbitrariedade dos agentes públicos — no caso, do legislador. A definição do número de estados em que um partido deve ter diretórios para que seja considerado um partido nacional é uma decisão discricionária do legislador: essa quantidade pode ser fixada em cinco, nove, dez, quinze, e todas essas opções são justificáveis. E é apenas nesse sentido que Pertence utiliza o termo arbitrário.

Também a fixação de uma percentagem mínima de votos é uma decisão discricionária. Foi fixada em 5, como poderia tê-lo sido em 2, 3 ou 7. A decisão legislativa que determinou que os partidos deveriam ter 5% dos votos válidos para que pudessem ter representantes na Câmara dos Deputados, afirma Pertence, deve ser avaliada pelo critério da razoabilidade — que ele liga, no caso, à idéia de moderação. Além disso, devemos ressaltar que a avaliação da razoabilidade não foi feita em abstrato, mas de acordo com as circunstâncias do caso concreto: “fosse outro o quadro [...], outra seria minha conclusão”.

Por fim, assinalemos que a escolha valorativa de Pertence — considerar razoável a restrição — não foi fundamentada de forma meramente dogmática, mas argumentativamente. Argumentou que as restrições foram moderadas, rejeitou os argumentos ad terrorem, avaliou as condições do caso concreto, fez um juízo de ponderação dos valores envolvidos (especialmente isonomia e pluripartidarismo), diferenciou a situação da época daquela vigente na ditadura militar — e tudo isso para justificar a razoabilidade da norma impugnada. Dessa forma, embora Pertence não tenha feito referência expressa ao princípio da razoabilidade, foi exemplar a utilização que fez do critério de razoabilidade para o controle das decisões discricionárias — especialmente das normas restritivas a direitos constitucionais.

Já o min. Sydney Sanches chamou atenção para um ponto importante que não havia sido enfrentado:

O que me chocou, porém, durante todo o debate, foi o argumento, que não consigo superar, no sentido de que a lei está partindo de fatos já ocorridos para regular o futuro. Assim, no dia 30 de setembro de 1993, quando entrou em vigor a lei, já se sabia quais os partidos que não poderiam concorrer, quais os que ficaram por ela automaticamente excluídos. Acho que pode haver perfeitamente uma lei estabelecendo limites de atuação dos partidos políticos no âmbito federal, estadual e municipal, desde que seja para o futuro. Por exemplo, dizendo: os partidos que nas próximas eleições não alcançarem o “quorum” “x”(digamos 1%) dos votos válidos, não poderão participar das eleições subsequentes. No caso presente, fez-se o seguinte, na lei em questão: os partidos que não alcançaram, no passado, o índice tal, não poderão concorrer às eleições de 3 de outubro de 1994.[175]

Dando seqüência a esse argumento, afirmou o min. Octavio Gallotti:

No tocante aos parágrafos, penso, porém, que embora esteja essa restrição disposta sob a forma de uma norma abstrata e objetiva, seu conteúdo, realmente, revela uma discriminação com caráter virtualmente subjetivo, cujos requisitos foram relegados ao passado, de tal forma que já eram conhecidos dos legisladores que elaboraram a norma restritiva.[176]

Esses voto são interessantes porque sustentam que o dispositivo da lei é inaceitável na medida em que, enquanto as normas devem ter um caráter geral, ele tem um caráter absolutamente subjetivo — pois já se sabia de antemão quais seriam os partidos atingidos. Seria o equivalente a aprovar uma lei que dissesse que os partidos X, Y e Z não poderiam apresentar candidatos porque não tinham certo número de representantes. Todavia, devemos ressaltar que nesse raciocínio não foi feita qualquer referência ao princípio da razoabilidade ou ao devido processo legal.

Por fim, temos o voto do min. Moreira Alves, que nos é especialmente interessante por trazer à baila o argumento do devido processo legal, ligando-o com a idéia de razoabilidade:

Sr. Presidente, a meu ver, o problema capital que se apresenta, em face desta lei, é que ela fere, com relação aos dispositivos que estão sendo impugnados, o princípio constitucional do devido processo legal, que, evidentemente, não é apenas o processo previsto em lei, mas abarca as hipóteses em que falta razoabilidade à lei.

Ora, os dispositivos em causa partem de fatos passados, e portanto já conhecidos do legislador quando da elaboração da lei, para criar impedimentos futuros em relação a eles, constituindo-se, assim, em verdadeiros preceitos ad hoc, por terem como destinatários não a generalidade dos partidos, mas apenas aqueles relacionados com esses fatos passados, e, por isso, lhes cerceiam a liberdade por esse procedimento legal que é de todo desarrazoado.[177] [grifos nossos]

Identificamos aqui uma continuação do Moreira Alves para atribuir ao devido processo um papel mais importante na jurisprudência do Supremo. Moreira Alves sustentou que o Tribunal entender a garantida do due process of law tal como desenvolvido pela jurisprudência dos Estados Unidos da América. Segundo Moreira Alves, é com base nesse fundamento que a Suprema Corte opera o controle de razoabilidade das normas, e seria conveniente mirar-se nesse exemplo, na medida que a nossa constituição reconhece expressamente o direito ao devido processo.

Outro ponto interessante a ser observado foi o fato de que Sepúlveda Pertence, sem fazer referência expressa ao princípio da razoabilidade, operou um exemplar controle de legitimidade, justificando argumentativamente as escolhas valorativas que fez. Também devemos notar que nesse julgamento ficam mais uma vez claros os problemas advindos do procedimento de tomada de decisões do Supremo. Como o acordo buscado é somente quanto ao dispositivo do acórdão, não há uma compatibilidade mínima entre os diversos fundamentos evocados. Alguns invocam argumentos formais, outros o caráter de generalidade das leis, outros o devido processo legal, outros tentam dar um sentido claramente artificial às palavras da lei para sustentar seu ponto de vista. No final, o processo é julgado, mas nenhum precedente é claramente estabelecido, pois não houve uma fundamentação coerente, não houve critérios consensuais de julgamento. Por fim, devemos ressaltar que o conteúdo da ementa, que não representa o pensamento da maior parte dos ministros que compuseram a maioria, mas a posição defendida pelo relator, que utilizou a defesa das minorias como argumento principal.

5. ADI(MC) (1994)

ADI(MC) 1.158, julgada em 19.12.1994, rel. min. Celso de Mello.[178]

Nessa ação, proposta pelo Procurador-Geral da República no final de 1994, argüiu-se a constitucionalidade do § 2o do art. 9o da Lei do Estado do Amazonas n° 1.897, de 5 de janeiro de 1989, o qual estabelecia:

Art. 9º Será concedido ao funcionário público estadual em efetivo exercício, o valor correspondente a um terço da remuneração, no mês em que entrar no gozo de suas férias anuais. [...]

§ 2o A vantagem de que trata este artigo será paga aos inativos, de uma só vez, no mês de dezembro.[179]

Dando seqüência ao esforço de consolidação do devido processo legal, iniciado por Moreira Alves, Celso de Mello elaborou um voto cuidadoso, longe de qualquer espécie de jurisprudência defensiva. Começou recusando os argumentos do Procurador-Geral da República, o qual sustentava que a concessão de adicional de férias para os aposentados feria o §4o do artigo 40 da Constituição Federal[180]. Segundo Celso de Mello:

O acréscimo pecuniário de 1/3, devido a título de adicional de férias, ainda que pago uma vez por ano, não se desqualifica, em face da sua própria natureza, como vantagem pecuniária de caráter permanente, motivo pelo qual o pagamento dessa verba remuneratória ao servidor inativo não parece transgredir o preceito constitucional invocado pela presente ação direta de inconstitucionalidade como norma de parâmetro (CF, art. 40, § 4o).[181]

Mas, logo em seguida, Celso de Mello afirmou que a norma era inconstitucional porque caracterizava um abuso de função legislativa — retomando aqui a terminologia proposta por Victor Nunes Leal, ainda na década de 60 — e ligando-a expressamente à noção de devido processo legal. Pela sua importância, vale a pena transcrever essa parte do voto:

É claro – tendo-se presente o conteúdo material da norma ora impugnada – que, sob fundamento jurídico diverso daquele invocado pelo autor desta ação direta, parece configurar-se a eiva de inconstitucionalidade.

Refiro-me, nesse específico contexto, à questão pertinente ao abuso da função legislativa.

Todos sabemos que a cláusula do devido processo legal — objeto de expressa proclamação pelo art. 5o, LIV, da Constituição — deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário ou irrazoável.

A essência do *substantive due process of law* reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, como no caso, destituída do necessário coeficiente de razoabilidade.

Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.

Daí, a advertência de Caio Tácito (in RDP 100/11-120), que, ao relembrar a lição pioneira de Santi Romano, destacou que a figura do desvio de poder legislativo impõe o reconhecimento de que, mesmo nas hipóteses de seu discricionário exercício, a atividade legislativa deve desenvolver-se em estrita relação de harmonia com o interesse público. [182] [grifado no original]

Percebe-se claramente que Celso de Mello tinha como objetivo contribuir para que se conferisse eficácia à previsão constitucional que estabelece o due process como direito fundamental. Todavia, de uma forma imprevisível para quem segue a leitura do acórdão desde o início, após tanto esforçar-se para suplantar a tese dos autores e fundamentar a existência de verossimilhança do direito, termina por afirmar que não existe suficiente perigo na demora para justificar a suspensão provisória da lei impugnada[183]. Entretanto, mesmo no momento de indeferir a liminar ele defende veementemente a tese de violação ao devido processo: “mesmo, contudo, que se possa atribuir relevo jurídico à tese que venho de referir — e esse relevo é indiscutível —, ainda assim entendo inocorrente a situação configuradora do periculum in mora[184].

Todavia, a maioria dos membros do Tribunal seguiu o voto divergente do min. Marco Aurélio, que concluía pela conveniência de se suspender o dispositivo impugnado, mesmo levando em conta que ele era vigente há mais de seis anos[185]. Houve mesmo uma retificação de voto do min. Maurício Corrêa, que a princípio negou a cautelar pela “evidência jurídica da situação”[186] para, logo após o pronunciamento do min. Marco Aurélio, afirmar que “acho que o princípio moral justifica a reversão dessa posição. O Brasil atravessa um momento importante de revisão de costumes e atitudes.”[187]

Já Sepúlveda Pertence além de fazer referência ao princípio da razoabilidade, invocou outros princípios para justificar a suspensão da norma. Em especial, percebemos a confrontação entre os modelos do princípio da igualdade e do princípio da razoabilidade:

A lei questionada remunera férias do aposentado, que, evidentemente, não as tem. Em nome do princípio da moralidade, ou em nome ado princípio da igualdade, não se pode conceder remuneração absolutamente despida de causa no serviço público. A lei agride ao princípio da razoabilidade, a meu ver, patentemente.[188] [grifos nossos]

Pode a lei ferir o princípio da igualdade e o da razoabilidade ao mesmo tempo? A resposta a essa questão é claramente afirmativa. Pode ser esclarecedora aqui a relação que a doutrina norte-americana estabelece entre due process e equal protection, que são vistos como institutos diferentes mas que se superpõem de forma parcial. Assim, uma grave violação à equal protection pode ser entendida como violação ao due process, e a escolha do instituto que será utilizado pelo tribunal como fundamento varia em função do momento histórico e da linha de precedentes historicamente gerada. Foi justamente o entendimento de que esses dois institutos são parcialmente intercambiáveis que possibilitou, por exemplo, que a Suprema Corte fizesse valer a igualdade racial nas escolas no distrito de Columbia. Como a equal protection não era aplicável à União, mas apenas aos estados federados, foi necessário que a Suprema Corte utilizasse outro argumento para impor a igualdade racial: e o topos escolhido foi justamente o due process[^194]

Interessante também é notar que o min. Sydney Sanches acompanha o voto divergente, mas não faz qualquer referência à razoabilidade. Em vez disso, invoca o conceito de “natureza das coisas” para fundamentar sua decisão.

Sr. Presidente, entendo que o terço relativo a férias não deve ser pago a aposentados, como também não devem ser pagos dois terços, nem três terços, pela própria natureza das coisas. O “periculum in mora” ainda ocorre pois o Governo se vê premido a pagar, a cada ano; e, agora, com maior urgência, no mês de dezembro.[189]

A análise do voto do Relator, especialmente no contexto dos outros votos — que não se referem ao princípio da razoabilidade ou não lhe reconhecem um conteúdo específico —, revela que Celso de Mello se encontrava engajado no esforço de consolidar a possibilidade de apreciação da razoabilidade das normas: a sua preocupação era a de manter e ampliar o espaço desse controle, que até hoje permanece bastante indefinido. A preocupação com a construção de uma teoria consistente sobre o due process ficou em segundo plano — o que é plenamente justificável em um momento no qual não foi ainda garantido um âmbito de aplicação específico para a garantia do devido processo.

A partir dos votos até aqui analisados, podemos identificar no Supremo um certo consenso — ao menos entre alguns ministros — no sentido de que é preciso desenvolver um controle de razoabilidade mais efetivo. Todavia, há uma grande diversidade nos métodos de controle advogados pelos ministros. De um lado, temos o esforço de Moreira Alves e Celso de Mello em dar maior consistência ao devido processo legal. De outro, temos Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio, que utilizam preferencialmente referências ao princípio da razoabilidade ou proporcionalidade. Contudo, a maioria dos ministros ainda não incorporou em seus votos qualquer desses institutos, utilizando ainda os métodos mais tradicionais, como o princípio da igualdade, e/ou efetuando o controle sem uma orientação metodológica definida ou apenas de uma forma implícita.

6. RE 192.568 (1996)

RE 192.568, julgado em 23.4.1996, rel. min. Marco Aurélio.[190]

Nesse processo, o STF apreciou um caso muito interessante sobre concursos públicos. O Tribunal de Justiça do Estado do Piauí realizou um concurso para o provimento de 50 vagas de juízes mas, ao final do prazo de validade previsto no edital, apenas 33 vagas haviam sido preenchidas. Os aprovados não nomeados requereram ao TJPI a prorrogação do prazo do concurso, pedido que foi negado sem fundamentação específica. Todavia, logo após rejeitar o pedido de prorrogação, o Tribunal lançou um novo edital de concurso para juiz substituto, demonstrando claramente que havia necessidade de preenchimento dos cargos.

Frente a esse caso, pela primeira vez o STF garantiu aos aprovados em concurso público o direito a serem nomeados, desde que classificados entre o número de vagas previsto no edital, exceto se houver uma razão de interesse público que aponte no sentido contrário. Esse entendimento ultrapassa os limites do sentido literal possível — pois o texto constitucional garante apenas o direito a não ver a ordem de classificação violada, mas não o de ingressar no cargo — e, portanto, deve ser compreendido como um desenvolvimento judicial do direito e não como uma mera interpretação[191]. Diversas circunstâncias contribuem para esse posicionamento do Tribunal, como fica claro a partir do voto do min. Maurício Corrêa, que afirma expressamente que:

É mais do que curial dizer que a realização de concurso exige tempo, usa-se pessoal e se gasta dinheiro, do ponto de vista racional e de economia nada justifica que havendo candidatos aptos em determinado concurso, incompreensível se torna a realização de um outro, quando já há naquele candidatos habilitados que não foram nomeados. Por que isso? Só posso admitir que algo esteja atrás dessa atitude que os autos não explicam! Não há lógica para que se possa compreender providência dessa despisciência, que até o bom senso recrimina e afasta.[192] [grifos nossos]

Partindo-se do pressuposto de que os aprovados tinham direito à nomeação — direito esse que o Tribunal reconheceu de forma inovadora —, concluiu-se que a restrição a esse direito somente poderia ocorrer segundo critérios bem definidos e revestidos de um alto grau de razoabilidade. Como decisão que indeferiu a prorrogação do concurso não teve motivação alguma, as opções valorativas da administração não puderam ser avaliadas, o Tribunal julgou que tal ato era arbitrário e que, por isso, feria o princípio da razoabilidade.

Todavia, parece-nos que seria mais adequado afirmar que a decisão é nula porque não motivada[193] e considerar que a omissão em nomear os aprovados era inconstitucional. O princípio da razoabilidade somente deveria ser utilizado para resolver casos em que se avaliasse as escolhas valorativas dos agentes estatais, no exercício de suas funções discricionárias. Entretanto, os posicionamentos do Supremo sobre a inconstitucionalidade por omissão não admitem a possibilidade de suprimento judicial do ato administrativo ou legislativo. É constante o argumento de que a Corte somente pode agir como legislador negativo, e não como positivo. Por isso, utilizando argumentos ligados à inconstitucionalidade por omissão, seria muito difícil chegar-se ao resultado pretendido.

Assim, parece que a opção pelo modelo da razoabilidade caracterizou uma escolha pragmática que tinha como objetivo possibilitar que o Tribunal chegasse à conclusão desejada sem que fosse preciso responder aos questionamentos embaraçosos que certamente resultariam da admissão da tese de que o concurso seria considerado prorrogado porque faltou fundamentação à decisão que decidiu não prorrogá-lo. Mas, independentemente da fundamentação expressa, o que o Tribunal terminou por fazer foi, como chamou atenção o min. Néri da Silveira, substituir o Tribunal do Piauí para determinar a nomeação de candidatos, atuando de forma claramente positiva:

Data venia, em realidade, o que vai acontecer, em conseqüência da decisão da Turma, que já está constituída, por sua maioria, é que o Supremo Tribunal Federal fará eficaz um título caduco, pelo decurso do prazo de validade do concurso e, em ordenando a nomeação, estará, também, se substituindo ao Tribunal de Piauí, no juízo de conveniência, quanto à nomeação de candidatos aprovados em competitório, sem que haja ocorrido qualquer preterição, e, em última análise, prorrogando, para isso, validade de concurso caduco.[194]

Assim, a fundamentação do Tribunal transparece deficiente, pois caracteriza a ruptura com um posicionamento antes consolidado, sem uma argumentação que justificasse a mudança jurisprudencial. O Tribunal reconheceu a existência de um direito por meio de uma interpretação construtiva, mas não enfrentou os problemas que surgem dessa posição. Se existe um direito ao ingresso dos aprovados nos cargos públicos, quando pode o aprovado exigir a sua nomeação? Se a prorrogação do concurso tivesse ocorrido e, terminado esse prazo, ainda houvesse vagas a preencher, teria sido dada a mesma solução ao processo? Segundo os argumentos utilizados, isso deveria ocorrer, pois foi reconhecido o direito à nomeação.

Entretanto, é no mínimo duvidoso que o tribunal decidisse dessa forma, pois o fato de ter havido uma recusa expressa e imotivada ao pedido de prorrogação foi um fato relevante e, ao menos para o posicionamento do min. Maurício Corrêa, foi essencial. Percebemos, assim, que a opção do Tribunal foi — ao menos em parte — uma reação contra o que parecia ser um desvio de finalidade: o uso das prerrogativas de organizador do concurso para impedir o acesso de alguns candidatos ou dar novas chances a alguns candidatos que não foram aprovados no concurso.[195]

Por fim, devemos observar que os ministros Carlos Velloso, Maurício Corrêa e Néri da Silveira, por exemplo, não utilizam o princípio da razoabilidade nas suas considerações, embora o pudessem fazer. E o modo como foi utilizado esse princípio pelo min. Marco Aurélio mostra uma interpretação muito particular do instituto, não como relacionado ao controle de escolhas discricionárias, ao devido processo legal ou à garantia contra o abuso de poder, mas como uma espécie de remissão ao senso comum para elevar algumas presunções ao nível de garantias jurídicas. Isso se torna bem claro na ementa:

CONCURSO PÚBLICO - VAGAS - NOMEAÇÃO. O princípio da razoabilidade é conducente a presumir-se, como objeto do concurso, o preenchimento das vagas existentes. Exsurge configurador de desvio de poder, ato da Administração Pública que implique nomeação parcial de candidatos, indeferimento da prorrogação do prazo do concurso sem justificativa socialmente aceitável e publicação de novo edital com idêntica finalidade. “Como o inciso IV (do artigo 37 da Constituição Federal) tem o objetivo manifesto de resguardar precedências na seqüência dos concursos, segue-se que a Administração não poderá, sem burlar o dispositivo e sem incorrer em desvio de poder, deixar escoar deliberadamente o período de validade de concurso anterior para nomear os aprovados em certames subseqüentes. Fora isto possível e o inciso IV tornar-se-ia letra morta, constituindo-se na mais rúptil das garantias (Celso Antonio Bandeira de Mello, “Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta”, página 56).[196] [grifos nossos]

Mais uma vez, o princípio da razoabilidade funciona como um argumento de reforço. O argumento principal é a existência de um desvio de poder, caracterizado pela completa ausência de motivação para o ato que indeferiu a prorrogação do concurso. Já a referência ao princípio da razoabilidade funciona apenas para ressaltar a idéia de que o objetivo de um concurso é o preenchimento das vagas. Dessa forma, além de desempenhar uma função meramente acessória, a referência ao princípio da razoabilidade é inadequada, pois um princípio que deve orientar a avaliação judicial dos atos discricionários é reduzido a uma simples idéia geral de razoabilidade, pela qual seria razoável entender que o objetivo de um concurso é selecionar candidatos.

Assim, o princípio da razoabilidade funcionou como uma mera referência ao que o senso comum considera razoável ou irrazoável, entendendo-se que essa remissão desonera o julgador de justificar argumentativamente as suas próprias opções valorativas. Percebemos, assim, que embora tenha contribuído para a consolidação do princípio da razoabilidade como um argumento válido[197], não se mostra nesse processo uma doutrina consistente sobre o tema. Existem algumas referências à razoabilidade, mas não havia à época — como ainda não há — um amadurecimento maior da discussão sobre o tema na jurisprudência do Tribunal.

7. REED 199.066 (1997)

REED 199.066, julgado em 14.4.1997, rel. min. Marco Aurélio.[198]

No RE 199.066, o STF reformou uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho que garantia a certos funcionários da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT um reajuste em seus vencimentos. Inconformados, os empregados da ECT interpuseram os Embargos Declaratórios em análise, nos quais foram levantados dois argumentos. O primeiro, e mais importante, era a existência de contradição no acórdão, mas o argumento que nos interessa é o segundo: a existência de irregularidade na representação processual.

Os empregados argüiram que o Recurso Extraordinário interposto pela ECT era inadmissível porque não havia nos autos qualquer prova de que o outorgante da procuração judicial era efetivamente o presidente da ECT. O Tribunal rejeitou esse argumento afirmando que o instrumento de mandato havia sido feito em papel timbrado da ECT, constando nele carimbo e visto do Departamento Jurídico e que a peça era subscrita por alguém que se identificava como presidente da empresa. Entendeu a Corte que, para que fosse possível admitir a existência de vício de representação, os Embargantes deveriam ter comprovado a ocorrência de falsidade ideológica, demonstrando que a pessoa que havia outorgado a procuração judicial para os advogados da ECT não tinha poderes para tanto.

Percebe-se, assim, que a questão a ser resolvida pelo STF envolvia um problema de discricionariedade judicial. O ordenamento jurídico exige que as partes estejam devidamente representadas, mas são plausíveis tanto a interpretação que exige que o outorgante prove a sua legitimidade para estabelecer a procuração como o entendimento de que, havendo indícios seguros de que o outorgante é legítimo, caberia à parte contrária demonstrar a invalidade da procuração. A escolha entre essas duas opções exige do julgador um posicionamento valorativo, ao definir se reconhecerá mais peso à certeza jurídica (e exigir a comprovação da legitimidade do outorgante) ou à boa-fé (que o levaria a inverter o ônus dessa prova).

Para resolver esse problema, Marco Aurélio argumentou que “o princípio da razoabilidade é conducente a presumir-se o que ocorre no dia-a-dia e não o extravagante”, com isso afirmando que a opção mais adequada seria a presunção da boa-fé das partes, já que havia fortes indícios que apontavam para a validade da procuração. Reconhece, assim, que a interpretação judicial segundo a qual o recurso era admissível — mesmo que não houvesse comprovação da legitimidade do outorgante — era razoável e, portanto, válida. Embora entendamos que a referência ao princípio da razoabilidade tenha sido adequada à questão discutida no processo[199], identificamos uma argumentação que apresenta problemas. Em seu voto, afirmou Marco Aurélio:

Realmente, no item 1 das contra-razões de folhas 200 e 201, argüiu-se a irregularidade de representação processual diante do fato de não haver acompanhado o instrumento de mandato, de folha 149, peça reveladora de possuir o subscritor, tal como nela consignado, a qualidade de Presidente da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT. Os pressupostos de recorribilidade concernentes ao extraordinário foram apreciados, mediante o voto padronizado de folhas 239 e 240, de forma geral, sem a emissão de entendimento explícito a respeito do tema. Faço-o no acolhimento destes declaratórios para consignar que os Recorridos não chegaram a articular o que seria a falsidade ideológica quanto ao citado documento, talvez mesmo considerado o princípio da razoabilidade, conducente a presumir-se o que normalmente acontece. O instrumento de mandato e o substabelecimento fizeram-se em papel timbrado da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, contando com o carimbo do Departamento Jurídico e visto, estando a primeira peça subscrita por José Carlos Rocha Lima como Presidente da Empresa. Incumbia aos Recorridos argüirem, houvesse campo propício a tanto, a falsidade ideológica, o que não ocorreu na espécie. Daí a presunção de validade do citado documento. No particular, provejo os declaratórios para, complementando o aresto ora embargado, fazê-lo nos termos supra.[200] [grifos nossos]

Essa construção foi praticamente repetida na ementa:

RECURSO - REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL - PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO - PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. O princípio da razoabilidade é conducente a presumir-se o que ocorre no dia-a-dia e não o extravagante. Estando o instrumento de mandato, a procuração, subscrito por quem se diz representante da pessoa jurídica, mencionando o cargo ocupado no âmbito da respectiva administração, não há como presumir-se a irregularidade. A parte contrária, visando a demonstrar a falsidade, há de asseverar a improcedência do que consignado, provocando um incidente de falsidade. Isso não ocorrendo, prevalece a presunção alusiva à boa procedência do que conste da citada peça.

Não consideramos adequado esse tratamento do princípio da razoabilidade como uma espécie de presunção. O princípio da razoabilidade não afirma que se deve presumir o que ocorre no dia-a-dia, mas funciona principalmente como uma forma de avaliação da relação entre meios e fins subjacentes a um ato estatal. Uma interpretação razoável é aquela que confere à norma um entendimento adequado às suas finalidades. Quando um juiz encontra-se frente a duas interpretações plausíveis, ele deve justificar discursivamente a sua escolha, na busca de persuadir a comunidade jurídica de que a solução por ele escolhida é a mais adequada.

Essa justificação, como já foi explicado, não pode ser construída dedutivamente a partir do direito positivo, mas deve ser construída argumentativamente a partir de topos jurídicos escolhidos pelo julgador, na tentativa de persuadir a sociedade de que sua decisão é correta. O respeito à boa-fé e o entendimento de que as procurações aparentemente legítimas devem ser entendidas como tais até que se prove o contrário são topos que podem ser utilizados pelos juízes na sua argumentação.

No presente caso, a referência a esses topos fundamenta um argumento bastante convincente — pois as particularidades da questão[201] nos levam a perceber que há uma probabilidade muito grande de que o outorgante seja legítimo para que seja razoável recusar a validade da procuração. Uma coisa é definir o que é o princípio da razoabilidade e outra é definir quais são as condutas que a jurisprudência considera razoáveis ou não — o critério utilizado não se identifica com as várias aplicações desse critério.

Dessa forma, pode até acontecer que, em certos casos, seja adequado admitir como válida uma procuração, mesmo que não haja elementos concludentes para comprovar a sua validade. Todavia, essa conclusão depende da análise das particularidades de cada caso concreto, pois não se pode resolver em abstrato uma colisão de princípios. Assim, não é admissível a afirmação de que o princípio da razoabilidade conduz a presumir o que normalmente acontece. Ademais, levando a sério essa proposição, seríamos conduzidos a reconhecer como válidas todas as petições judiciais, independentemente de procuração, já que é extravagante a possibilidade de que um advogado peticione em nome de um terceiro sem que este o tenha constituído como seu procurador.

Até que ponto o formalismo jurídico deve ser respeitado e em que momentos ele se converte em um “fetichismo da forma”[202]? Essa pergunta não pode ser adequadamente respondida mediante simples referência uma presunção no sentido de simplesmente assumir o que normalmente ocorre, o que implica abandonar todo o formalismo. Por tudo isso, consideramos que, nesse processo, a referência ao princípio da razoabilidade, embora admissível em tese, foi feita de uma maneira inconsistente. Seria mais adequado, pois, que a argumentação fosse construída de forma que as presunções de boa-fé e de validade funcionassem como topos da justificação, como elementos valorativos a partir dos quais é possível justificar a conclusão, e não como concretizações do princípio da razoabilidade[203].

A utilização do princípio da razoabilidade como simples referência ao senso comum foi traduzida de forma ainda mais explícita nos embargos declaratórios ao RE 199.066, rel. min. Marco Aurélio, julgado em 14.04.1997. Essa tese, que poderia ter sido fundamentada apenas com argumentos de cunho processual — especialmente no campo do ônus da prova —, foi enfrentado pelo min. Marco Aurélio com base no princípio da razoabilidade. Nesse ponto, ele afirmou que não seria razoável que não se conhecesse do recurso por falta da comprovação exigida pelo Embargante e que, por isso, essa exigência feriria o princípio da razoabilidade. Percebe-se claramente que o sentido que o Relator busca dar a esse princípio não se aproxima das teorias mais largamente aceitas, pois não se trata de um modelo para dar um tratamento adequado ao controle judicial de atos discricionários, mas de um mero apelo ao senso comum para fundamentar uma tese processual. Essa utilização do princípio é problemática, pois tende a transformar em um argumento juridicamente relevante uma referência meramente retórica — no mal sentido do termo — a alguma espécie de consciência jurídica ou de valores dos juristas. Seguindo esse tipo de raciocínio, seríamos levados a concluir que adquiriria caráter de norma jurídica tudo aquilo que fosse razoável para o julgador, e este estaria dispensado de justificar as suas opções valorativas, pois seria fundamento suficiente a mera remissão ao senso comum.

8. ADI 1.326 (1997)

ADI 1.326, julgada em 14.8.1997, rel. min. Carlos Velloso.[204]

a) Razoabilidade e requisitos para acesso a cargos públicos

Antes de avaliar a decisão desse processo, convém fazer um panorama da jurisprudência do Supremo sobre o assunto. Nas questões em que o STF analisa a validade de critérios que limitam o acesso a cargos públicos, tornaram-se muito constantes as referências à razoabilidade como parâmetro para a avaliação desses requisitos. Interessante é notar que embora a jurisprudência sobre esse problema seja abundante no Supremo Tribunal Federal, trata-se de uma questão cuja importância é extremamente reduzida na jurisprudência da Suprema Corte ou do BVerfG[205].

O artigo 7o, inciso XXX da Constituição Federal proíbe expressamente qualquer diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. Embora o artigo 7o refira-se apenas aos trabalhadores empregados em regime celetista, o artigo 39, § 2o o estende aos servidores públicos. Uma interpretação gramatical estrita poderia levar-nos à conclusão de que essa disposição torna inválida qualquer regra que estabeleça a idade como critério de admissão para concursos públicos.

Interpretações rígidas como essa, contudo, não são aceitas pelo Supremo Tribunal Federal, que entende que o inciso XXX do artigo 7o admite limitações que sejam razoáveis, tendo em vista imposições da natureza e das atribuições do cargo a preencher. Para utilizar uma afirmação que se tem repetido em diversas ementas redigidas pelo min. Carlos Velloso, “pode a lei, desde que o faça de modo razoável, estabelecer limites mínimo e máximo de idade para ingresso em funções, emprego e cargos públicos. Interpretação harmônica dos artigos 7º, XXX, 39, § 2º e 37, I, da Constituição Federal.”[206]

Devemos ressaltar, entretanto, que o modelo conceitual utilizado pelo Supremo para resolver essas situações não é o da razoabilidade, mas o da isonomia. Ao invés de se falar simplesmente em controle de razoabilidade das limitações, o Tribunal utiliza a idéia de necessidade de tratamento isonômico e conseqüente razoabilidade das discriminações. Como se pode ver pela redação do artigo 7o, a própria Constituição também usa a teoria da igualdade, pois veda a diferença de critério de admissão, e não a existência de critérios arbitrários. E, provavelmente, o texto constitucional é influenciado pela própria jurisprudência do Supremo sobre o tema, que é bem anterior a 1988.

Dessa forma, temos que a cultura jurídica brasileira não considera que a limitação de idade é uma simples restrição a direitos, a qual precisa observar determinados parâmetros de razoabilidade. A nossa jurisprudência dá preferência a uma outra perspectiva: entende que a fixação de um limite de idade implica um tratamento desigual entre as pessoas que têm idade maior e aquelas que têm uma idade menor que a estabelecida. Embora uma tal utilização do modelo da igualdade seja possível, parece-nos mais adequada a aplicação da teoria da razoabilidade a esses casos, já que o resultado pretendido é quase sempre a desconstituição de uma restrição a direitos, mais que a exigência de tratamento isonômico.

Todavia, mesmo no contexto do princípio da isonomia, o critério da razoabilidade adquiriu um relevo muito grande, ao ponto de o próprio Tribunal reconhecer, no RMS 21.045, rel. min. Celso de Mello, julgado em 29.3.1994, que “o tema concernente à fixação legal do limite de idade para efeito de inscrição em concurso público e de preenchimento de cargos públicos tem sido analisado pela jurisprudência desta Corte em função e na perspectiva do critério da razoabilidade”.

Consolidou-se no Supremo o posicionamento de que algumas limitações de idade para ingresso em cargos públicos são válidas porque razoáveis. No RE 184.635(rel. min. Carlos Velloso, 26.11.1996) admitiu-se a razoabilidade da idade mínima de 25 anos para ingresso na carreira do Ministério Público. Já no RE 176.479 (rel. min. Moreira Alves, 26.11.1996), o Tribunal reconheceu que não é discriminatório o limite de idade — mínimo de 21 e máximo de 35 anos incompletos — para a admissão de agentes penitenciários, tendo em vista as funções típicas do cargo: cuidar da disciplina e segurança dos presos; fazer rondas periódicas; fiscalizar o trabalho e o comportamento da população carcerária; providenciar a assistência aos presos; conduzir viaturas de transporte de presos etc.

No entanto, a maior parte da jurisprudência é composta de acórdãos que invalidam os limites de idade estabelecidos por considerá-los discriminatórios. Normalmente, trata-se de limites máximos de idade para o acesso a cargos públicos de natureza burocrática, que são reiteradamente anulados pelo Tribunal.[207] Embora nesses casos seja constante a referência a um critério da razoabilidade, a primeira — e única — tentativa de utilizar o princípio da razoabilidade ocorreu na ADI 1.326, que analisaremos a seguir.

b) Análise do posicionamento de Carlos Velloso na ADI 1.326

Neste processo, o min. Carlos Velloso faz referências tanto ao princípio da razoabilidade quanto ao da isonomia. Velloso afirmou que o Estado pode instituir requisitos para investidura em cargo público desde que respeitado o princípio da razoabilidade e sustenta ser razoável a exigência de formação superior em Direito, Administração, Economia ou Ciências Contábeis para o acesso aos cargos públicos de Auditor Interno, Escrivão de Exatoria, Fiscal e Mercadorias em Trânsito, Exator e Fiscal de Tributos Estaduais[208]. A partir dessas premissas, ele pretende concluir que não há ofensa ao princípio da isonomia. Tomemos a ementa do processo:

Pode o legislador, observado o princípio da razoabilidade, estabelecer requisitos para a investidura em cargo, emprego ou função pública. C.F., art. 37, I[209].

Inocorrência de ofensa ao princípio da isonomia no fato de o legislador estadual ter exigido, para o provimento dos cargos de Auditor Interno, Escrivão de Exatoria, Fiscal de Mercadorias em Trânsito, Exator e Fiscal de Tributos Estaduais, que os candidatos fossem diplomados em Direito, Administração, Economia ou Ciências Contábeis.

Isoladamente, as duas partes que compõem a ementa teriam uma significação bastante adequada. Por um lado, o princípio da razoabilidade é um instrumento adequado para controlar as restrições a direitos, de tal forma que poderíamos considerar verdadeira a primeira parte da ementa. Além disso, uma argumentação consistente poderia levar-nos à conclusão de que uma determinada restrição a direitos não ofende a isonomia, o que torna aceitável também a segunda parte da ementa. Todavia, Carlos Velloso defende em seu voto a idéia de que, como a restrição analisada não ofendia o princípio da isonomia, conseqüentemente não poderia ela contrariar o princípio da razoabilidade — e essa relação de causa e conseqüência parece-nos inaceitável, pelos motivos que exporemos em seguida.

Como as questões referentes a critérios para investidura em cargos públicos são tradicionalmente enfrentadas utilizando-se o modelo teórico da isonomia — que busca verificar a aceitabilidade de uma discriminação —, é compreensível que os autores da presente ADI tenham elaborado todo o seu requerimento sem qualquer remissão ao princípio da razoabilidade. É certo que o Tribunal poderia chegar ao mesmo resultado utilizando apenas o princípio da isonomia, como tradicionalmente faz. Em vários casos, tem-se entendido que o princípio da igualdade exige que toda discriminação seja fundada em critérios razoáveis — e tratar-se-ia apenas da referência a um critério de razoabilidade. Entretanto, ocorrem problemas metodológicos sérios quando Velloso afirma que a discriminação está de acordo com o princípio da razoabilidade porque ela é adequada frente ao princípio da isonomia — o que leva a uma superposição dos princípios, sem que se esclareça o papel desempenhado por cada um.

As dificuldades para avaliar esse processo provêm do fato de que Velloso misturou dois modelos diferentes para avaliar uma mesma situação, sem atentar para as dificuldades inerentes a esse posicionamento eclético. Se uma restrição a direitos não é razoável dentro dos quadros do princípio da razoabilidade, devemos considerá-la inconstitucional. Contudo, nada impede que uma restrição seja razoável e, ao mesmo tempo, implique violação ao princípio da isonomia. Por exemplo, pode ser razoável conceder um certo benefício a um determinado grupo social, mas essa concessão pode ser contrária à isonomia pelo fato de não se oferecerem as mesmas vantagens a um outro grupo que se encontra em situação idêntica. Além disso, uma restrição pode ser irrazoável mas não atentar contra a isonomia: basta que seja aplicada a todas as pessoas. Todavia, Velloso afirmou que uma norma contrariava o princípio da isonomia porque a discriminação era contrária ao princípio da razoabilidade. Uma aproximação similar entre os princípios da razoabilidade e da igualdade foi proposta por Suzana Barros, que afirmou:

Não há incongruência, portanto, na utilização do princípio da proporcionalidade para o fim de constatar se as distinções de tratamento, freqüentemente necessárias em face do resultado perseguido, são ou não compatíveis com a idéia de igualdade, porque a proporcionalidade, como já assentado inúmeras vezes, constitui um parâmetro por excelência e não uma medida em si.

Essa relação tão íntima entre a igualdade e a proporcionalidade levou vários autores a tentar unificar ambas as idéias sob um denominador comum. Não é estranho, em face disso, que alguns tenham sustentado em alguma ocasião que o princípio da igualdade consagre o princípio da proporcionalidade, o que não deixa de ser verdadeiro, quando se toma em consideração a necessidade de invocá-la como critério para a aferição da legitimidade da diferenciação de tratamentos a pessoas até então tidas como idênticas.[210] [grifos nossos]

Com base nesse raciocínio, Suzana Barros afirma que o princípio da razoabilidade tem um caráter instrumental na aplicação do princípio da igualdade, na medida em que a razoabilidade é um critério da validade dos tratamentos discriminatórios. “Sob esse enfoque, o problema da igualdade na lei é também solucionado pela utilização do teste de proporcionalidade, tal como levado a efeito em se tratando de leis restritivas de direito”[211]. Para demonstrar a efetiva utilização pelo STF do princípio da razoabilidade como parâmetro de aplicação do princípio da igualdade, Suzana Barros citou alguns excertos do acórdão do RMS 21.033, julgado 1.3.1991, no qual se discutia se era válido um certo limite de idade para o acesso ao cargo de advogado de ofício da justiça militar:

O Sr. Ministro Célio Borja: [...] entendo que é possível, em certos casos, estabelecer limite de idade, desde que, evidentemente, não tenha caráter discriminatório. Portanto apura-se, in casu, a razoabilidade da exigência de limite de idade. [...]

O Sr. Ministro Aldir Passarinho: [...] óbvio está que se forem desarrazoadas as exigências limitativas de idade não podem elas ser aceitas, por ferirem tal restrição o princípio constitucional que assegura a todos igual oportunidade para o ingresso nos cargos públicos. Verifica-se — e isso foi debatido no precedente — que a exigência é absolutamente descabida, em hipóteses como a dos autos. [...]

O Sr. Ministro Moreira Alves: [...] tendo em vista o caso presente, em que há, objetivamente, uma discriminação exclusivamente por idade e não em razão da natureza dos cargos — tanto assim que se admite que os funcionários públicos possam concorrer com idade superior —, acompanho S. Exa. [...]

O Sr. Ministro Néri da Silveira (Presidente): [...] Penso que esta questão pode ser posta em juízo de constitucionalidade. Se é certo que ao legislador é lícito estipular o prazo máximo, este prazo não poderá, todavia, se dar, por meio da lei, sem razoabilidade.[212]

Todavia, esses ministros falam apenas em razoabilidade enquanto um critério de aplicação do princípio da isonomia. E, se diferença sintática entre critério de razoabilidade e princípio da razoabilidade é muito pequena, a diferença semântica e dogmática entre essas expressões é relevante. É muito diferente afirmar que as discriminações devem estar de acordo com o princípio da razoabilidade e dizer que as discriminações devem ser razoáveis. Se considerássemos que essas duas frases têm o mesmo significado, terminaríamos por desnaturar o princípio da razoabilidade.

Embora esse conceito ainda seja incipiente na jurisprudência do STF, ele tem sido objeto de desenvolvimento por alguns ministros e vem adquirindo contornos próprios e um significado definido. A essa altura, reduzir o princípio da razoabilidade a uma exigência abstrata de que alguns atos sejam razoáveis poria a perder a possibilidade de que esse princípio viesse a se tornar um instrumento importante de controle de legitimidade — tal como o devido processo nos Estados Unidos ou a proporcionalidade na Alemanha.

Por tudo isso, consideramos que existe aqui um déficit metodológico que merece ser ressaltado. O princípio da razoabilidade ainda existe de forma indiferenciada na jurisprudência do Supremo e, como ele não tem um âmbito de aplicação definido, tornou-se possível a sua utilização — sem qualquer justificativa mais aprofundada — como um complemento ao princípio da isonomia. Todavia, parece-nos que esse descompasso não é apenas admissível, mas até mesmo inescapável dentro do momento em que nos encontramos. O controle de razoabilidade tem-se imposto de forma cada vez mais forte, mas, devido à falta de amadurecimento da jurisprudência, ainda não há uma definição mais precisa dos critérios que tal controle pode envolver.

c) Teorias concorrentes: isonomia x proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade, nos moldes do desenvolvimento que lhe foi conferido pela jurisprudência alemã, e o devido processo legal norte-americano não são os únicos instrumentos possíveis de controle de legitimidade. Na ADI 1.326, que o Supremo exerce um controle de legitimidade (na medida em que analisa a aceitabilidade da decisão do legislador que instituiu um certo requisito para o acesso a um cargo público), e esse controle é operado expressamente por meio do princípio da isonomia — que é o instrumento tipicamente utilizado pelo STF para operar o controle de razoabilidade nos casos referentes a concursos públicos. Embora não tenhamos identificado na jurisprudência do STF nenhuma tentativa de enfrentar casos dessa espécie[213] a partir de uma argumentação fundada no devido processo legal, encontramos no voto de Carlos Velloso na ADI 1.326 um primeiro ensaio no sentido de deslocar o problema para o âmbito do princípio da razoabilidade.

Embora julguemos que não se deve confundir o princípio da isonomia com o da razoabilidade, devemos ressaltar que existe entre eles uma grande proximidade, na medida em que ambos são instrumentos de controle de razoabilidade. No tocante às relações entre esses princípios, convém analisar as idéias de Siqueira Castro, que propôs uma interessante aproximação entre o devido processo e o princípio da isonomia:

Esse campo de investigação constitucional, como se verá adiante, conjuga o princípio da isonomia ou da igualdade jurídica com a garantia do devido processo legal, associando-os num feixe de proteção contra as normas e toda sorte de decisões arbitrárias ("irrazoáveis" ou "irracionais") do Poder Público. Impede, em suma, que as discriminações legislativas e os atos decisórios dos agentes estatais sejam fonte de injustiças e de perplexidades atentatórias ao paradigma de coerência exigido nas deliberações do Estado e de seus delegados, aprumando-os ao padrão aceitável de moralidade, de eficiência e racionalidade. O papel da cláusula do due process of law, considerada sob o prisma isonômico, é justamente o de impedir o abuso do poder normativo governamental, isto em todas as suas exteriorizações, de maneira a repelir os males da irrazoabilidade e da irracionalidade, ou seja, do destempero das instituições governativas, de que não está livre a atividade de criação ou de concreção das regras jurídicas nas gigantescas burocracias contemporâneas.[214]

Nessa concepção, a isonomia é entendida como um dos standards do devido processo legal, o que termina por subordinar a igualdade à razoabilidade. Consideramos que essa posição não é aceitável na medida em que não reconhece no princípio da igualdade um conceito autônomo, o que não se mostra adequado, especialmente tendo em conta a consolidação desse princípio na cultura jurídica brasileira — o que não ocorre com o princípio da razoabilidade ou o devido processo legal. Concordamos com Suzana Barros quando ela afirma que “há uma estreita relação entre a proporcionalidade e a igualdade, mas é fundamental distinguir-se o plano de atuação de cada princípio, sob pena de correr o risco de confundi-los”[215].

Por um lado, é bastante claro que nem todo tratamento irrazoável implicará lesão ao princípio da isonomia. Para que se viole esse princípio, é necessário haver uma discriminação, requisito esse inexistente no caso do princípio da razoabilidade. Por outro lado, é possível uma violação ao princípio da isonomia sem ofensa ao princípio da razoabilidade quando a restrição imposta for razoável mas atingir apenas uma classe de pessoas. Todavia, devemos reconhecer que há uma interseção entre os campos de aplicação desses dois princípios, o que ocorre quando um ato estatal é, ao mesmo tempo, discriminatório e irrazoável. Foi esse fato que percebeu a Suprema Corte norte-americana quando declarou inconstitucional a segregação racial nas escolas. Em quase todo o país, o argumento utilizado foi a equal protection, que nesse caso pode ser equiparada ao princípio da igualdade. No entanto, quando tratou do Distrito de Columbia, que não era abrangido pela 14a Emenda por ser território federal, a Suprema Corte utilizou o devido processo legal, afirmando que a falta de razoabilidade de uma discriminação ofende também o devido processo legal.[^222]

Identificamos, assim, que há certos casos que podem ser tratados tanto com base no princípio da isonomia como no da razoabilidade. Vários são os motivos que levam uma corte a optar por um ou outro modelo, e a tradição é um dos elementos mais fortes nessa escolha. No Brasil, o princípio da isonomia encontra-se consolidado há décadas na jurisprudência e na doutrina, o que faz com que ele seja a opção mais provável de advogados e juízes. Por um lado, seria difícil que, em uma hipótese tradicionalmente enfrentada com base na isonomia, um advogado optasse por desenvolver seus argumentos a partir de um instituto emergente, como o princípio da razoabilidade. O risco que essa escolha envolveria seria muito grande. E, da parte dos julgadores, também parece mais sensato optar pelo princípio mais consolidado e sobre o qual há uma firme jurisprudência. Devemos notar que o princípio da igualdade tem passado por uma revisão conceitual que tem aberto caminhos para uma aproximação maior entre os princípios da isonomia e da razoabilidade. Todavia, isso não deve significar uma confusão entre os dois modelos, mas a delimitação dos seus âmbitos de aplicação.

Para ilustrar esse problema de definição de fronteiras, tomemos como exemplo um outro caso concreto. Em um concurso público para professor, o Município de Piratini-RS fixou em 40 anos o limite máximo de idade admissível para os candidatos. No RE 216.929, rel. min. Moreira Alves, julgado em 19.5.1998, o Supremo considerou desarrazoado esse limite para permitir a inscrição de um candidato de 48 anos de idade. Avaliando essa situação com base no princípio da razoabilidade, poderíamos identificar a falta de relação entre a idade e a qualificação profissional para o exercício do magistério. Utilizando os instrumentos teóricos do princípio da proporcionalidade, descreveríamos a situação como um ato administrativo que limitou o direito de acesso a cargos públicos de um cidadão e que, para ser válido, teria que ser adequado, necessário e proporcional. Nesse caso, o Supremo deveria considerar inadequada a limitação, pois em nada contribuía para selecionar candidatos melhor qualificados para o exercício das funções de professor.

Utilizando os standards do devido processo, invalidaríamos a norma pelo mesmo motivo: falta de relação adequada entre fins e meios. Utilizando os quadros da isonomia, o procedimento seria um pouco diverso, embora idêntico o resultado. Ao invés de nos concentrarmos na existência de uma restrição a direitos, deveríamos fixar-nos na existência de um tratamento desigual. O que deveria ser avaliado não seria a legitimidade da restrição, mas apenas a legitimidade do fato de que a limitação é aplicada apenas a uma classe de sujeitos. A razoabilidade a ser analisada não seria a da restrição em si, mas a da sua abrangência. Todavia, não é isso o que ocorre nos dois casos que apresentamos. Tanto em um como em outro, é a própria exigência — de idade máxima ou de formação profissional — que é considerada desarrazoada.

O instrumento tradicional do Supremo para enfrentar questões relativas a concursos públicos é o princípio da igualdade. Não nos deve causar qualquer surpresa, portanto, o fato de Velloso ter utilizado esse princípio como principal argumento de sua decisão. Todavia, as peculiaridades do caso em julgamento podem indicar a possibilidade de novos desenvolvimentos para o princípio da razoabilidade, que em algumas hipóteses pode substituir o princípio da igualdade — e, acreditamos, com vantagens metodológicas. Isso acontece porque, embora haja um campo de superposição dos modelos da isonomia e da razoabilidade, na ausência de um princípio da razoabilidade desenvolvido a jurisprudência nacional tem ampliado o conteúdo do princípio da isonomia a tal ponto que ele tem invadido o campo que seria próprio ao princípio da razoabilidade.

Para ilustrar esse problema, examinemos a seguinte hipótese. Quando uma mulher negra é impedida de utilizar o elevador social de um edifício, ocorre um claro caso de discriminação — a exigência que fazemos é que ela seja tratada como todas as outras pessoas. Esse modelo funciona muito bem no caso de discriminações fundadas em preconceitos, em juízos de valor realizados sobre uma pessoa em função da sua classe social, cor, religião etc. No processo que analisamos, a hipótese é bastante diferente. O Estado de Santa Catarina entendeu que apenas as pessoas formadas em Direito, Administração, Economia e Contabilidade eram aptas a exercer certas funções públicas. Não se trata aqui de preconceito, mas de uma avaliação das condições necessárias para a prática de uma atividade especializada. Uma restrição como essa impede que se candidatem ao cargo tanto as pessoas formadas em Matemática quanto as formadas em Educação Física. Que a Educação Física nada tem a ver com a cobrança de tributos, parece uma afirmação valorativamente aceitável. No entanto, parece plausível que haja uma série de atividades que um matemático possa desenvolver convenientemente nessa área. Além disso, não há tanto em comum entre os quatro cursos superiores elegidos pela administração estadual.

Analisemos outro caso que pode ajudar a esclarecer o problema. No RE 176.479, rel. min. Moreira Alves, julgado em 26.11.1996, o Tribunal julgou válidos os limites mínimos de 21 e máximo de 35 anos para o cargo de agente penitenciário, sob o argumento de que eram razoáveis em virtude das atividades típicas dessa função: cuidar da disciplina e segurança dos presos; fazer rondas periódicas; fiscalizar o trabalho e o comportamento da população carcerária; providenciar a assistência aos presos; conduzir viaturas de transporte de presos, etc. Nesse caso, teríamos uma limitação ao direito de ingresso em cargo público que seria adequada por selecionar candidatos melhor preparados para o exercício do cargo, necessária por excluir possíveis candidatos que não estariam aptos a realizar as tarefas de forma ótima e proporcional, pois os limites efetivamente estabelecidos seriam aceitáveis.

O que o Tribunal julgou razoável nesse caso? O estabelecimento de limites de idade, e não o tratamento desigual. Mesmo assim, o Tribunal ainda costuma avaliar situações como essas a partir do modelo conceitual do princípio da isonomia. Por considerar que, a priori, todas as pessoas têm direito a candidatarem-se a um cargo público, a exclusão do direito de umas configuraria uma distinção que somente seria aceitável se o critério de discrímen guardasse correlação lógica com o objetivo da norma. Todavia, isso resulta em uma avaliação, em abstrato, da legitimidade da restrição, e não em um julgamento da aceitabilidade da discriminação. Um fenômeno semelhante é apontado por Alexy quanto à jurisprudência alemã sobre o princípio da igualdade. Como já descrevemos no ponto relativo à relação entre proporcionalidade e igualdade na Alemanha, as duas Câmaras do BVerfG tinham entendimentos diversos sobre o princípio da igualdade. Enquanto a 1a Câmara tinha um entendimento mais estrito, aplicando a regra de isonomia apenas quando existia um paradigma de comparação, a 2a Câmara encarava a máxima de igualdade como uma proibição geral de arbitrariedade — não sendo a desigualdade em si, mas a razoabilidade em abstrato, o objeto do controle.[216]

Trata-se do mesmo fenômeno que podemos observar atualmente no Supremo Tribunal Federal: a utilização do princípio da isonomia para operar um controle abstrato de razoabilidade. Esse controle ainda não adquiriu uma grande amplitude, mas está se consolidando em algumas áreas específicas, especialmente na questão dos requisitos para o acesso a cargos públicos mediante concurso. Retomando os argumentos de Geiger, citado por Alexy, poderíamos afirmar que “o exame de igualdade não seria o que indica seu nome”. Seria tentador seguir nessa linha de crítica, afirmando que o Supremo tem escamoteado um puro controle de razoabilidade — cuja aceitabilidade ainda é duvidosa pela nossa cultura jurídica — pelo uso extensivo de um princípio já consolidado: o da isonomia.

Mas essa crítica seria despropositada. Para que ela fosse levada a sério, seria preciso acreditar mais nos rótulos que nos conteúdos e esquecer que o desenvolvimento dos novos institutos jurídicos — como toda criação — passa inicialmente por um momento indiferenciado, para somente após um processo de amadurecimento consolidar-se em um conceito novo e individualizado. Para admitir uma crítica colocada nesses termos, seria preciso esquecer que o desenvolvimento do substantive due process durou mais de trinta anos entre a promulgação da 14a Emenda e o julgamento de Lochner e que, desde então, os argumentos preferencialmente utilizados pela Corte se alternam — não por sua lógica intrínseca, como se um conceito jurídico pudesse ter um conteúdo intrínseco e imutável, mas pela aceitabilidade dos argumentos dentro de um contexto político em constante mudança.

Não sustentamos, assim, que o Supremo está criando uma doutrina errônea da igualdade quando utiliza a isonomia para proceder a um controle de razoabilidade. O que nos parece estar ocorrendo é justamente um desenvolvimento, por meio do conceito de isonomia, de um controle de legitimidade típico do princípio da razoabilidade — o que abre perspectivas de que, a partir de um amadurecimento da doutrina e da jurisprudência, esse princípio venha a receber um tratamento independente. Quanto tempo não se passou entre o uso do habeas corpus para a defesa de direitos além da liberdade de locomoção e a criação do instituto do mandado de segurança? Primeiramente é necessário o reconhecimento de que não basta o elastecimento dos conceitos anteriores e que é necessário criar um novo instituto e — só nesse momento o princípio da razoabilidade poderá adquirir uma real autonomia.

Tudo indica que estamos em meio a esse processo de autonomização. No presente momento, verificamos que ocorre um câmbio de terminologia que nos parece um índice dessa mudança. Até há muito pouco tempo atrás, o que se exigia de uma discriminação é que houvesse uma nexo lógico entre a discriminação e a finalidade perseguida pela norma. Atualmente, o Supremo tem afirmado reiteradamente que a discriminação deve ser razoável. Trata-se de uma evolução na jurisprudência do STF: tradicionalmente falava-se de relação lógica entre o critério de discriminação e a finalidade da norma[217] e hoje começa-se a tratar esse problema como uma questão de razoabilidade, e não apenas de racionalidade, tornando-se cada vez mais clara a forte carga valorativa envolvida nessa operação. Nesse caso, é viável identificar-se uma influência da teoria do princípio da razoabilidade. Todavia, sendo o princípio da igualdade muito antigo e profundamente consolidado na teoria jurídica nacional, não é razoável esperar que os problemas tradicionalmente enfrentados sob o prisma da isonomia passem a ser tratados sob o enfoque da razoabilidade em um curto espaço de tempo.

Tomemos, por exemplo, o RE 208.422, relatado por Carlos Velloso, no qual se discute a validade do limite máximo de 40 anos para ingresso na carreira de taquígrafo forense. Nesse processo, assim como no caso anteriormente citado referente a concurso para professor, o Tribunal considerou que a existência de qualquer limite de idade seria inconstitucional porque as funções a serem exercidas não tinham qualquer limitação que pudesse ser derivada da idade. Nesse caso, por considerar inválido o critério em abstrato, a aplicação do princípio da igualdade leva à conclusão de que essa restrição à liberdade de ingresso em cargo público é desarrazoada. Dessa forma, seriam idênticos os resultados da aplicação do princípio da isonomia e da razoabilidade — e o mesmo ocorreria em todos os casos em que a isonomia fosse ferida por uma condição única e geral, pois o objetivo do processo judicial seria a anulação dessa condição e não a extensão ou limitação de um benefício.

Todavia, o mesmo não ocorreria no caso em que o que se pleiteia é a extensão de um tratamento jurídico. Como exemplo, podemos citar o RE 184.635, rel. min. Carlos Velloso, julgado em 26.11.1996, no qual se discute a validade dos limites de idade para ingresso na carreira do Ministério Público do estado do Mato Grosso. O Edital previa limite máximo de 40 anos para os bacharéis em geral e de 45 anos para os servidores. Por considerar que não havia uma justificação razoável para a diferença de tratamento, o Tribunal estendeu para todos os candidatos o mínimo de 45 anos. Essa não seria uma conclusão típica da aplicação do princípio da razoabilidade, por meio do qual seria necessário avaliar a constitucionalidade da limitação aos direitos, e não apenas a da desigualdade na restrição — avaliação essa bem mais problemática porque envolve uma interferência maior na discricionariedade dos outros poderes.

d) Avaliação do julgamento

Feitas essas considerações, podemos entender melhor o alcance da seguinte questão: contra o que se deveria voltar um matemático que ingressasse em juízo postulando a garantia do seu direito de se inscrever referido concurso para fiscal de tributos? Contra o tratamento desigual ou contra a restrição indevida ao seu direito? Suponhamos que ele volte-se contra a desigualdade de tratamento. O seu argumento será que ele pode prestar serviços tão bons quanto um bacharel em direito, em administração, em contabilidade ou em economia — afinal os cargos não exigem uma formação especializada. Observemos, contudo, que essa referência às profissões previstas pelo edital só é necessária para mostrar que o cargo não exige especialização e que, não havendo necessidade de conhecimentos específicos, não há qualquer motivo para que se excluam os matemáticos. No fundo, o problema não é o tratamento desigual, mas a restrição injustificada.

Por esse motivo, consideramos que a aplicação do princípio da razoabilidade seria metodologicamente mais adequada, pois permitiria tratar diretamente do ponto problemático: a razoabilidade da restrição. Não se trata de um caso em que há uma superposição dos dois princípios, mas de uma hipótese na qual é necessário ampliar exageradamente o conteúdo do princípio da igualdade para que se justifique a sua aplicação, na medida em que não se impugna uma discriminação, mas um tratamento arbitrário. É possível que um raciocínio similar a esse tenha levado o min. Carlos Velloso a utilizar a referência ao princípio da razoabilidade. Todavia, a consistência metodológica não é o único valor a ser levado em conta para se definir uma fundamentação jurídica — e a tradição do Supremo é utilizar o princípio da igualdade. Parece plausível a hipótese de que essa tensão entre consistência e tradição tenha sido a causa da interpretação eclética proposta por Velloso. E, se assim for, poderíamos entender, que se trata da primeira iniciativa no sentido de substituir o princípio da isonomia pelo da proporcionalidade no tratamento de algumas questões específicas.

Devemos reconhecer que o entendimento do Supremo Tribunal Federal quanto à extensão do princípio da isonomia está sendo elastecido a tal ponto que o que se promove é um controle abstrato de razoabilidade — mais que um simples controle quanto à de igualdade de tratamento. Todavia, essa tentativa de aproximação entre os dois princípios indica que os problemas dessa ampliação excessiva estão sendo percebidos. Identificamos uma tendência no sentido de consolidar um controle de razoabilidade cada vez mais profundo — o que indica que há um espaço aberto para o desenvolvimento do princípio da razoabilidade na jurisprudência nacional. Esse processo vem avançando de forma lenta, mas gradual. Já se consolidou o critério da razoabilidade como um standard da aplicação do princípio da isonomia e, no AGRRE 205.535 (1998)[218], houve uma expressa preferência pelo modelo da razoabilidade. Tudo indica, assim, que estamos em uma época de transição, na qual possivelmente o princípio da razoabilidade conquistará um espaço de relevo na cultura jurídica nacional.

9. HC 75.192 (1997)

HC 75.192, julgado em 16.9.1997, rel. min. Marco Aurélio .[219]

A teoria do princípio da razoabilidade ingressou no processo penal com o julgamento desse caso, no qual o princípio foi utilizado para sustentar interpretação extensiva do artigo 594 do Código de Processo Penal, o qual estabelece que:

Art. 594. O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto.

O paciente do habeas corpus em análise foi condenado em primeiro grau a uma pena restritiva de liberdade e, inconformado, apelou dessa decisão. Todavia, passados mais de dois anos do recebimento da apelação, o recurso não havia sido apreciado pelo tribunal competente. O paciente interpôs, então, o HC 75.192, sustentando a inconstitucionalidade da regra segundo a qual o recolhimento do réu à prisão era um requisito necessário para que pudesse recorrer da sentença condenatória. Essa argumentação foi acolhida pelo STF, que deu provimento ao habeas corpus, concedendo ao paciente o direito de recorrer em liberdade. A ementa deste acórdão foi redigida nos seguintes termos:

RECURSO - PRESSUPOSTO DE RECORRIBILIDADE - CUSTÓDIA. A norma inserta no artigo 594 do Código de Processo Penal há de ter alcance perquirido em vista não só do princípio da não-culpabilidade, como também o da razoabilidade. Primário o réu e contando com circunstâncias judiciais favoráveis, descabe acioná-la, exsurgindo ato de constrangimento com robustez ímpar, no que esclarecido haver o então acusado respondido à ação penal em liberdade, vindo a submeter-se à custódia em face do extravagante pressuposto de recorribilidade imposto pelo Juízo, sendo que, passados mais de dois anos, não logrou ver apreciada a apelação interposta. [grifos nossos]

Todavia, embora o princípio da razoabilidade seja apontado na ementa como um dos fundamentos jurídicos da decisão, devemos ressaltar que não houve qualquer alusão a ele no corpo do acórdão. No voto que proferiu, Marco Aurélio limitou-se a analisar a possibilidade de execução provisória da sentença penal não-transitada em julgado frente ao art. 5o, LVII da CF, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”[220].

É certo que podemos aplicar o modelo da proporcionalidade ao problema porque ele envolve uma restrição ao direito previsto no inciso LVII do artigo 5o da Constituição Federal, e a resolução de uma colisão de princípios sempre encontra-se na esfera discricionária da atividade judicial. Todavia, isso não quer dizer que esse tenha sido o modelo teórico efetivamente utilizado, pois vários métodos podem conduzir ao mesmo resultado. E devemos notar que não houve qualquer argumentação que colocasse em relevo uma colisão ou a necessidade de harmonizar os princípios colidentes. O simples fato de uma solução ser justificável segundo uma teoria não basta para que se conclua que o modelo fora aplicado — apenas que seria aplicável.

Como não houve qualquer manifestação nesse sentido durante o julgamento, é mais plausível o entendimento de que a referência ao princípio da razoabilidade tenha funcionado apenas como um meio retórico para reforçar — na ementa — a fundamentação do acórdão, por meio da afirmação de que se tratava de uma interpretação razoável do texto constitucional. Todavia, devemos ressaltar que essa é uma argumentação com baixa capacidade de persuasão, pois somente aqueles que acreditam na razoabilidade da interpretação aceitariam as suas conclusões, sendo que tal raciocínio em nada serviria para persuadir ou convencer uma pessoa que não compartilhasse dessa crença. Concluímos, assim, que é mais plausível entender que Marco Aurélio buscou dar continuidade ao esforço de tornar o princípio da razoabilidade um topos da jurisprudência do Supremo e inseriu na ementa a referência ao princípio com o objetivo de chamar a atenção para a sua aplicabilidade a questões semelhantes à que foi julgada no caso.

10. HC 75.331 (1997)

HC 75.331, julgado em 2.12.1997, rel. min. Marco Aurélio.[221]

A aplicação do princípio ao julgamento de habeas corpus continua nesse processo, que trata do artigo 226 do Código de Processo Penal, que estabelece regras sobre reconhecimento de suspeitos:

Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la.

Todo o problema gira em torno da interpretação deste “se possível”. Não há dúvidas sobre a necessidade de se iniciar o ato pela descrição da pessoa a ser reconhecida, mas é preciso definir quando pode a autoridade pública dispensar a exigência do inciso II. No caso em exame, essa formalidade não foi cumprida e os réus terminaram por ser condenados. Ao avaliar essa situação, afirmou o Relator em seu voto:

Inegavelmente, apenas em uma única hipótese despreza-se esta fase [de reconhecimento], ou seja, naquela em que é impossível assim proceder-se. No caso dos autos, não há a menor notícia de óbice à observância do preceito; simplesmente, foi colocado em plano secundário como se não compusesse a ordem jurídica em vigor, emprestando-se-lhe inocuidade maior, chegando-se, a seguir, via reconhecimento à margem da prescrição legal, à condenação do paciente, primário e de bons antecedentes.[222]

O argumento do Relator parece adequado ao caso. A regra é que a exigência do inciso II do artigo citado vincula o agente público e precisa ser cumprida. Logo, a dispensa dessa formalidade configura uma exceção, a qual somente seria válida caso houvesse uma motivação suficientemente forte para tanto. E tal justificativa deveria ter sido apontada expressamente, pois todos os atos estatais devem ser fundamentados. Como não se indicou a existência de qualquer “óbice à observância do preceito”, não se pode entender que o agente se utilizou da exceção prevista no artigo, mas verifica-se que o preceito legal foi simplesmente ignorado pela autoridade estatal. Também devemos atentar para o fato de que a referência ao princípio da razoabilidade é feita apenas na ementa, e não no corpo do acórdão:

RECONHECIMENTO - FORMALIDADES - NATUREZA - INOBSERVÂNCIA. As formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal são essenciais à valia do reconhecimento, que, inicialmente, há de ser feito por quem se apresente para a prática do ato, a ser iniciado com a descrição da pessoa a ser reconhecida. Em seguida, o suspeito deve ser colocado ao lado de outros que com ele guardem semelhança, a fim de que se confirme o reconhecimento. A cláusula “se for possível”, constante do inciso II do artigo de regência, consubstancia exceção, diante do princípio da razoabilidade. O vício não fica sanado pela corroboração do reconhecimento em juízo, também efetuado sem as formalidades referidas. Precedentes: Habeas-Corpus nºs 42.957/GB e 70.936/SP, relatados pelos Ministros Aliomar Baleeiro e Sepúlveda Pertence, perante a Segunda e Primeira Turmas, com arestos veiculados nos Diários da Justiça de 12 de outubro de 1966 e 6 de setembro de 1996, respectivamente.[223] [grifos nossos]

A frase grifada não é muito clara, mas parece traduzir a idéia de que a dispensa dos requisitos estabelecidos no inciso II devem ser orientadas pelo princípio da razoabilidade. Essa afirmação parece-nos verdadeira, pois definir se um determinado óbice configura ou não uma impossibilidade à realização da exigência legal é um ato discricionário e, como tal, deve obedecer a critérios de razoabilidade. Entretanto, no contexto em que foi apresentada, ela adquire uma conotação que não nos parece adequada: a de que os motivos da autoridade pública não foram razoáveis no caso em análise. No presente caso, não se argumentou que o motivo utilizado pelo agente público para justificar a dispensa não era razoável — afirmou-se apenas que o reconhecimento foi ilegal porque não havia qualquer fundamento para a desobservância das formalidades legais.

A situação seria completamente diversa se a autoridade pública tivesse fundamentado a dispensa no fato de não haver qualquer pessoa semelhante ao suspeito, de que ele era o único preso, de que colocá-lo lado a lado com outras pessoas apresentaria algum risco, de que as provas existentes contra ele eram tão fortes que o próprio reconhecimento seria dispensável etc. Caso houvesse alguma justificativa para ser analisada, esse juízo deveria ser orientado pelo princípio da razoabilidade. No entanto, a completa ausência de motivação reduz o problema a uma mera questão de legalidade.

Trata-se, pois de uma simples questão processual, que poderia ter conduzido à utilização de argumentos ligados à garantia do devido processo legal procedimental, mas não ao princípio da razoabilidade. Não há escolha valorativa a ser avaliada porque o agente estatal não tinha a possibilidade de simplesmente descumprir os procedimentos estabelecidos pelo Código Penal. Em última análise, trata-se apenas do descumprimento de um dispositivo do Código Penal, e não da violação de princípios constitucionais.

11. HC 76.060 (1998)

HC 76.060, julgado em 31.3.1998, rel. min. Sepúlveda Pertence.[224]

Nesse processo, utilizou-se o modelo da razoabilidade para resolver-se uma complexa questão de colisão de princípios. Uma das grandes dificuldades do caso era a devida colocação do problema, pois trata-se de uma hipótese inusitada que exige grande cuidado do intérprete para não a enquadrar em padrões preconcebidos que não se ajustam devidamente ao caso, o que foi muito bem feito pelo relator Sepúlveda Pertence[225].

Uma criança foi concebida durante o período de casamento entre a mãe e um homem que, em virtude da presunção legal de paternidade na constância da união, foi registrado como pai. Algum tempo depois, um terceiro ingressou na justiça com o objetivo de se ver declarado pai da criança, juntando ao processo seu exame de DNA, bem como o da mãe e o da criança. Pediu também que fosse feito o mesmo exame pelo pai presumido, para que se comprovasse que ele não era o pai biológico, medida essa que foi deferida pelo juiz da causa. O pai presumido ingressou, então, com o referido habeas corpus, postulando que essa decisão fosse anulada.

Segundo a jurisprudência dominante no Tribunal, não é possível obrigar ninguém a realizar tal exame, pois ele envolve a retirada de sangue do paciente, o que somente poderia ser feito por vontade própria, entendendo a Corte que um exame forçado caracterizaria violação do princípio da intimidade e da integridade corporal dos indivíduos. À primeira vista, seria plausível a resolução do processo com base nesse argumento. Todavia, a situação de fato no presente caso é diversa.

Não se trata de uma hipótese em que o exame de DNA é necessário para a aferição da paternidade. Como este é um procedimento refinado, com margem de erro muito pequena, bastariam os exames constantes dos autos (o da mãe, da criança e do pretenso pai) para que se chegasse a uma decisão com um grau suficiente de certeza. Desse modo, não se trata de recusa a prestar exame essencial para a solução do processo, e sim da recusa a realizar de uma prova de reforço, desnecessária em vista dos elementos já existentes.

No seu voto, o min. Sepúlveda Pertence inicia por afirmar a sua discordância frente à jurisprudência consolidada, fazendo uma longa exposição sobre o tratamento da matéria no direito comparado. Todavia, afirma que as particularidades do caso fazem com que mesmo ele — que considera risível o sacrifício à inviolabilidade corporal decorrente de uma simples espetadela —veja-se obrigado a conceder o pedido de habeas corpus. Como trata-se de uma negação a prestar uma prova de reforço, e não de uma prova essencial, fica patente que essa recusa não causa qualquer dano ao processo.

O que, entretanto, não parece resistir, que mais não seja, ao confronto do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade — de fundamental importância para o deslinde constitucional da colisão de direitos fundamentais — é que se pretenda constranger fisicamente o pai presumido ao fornecimento de uma prova de reforço contra a presunção de que é titular. [...]

Esse o quadro, o primeiro e mais alto obstáculo constitucional à subjugação do paciente a tornar-se objeto da prova do DNA não é certamente a ofensa da colheita de material, minimamente invasiva, à sua integridade física, mas sim a afronta à sua dignidade pessoal, que, nas circunstâncias, a participação na perícia substantivaria.[226]

Com isso, Sepúlveda Pertence transforma um aparente conflito entre integridade física e o direito a conhecimento da paternidade em uma colisão entre dignidade e necessidade de se proceder a uma prova inútil. Se, nos quadros da primeira descrição, a limitação à integridade parece risível, na segunda é a necessidade da prova que se mostra irrelevante. Esse resultado parte da premissa de que a integridade física tem um valor mais importante que o pequeno acréscimo à segurança jurídica que a prova de reforço poderia gerar. Esse é o topos em que se assenta a decisão e, como toda opção valorativa, não pode ser demonstrada racionalmente. Ela pretende refletir os valores sociais e é a efetiva aceitação da sociedade que poderá confirmar a validade dessa pretensão.

Ao descrever a questão como um problema de colisão de princípios, Pertence ofereceu uma base sólida para a aplicação do princípio da razoabilidade. Avaliando o peso específico que deveria ser atribuído aos valores conflitantes e argumentando a partir de topos jurídicos bem determinados — especialmente a questão da dispensabilidade da prova de reforço —, Sepúlveda Pertence promoveu uma aplicação consistente do princípio, o que conferiu grande aceitabilidade à solução por ele proposta.

12. AGRAG 203.186 (1998)

AGRAG 203.186, julgado em 17.4.1998, rel. min. Marco Aurélio.[227]

Nesse processo, avaliou-se o problema da fixação da base de cálculo de imposto quando o objeto do tributo é um negócio jurídico cujo conteúdo econômico fica reduzido em virtude de deflação. Enquanto o fisco sustentava a incidência sobre o valor original, os contribuintes argumentavam que o imposto deveria ser cobrado com base no valor real do negócio, o que implicaria a aplicação dos índices de deflação. O Tribunal decidiu que a cobrança deveria ser feita sobre o valor real pois, caso contrário, haveria enriquecimento sem causa por parte do Estado, que cobraria imposto sem a necessária previsão legal. O min. Marco Aurélio levanta em favor dessa argumentação os princípios da realidade e razoabilidade que, afirma[228], são por vezes esquecidos quando da interpretação da Constituição[229]:

Na espécie dos autos, pretende a Fazenda do Estado de São Paulo seja tomado como valor base da incidência do tributo o primitivo, afastada a deflação que, observada, veio a alterar o quantitativo do negócio jurídico gerador da incidência tributária. A Corte de origem, ao atentar, na espécie, para o princípio da realidade, para o quantitativo real da operação, isso considerado o cálculo do ICMS, homenageou a ordem jurídica em vigor, não adotando entendimento contrário a qualquer dos diversos dispositivos constitucionais evocados pelo Estado. Surgiria descompasso inaceitável caso, aplicada a Lei nº 8.177/91, e diminuído, em si, o valor da venda das mercadorias, houvesse sido feito o cálculo do tributo de acordo com o quantitativo pretérito. Aí, sim, ter-se-ia decisão contrária à Carta da República, mas o interesse em pugná-la seria do contribuinte, objetivando evitar o enriquecimento sem causa, por parte do Estado.[230]

Mais uma vez, Marco Aurélio toma o princípio da razoabilidade como uma mera referência ao senso comum. Nesse caso, ele não o liga à proporcionalidade, mas a um princípio da realidade — termo que não tem qualquer conotação específica em direito constitucional —, para sustentar “a inviabilidade de querer-se afastar do cenário jurídico deflação que acabou por diminuir o quantitativo inicial do negócio jurídico”. Percebemos que a referência ao princípio da realidade é feita apenas para dar uma maior capacidade persuasiva ao argumento de que se deve cobrar o valor real da dívida, o que exigiria a correção monetária não apenas em casos de inflação, mas também em casos de deflação. De forma análoga, a remissão ao princípio da razoabilidade é feita apenas com o intuito de afirmar que a interpretação do fisco não era razoável.

Com essa operação retórica, Marco Aurélio eleva uma simples apreciação valorativa pessoal ao status de princípio constitucional. Retoricamente, a referência a um princípio é muito mais persuasiva que a enunciação de um ponto de vista pessoal — ainda que se pretenda refletir as idéias típicas de uma comunidade. O argumento somente se torna convincente quando os interlocutores compartilham os valores que servem como premissa entimemática (topos) do raciocínio. Tudo isso indica que a opção de Marco Aurélio pela referência aos princípios da realidade e razoabilidade tem uma função meramente retórica: aumentar a capacidade persuasiva do seu discurso, tratando uma apreciação valorativa individual como se fosse a aplicação de princípios constitucionalmente estabelecidos.

13. ADI(MC) 1.813 (1998)

  1. ADI(MC) 1.813, julgada em 23.4.1998, rel. min. Marco Aurélio.[231]

Nesse julgamento vem à tona uma questão política clássica: a definição de critérios para eleição que respeitem o princípio da representatividade[232]. Discute-se a constitucionalidade da Lei n° 9.504/97, que estabelece limites ao número de candidatos que cada partido pode inscrever para um pleito eleitoral. Trata-se de uma lei que modificou a regulação estabelecida pela Lei n° 9.100/95, cuja vigência estava suspensa pelo STF em virtude da ADI(MC) 1.355. Segundo um dos critérios previstos na Lei de 95, a quantidade de candidatos que cada partido poderia inscrever seria proporcional ao número de deputados federais a ele filiados. Essa norma foi considerada inconstitucional porque criava benefício para os grandes partidos, que eram justamente os que compunham a maioria que aprovou a lei.

Já na Lei n° 9.504/97, essa regra foi modificada para estabelecer uma proporcionalidade relativa ao número de cadeiras destinadas à representação de cada Estado e não ao número de deputados de cada partido. Como esse critério vale objetivamente para todos, sem beneficiar desmesuradamente a maioria face aos partidos minoritários, o Tribunal considerou que se trata de um limite adequado ao princípio da proporcionalidade. Para utilizar as palavras do Relator, “o fator de discriminação não se mostra merecedor de glosa, pois surge no campo próprio aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade”. Mais uma vez, temos um caso em que o Tribunal reconhece pontualmente que uma medida é adequada ao princípio da razoabilidade, mas no qual ainda não se elaborou um modelo teórico mais amadurecido sobre o tema. Assim, a referência à proporcionalidade ainda se encontra em um momento indiferenciado, em que a remissão a uma noção geral de razoabilidade ainda não se transformou em um princípio consolidado.

14. AGRAG 194.188 (1998)

AGRAG 194.188, julgado em 30.3.1998, rel. min. Marco Aurélio.[233]

Julgou-se nesse processo o caso de um concurso público de provas e títulos, no qual um candidato foi reprovado porque não possuía o mínimo exigido de títulos de qualificação. Ao lado de outros argumentos, o Relator, em voto que foi acolhido por unanimidade, sustentou que consubstancia verdadeiro paradoxo exigir-se de um candidato uma série de requisitos para a sua inscrição — inclusive comprovação de escolaridade superior — e, após ele ter sido aprovado nas provas escritas e orais, atingindo a média final exigida, declará-lo reprovado em virtude dos pontos atribuídos aos títulos[234].

Segundo Marco Aurélio, uma pessoa que não tivesse as qualificações mínimas necessárias para o exercício do cargo não deveria ter sua inscrição deferida e, conseqüentemente, não poderia prestar as provas escritas e orais. Entretanto, a partir do momento em que a Administração admite a inscrição de um candidato, ele somente pode ser reprovado em virtude do seu próprio desempenho — nunca de sua titulação. Assim, entendeu-se que a prova de títulos não é um instrumento adequado para aferir-se o mínimo de competência necessário para o exercício do candidato e que, por isso, ela seria adequada apenas para interferir na classificação dos candidatos, nunca podendo ter como conseqüência a reprovação.

15. ADI(MC) 1.753 (1998)

  1. ADI(MC) 1.753, julgada em 16.4.1998, rel. min. Sepúlveda Pertence.[235]

Trata-se de um processo decisivo na jurisprudência sobre questões políticas. Antes desse caso, o Supremo havia indeferido todos os pedidos de suspensão liminar da eficácia de medidas provisórias fundados na inexistência dos requisitos constitucionais de urgência e relevância[236]. Embora devamos reconhecer que posturas desse tipo estão de acordo com o tradicional self-restraint do STF[237], essa seqüência de decisões não deve ser entendida como uma admissão tácita de que o Tribunal não teria competência para suspender a eficácia de uma medida provisória com base nesse fundamento, dado que por várias vezes os indeferimentos eram acompanhados pela ressalva de que a análise dos requisitos de relevância e urgência fazia parte das atribuições do STF.

E foi na ADI(MC) 1.753 que, após repetir seguidamente essa ressalva, o Supremo decidiu, pela primeira vez, suspender liminarmente uma medida provisória com fundamento na inobservância dos requisitos constitucionais de urgência e relevância.[238] Nesse processo, avaliou-se a constitucionalidade da MP n° 1.577/97, que ampliava o prazo da ação rescisórias para as entidades de direito público de dois para cinco anos e criava em seu favor uma nova hipótese de rescindibilidade: casos em que a indenização expropriatória houvesse sido flagrantemente superior ao valor de mercado do bem.[239]

O argumento utilizado para justificar a suspensão foi um misto de isonomia e procedural due process of law[240]. Não houve referência direta ao princípio da razoabilidade, mas apenas a uma medida da razoabilidade ou proporcionalidade, como critérios de aplicação do princípio da igualdade. Uma aplicação direta do princípio da razoabilidade chegou mesmo a ser expressamente recusada pelo relator Sepúlveda Pertence, quando afirmou que o que importa se possa pôr em dúvida não é a razoabilidade em si de uma ou de outra das regras editadas, mas sim a sua unilateralidade, a favorecer unicamente o Poder Público.[241] Percebemos, assim, que o modelo teórico utilizado foi o da isonomia: exige-se como requisito de validade de uma discriminação a sua razoabilidade. Dando seqüência ao raciocínio, Sepúlveda Pertence afirma que as medidas governamentais desafiam a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade, caracterizando assim privilégios inconstitucionais. Dessa forma, concluiu que:

Desse, modo, para ser razoável e proporcional ao sacrifício imposto à segurança jurídica que a coisa julgada se destina a criar, parece que o único a reclamar de ambas as alterações legislativas argüidas é que fossem equânimes, bilaterais, tratando igualmente as partes, dado que uma e outra poderão queixar-se, seja da angústia do prazo bienal, seja da falta de remédio contra a indenização injusta.[242]

Esse posicionamento foi reforçado pelo voto do min. Marco Aurélio, no ponto em que afirmou que:

Esse prazo maior é justamente previsto em relação àquele que tudo pode: o Estado. O Estado legisla, o Estado executa as leis, o Estado, em si, julga a execução das leis. Logo, considerados os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, não vejo base para chegar-se a esse tratamento diferenciado; não há uma razão de ser plausível, aceitável, para a distinção, devendo ser levado em conta, principalmente, o princípio isonômico a envolver, também, a administração pública. Aparelhe-se esta última visando à defesa dos interesses públicos e aí ela estará cumprindo o seu mister.[243] [grifos nossos]

Vemos, assim, que, ao contrário de Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio refere-se diretamente aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Todavia, percebe-se que esses princípios foram utilizados apenas como critérios para a aplicação do princípio da igualdade, pois toda a argumentação foi mantida nos quadros do modelo da isonomia. Note-se que Marco Aurélio afirma que o tratamento diferenciado é contrário ao princípio da razoabilidade e que, considerando o princípio da isonomia, as distinções devem ser razoáveis. Assim, verificamos que ocorre nesse posicionamento de Marco Aurélio o mesmo problema metodológico existente no entendimento do min. Carlos Velloso na ADI 1.326, que foi tratado minuciosamente quando analisamos a decisão desse processo.

Dois pontos ficam evidenciados. Em primeiro lugar, a recusa de Sepúlveda Pertence em referir-se ao princípio da razoabilidade quando o caso é de aplicação direta do princípio da igualdade: ele alude à razoabilidade apenas como critério para aplicação do princípio isonômico, seguindo uma tendência que se vem consolidando no Tribunal[244]. Em sentido contrário, percebemos o esforço de Marco Aurélio para inserir a referência expressa ao princípio da razoabilidade, mesmo que seja para subordiná-lo à isonomia, que até mesmo em seu voto foi o fundamento chave da decisão. Embora o esforço para consolidar a razoabilidade como critério da isonomia seja louvável — pois caracteriza um avanço substancial com relação ao critério do nexo lógico —, isso não justifica que se utilize no discurso a menção ao princípio da razoabilidade.

16. RE 221.066 (1998)

RE 221.066, julgado em 17.4.1998, rel. min. Marco Aurélio.[245]

Nesse caso discutiu-se a possibilidade de se proibir a importação de pneus usados por meio de portaria ministerial. O voto do Relator nesse processo é idêntico ao seu voto no RE 202.671, julgado em 13.05.1997, com a diferença que naquele acórdão não houve referência ao princípio da razoabilidade na ementa, o que impediu a sua localização a partir dos programas de pesquisa informatizada do Supremo. Esse ponto demonstra a imprecisão dos métodos de pesquisa disponíveis, que impedem a realização de uma investigação exaustiva a partir deles.

Contrariamente à sustentação da parte autora — que afirma que o princípio da legalidade exigiria uma lei formal para a instituição de proibições dessa natureza —, o Tribunal decidiu que a portaria é um instrumento adequado para tanto. Já se havia firmado, anteriormente, jurisprudência no sentido que a proibição de importação de veículos usados não violava o princípio da isonomia. No presente caso, não se sustentou a inconstitucionalidade da restrição ao direito de contratar, mas apenas da competência do Executivo para estabelecê-la mediante um ato administrativo. Assim, a invocação do princípio da razoabilidade é feita para fundamentar a interpretação segundo a qual o Executivo é competente para estabelecer limites à importação, pois o interesse público exige um tratamento flexível da matéria, que possibilite uma revisão periódica que leve em consideração diversas variáveis políticas, exigências essas que não se coadunam com a necessidade de manifestação do Poder Legislativo ou de uma medida provisória.

Admite-se que a definição das mercadorias que não podem ser importadas é um ato discricionário do governo, a quem caberia a avaliação da oportunidade e da conveniência. Todavia, a razoabilidade das opções valorativas que levaram o governo a vedar a importação de bens usados não é discutida neste processo. O controle de razoabilidade dessa opção política já havia sido operado em processos anteriores e a linha jurisprudencial que a entendia como válida já se encontrava estratificada. E é interessante observar que o controle de razoabilidade foi realizado nos quadros do princípio da igualdade, sem qualquer referência ao princípio ou a critérios de razoabilidade[246].

No presente caso avalia-se apenas a viabilidade do instrumento da Portaria para o estabelecimento da proibição. O administrador não poderia escolher entre fazer uma lei ou uma portaria — pois apenas a segunda opção lhe seria possível. Trata-se, portanto, de uma avaliação formal, no sentido de apurar se o administrador tinha ou não competência para expedir o ato. Mesmo assim, Marco Aurélio afirmou na ementa que “o princípio da razoabilidade constitucional é conducente a ter-se como válida a regência da proibição via Portaria, não sendo de se exigir lei, em sentido formal e material, especificadora, de forma exaustiva, de bens passíveis, ou não, de importação”. Identificamos, pois, uma utilização do princípio da razoabilidade para resolver um caso em que não se avaliava a legitimidade de um ato discricionário, mas apenas critérios formais ligados ao princípio da legalidade. Portanto, o termo princípio da razoabilidade é utilizado apenas para traduzir a idéia de que a portaria era um instrumento formalmente adequado: e esse uso não pode ser caracterizado como um controle de razoabilidade.

O termo razoabilidade é usado meramente como sinônimo de adequado ou aceitável, enquanto o que chamamos de controle de razoabilidade é a adequação e a aceitabilidade no tocante a juízos valorativos, em relação a atos que envolvam discricionariedade. Admitir a equivalência entre razoabilidade e adequação significaria reduzir todas as questões jurídicas a esse critério — os atos precisam ser adequados a todos os princípios, inclusive aqueles de índole formal, como o princípio da legalidade. E reduzir todas as questões a problemas de razoabilidade significaria diluir todo o conteúdo desse conceito a tal ponto que ele não seria mais diferenciável do restante dos critérios jurídicos. Isso faria do princípio da razoabilidade uma mera referência a critérios gerais de razoabilidade ou aceitabilidade ou adequação ou qualquer outra idéia que se enquadre no nosso ideal abstrato de justiça. Teríamos, portanto, uma equivalência entre razoabilidade e justiça, o que tornaria o princípio da razoabilidade um ideal a ser buscado, mas retiraria dele o caráter de topos jurídico com a capacidade de servir como fundamento para a decisão de casos concretos. Para servir como ideal abstrato, como mero princípio regulador, já temos a idéia de justiça — que é claramente metajurídica.

Quanto maior o grau de abstração reconhecido ao princípio da razoabilidade, menor será a sua capacidade de servir como um topos jurisprudencial. E daí a diferenciação necessária entre a noção geral de razoabilidade, decorrente da idéia de justiça e que deve orientar todos os atos jurídicos, e o princípio da razoabilidade, que serve como topos jurisprudencial para a avaliação da legitimidade de atos que envolvam discricionariedade. Por isso, consideramos inadequada a utilização que Marco Aurélio faz do princípio da razoabilidade neste caso.

17. AGRRE 205.535 (1998)

AGRRE 205.535, julgado em 22.5.1998, rel. min. Marco Aurélio.[247]

O estado do Rio Grande do Sul, em um certo concurso para ingresso no serviço público, ao estabelecer o valor que seria conferido aos títulos, atribuiu 2 pontos a cada ano de efetivo exercício no serviço público e, ao mesmo tempo, fixou em 5 pontos o valor do título de doutor em direito. Esse grande valor atribuído ao exercício anterior de funções públicas foi contestado judicialmente, tendo o Judiciário dado ganho de causa aos candidatos que impugnavam a cláusula. Inconformado, o estado do Rio Grande do Sul interpôs recurso extraordinário frente ao STF, a que o min. Marco Aurélio, em decisão monocrática, negou seguimento. Essa decisão foi contestada perante a 2a Turma do STF, que acolheu por unanimidade as razões expostas por Marco Aurélio:

[É] de registrar que o tratamento a ser dado pela administração pública na aferição dos títulos dos candidatos há de apresentar-se em consonância com a finalidade do preceito do inciso II do artigo 37 da Constituição Federal. Descabe dizer que em tal campo atua a administração pública com discricionariedade, mesmo porque esta não exclui a análise da questão sob o ângulo da finalidade do ato. Na espécie dos autos, em detrimento da natureza do vocábulo “títulos”, emprestou-se peso incomum ao tempo de serviço público, a tal ponto de um candidato com três anos de efetivo serviço vir a suplantar aquele que obtivesse titulação máxima, ou seja, a alusiva ao doutorado. Em síntese, três anos de efetivo serviço público levaria, pelo injusto balizamento introduzido pelo Estado, a seis pontos, enquanto o título, realmente título de doutor, acarretaria a concessão de cinco pontos.

A toda evidência, ainda que se possa compreender no gênero “títulos” a consideração do tempo do serviço público, a disciplina emprestada não se mostra razoável, tendo em vista não só o disposto no inciso II do artigo 37, como também o princípio isonômico que a ele é inerente. Por isso, bem andou a Corte de origem ao glosar a situação, não se podendo ver, na hipótese, malferimento aos artigos 2º e 25 da Constituição Federal. Ao contrário, o decidido harmoniza-se às inteiras com essa última, coibindo a prática de ato que, alfim, revelar-se-ia, caso prevalente, um verdadeiro privilégio, colocando em situação de ampla desigualdade aqueles que não tivessem vida pregressa profissional ligada ao serviço público. Eis um caso exemplar de exame do tema sob a esfera da razoabilidade. A Constituição Federal não pode ser tomada como a respaldar verdadeiros paradoxos, olvidando-se o objetivo maior por ela buscado.[248]

Como afirmou Marco Aurélio, temos aqui um caso exemplar da possibilidade da aplicação do princípio da razoabilidade. Por um lado, a decisão tomada faz referência expressa a alguns dos principais fundamentos do princípio da razoabilidade. Em primeiro lugar, refere-se à noção de que esse princípio funciona como um argumento jurídico que possibilita a realização da idéia de Justiça[249]. Em segundo, admite-se que a fixação do valor dos títulos é um ato discricionário da administração pública, mas afirma-se expressamente que esse fato não exclui a possibilidade de controle judicial. Embora a administração tenha argumentado que o Judiciário deveria limitar-se a avaliar a legalidade do procedimento (por critérios formais), o Supremo recusou expressamente tal idéia — e é interessante observar que a própria administração é levada a sustentar argumentativamente a razoabilidade dos critérios que elegeu[250], o que mostra uma das facetas mais salutares da aplicação do princípio da razoabilidade: a discussão pública das escolhas valorativas efetuadas pelos agentes estatais, segundo o aspecto da sua legitimidade e justiça. Das escolhas discricionárias já não se exige apenas a sua limitação à moldura estabelecida pelas regras jurídicas, mas a sua adequação valorativa aos princípios que regem a atividade estatal.

Nesse caso, não cabe a objeção que fizemos contra outros votos do min. Marco Aurélio, relativa à utilização meramente retórica da idéia de razoabilidade. No voto em análise, ele expõe com clareza os motivos que o levaram a concluir pela ausência de razoabilidade, o que nos possibilita verificar as escolhas valorativas efetuadas pelo julgador. E cremos que é justamente isso que deve ser exigido[251] de todo controle de razoabilidade: a exposição clara das opções valorativas, de forma que seja possível fazer o controle da legitimidade da sua própria decisão. Esse processo caracteriza, portanto, uma evolução metodológica frente a certos posicionamentos anteriores desse Ministro.

Todavia, há uma frase de Marco Aurélio que merece algumas considerações, qual seja, a afirmação de que “descabe dizer que em tal campo atua a administração pública com discricionariedade, mesmo porque esta não exclui a análise da questão sob o ângulo da finalidade do ato”. Com isso, repete a teoria tradicional do STF de que o Judiciário não pode avaliar os atos administrativos no tocante à sua conveniência e oportunidade — uma expressão de self-restraint que não parece guardar harmonia com o grande esforço feito por esse ministro no sentido de consolidar o controle de razoabilidade.

18. HC 77.003 (1998)

HC 77.003, julgado em 16.6.1998, rel. min. Marco Aurélio.[252]

Durante 9 meses, um cidadão trabalhou como gari do Município de São José da Coroa Grande – PE. Passado esse período, ele ingressou com ação trabalhista contra o Município, pedindo que fosse assinada a sua carteira de trabalho. Embora não houvesse qualquer prova da prestação dos serviços[253], a estratégia adotada pela defesa foi a afirmação de que o contrato era inválido porque realizado sem concurso público e em ano eleitoral — época em que a lei veda a contratação. Convém ressaltar que essa defesa não foi argüida pela prefeita que efetivou a contratação, mas pelo seu sucessor — que a ela se opunha politicamente. No julgamento do habeas corpus não se aborda explicitamente essa questão, mas o voto de Marco Aurélio deixa implícito o reconhecimento de que a linha de defesa tendia a atribuir a culpa à gestão anterior e que a escolha dessa estratégia tinha sido influenciada pelos interesses político-partidários dos administradores da época.[254]

Verificando-se a existência de fato que poderia configurar ilícito penal — pois a contratação sem concurso público configurava crime de responsabilidade, nos termos do artigo 1o do Decreto-Lei n° 201/67 — determinou-se a remessa de cópia dos autos ao Ministério Público Federal - MPF, a fim de ser “apurada a responsabilidade daquele burgo mestre, atendendo-se, assim, ao que dispõe o artigo 40 do Código de Processo Penal e o inciso VIII do artigo 1º do Decreto-lei 201/67”. Passados dois anos do recebimento dessas informações, o MPF ofereceu denúncia contra a então prefeita da localidade. A questão da possibilidade do recebimento da denúncia chegou ao STJ, que indeferiu o recurso da prefeita, e foi justamente essa decisão que foi impugnada pelo Habeas Corpus em análise.

Durante a discussão, o mais importante argumento levantado em defesa da ex-prefeita foi fundado no princípio da insignificância, pelo qual a máquina judiciária não deve ser acionada para punir atos de gravidade mínima. Mas quais são os critérios para afirmar que um ato é insignificante ao ponto de afastar a intervenção judicial? Trata-se de uma questão delicada, que inevitavelmente envolve juízos valorativos — o que a insere no contexto da discricionariedade judicial. Por isso, parece justificada prima facie a referência de Marco Aurélio ao princípio da razoabilidade como orientação para que se definam esses critérios.

Aparentemente, Marco Aurélio sugere que o princípio da insignificância é um corolário do princípio da razoabilidade — o que é uma posição dogmaticamente plausível, na medida em que se trata de um instituto que trabalha com o conflito entre a necessidade de punir os atos criminosos e a irrelevância de certos atos que podem ser enquadrados na hipótese tipificada como ilícita. Contudo, essa proposta não tem sustentação histórica, visto que o princípio da insignificância precede o da razoabilidade — provavelmente porque evitar a punição de atos irrelevantes é de uma faceta tão clara da idéia de justiça que foi possível que ela adquirisse o caráter de princípio jurídico antes que fosse reconhecida uma exigência mais geral de legitimidade.

Percebemos, assim, que apesar de ser dispensável a referência ao princípio da razoabilidade — pois o caso poderia ter sido julgado apenas com base no já estratificado princípio da insignificância —, Marco Aurélio optou deliberadamente por utilizá-lo como fundamento, dando seqüência à sua tentativa de consolidar o princípio da razoabilidade na jurisprudência do STF — projeto esse que se torna claro quando se constata o grande número de decisões em que ele faz menção ao princípio da razoabilidade ou proporcionalidade. E mais uma vez devemos ressaltar que as escolhas valorativas foram explicitadas e motivadas, o que possibilita avaliação da legitimidade da própria decisão do Supremo e caracteriza um avanço considerável em relação a alguns julgamentos anteriores, nos quais a referência à razoabilidade funcionava apenas como uma remissão ao senso comum e, com isso, servia como fundamento de uma escolha valorativa sem que o Tribunal precisasse justificar argumentativamente essa opção.

19. RE 158.448 (1998)

RE 158.448, julgado em 29.6.1998, rel. min. Marco Aurélio.[255]

O artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estatui:

Art. 19. Os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, na administração direta, autárquica e das fundações públicas, em exercício na data da promulgação da Constituição, em exercício há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, da Constituição [por concurso público], são considerados estáveis no serviço público.

O presente Recurso Extraordinário refere-se ao caso de duas professoras que exerceram o magistério em escolas públicas de meados dos anos 70 até a promulgação da Carta. O benefício criado pelo dispositivo citado foi-lhes negado administrativamente com base no argumento de que o seu vínculo não era continuado: como os contratos foram rescindidos ao fim de cada ano letivo, embora sempre renovados no período letivo subseqüente, não se poderia falar em continuidade. Essa interpretação é plausível, visto que o contrato que ligava as professoras ao serviço público tinha no máximo um ano de duração, no momento em que a Constituição foi promulgada. Todavia, essa interpretação foi rejeitada pelo Relator, em voto acolhido unanimemente pela Turma:

Indaga-se: a norma constitucional exclui a possibilidade de se concluir pela estabilidade em hipóteses como a dos autos? A resposta é desenganadamente negativa. As contratações sucessivas, desprezando-se situação peculiar, implicou inegável prejuízo para as Recorridas. Mais do que isso: tenho-as como verdadeira simulação, porquanto o objetivo do Estado jamais foi dispensar a mão-de-obra. Buscou, mediante procedimento dos mais criticáveis, obter vantagem, não remunerando as Recorridas no espaço de tempo em que desnecessárias as aulas em face às férias escolares. O preceito do artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ao prever o tempo de cinco anos continuados de serviços, para concluir-se pela estabilidade, afasta, tão-somente, aquelas hipóteses em que houve a cessação da relação jurídica e, passado um certo período, o restabelecimento, pressupondo-se situação de absoluta normalidade, o que não ocorreu no caso dos autos. Em síntese, não se pode vislumbrar ofensa, no caso, ao artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, no que se homenageou a realidade, ou seja, afastou-se do cenário jurídico conseqüência de ato condenável do próprio Estado, no que, visando à economia no campo das despesas com o pessoal, procedeu a verdadeiras rupturas fictícias.[256]

Interessante é notar que não há qualquer referência ao princípio da razoabilidade no corpo do acórdão, mas apenas na ementa, na qual se afirma que “os princípios da continuidade, da realidade, da razoabilidade e da boa-fé obstaculizam defesa do Estado em torno das interrupções e, portanto, da ausência de prestação de serviços por cinco anos continuados de modo a impedir a aquisição da estabilidade”. Ora, o eixo da argumentação foi no sentido de que o Estado havia utilizado um procedimento condenável ao fazer contratos temporários para suprir a sua necessidade de pessoal em atividades permanentes. Convém observar que, no Direito do Trabalho (artigo 452 da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT), quando os contratos temporários para o exercício de atividades permanentes são renovados, eles adquirem o caráter jurídico de contratos por prazo indeterminado. Essa regra pode ser entendida como uma concretização do princípio de Direito do Trabalho segundo o qual o contrato de emprego não se define pela literalidade do instrumento contratual, mas pelo modo como realmente ocorria a prestação dos serviços.

Parece, assim, ter havido uma interpretação do Direito Administrativo à luz do Direito do Trabalho[257]. Embora o min. Marco Aurélio tenha-se referido expressamente ao princípio da realidade (em uma clara referência a critérios consolidados no Direito do Trabalho), não parece sustentável a mera subordinação do Direito Administrativo (que é Direito Público) a princípios do Direito do Trabalho (que é Direito Privado). A referência ao princípio da boa-fé também não parece suficiente para fundamentar a conclusão. Entendemos, pois, que o princípio da razoabilidade foi a ponte utilizada por Marco Aurélio para aplicar ao Direito Administrativo algumas concepções de justiça consolidadas no Direito Privado. Ressaltemos: não é preciso ver aqui uma aplicação direta do Direito do Trabalho ao Direito Administrativo, mas apenas a aplicação de critérios de justiça/razoabilidade estratificados no Direito do Trabalho.

Tal como o definimos anteriormente, a aplicação do princípio da razoabilidade envolve sempre a avaliação das opções valorativas de um agente estatal, no exercício de uma função discricionária. A nomeação de pessoas para exercerem cargos públicos é uma atividade discricionária. Embora os procedimentos de contratação sejam vastamente regulados por normas escritas, cabe sempre ao administrador a decisão de oportunidade e conveniência em operar um contrato particular. Foi a escolha do administrador uma opção válida? Embora não houvesse lei específica a respeito — o que afasta a possibilidade de se falar em ato vinculado —, a opção do administrador deveria ser valorativamente adequada. No entanto, o que ocorre é a utilização do instrumento do contrato temporário para preencher cargos ligados a atividades permanentes, com o claro intuito de evitar as conseqüências jurídicas que adviriam do estabelecimento de contratos permanentes. Torna-se claro o desvio de finalidade: rescinde-se um contrato não por força do interesse público, mas de um suposto interesse da administração pública em fazer economia às custas do cidadão.

Como já afirmamos anteriormente, o princípio da razoabilidade é muitas vezes utilizado para possibilitar a revisão de atos nos quais há um desvio de finalidade que dificilmente se poderia demonstrar ou que se prefere não enfrentar diretamente[258]. É claro que nem todo desvio de finalidade pode ser enfrentado com fundamento no princípio da razoabilidade: isso é possível apenas naqueles em que o desvio gera um descompasso entre as finalidades do ato e os meios utilizados para alcançá-la. E como é justamente isso que acontece no presente caso — no qual o meio utilizado não corresponde a nenhum interesse púbico —, havia a possibilidade de utilizar tanto um como o outro argumento. E a opção de Marco Aurélio foi justamente o princípio da razoabilidade, dando seqüência ao seu esforço de consolidar esse instituto na jurisprudência do Supremo.

20. MS 22.944 (1998)

MS 22.944, julgado em 19.11.1998, rel. min. Marco Aurélio.[259]

Em julho de 1998, uma fazenda no estado do Paraná foi declarada de interesse social para fins de reforma agrária, declaração esta que é necessária para a desapropriação da propriedade. Na tentativa de impedir o processo de desapropriação, os proprietários ingressaram em juízo, sustentando a nulidade da declaração de interesse social porque seria nula a vistoria na qual se constatou que se tratava de propriedade improdutiva. Os proprietários argumentaram que, em 26.11.1996, eles foram notificados que a vistoria ocorreria já no dia seguinte — o que caracterizaria desrespeito à exigência de notificação prévia, nos termos do artigo 2º, § 2º, da Lei nº 8.629/93. O Estado respondeu a essa acusação argumentando que a vistoria já havia sido marcada 5 dias antes da notificação, como demonstrava ofício datado de 21.11.196, no qual o proprietário autorizava, de próprio punho, a realização da vistoria a partir do dia 27.11.1996. No seu voto, Marco Aurélio conclui que “assim, descabe falar quer em ausência de notificação prévia, como lançado na inicial, quer em inobservância do citado princípio da razoabilidade”, afirmação que é esclarecida pela ementa:

REFORMA AGRÁRIA - NOTIFICAÇÃO - OCORRÊNCIA - ANTERIORIDADE. A anterioridade da notificação visando à notícia da vistoria, considerado o princípio da razoabilidade, é passível de afastamento por ato do proprietário. Subsistência na hipótese de, no dia anterior, haver sido autorizado, por quem de direito, o ingresso, no imóvel, dos peritos.

Note-se que o princípio da razoabilidade não é invocado para anular um ato estatal, mas para sustentar a sua validade. O argumento do Relator, especialmente pelo que transparece na ementa, é o de que a exigência legal de notificação prévia pode ser afastada desde que haja prévia autorização, ou seja, quem consente à realização de um ato não precisa ser dele notificado. Reconstruindo o raciocínio de Marco Aurélio, parece clara a possibilidade de aplicar ao caso o princípio da razoabilidade, pois avalia-se a escolha valorativa que orientou um agente administrativo na execução de um ato discricionário. Discute-se no processo a validade da fixação de um prazo tão pequeno — apenas um dia — entre a notificação formal e a realização da vistoria.

Estabelecer a data de uma vistoria é ato discricionário e não pode o administrador estabelecer um prazo tão curto que impeça que o autor tome qualquer providência que julgar necessária. Normalmente, pode ser necessário estabelecer a vistoria com quinze dias de antecedência, ou dez, ou cinco, ou três, dependendo das circunstâncias particulares de cada caso. Mas sempre fica a cargo do administrador avaliar a conveniência e a oportunidade da fixação desse prazo. De toda forma, parece claro que a notificação para a realização da vistoria no dia subseqüente não daria ao proprietário o tempo mínimo exigível entre a notificação e a realização da vistoria.

No entanto, as circunstâncias particulares do caso tornam razoáveis o estabelecimento de prazo tão pequeno. O objetivo da notificação prévia era dar tempo ao proprietário de tomar qualquer providência que julgasse necessária. Em verdade, o proprietário já havia sido avisado, com seis dias de antecedência, sobre a realização da vistoria a partir do dia 27.11, e havia expressado sua concordância. Logo, nesse caso concreto, a fixação da vistoria na véspera não podia ser caracterizada como uma surpresa para o proprietário, pois este já estava ciente da vistoria há vários dias. Devemos ressaltar que foram as particularidades desse caso específico que permitiram ao administrador fazer uma opção que seria considerada irrazoável em circunstâncias usuais.

Essa reconstrução do argumento pode parecer um pouco artificial, especialmente porque a ementa afirma que o ato do proprietário afasta a exigência de anterioridade de notificação. Se considerássemos apenas a ementa, seria mais plausível a reconstrução do argumento no sentido de que a notificação prévia seria dispensável a partir do momento em que o proprietário já tivesse expressado sua anuência. Não seria necessário, portanto, avaliar o ato discricionário em si, sendo bastante uma interpretação teleológica: o objetivo da norma é exigir uma notificação prévia; ora, foi avisado com antecedência que a vistoria teria lugar no dia 27, o que é demonstrado pela anuência escrita do proprietário; logo, o requisito da notificação prévia já teria sido cumprido. No entanto, essa interpretação não se coaduna com a parte principal do acórdão, que não é a ementa, mas o voto. E no voto se afirma:

De início, tenderia a concluir pela insubsistência da notificação levada a efeito, considerado o princípio da razoabilidade. É que, ocorrida em 26 de novembro de 1996, motivou vistoria a partir do dia imediato. Todavia, no rodapé do ofício datado de 21 de novembro do referido ano, tem-se autorização do proprietário Dino Bórgio - Impetrante - no sentido da realização a partir de 27 de novembro de 1996. O ato foi praticado, ao que tudo indica, de próprio punho. Confira-se com o que se contém à folha 63. Assim, descabe falar quer em ausência de notificação prévia, como lançado na inicial, quer de inobservância do citado princípio da razoabilidade. Repita-se: o proprietário autorizou a vistoria a partir do dia imediato.[260]

À primeira vista, parece que o prazo mínimo violaria o princípio da razoabilidade. No entanto, a correta avaliação das circunstâncias particulares do caso nos conduz ao entendimento contrário, ou seja, de que o prazo de um dia era adequado, segundo padrões de razoabilidade. Logo, consideramos mais plausível a primeira reconstrução do argumento, que é mais fiel ao voto que à ementa. Mas lembramos também que essa reconstrução somente se faz necessária porque algumas partes do argumento não foram expressas pelo Relator, que as deixou apenas implícitas em seu voto.

21. RE 175.161 (1998)

RE 175.161, julgado em 15.12.1998, rel. min. Marco Aurélio.[261]

Nesse processo, o STF apreciou a seguinte questão sobre a competência dos juizados especiais. Em virtude de inadimplência, uma pessoa foi excluída do consórcio de que participava e, nos termos expressos do contrato, ela tinha direito a reaver apenas o valor nominal pago. Argumentando a invalidade dessa cláusula, o ex-consorciado ingressou no juizado especial de pequenas causas, postulando a restituição das parcelas já pagas, corrigidas monetariamente. Por maioria, o Colegiado do Juizado Especial de Pequenas Causas de São José do Rio Preto – SP decidiu que deveria incidir correção monetária sobre as parcelas a serem restituídas, o que motivou o Consórcio a interpor o Recurso Extraordinário em análise[262].

a) Argumento processual: competência dos Juizados Especiais

O Recorrente levantou vários argumentos, interessando-nos neste item apenas a sustentação de que o Juizado de Pequenas Causas era incompetente para apreciar a questão, por se tratar de matéria complexa, em oposição à previsão constitucional de que tais Juizados devem julgar apenas “causas cíveis de menor complexidade” [art.98, I da CF]. Concluiu, assim, que a sentença proferida teria sido inconstitucional, por violar o artigo 5o, LVIII da Constituição Federal, o qual dispõe que ninguém será processado e julgado senão pela autoridade competente. Refutando essa linha argumentativa, o min. Marco Aurélio afirmou em seu voto:

Ora, não se pode dizer que, na espécie, haja complexidade a afastar o salutar crivo dos juizados especiais, no que revelador de celeridade e economia processuais. Por sinal, a definição da complexidade ficou relegada pelo legislador constituinte de 1988 à fase posterior, própria à edição de normas estritamente legais.

Diante dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, tão caros quando se questiona o alcance de texto constitucional, não há como concluir, na espécie, pela transgressão ao inciso LVIII do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Os esforços devem ser desenvolvidos de modo a ampliar-se a atuação dos juizados especiais, experiência vitoriosa no Brasil, tendo em vista a quadra vivida pelo Judiciário.[263] [grifos nossos]

Identificamos, aqui, mais uma vez, a utilização do princípio da razoabilidade como uma maneira de introduzir no discurso jurídico um posicionamento pessoal como se se tratasse de uma posição valorativa objetivamente válida, sem que seja necessária uma argumentação mais aprofundada. O min. Marco Aurélio limitou-se a afirmar que a experiência dos juizados especiais era vitoriosa e que, por isso, todos os esforços deveriam ser desenvolvidos para ampliar a atuação desses órgãos do Judiciário. E foi com base apenas nesse topos que concluiu pela competência dos Juizados Especiais, em um argumento que fica bastante claro na ementa do processo:

COMPETÊNCIA - JUIZADOS ESPECIAIS - COMPLEXIDADE DA CAUSA. Esforços devem ser desenvolvidos de modo a ampliar-se a vitoriosa experiência brasileira retratada nos juizados especiais. A complexidade suficiente a excluir a atuação de tais órgãos há de ser perquirida com parcimônia, levando-se em conta a definição constante de norma estritamente legal. Tal aspecto inexiste, quando se discute a subsistência de cláusula de contrato de adesão, sob o ângulo de ato jurídico perfeito e acabado, no que prevista a devolução de valores pagos por consorciado desistente e substituído, de forma nominal, ou seja, sem correção monetária.[264] [grifos nossos]

Contudo, devemos ressaltar que, nesse ponto da ementa, Marco Aurélio não repetiu a menção ao princípio da razoabilidade que fôra feita no seu próprio voto. Utilizando a terminologia de Ronald Dworkin, podemos descrever o argumento de Marco Aurélio como fundado em programas [policies] e não em princípios[^272]. E embora não defendamos, tal como Dworkin, que os argumentos baseados em programas políticos são juridicamente inaceitáveis, consideramos que não é adequado apelar apenas para esse tipo de argumentação quando há uma série de princípios jurídicos em jogo. Utilizar simplesmente um argumento desse tipo significa passar ao largo de uma série de questões juridicamente relevantes — tal como discutir a fundo possíveis limitações ao devido processo em virtude dos procedimentos simplificados utilizados nos Juizados Especiais de Pequenas Causas.

Portanto, essa referência ao princípio da razoabilidade não nos parece adequada, na medida em que o princípio é associado a uma argumentação juridicamente inconsistente. Além disso, associar o princípio da razoabilidade à afirmação de um posicionamento individual frente a um programa político [policy] , sem que se ofereçam argumentos juridicamente relevantes para a persuasão da sociedade — especialmente da comunidade dos juristas — de que se trata de uma decisão valorativamente adequada, em nada contribui para a consolidação do princípio da razoabilidade como um topos jurisprudencial autônomo, pois em nada contribui para a fixação de um conteúdo específico para esse princípio.

b) Argumento material: correção monetária

Bastante diversa foi a análise de Marco Aurélio quanto à questão de fundo do processo, que é a necessidade de correção monetária do valor a ser restituído, ainda que o contrato do consórcio preveja apenas a devolução do valor nominal. Para evitar a incidência da correção monetária, o Recorrente invocou a proteção constitucional ao ato jurídico perfeito, contida no artigo 5o, XXXVI da CF. Ao apreciar esse ponto, ao invés de simplesmente apontar um programa [policie] como fundamento de sua decisão, Marco Aurélio desenvolveu uma argumentação consistente, fundada no princípio da vedação do enriquecimento sem causa, que é um topos jurídico consolidado na nossa cultura jurídica[265]. Por se tratar de uma aplicação consistente do princípio da razoabilidade, convém transcrever a parte do voto em que é desenvolvido o argumento.

Resta examinar a alegação da Recorrente de ter a seu favor ato jurídico perfeito e acabado. A Carta da República não agasalha cláusula de contrato que resulte, considerada a natureza adesiva, em verdadeiro enriquecimento sem causa. Ora, na hipótese de desistência de consorciado, a cota respectiva é transferida pela administradora, visando, até mesmo, ao fechamento final do grupo, a terceiro e este fica compelido a satisfazer as prestações vencidas e vincendas, de forma atualizada, levando em conta o preço do veículo. Pois bem, o numerário pago pelo consorciado desistente integrou o complexo revelado pelo consórcio, contribuindo, assim, para o implemento da finalidade almejada.

A restituição das parcelas pagas a final, para que não haja ganho ilícito por parte da empresa consorciada, há de fazer-se não pelo valor nominal, mas pelo valor devidamente corrigido. A não se entender assim, principalmente em época de alta inflação, em torno de 30% (trinta por cento) ao mês, ter-se-á o esvaziamento total do direito do consorciado e sem que tal fenômeno reverta em prol dos integrantes do grupo.

Em última análise, ao encerramento do consórcio, ao término da atividade relativa ao grupo, a quantia referente à correção monetária das parcelas pagas pelo consorciado desistente e substituído, não forma, em si, no saldo rateado, permanecendo nos cofres da própria empresa administradora do consórcio. Por isso, porque esta última já é remunerada com a taxa de administração, não se tem como placitar, como ato jurídico perfeito, a gerar direito adquirido, a óptica da devolução das garantias satisfeitas nominalmente.

Mais uma vez, atente-se para os princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade. Mais uma vez, considere-se que não se pode interpretar um preceito constitucional de maneira isolada, com a automaticidade estranha à busca da prevalência do trinômio Lei, Direito e Justiça. A interpretação é um ato de vontade; é um ato de inteligência, objetivando extrair do preceito normativo, seja este simplesmente legal ou constitucional, eficácia consentânea com os anseios da sociedade, avessos ao oportunismo.[266]

Utilizando esse princípio como ponto de partida, Marco Aurélio analisa detidamente as implicações do cumprimento estrito do contrato. O Ministro construiu uma argumentação consistente, fazendo alusões tanto às questões jurídicas quanto ao contexto social inflacionário, que é decisivo para a avaliação jurídica do caso e também ao fato de que a remuneração da empresa já é feita com base na taxa de administração, o que corrobora a tese de enriquecimento sem causa. Trata-se, pois, de uma aplicação consistente do princípio da razoabilidade. Fica claro que é preciso levar em conta a proteção constitucional ao ato jurídico perfeito e à liberdade de contratar, mas que não se pode perder de vista o princípio da vedação de enriquecimento ilícito. Além disso, Marco Aurélio desenvolve uma avaliação do peso que se deve atribuir a cada um desses princípios, tomando em consideração as peculiaridades da situação concreta em análise. E é por esses motivos que consideramos adequada a aplicação do princípio da razoabilidade nesse caso.

22. RE 192.553 (1998)

RE 192.553, julgado em 15.12.1998, rel. min. Marco Aurélio.[267]

Nesse caso, Marco Aurélio invoca o princípio da razoabilidade para enfrentar uma questão de regularidade da representação judicial. O Tribunal Superior do Trabalho – TST, ao apreciar um agravo de instrumento a ele apresentado pela Secretaria de Estado de Negócios da Justiça de São Paulo e subscrito por um Procurador do Estado, não conheceu do recurso sob o fundamento de que a representação era irregular. Como o artigo 132 da Constituição Federal afirma que os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal exercerão a representação judicial das respectivas unidades federadas, não há controvérsia sobre o fato de que eles são dispensados de apresentar procuração. Entretanto, o TST entendeu que:

O fato de os Procuradores da Fazenda Pública serem detentores de mandato legal, por força do disposto nos arts. 132 da Constituição Federal e 12, inciso I, do CPC, não os isenta de comprovar tal condição, pela juntada do título de nomeação para o cargo ou de documento designando-os para representar o órgão que integram em Juízo.[268]

Assim, o TST entende inexigível a procuração, mas absolutamente necessária a demonstração de que a pessoa que subscreve a petição é realmente um Procurador do Estado. Problema semelhante foi enfrentado pelo Tribunal nos Embargos de Declaração no RE 199.066[269], em que se alegou a irregularidade da representação da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT porque não havia a comprovação de que a pessoa que subscrevia as procurações era realmente o presidente da Empresa. Naquele caso, o min. Marco Aurélio desenvolveu sua argumentação sobre a idéia de que o princípio da razoabilidade é “conducente a presumir-se o que normalmente ocorre”[270], construção esta que é retomada no processo em análise, como se pode apreender com clareza da ementa:

PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE - INTERPRETAÇÃO DE NORMAS LEGAIS - REPRESENTAÇÃO PELO ESTADO - DISPENSA DA COMPROVAÇÃO DA QUALIDADE DE PROCURADOR. O princípio da razoabilidade**, a direcionar no sentido da presunção do que normalmente ocorre,** afasta a exigência, como ônus processual, da prova da qualidade de procurador do Estado por quem assim se apresenta e subscreve ato processual. O mandato é legal e decorre do disposto nos artigos 12 e 132, respectivamente do Código de Processo Civil e da Constituição Federal.[271] [grifos nossos]

Ao analisar o REED 199.066, criticamos essa identificação no princípio da razoabilidade a uma espécie de presunção que exige que partamos do pressuposto de que os fatos acontecem dentro da normalidade. Naquele caso, entendeu-se como normal que a pessoa que, em nome de uma empresa pública, assina uma procuração judicial em papel timbrado da pessoa jurídica, tenha efetivamente poderes para subscrevê-la. No presente caso, Marco Aurélio sustentou que, como o normal é que uma pessoa que se apresenta como um procurador de um estado da federação efetivamente tenha essa condição, não se deve exigir que ele comprove a sua condição funcional[272].

Todavia, embora a ementa do RE 192.553 praticamente repita a construção presente na do REED 199.066, a argumentação contida no voto é bem mais desenvolvida no processo em análise, como se percebe pela seguinte parte do voto do min. Marco Aurélio:

Resta o exame do enquadramento do recurso do permissivo da alínea “a” do inciso III do artigo 102 da Constituição Federal[273]. O que lançado sobre a regularidade da representação processual, no exame de preliminar deste recurso — porque alusivo à matéria ao conhecimento —, serve a concluir-se pela transgressão à Carta da República, considerado o disposto no artigo 132 e, mais do que isso, o devido processo legal.

A representação pode decorrer de instrumento privado ou público ou mesmo estar prevista em lei quando, tomando-se o vocábulo como restritivo, diz-se tratar-se de representação legal. Pois bem, a Corte de origem admitiu, até certo ponto, que o Estado é representado pelos respectivos procuradores. Todavia, olvidando o princípio da razoabilidade, partiu para o fetichismo da forma, desprezando a circunstância de ter-se, na espécie, mandato legal.

Já o Código de Processo Civil, antes da entrada em vigor da atual Carta, dispunha sobre a representação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, pelos respectivos procuradores - artigo 12. Veio a Carta de 1988 e, aí, previu, mediante o preceito do artigo 132, que “os procuradores dos Estados e do Distrito Federal exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas, organizadas em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, observado o disposto no artigo 135”.

Ora, conforme fiz ver ao dar provimento ao agravo, o recurso com o qual se defrontou o Tribunal Superior do Trabalho foi protocolado em papel timbrado da Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça - Procuradoria Geral do Estado. É certo que o subscritor revelou o número da inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil. Todavia, fê-lo após se declarar procurador do Estado, ou seja, integrante da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. A exigência de comprovação da condição de procurador pela juntada do título de nomeação para o cargo ou de documento emitido pelo Procurador-Geral do Estado fez-se de forma extremada, colocando-se em plano secundário o que normalmente ocorre.[274] [grifos nossos]

Vemos, assim, que Marco Aurélio desenvolveu uma interpretação do artigo 132 da CF na qual as exigências formalistas são postas em um plano secundário, dando-se prevalência ao fato de que se trata de uma representação legal. Com isso, ele considera que a interpretação do TST foi orientada por um “fetichismo da forma”, o qual deve ser deixado de lado tendo em vista o artigo 132 e o devido processo legal. Devemos ressaltar, contudo, que essa menção ao devido processo legal não desempenha uma função de relevo na argumentação, pois trata-se de uma referência isolada dentro do discurso construído por Marco Aurélio.

A argumentação contida no trecho acima citado não é tão consistente quanto desejável, na medida em que não explica com clareza as posições valorativas que levam Marco Aurélio a considerar a exigência do TST não como mero formalismo, mas como “fetichismo da forma” e dá um excessivo valor ao fato de a petição ter sido feita em papel timbrado. Todavia, trata-se já de um avanço em relação à construção contida no REED 199.066, no qual a argumentação é menos desenvolvida. Além disso, naquele processo, a idéia de que o princípio da razoabilidade implica uma “presunção do que normalmente acontece” desempenha um papel argumentativo central, enquanto no caso em análise essa afirmação tem um papel secundário.

23. RE 224.667 (1998)

RE 224.667, julgado em 13.4.1999 rel. min. Marco Aurélio.[275]

Nesse processo, o Tribunal avaliou se o artigo 543 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT foi ou não recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Dispõem os parágrafos 3o e 5o do artigo 543 da CLT:

§ 3º Fica vedada a dispensa do empregado sindicalizado ou associado, a partir do momento do registro de sua candidatura a cargo de direção ou representação de entidade sindical ou de associação profissional até um ano após o final de seu mandato, caso seja eleito, inclusive como suplente, salvo se cometer falta grave devidamente apurada nos termos desta Consolidação. [...]

§ 5º Para os fins deste artigo, a entidade sindical comunicará por escrito à empresa, dentro de vinte e quatro horas, o dia e a hora do registro da candidatura do seu empregado e, em igual prazo, sua eleição e posse, fornecendo, outrossim, a este, comprovante no mesmo sentido. O Ministério do Trabalho fará no mesmo prazo a comunicação no caso da designação referida no final do § 4º.

Ao tratar esse mesmo tema, dispôs a Constituição Federal:

Art. 8o, VII – é vedada a dispensa do empregado sindicalizado a partir do registro da candidatura a cargo de direção ou representação sindical e, se eleito, ainda que suplente, até um ano após o final do mandato, salvo se cometer falta grave nos termos da lei.

Como a Constituição não estabeleceu a ressalva contida no artigo 543, § 5o da CLT, o TST concluiu que aquela lei havia sido revogada, de tal modo que o mero registro da candidatura seria suficiente para garantir a estabilidade provisória do empregado. Já o STF, seguindo a orientação proposta pelo min. Marco Aurélio, entendeu que o §5o do art. 543 da CLT fôra recepcionado pela Constituição e que, por isso, a estabilidade somente teria efeitos a partir do momento em que a candidatura fosse formalmente comunicada ao empregador. Afirmou Marco Aurélio em seu voto:

Ora, a ciência do empregador é indispensável a que se venha glosar ato mediante o qual delibera sobre a cessação do contrato de trabalho. A circunstância de no inciso VIII do artigo 8º da Constituição Federal não se aludir a formalidade essencial à aquisição do direito, ou seja, à ciência do tomador dos serviços, não implica dizer-se da ausência de recepção, pela Carta de 1988, das normas contidas na Consolidação das Leis do Trabalho.

Ressalte-se, por oportuno, que a revogação somente ocorreu quanto aos preceitos conflitantes com os novos ares constitucionais, e isto não se verifica no tocante à garantia de emprego do empregado candidato a cargo de direção ou representação sindical e, se eleito, até um ano após o final do mandato**. O princípio da razoabilidade direciona no sentido da plena harmonia dos dispositivos**.[...]

Acabou a Corte de origem por dar ao texto constitucional alcance que ele não tem, ou seja, o de viabilizar a garantia sem o conhecimento, sem que o empregador seja cientificado da candidatura.[276] [grifos nossos]

Para a devida compreensão do caso, é preciso ainda esclarecer que o conflito que deu margem ao processo tem um elemento complicador: a comunicação formal foi efetuada, mas nesse momento o empregado estava cumprindo aviso prévio. Não há no acórdão elementos que apontem quer para uma fraude do empregador (despedindo um funcionário que havia registrado sua candidatura, apesar da ausência de comunicação formal),quer para uma fraude do empregado (que poderia utilizar a candidatura como uma forma de evitar a despedida). Tampouco se afirma expressamente que houve apenas uma coincidência. De toda forma, convém ressaltar que a decisão sequer cogita de qualquer dessas possibilidades, limitando-se a analisar os aspectos formais, que conduziram o Tribunal a admitir a validade da despedida.

Percebemos, assim, que, ao contrário do que ocorreu no RE 192.553[277] e no REED 199.066[278], o princípio da razoabilidade não foi invocado como uma maneira de introduzir na discussão argumentos de ordem fática e axiológica, na busca de suplantar o “fetichismo da forma”. Na decisão em análise, entraram em jogo apenas argumentos fundados na dogmática normativa, o que resultou em uma argumentação de viés altamente formalista, sendo que os fatos e valores em questão não foram expressamente levados em consideração.

Dessa forma, consideramos que embora a matéria não seja completamente avessa ao princípio da razoabilidade[279], o enfoque adotado por Marco Aurélio torna pouco consistente a argumentação efetuada com base em tal princípio. Se a discussão houvesse sido centrada nos conflitos de valores que envolvem a questão, teria sido adequado fazer referência ao princípio da razoabilidade. Todavia, a utilização desse princípio para fundamentar decisões meramente dogmáticas, nas quais os argumentos valorativos permanecem ocultos[280], torna a referência ao princípio da razoabilidade um argumento vazio.

Capítulo III - Análise da Jurisprudência

A - Problemas terminológicos

1. Termos que ocorrem na jurisprudência do STF

a) Princípio de proporcionalidade e/ou razoabilidade

Esta é a fórmula utilizada por Sepúlveda Pertence em duas de suas três referências ao princípio. Na ADI(MC) 855 (1993), Pertence usa a expressão princípio de proporcionalidade e razoabilidade, e não princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Essa construção aponta para o reconhecimento de que há apenas um princípio, o qual envolveria essas duas noções. E, tendo em vista que em seu voto ele fala do questionamento da proporcionalidade ou da razoabilidade — ao invés de questionamento da proporcionalidade ou razoabilidade, podemos entender que ele diferencia os conceitos de proporcionalidade e de razoabilidade. Essa idéia é corroborada pela referência de Pertence, no HC 76.060 (1998) ao princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade e pelo fato de, na ADI(MC) 1.753, ter ele afirmado que uma restrição, para ser constitucional, deve observar a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade. Embora essa terminologia indique o entendimento de que razoabilidade e proporcionalidade são noções diversas Sepúlveda Pertence não ofereceu qualquer subsídio que nos permita identificar a diferença entre elas. A partir da análise dos seus votos, fica clara a preferência de Sepúlveda Pertence pela expressão princípio de proporcionalidade ou razoabilidade, o que é corroborado pelo fato de que, na ADI(MC) 1.158 (1994) — única vez que fez referência isoladamente ao princípio da razoabilidade —, esse não era o seu argumento principal e a menção ocorreu em uma frase isolada.

b) Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade

O min. Marco Aurélio utilizou quatro vezes esse termo: na ADI(MC) 1.813, na ADI(MC) 1.753, no HC 70.003 e no RE 175.161, todos julgados em 1998. Como a linguagem usada por Marco Aurélio possibilita o entendimento de que são dois os princípios — o da proporcionalidade e o da razoabilidade —, isso poderia indicar que esse ministro faz uma diferença conceitual entre esses dois institutos. Essa idéia parece ser corroborada pelo fato de que, na ADI(MC) 1.813 — o primeiro processo em que Marco Aurélio faz menção ao princípio da razoabilidade —, avaliou-se a constitucionalidade de uma limitação ao número de candidatos proporcional ao número de vagas. Parece uma explicação plausível que a referência ao princípio da proporcionalidade tenha derivado do fato de que toda a discussão girou em torno da questão de ser ou não a proporção entre candidatos e vagas um critério válido de limitação. No entanto, como os três outros processos não envolvem questões em que se avalia explicitamente um critério de proporcionalidade, parece claro que Marco Aurélio não faz uma diferença consistente entre esses dois princípios.

c) Princípio da razoabilidade

Na grande maioria dos casos, as referências foram feitas simplesmente ao princípio da razoabilidade — das 23 ocorrências[281] do princípio na jurisprudência do STF, em 18 delas o princípio da razoabilidade aparece isoladamente. O min. Carlos Velloso, utilizou essa terminologia na ADI 1.326 (1988), sendo esta sua única referência ao princípio. Mesmo Sepúlveda Pertence, que se refere preferencialmente ao princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, na ADI(MC) 1.158 (1994), fez menção isoladamente ao princípio da razoabilidade[282]. Já Marco Aurélio fez nada menos que 17 referências a esse princípio[283]. Esse grande número de referências, em processos que tratam das mais diversas questões, corrobora a tese de que Marco Aurélio não faz uma diferença entre o princípio da razoabilidade e o da proporcionalidade.

2. Opção pelo princípio da razoabilidade

Dois são os ministros que têm contribuído sistematicamente para o desenvolvimento do conceito de princípio da razoabilidade: Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence. Como vimos, Marco Aurélio demonstrou uma clara preferência pela utilização apenas do termo princípio da razoabilidade, enquanto Pertence quase sempre faz menção ao princípio da razoabilidade ou proporcionalidade. Embora ambas as opções sejam plausíveis, a referência conjunta às idéias de razoabilidade e proporcionalidade sempre deixa no ar a questão: existe uma diferença entre esses termos? Embora haja autores que proponham uma distinção entre esses conceitos, o certo é que essa questão não mereceu a atenção devida por parte de nenhum dos membros da Corte.

Além disso, para designar o mesmo conceito, há autores que preferem utilizar o princípio da proporcionalidade (como Gilmar Mendes, Suzana Barros e Raquel Stumm) e outros que utilizam preferencialmente o termo princípio da razoabilidade (como Luís Roberto Barroso). Mas poucos foram os autores que buscaram estabelecer uma diferenciação clara entre esses dois princípios, e nenhuma dessas distinções ganhou maior projeção[284]. Frente a essa indefinição e conflito de preferências, a solução que tem sido mais amplamente adotada — e à qual aderimos — é reconhecer a fungibilidade dos termos.[285]

No entanto, manifestamos nossa preferência pelo termo princípio da razoabilidade porque a expressão princípio da proporcionalidade tem um significado muito específico na dogmática jurídica alemã, o qual não é necessariamente o mesmo que ele adquiriu (ou adquirirá) no direito brasileiro. Já o princípio da razoabilidade não tem um sentido dogmático específico, o que deixa o STF mais livre para desenvolver o seu significado e nos cria menos preconceitos sobre qual deveria ser o entendimento do Supremo. Em sentido contrário, a própria admissão do termo princípio da proporcionalidade tende a levar-nos à conclusão de que os três subprincípios da doutrina alemã deveriam estar presentes na jurisprudência do STF. Dessa forma, embora consideremos sinônimos os termos, optamos preferencialmente por utilizar o princípio da razoabilidade.

B - Crescimento do número de referências ao princípio

Da análise da jurisprudência do Supremo, podemos concluir que o princípio da razoabilidade é um instrumento teórico que vem adquirindo uma importância crescente, apesar de apenas três ministros já terem feito referência a tal princípio[286]. Entre os 21[287] acórdãos em que se utiliza expressamente o princípio da razoabilidade como um de seus fundamentos, 14 são relativos a julgamentos ocorridos a partir de 1997:

Ano Nº de julgamentos Marco Aurélio Sepúlveda Pertence Carlos Velloso
1993 2 1 1 -
1994 1 - 1 -
1995 - - - -
1996 1 1 - -
1997 4 3 - 1
1998 12 11 1 -
1999[288] 1 1 - -
Totais 21 17 3 1

A primeira utilização expressa do princípio ocorreu em julho de 1993, em um acórdão relatado por Sepúlveda Pertence. Três meses após, Marco Aurélio utilizou pela primeira vez uma referência ao princípio como fundamento de seus votos.

O ano de 1994 foi muito importante pelo desenvolvimento do controle de razoabilidade, pois nele se concentraram esforços dos ministros Celso de Mello e Moreira Alves no sentido de inserir na jurisprudência da corte o devido processo legal.

Durante todo o ano de 1995, não houve qualquer referência ao princípio da razoabilidade, que somente voltou a mostrar-se em 1996, mas apenas em um processo. Foi em 1997 que o princípio voltou a ser utilizado em uma quantidade razoável de casos. Desde então, observamos um número crescente de referências a esse princípio.

Entretanto, não há ainda uma utilização expressiva do princípio por parte do Tribunal como um todo. Em 14 dos 18 processos, o relator foi Marco Aurélio. Sepúlveda Pertence, embora tenha feito apenas três referências ao princípio, mostra uma grande preocupação em dar uma maior consistência ao princípio. Carlos Velloso referiu-se apenas uma vez ao princípio da razoabilidade, mas tratou-se de uma utilização pontual, que não se inseriu em um esforço maior pela consolidação desse argumento e que, além disso, fez uma aproximação problemática entre princípios da isonomia e da razoabilidade.

E, como afirmamos anteriormente, identificamos uma polarização entre dois argumentos ligados ao controle de razoabilidade. De um lado, temos Celso de Melo e Moreira Alves, que demonstram uma preferência pela utilização do devido processo legal. No entanto, os esforços que esses ministros efetuaram em meados da década de 90 não tiveram continuidade nem renderam muitos frutos. Do outro, temos Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio, que demonstram uma clara preferência pela utilização do princípio da razoabilidade.

Assim, podemos ver que dos 11 ministros do Supremo, apenas 3 participaram do esforço para o estabelecimento do princípio da razoabilidade como um critério juridicamente válido, entre os quais apenas 2 fazem esse esforço de uma forma sistemática até os dias de hoje[289]. Além disso, o único ministro que se utiliza do princípio em um número expressivo de processos é Marco Aurélio.

À primeira vista, parece estranho que o número de membros do Tribunal que utiliza expressamente esse modelo teórico nos julgamentos seja tão reduzido e que, ao mesmo tempo, muitos desses julgados sejam unânimes. Uma explicação plausível para esse fato seria que os demais ministros utilizam outros argumentos jurídicos para resolverem situações semelhantes, os quais podem conduzir a soluções idênticas: sendo coincidente a conclusão, não se manifestam contrariamente aos fundamentos[290].

De qualquer forma, a simples admissão dos argumentos que se utilizam do modelo teórico da proporcionalidade e da razoabilidade indica que o papel desses princípios na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tende a tornar-se cada vez mais relevante. Essa previsão é corroborada pela tendência de utilizar o princípio da igualdade como um meio de controle em abstrato de razoabilidade das restrições impostas e não da abrangência dessas restrições.[291]

Tudo isso indica que a necessidade de desenvolver um controle de razoabilidade mais refinado foi reconhecida pelo Tribunal. Antes da Constituição de 1998, poucos foram os esforços no sentido de desenvolver um controle de razoabilidade consistente e menores ainda os resultados — na medida em que havia uma clara preferência por argumentos de índole formal. Além disso, a jurisprudência do Supremo é marcada — embora cada vez em menor grau — por uma grande deferência à discricionariedade dos outros poderes. Nas palavras de Luís Roberto Barroso:

No Brasil, o apego excessivo a certos dogmas da separação de Poderes impôs ao princípio da razoabilidade uma trajetória relativamente acanhada. Há uma renitente resistência ao controle judicial do mérito dos atos do Poder Público, aos quais se reserva um amplo espaço de atuação autônoma, discricionária, onde as decisões do órgão ou do agente público são insindicáveis quanto à sua conveniência e oportunidade.[292]

Desde o início da década de 90, contudo, essa situação começou a se modificar. O marco inicial dessa mudança, reconhecemo-lo no julgamento da ADI(MC) 223 (1990), na qual a maioria dos ministros emitiu um julgamento que envolvia um juízo de valor sobre a legitimidade de uma norma. Todavia, cada um deles utilizou um argumento diverso e nem todos eram compatíveis entre si. Isso indica que existe uma tendência no Supremo para desenvolver um controle mais efetivo de razoabilidade. O que não ocorreu ainda foi uma definição dos métodos jurídicos que podem ser usados na realização desse controle.

Convém, nesse ponto, lembrar novamente a afirmação contundente de Victor Nunes Leal: “havendo abuso evidente do Congresso, sempre é possível enquadrar esse abuso na infração de algum princípio constitucional”[293]. Embora haja um esforço para coibir as arbitrariedades, a jurisprudência ainda não chegou a um grau de amadurecimento que permitisse a sedimentação de alguns critérios mais ou menos objetivos de controle de razoabilidade. O único instrumento já consolidado é o princípio da igualdade. Todavia, por mais que o seu âmbito tenha sido alargado pela doutrina e pela jurisprudência, há certos limites na sua utilização, que sempre depende da referência a um tratamento desigual para que possa ser aplicado. E quando ele é utilizado para resolver não apenas questões relativas à desigualdade de tratamento, mas também ligadas a tratamentos simplesmente arbitrários, há um perigo de desnaturação do princípio. Essa ampliação excessiva parece ter-se distanciado a tal ponto do núcleo original do princípio, que a jurisprudência, nos últimos anos, tem buscado novos métodos de controle: especialmente o princípio da razoabilidade e o devido processo legal.

C - Atual estado da jurisprudência

O princípio da razoabilidade ainda se encontra em um estágio muito primitivo de desenvolvimento jurisprudencial. A primeira referência expressa ao princípio ocorreu há apenas seis anos, em 1993. Desde então, a maior parte dos esforços tem-se concentrado na tentativa de consolidar a possibilidade de se utilizar o princípio da razoabilidade como um topos jurisprudencial, não tendo havido ainda um esforço maior no sentido de delinear os contornos de tal princípio e estabelecer de critérios mais sólidos e objetivos para a sua aplicação.

Entendemos que o amadurecimento da jurisprudência sobre o princípio depende, inicialmente, da persuasão dos membros do Tribunal no sentido de admitir que ele se trata de um instituto cuja implantação no direito brasileiro por via jurisprudencial é viável. Todavia, não se empreendeu nenhuma tentativa jurisprudencial de conferir ao princípio da razoabilidade um fundamento normativo e, nessa medida, oferecer aos ministros que ainda não se utilizam desse princípio em suas argumentações uma base dogmática mais sólida para que comecem a fazê-lo. Alguns juristas identificaram nas teses de Moreira Alves e Celso de Mello uma tentativa de fundamentar o princípio da razoabilidade na previsão constitucional do devido processo[^302]. Entretanto, a leitura dos acórdãos nos mostra que o esforço desses ministros era o de estabelecer o próprio devido processo como um argumento relevante na jurisprudência do STF. Por isso o princípio da proporcionalidade continua sendo uma construção jurisprudencial sem qualquer uma referência normativa[294]

A avaliação da jurisprudência do STF mostra que o espaço que o princípio da proporcionalidade tem ganho está muito associado à escolha que certos ministros fazem por utilizá-lo na avaliação de algumas espécies de conflitos — especialmente o ministro Marco Aurélio. Todavia, parece que já passou — ou ao menos está terminando — o momento inicial, em que os esforços precisavam ser voltados apenas para a garantia de algum campo de aplicação. Diversos foram os acórdãos nos quais uma argumentação fundada no princípio da razoabilidade foi aceita pelo Tribunal, inclusive por membros que não a utilizam em seus próprios votos. Outros tribunais, especialmente o Superior Tribunal de Justiça, vêm utilizando referências ao princípio da razoabilidade já há alguns anos. Ainda que não se tenham amadurecido as reflexões sobre esse instituto[295], trabalhos teóricos interessantes já foram publicados sobre o tema, que se converteu na principal preocupação de alguns juristas[296]. Tudo isso indica que a viabilidade do instituto, a possibilidade de se construir para ele um espaço dentro da dogmática jurídica brasileira, se não foi inteiramente conquistada, parece já ter um ponto de partida sólido.

O momento atual exige, portanto, não apenas uma defesa da possibilidade do controle, mas o desenvolvimento de um modelo teórico consistente, que seja capaz de garantir ao princípio da razoabilidade um campo de aplicação definido e critérios adequados para a sua realização. Os primeiros passos nesse sentido foram dados, mas ainda não conseguiram gerar resultados profícuos. Precisamos reconhecer que os valores dominantes em uma sociedade — os standards de aceitabilidade social — são critérios que podem adquirir relevância jurídica em diversos casos. Utilizando a terminologia típica da teoria da argumentação de Perelman, as referências a padrões de razoabilidade podem ser utilizadas como topoi jurídicos pelos tribunais. Todavia, admitir a importância da idéia de razoabilidade (entendida como aceitabilidade social) não significa eximir o Judiciário de fundamentar devidamente suas decisões, em especial aquelas que se dão no campo da discricionariedade judiciária. A mera referência à razoabilidade não pode servir como fundamento jurídico de uma decisão — é preciso que o julgador justifique discursivamente suas opções valorativas, é necessário persuadir a sociedade de que o julgamento foi adequado.

Um olhar mais atento sobre a jurisprudência do STF leva-nos a perceber que, até o presente momento, boa parte das referências ao princípio da razoabilidade não passam de meras remissões ao senso comum teórico dos juristas. Quando uma lei ou ato normativo contraria a consciência jurídica do julgador, quando a apreciação valorativa sobre uma norma é compartilhada pelos membros da Corte, então ela é considerada razoável ou irrazoável. A afirmação de que falta razoabilidade a uma norma é utilizada como uma premissa entimemática (ou topos), um ponto de partida que apela para uma identidade de apreciações valorativas entre emissor e receptor e que somente adquire alguma capacidade persuasiva quando os interlocutores efetivamente compartilham certos pressupostos ideológicos. Assim, ao invés de justificar discursivamente as suas próprias opções valorativas, o julgador faz uma mera remissão ao princípio da razoabilidade, como uma forma de dar maior capacidade de persuasão ao argumento.

Em vários votos de Marco Aurélio não se identifica qualquer esforço para o delineamento das linhas argumentativas que seriam válidas dentro de um modelo de razoabilidade, mas apenas referências pontuais à razoabilidade como um instrumento retórico voltado a conferir a seus raciocínios maior capacidade de convencimento: a fundamentação de um juízo de valor em um princípio constitucional é muito mais persuasiva que a admissão de que se trata de um ponto de vista pessoal ou, no máximo, fundado em um pretenso senso comum teórico. Nos seus votos mais recentes, contudo, Marco Aurélio tem desenvolvido de forma mais consistente a argumentação em torno das opções valorativas que propõe. Percebemos uma tendência de abandonar as referências à razoabilidade como fundamentação autônoma e a passagem para uma nova compreensão do princípio da razoabilidade, que julgamos mais adequada: o entendimento de que esse princípio é um meio pelo qual as argumentações sobre escolhas valorativas podem ser introduzidas na argumentação jurídica.

A utilização por Sepúlveda Pertence sempre mostrou um grau maior de refinamento. Embora ele não tenha efetuado um grande esforço no sentido de elaborar um modelo teórico consistente para a aplicação do princípio, o simples fato de ele ter sempre utilizado esse argumento como critério para a resolução de colisão de princípios — que é justamente a principal utilização do modelo da proporcionalidade — contribuiu bastante para um desenvolvimento jurisprudencial mais coerente. O primeiro de seus votos (aliás, o voto pioneiro na utilização do principio da proporcionalidade) tomou como base informações técnicas para fundamentar a irrazoabilidade da norma impugnada, e não apenas referências a uma pretensa consciência jurídica. Em um julgamento posterior, no qual não eram relevantes informações técnicas especializadas, teve o cuidado de reduzir a questão a um conflito de princípios bem delimitado. E na ADI(MC) 1.753 (1988) ele não faz referência expressa ao princípio da proporcionalidade, mas apenas utiliza a razoabilidade como um dos critérios para a aplicação do princípio da isonomia, o que evita um desgaste do conteúdo jurídico do princípio por uma utilização não criteriosa.

D - Classificação das decisões

Identificamos 23 processos em que pelo menos um ministro desenvolveu em seu voto um controle de razoabilidade ou fez referência expressa ao princípio da razoabilidade[297]. Passaremos agora a propor algumas classificações que nos permitirão avaliar o papel desempenhado pelas as referências ao princípio da proporcionalidade dentro desse conjunto de processos. Devemos ressaltar que alguns processos estarão presentes em mais de um quadro, o que se explica pelo fato de que o nosso objeto de classificação não é o acórdão como um todo, mas o voto individual de cada ministro.

1. Grupo A – Referências ao devido processo

Ministro Processos
Celso de Mello ADI(MC) 1.158 (1994).
Moreira Alves ADI 966 e ADI 958[298] (1994)
ADI(MC) 223 (1990)

Nesses três casos, Celso de Mello e Moreira Alves efetuaram uma tentativa de operar um controle de legitimidade com base na previsão constitucional do devido processo. Todavia, esses esforços não tiveram muitos resultados, pois os argumentos fundados no devido processo legal não foram retomados em momentos posteriores, até mesmo por esses próprios ministros.

2. Grupo B – Referências a critérios de razoabilidade, mas não a um princípio da razoabilidade

Ministro Processo
Sepúlveda Pertence ADI(MC) 223 (1990)

Na ADI(MC) 223, Sepúlveda Pertence admite a possibilidade de avaliar a constitucionalidade das medidas provisórias à luz da razoabilidade das limitações que elas criam para os direitos dos cidadãos. Todavia, esse voto não traz qualquer informação no sentido de definir quais são os critérios aceitáveis ou os instrumentos que serão utilizados para aferir essa razoabilidade. Percebemos, assim, a afirmação de que um controle de razoabilidade é necessário, o que não pode ser entendido como uma contribuição para que se transforme o princípio da razoabilidade em um topos jurídico presente na jurisprudência da Corte.

Observe-se que esse critério de razoabilidade é utilizado como um topos independente para a avaliação da constitucionalidade e não como um mero critério ou complemento do princípio da isonomia — tipo de utilização já consolidada do termo razoabilidade e que ocorre, por exemplo, no voto de Sepúlveda Pertence na ADI(MC) 1.753.

3. Grupo C – Referências expressas ao princípio da razoabilidade

Ministro Processos
Carlos Velloso ADI 1.326 (1997)
Marco Aurélio ADI(MC) 1.753 (1998) ADI(MC) 1.813 (1998) AGRAG 153.493 (1993) AGRAG 194.188 (1998) AGRAG 203.186 (1998) AGRRE 205.535 (1998) HC 75.192 (1997) HC 75.331 (1997) HC 77.003 (1998) MS 22.944 (1998) RE 158.448 (1998) RE 192.568 (1996) RE 221.066 (1998) REED 199.066 (1997) RE 175.161 (1998) RE 192.553 (1998) RE 224.667 (1999)
Sepúlveda Pertence ADI(MC) 1.158 (1994) ADI(MC) 855 (1993) HC 76.060 (1998)

Esse é um conjunto tão extenso e heterogêneo que se torna necessário subdividi-lo em subgrupos, especialmente no tocante à função desempenhada pela referência ao princípio da razoabilidade.

a) Grupo C1 – Referência ao princípio da razoabilidade apenas como um critério para a aplicação dos princípios da isonomia e da insignificância
Ministro Processo
Carlos Velloso ADI 1.326 (1997)
Sepúlveda Pertence ADI(MC) 1.753 (1998)
Marco Aurélio ADI(MC) 1.753 (1998)
HC 77.003 (1998)

Nos três primeiros casos, o termo razoabilidade é utilizado, mas a argumentação é centrada no princípio da igualdade. Identificamos nesse uso uma tendência de ampliação do conceito de isonomia, incorporando a razoabilidade como um critério para a validade das discriminações, em um processo que tem levado à autonomização do princípio da razoabilidade em questões normalmente tratadas por meio da isonomia — notadamente, nos problemas relativos a concursos públicos. Já no terceiro processo, o princípio da razoabilidade é utilizado como uma pauta valorativa para a aplicação do princípio da insignificância no Direito Penal.

Não identificamos nesses processos uma contribuição direta para a consolidação do princípio da razoabilidade como um topos jurídico, na medida em que ele é identificado apenas como um critério de razoabilidade mínima a ser aplicado aos tratamentos discriminatórios ou à verificação da insignificância de um ato delituoso. Como o princípio da razoabilidade não tem um tratamento independente nesses casos, excluiremo-los da análise subseqüente e o retomaremos apenas quando analisarmos as possíveis relações entre igualdade e proporcionalidade.

b) Grupo C2 – Controle de razoabilidade de leis
Ministro Processo
Marco Aurélio ADI(MC) 1.813 (1998) AGRAG 194.188 (1998) AGRRE 205.535 (1998)
Sepúlveda Pertence ADI(MC) 855 (1993) ADI(MC) 1.158 (1994)

Por se tratarem dos conjuntos de decisões mais importantes para o estudo do princípio da razoabilidade, as referências a esse princípio nos casos de controle de razoabilidade das leis, atos administrativos e decisões judiciais serão estudados a seguir, em pontos específicos.

c) Grupo C3 – Controle de razoabilidade de atos administrativos
Ministro Processo
Marco Aurélio HC 75.331 (1997) MS 22.944 (1998) RE 192.568 (1996) RE 221.066 (1998)
d) Grupo C4 – Controle de razoabilidade de interpretações
Ministro Processo
Marco Aurélio AGRAG 153.493 (1993) AGRAG 203.186 (1998) HC 75.192 (1997) RE 158.448 (1998) REED 199.066 (1997) RE 175.161 (1998) RE 192.553 (1998) RE 224.667 (1999)
Sepúlveda Pertence HC 76.060 (1998)
e) Grupo C5 – Casos em que a referência à razoabilidade ocorre apenas na ementa
Ministro Processo
Marco Aurélio HC 75.192 (1997) HC 75.331 (1997) RE 158.448 (1998)

Nesses três casos, não há qualquer referência ao princípio da razoabilidade durante o julgamento, mas apenas na ementa dos acórdãos. Não há, pois, qualquer argumentação no sentido de que a aplicação do princípio é cabível ou adequada, mas apenas uma descrição feita pelo próprio relator de que, naquele processo, tal princípio era um dos fundamentos relevantes. A ementa é apenas uma descrição da decisão, e não parte do julgamento. Dessa forma, a referência ao princípio da proporcionalidade apenas na ementa não quer dizer que esse tenha sido o modelo teórico efetivamente utilizado na decisão, pois vários métodos podem conduzir ao mesmo resultado.

O simples fato de uma solução ser justificável segundo uma teoria não basta para que se conclua que o modelo fora aplicado, apenas que seria aplicável. Contudo, devemos reconhecer que a referência ao princípio apenas na ementa não é de todo irrelevante, pois significa que o ministro que a elaborou considera que o princípio da razoabilidade seria aplicável ao caso — motivo pelo qual não excluiremos esses processos da análise subseqüente. De toda forma, não é adequado invocar o princípio na ementa sem que ele tenha sido efetivamente utilizado na fundamentação do acórdão.

E - Controle de razoabilidade de leis

1. Referências expressas ao princípio da razoabilidade

O objeto principal deste trabalho é identificar a função que o termo princípio da razoabilidade desempenha na argumentação desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal nas questões de controle de razoabilidade das normas jurídicas. Em apenas três casos o princípio da razoabilidade foi invocado como argumento no controle de legitimidade de atos normativos elaborados pelo Poder Legislativo.

Ministro Processo Redescrição
Sepúlveda Pertence ADI(MC) 855 (1993) A exigência de pesagem de botijões de gás no momento da compra não é adequada à finalidade de garantir que o consumidor pague exatamente pela quantidade de gás existente no botijão
ADI(MC) 1.158 (1994) Ofende a razoabilidade a concessão de adicional de férias para aposentados.
Marco Aurélio ADI(MC) 1.813 (1998) O número de cadeiras destinados à representação de cada Estado é um critério adequado para definir o número de candidatos que poderão ser lançados por cada partido em âmbito estadual.

Apenas nesses três casos houve uma argumentação do STF no sentido de aplicar o princípio da razoabilidade como um critério para a avaliação de atos normativos elaborados pelo Poder Legislativo. Entretanto, em nenhum deles há uma identificação expressa do que se entende por princípio da razoabilidade.

Na ADI(MC) 855, o princípio foi invocado, de maneira bastante consistente, para fundamentar a avaliação de um ato legislativo discricionário, mas a violação a esse princípio é apenas um dos fundamentos invocados pela decisão e há vários indícios de que a justificativa que teve mais influência para a decisão foi de ordem formal — relativa à competência privativa da União para legislar sobre o tema de pesos e medidas.

Na ADI(MC) 1.158, Pertence afirmou que “a lei questionada remunera férias do aposentado, que, evidentemente, não as tem. Em nome do princípio da moralidade, ou em nome do princípio da igualdade, não se pode conceder remuneração absolutamente despida de causa no serviço público. A lei agride ao princípio da razoabilidade, a meu ver, patentemente”. O princípio da razoabilidade é invocado apenas como um argumento de reforço, ao lado do princípio da moralidade e da igualdade, não se indicando precisamente qual foi o significado da referência a esse conceito.

Devemos ressaltar que neste processo, a argumentação mais elaborada foi feita por Celso de Mello, que invocou o devido processo legal, e não o princípio da razoabilidade. Todavia, a maioria dos ministros seguiu o voto divergente de Marco Aurélio, que afirmava apenas que não se poderia conceder adicional de férias a quem férias não tinha — sem apelar para qualquer princípio que orientasse essa operação valorativa. Dessa forma, vemos que a referência ao princípio da proporcionalidade não desempenhou papel relevante no julgamento.

Na ADI(MC) 1.813, Marco Aurélio afirmou que “o fator de discriminação não se mostra merecedor de glosa, pois surge no campo próprio aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade”, o que demonstra uma certa indiferenciação desse princípio frente ao da igualdade.

Assim, podemos ver que o STF não chegou ainda a declarar a inconstitucionalidade de uma norma editada pelo Congresso Nacional com base no princípio da razoabilidade. A ADI(MC) 855 foi o único caso em que o princípio serviu como argumento consistente no sentido de declarar a inconstitucionalidade de uma lei, pois na ADI(MC) 1.813 a referência tinha como objetivo afirmar que a norma era válida e na ADI(MC) 1.158 ela foi feita de forma muito superficial e não desempenhou uma função relevante no julgamento. Todavia, a ADI(MC) 855 referia-se a uma norma do Estado do Paraná, e não a uma lei federal. Além disso, tanto nesse processo como na ADI(MC) 1.813, houve apenas um exame preliminar da matéria, em sede de medida cautelar, sendo que até o presente momento o STF não julgou os processos principais a elas ligados.

Dessa forma, percebe-se que a utilização do princípio da razoabilidade para o controle de normas elaboradas pelo poder legislativo ainda é incipiente. Foi invocada apenas em três votos, em apenas um deles de maneira consistente[299] e, mesmo nesse caso, não se pode afirmar que tenha sido o argumento mais relevante para a decisão do Tribunal. E somente uma vez um ministro chegou a argumentar que uma lei votada pelo Congresso Nacional deveria ter sido declarada inconstitucional com base nesse princípio[300] — argumentação essa que foi superficial e não teve maior repercussão. A inconstância e a falta de harmonia entre os posicionamentos dos dois ministros que fizeram referência ao princípio e, principalmente, a quase ausência de argumentos fundados no princípio da razoabilidade levam-nos a concluir que não é possível definir um significado preciso para esse termo no tocante ao controle de razoabilidade de leis.

Não obstante, embora em nenhum desses casos tenha havido um reconhecimento expresso de que se tratava de um exame de adequação entre fins e meios, podemos reconstruir o argumento das ADI(MC) 855 e 1.813 como uma avaliação desse tipo — o que não acontece no caso da ADI(MC) 1.158. Trata-se do significado mais antigo do termo razoabilidade na jurisprudência constitucional[301] e do que caracteriza um maior self-restraint por parte do tribunal, pois analisa-se apenas a coerência do legislador — entre os fins que elege e os meios que institui —, sem ingressar na avaliação da legitimidade dos fins por ele escolhidos.

Nos processos abaixo relacionados, alguns ministros defenderam a realização de controles de razoabilidade com base no devido processo legal. É interessante observar que, em todos esses casos, a exigência de razoabilidade dos atos estatais foi entendida como um dos elementos que compõem a idéia do devido processo legal.

Ministro Processo Redescrição
Moreira Alves ADI(MC) 223 (1990) Não ofende o devido processo legal a limitação da possibilidade de o Judiciário conceder liminares sobre certa matérias, pois a gravidade da situação e os riscos ao interesse público justificavam a restrição contida na MP n° 173/90.
Moreira Alves ADI 966 e ADI 958 (1994) Ofende o devido processo legal o estabelecimento de limitações para os partidos apresentarem candidatos quando os critérios utilizados se fundam no desempenho passado dos partidos.
Celso de Mello ADI(MC) 1.158 (1994) Ofende o devido processo legal a concessão de adicional de férias para funcionários aposentados e que, portanto, não podem ter férias.

Na ADI(MC) 223, o min. Moreira Alves afirma que, de acordo com o devido processo legal, não é possível reconhecer validade a atos “aberrantes da razão”. Quatro anos depois, nas ADI 958 e 966, Moreira Alves ofereceu uma concepção mais abrangente desse instituto. Ao apresentar uma distinção entre devido processo procedimental e substantivo, afirmou que “o princípio constitucional do devido processo legal, evidentemente, não é apenas o processo previsto em lei, mas abarca as hipóteses em que falta razoabilidade à lei”. O min. Celso de Mello também sustentou que a razoabilidade é um critério de aplicação do devido processo legal, afirmando que o devido processo, em sua dimensão material, “atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário ou irrazoável”.

3. Devido processo v. Princípio da razoabilidade

Identificamos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal apenas dois ministros que envidaram esforços para desenvolver o controle de razoabilidade com base no devido processo legal (Moreira Alves e Celso de Mello) e outros dois que trabalharam sistematicamente para a introdução do princípio da razoabilidade como critério desse controle (Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio), sendo que os outros ministros não se envolveram de forma mais aprofundada na questão de definir critérios para orientar o controle de legitimidade dos atos estatais.

Também na doutrina podemos observar uma divisão semelhante. Por um lado, temos Gilmar Ferreira Mendes, Suzana de Toledo Barros, Raquel Denise Stumm, Paulo Bonavides, Luís Roberto Barroso e Willis Santiago Guerra Filho[302], que focalizam o controle de razoabilidade a partir do princípio da proporcionalidade. Do outro lado, temos Carlos Roberto de Siqueira Castro[303] e Maria Rosynete Oliveira Lima[304], que analisam a questão sob a ótica do devido processo legal.

É interessante observar que os defensores de cada uma dessas correntes costumam ver na outra um reforço aos seus próprios argumentos. Nas ADI 958 e 966, Moreira Alves redescreve o voto de Sepúlveda Pertence como uma aplicação do devido processo legal. Já Gilmar Mendes, Suzana Barros, Raquel Stumm e Luís Barroso citam referências ao devido processo como exemplos de aplicação do princípio da razoabilidade[305].

Enquanto esses autores defendem a possibilidade de se fundamentar o princípio da razoabilidade na previsão constitucional expressa do devido processo legal — subordinando o devido processo a um princípio da razoabilidade com conteúdo idêntico ao princípio da proporcionalidade germânico—, Rosynete Lima faz a operação inversa, subordinando o princípio da razoabilidade ao do devido processo, ao afirmar que “o princípio da proporcionalidade, bem assim o da razoabilidade, são subprincípios concretizadores do devido processo legal, no seu aspecto substantivo”[306].

Sobre esse tema, Siqueira Castro faz uma observação histórica interessante. O texto final proposto pela Comissão de Sistematização da Assembléia Nacional Constituinte estabelecia que "a administração pública, direta ou indireta, de qualquer dos poderes obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, exigindo-se, como condição de validade dos atos administrativos, a motivação suficiente e, como requisito de sua legitimidade, a razoabilidade" [grifos nossos]. Entretanto, essa referência à razoabilidade não foi aprovada pelo Plenário da Assembléia, o que indica uma possível recusa do constituinte em admitir o controle judicial da razoabilidade dos atos administrativos. Todavia, Siqueira Castro nega essa possibilidade interpretetativa ao afirmar que, o critério de razoabilidade não foi expressamente aprovado:

Mas, por outro lado, acolheu-se no elenco dos direitos fundamentais a garantia mais abrangente e magnânima de todas as suas congêneres -- a cláusula due process of law, onde se inclui não só o princípio da "razoabilidade", como ainda a exigência de "motivação" dos atos estatais, além de todo e qualquer requisito de legalidade e de justiça que o sentimento constitucional de nosso povo e de nossas instituições, em sua evolução do porvir entenda necessário ao aperfeiçoamento do convívio democrático.[307]

Não acreditamos, contudo, que sejam viáveis essas perspectivas que subordinam o princípio da razoabilidade ao devido processo ou vice-versa. Afirmar que o princípio da razoabilidade pode ser derivado do devido processo, como já defendemos anteriormente, é uma conclusão barroca que não tem muita consistência e apresenta vários inconvenientes[^317]. Por outro lado, a afirmação de que o princípio da razoabilidade é um subprincípio do devido processo significa atribuir ao devido processo legal um conteúdo que ele nunca possuiu na jurisprudência norte-americana e que não adquiriu na jurisprudência brasileira. Consideramos que a melhor forma de estabelecer a relação entre esses institutos é enquadrá-los como dois modelos diversos de controle de legitimidade.

Em ambos os casos, a razoabilidade ou a proporcionalidade é utilizada como um dos critérios (ou pautas, padrões ou standards, dependendo da terminologia que se escolha) para a operação do controle de legitimidade. Tanto o princípio da razoabilidade como o devido processo legal — e atualmente até mesmo a igualdade — têm na razoabilidade um dos seus critérios de aplicação. Aqueles que defendem a utilização do princípio da proporcionalidade normalmente o fazem por uma preferência pela teoria jurídica alemã, enquanto os que utilizam o devido processo demonstram uma maior influência das idéias norte-americanas. Todavia, isso não implica apenas uma preferência entre termos, mas também entre enfoques de controle.

A jurisprudência alemã, de forte tendência neokantiana, entende que há uma ordem objetiva de valores implícita na Constituição[^318], o que possibilita uma ponderação de valores objetivamente controlada. Além disso, a precisão e a sistematicidade que há muito marcam o pensamento alemão[308], levaram a doutrina germânica a desenvolver um método de controle com critérios bastante rígidos e objetivos, divididos sistematicamente em três elementos diferentes que se justapõem para formar um controle complexo. Por outro lado, o devido processo americano foi uma construção jurisprudencial que não obedeceu a critérios sistemáticos precisos, mas que se foi fazendo aos poucos, a partir de decisões que apontavam para um sentido comum: o controle da razoabilidade dos atos estatais.

Com o tempo, estratificaram-se na jurisprudência alguns standards, mas não houve um esforço maior para a sistematização desses critérios valorativos. Pelo contrário, já citamos aqui a posição do Justice Felix Frankfurter, segundo o qual o devido processo não “pode ser aprisionado nos traiçoeiros limites de qualquer fórmula”[309]. Com isso, os critérios de aplicação do devido processo tornaram-se ao mesmo tempo mais assistemáticos e flexíveis que os germânicos. Trata-se, portanto, não apenas de uma diferença terminológica, mas de uma contraposição de valores e estilos.

Além disso, chamamos a atenção para o fato de que os três elementos do princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) são o resultado de uma diferenciação dos critérios de razoabilidade operados na doutrina e jurisprudência alemãs. No início, havia uma idéia geral de razoabilidade e proporcionalidade que, com os desenvolvimentos operados durante a década de 60, diferenciaram-se até a sua estratificação em três princípios complementares. Trata-se do resultado de um amadurecimento das discussões sobre o tema em uma determinada cultura — e não de um conceito a priori do Direito ou de um critério necessário para o devido tratamento dos direitos fundamentais, como pretendia Alexy[^321].

Analisando o desenvolvimento jurisprudencial sobre o controle de razoabilidade de leis no Brasil, verificamos que ele ainda se encontra em um estágio incipiente — especialmente o controle realizado com base no princípio da razoabilidade. Como verificamos no ponto anterior, houve apenas duas manifestações individuais consistentes nesse sentido, apenas uma delas com um alto grau de propriedade, mas em nenhum desses casos chegou-se a anular uma norma elaborada pelo Congresso Nacional. Em contraposição, as três referências ao devido processo legal ocorreram em Ações Diretas de Inconstitucionalidade e, nos dois casos mais recentes, a referência ao devido processo funcionava como o principal argumento para justificar a declaração de inconstitucionalidade de uma lei federal. Assim, pode-se afirmar que as referências ao devido processo legal desempenharam um papel mais relevante que as referências ao princípio da razoabilidade, no tocante ao controle de legitimidade das normas.

Todavia, devemos reconhecer que nem mesmo os quatro ministros aqui relacionados têm utilizado esses conceitos de forma sistemática. Na ADI(MC) 223, Moreira Alves refere-se ao devido processo legal, embora Celso de Mello não o faça. Na ADI 855, Sepúlveda Pertence utiliza argumentos fundados no princípio da razoabilidade, mas Marco Aurélio não. Nas ADI 958 e 966, Moreira Alves refere-se ao devido processo e Sepúlveda Pertence a um critério de razoabilidade. A ADI(MC) 1.158 foi o único caso em que há menção, no mesmo processo, tanto ao princípio da razoabilidade quanto ao devido processo, nos votos de Pertence e Celso de Mello.

Daí em diante, não houve outras referências ao devido processo e, de forma bastante curiosa, Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio nunca se referiram ao princípio da razoabilidade em um mesmo processo. Tudo isso apenas reforça a tese de que ainda não se pode determinar com clareza os critérios utilizados pelo Supremo no controle de legitimidade — o que é impossível tanto no caso das referências ao princípio da razoabilidade como ao devido processo legal[310].

Por tudo isso, é com algum pesar, mas sem grande surpresa, que reconhecemos que as previsões feitas por Siqueira Castro no final da década passada não se realizaram. Esse autor verificou com clareza que faltava ao Direito brasileiro um controle de razoabilidade desenvolvido e identificou como uma das causas principais desse fato a falta de uma atribuição expressa ao Judiciário da competência para exercer tal controle. Como a Constituição de 1988 previu expressamente a garantia do devido processo legal, em 1989 Siqueira Castro mostrou-se bastante otimista quanto ao desenvolvimento do controle de razoabilidade:

Conforme se verificou nos capítulos precedentes, em decorrência da falta de previsão constitucional expressa, a cláusula do devido processo legal acabou ingressando paulatinamente no direito pátrio, como uma "garantia inominada" mas em sua figuração apenas "adjetiva" ou processualista (procedural due process). Tal se deveu, é certo, menos à contribuição de nossos doutrinadores e mais à jurisprudência de nossos tribunais, que, inobstante de modo difuso e assistemático, vislumbraram em tal locução uma síntese de princípios emergentes dos par. 12 a 16 do art. 153 da Constituição de 1969 e de seus congêneres nas Cartas Políticas anteriores. Esses princípios, bem se sabe, atinam com os requisitos de legalidade da prisão, do contraditório judicial e com o postulado da ampla defesa. Todavia, infelizmente, não logramos ainda atingir o estágio da utilização "substantiva" (substantive due process) desse secular instrumento protetor das liberdades fundamentais em face do Estado, que ficou circunscrito, entre nós, às fronteiras da instrução criminal e civil, tendo sido mais recentemente estendido aos procedimentos administrativos. Impende reconhecer que a ausência de contemplação explícita do devido processo legal, como também do salutar princípio da "razoabilidade" dos atos do Poder público, no texto de nossas sucessivas Constituições, foi grandemente responsável pelo acanhamento da proteção dos Direitos Humanos e das liberdades públicas em nosso país, a par do autoritarismo latente e cíclico que tem conspurcado a trajetória das instituições políticas brasileiras.[311]

Passados mais de 10 anos, desde a promulgação da Constituição de 1988, verifica-se que a simples introdução da cláusula do devido processo não foi suficiente para estimular a comunidade jurídica nacional a desenvolver um controle de razoabilidade mais refinado. E, após poucas e infrutíferas tentativas, o próprio desenvolvimento da garantia do devido processo parece ter sido deixado de lado pelos ministros do STF — o que reforça a consciência de que as alterações legislativas são um instrumento bastante limitado para o fim de alterar a realidade. No momento atual, os principais esforços estão concentrados no desenvolvimento do princípio da razoabilidade, apesar de todas as dificuldades inerentes à consolidação de um princípio constitucional não escrito.

Todavia, a experiência brasileira quanto à introdução da cláusula do devido processo no texto constitucional[312] indica que o desenvolvimento do princípio da razoabilidade provavelmente não seria mais rápido nem consistente caso ele fosse expressamente previsto na Constituição. A ampliação do controle de razoabilidade parece depender muito mais da sua aceitação pela comunidade jurídica — especialmente pelos membros do próprio Supremo Tribunal — que de uma previsão legislativa. E, embora a Constituição consagre diversos valores democráticos, não está muito distante o dia em que Siqueira Castro constatou que:

É claro que o autoritarismo latente e cíclico em nossas instituições políticas, aliado à indolência e até mesmo à cumplicidade por parte dos órgãos que têm por missão a salvaguarda da Constituição, foi grandemente responsável pela estreiteza empírica desse instrumento protetor das liberdades públicas [o devido processo legal], como de muitos outros, no sistema jurídico brasileiro.[313]

F- Controle de razoabilidade da Constituição

Ministro Processo Redescrição
Marco Aurélio AGRAG 153.493 (1993) O sistema de correção monetária dos precatórios previsto na Constituição não é um instrumento adequado para a correção dos valores.

Esse caso merece uma atenção especial, pois em meio ao self-restraint dominante identificamos um caso de ativismo extremado — o controle de razoabilidade de um dispositivo constitucional. Devemos ressaltar, contudo, que embora tenha havido referências ao princípio da razoabilidade tanto no acórdão quanto na ementa, esse não foi o argumento principal do julgamento, desempenhando o princípio uma função meramente acessória ou de reforço.

No julgamento desse processo, o STF ofereceu uma interpretação do § 1o do artigo 100 da CF que, embora não tenha ultrapassado o sentido literal possível, conferiu um sentido contrário à história do instituto. Pode uma corte constitucional interpretar os dispositivos da Carta de acordo com os valores dominantes na atualidade ou deve essa interpretação respeitar as escolhas valorativas feitas pelo constituinte no momento da elaboração da Constituição? Esse é um questionamento crucial na teoria da Constituição e tem sido desenvolvida especialmente nos Estados Unidos, não apenas em função do ativismo judicial que marcou a atuação da Suprema Corte nas cortes Warren e Burger, mas também devido à idade da Constituição norte-americana, que conta com mais de 200 anos. Na discussão norte-americana atual há duas correntes principais: o interpretativismo, que afirma que as Cortes estão vinculadas aos juízos de valor dos constituintes, e o não-interpretativismo, que sustenta que a Corte pode utilizar valores atuais para justificar o controle de constitucionalidade — o que pode levar à atualização das interpretações da própria Constituição.

Mas havia motivos para rever a escolha dos constituintes apenas cinco anos após a promulgação da Constituição de 1988? A resposta do Supremo foi que sim, pois não se tratava de um método de correção apenas problemático, mas de um sistema completamente inadequado para os fins a que se destinava, acarretando para os credores do Estado dificuldades injustificáveis. Todavia, esse ativismo somente parece ter sido possível porque a questão foi descrita como um problema interpretativo, área em que o STF tem demonstrado um menor self-restraint, provavelmente por que há uma autocompreensão de que a missão mais importante deste Tribunal é a interpretação da Constituição — o que lhe dá mais liberdade para realizar operações hermenêuticas[314], mesmo complexas, que para declarar a inconstitucionalidade de atos dos outros poderes. Assim, no controle de constitucionalidade dos atos realizados pelo Executivo e pelo Legislativo, o STF não demonstra o mesmo ativismo.

Esse fato é aparentemente paradoxal, na medida em que o Supremo demonstra um self-restraint menor frente ao controle das decisões dos constituintes que das decisões dos legisladores comuns. Todavia, o paradoxo parece dissolver-se quando entendemos que esse ativismo não é proporcional à autoridade do legislador, mas às operações que a Corte precisa realizar — e ao proceder a interpretações, o Supremo age com maior liberdade que no controle de atos estatais praticados pelos outros poderes. Torna-se plausível, pois, a conclusão de que o Supremo Tribunal não se recusa a exercer a sua função política[315], mas demonstra, conforme a descrição precisa de Luís Roberto Barroso, um apego excessivo ao dogma da separação dos poderes[316]. Com isso, não se faz propriamente uma negação das funções políticas do Supremo, mas define-se o seu papel político de forma demasiadamente estreita, o que deve ser entendido como uma expressão de self-restraint.

Por fim, cabe ressaltar que o processo em questão inaugura uma utilização problemática do princípio da proporcionalidade. Embora o objeto (avaliação de um ato discricionário) seja adequado à utilização do princípio, a argumentação utilizada é falha. A decisão é fundada simplesmente na autoridade do julgador, pois reduz-se à mera afirmação de que falta razoabilidade à opção valorativa do legislador. Esse tipo de utilização termina por desnaturar o próprio princípio da razoabilidade, na medida em que se torna um meio retórico — no mau sentido do termo — de substituir a discricionariedade do legislador pela do juiz, sem uma fundamentação suficiente.

Não criticamos, pois, o simples fato de se utilizar o princípio da razoabilidade nesses casos, mas a forma extremamente dogmática como ele vem sendo utilizado, no sentido de que os posicionamentos do Tribunal têm sido entendidos como dogmas que devem ser aceitos e não como posições valorativas que devem ser justificadas, na busca de persuadir os interlocutores — no caso, toda a sociedade — da sua legitimidade e, dessa forma, conquistar a aceitação social.

Trata-se, aqui, da definição do próprio papel do Supremo Tribunal. Se entendêssemos que a sua função é meramente a de dar a última palavra e garantir a segurança jurídica, então não haveria problemas em que o STF assumisse essa postura dogmática. Todavia, na medida em que se admite que as decisões do Tribunal somente serão legítimas na medida em que forem aceitáveis pela sociedade, passa-se a exigir do Supremo uma justificação mais elaborada das suas posições valorativas. Voltaremos a essa questão quando analisarmos o controle de razoabilidade das interpretações[^329].

G - Controle de razoabilidade de atos administrativos

1. Controle de atos administrativos de conteúdo normativo

Embora o princípio da razoabilidade tenha sido utilizado poucas vezes no controle de legitimidade das leis, a análise que fizemos sobre a questão[317] leva-nos a perceber que ele funcionou, primordialmente, como uma exigência de adequação entre as finalidades da lei e os meios instituídos pelo legislador para alcançá-las. E esse mesmo papel — orientar a avaliação judicial sobre a adequação entre meios e fins — foi desempenhado pelo princípio no primeiro caso de controle de razoabilidade de normas editadas pela administração[318]:

Ministro Processo Redescrição
Marco Aurélio AGRAG 194.188 (1998) A prova de títulos não é um instrumento adequado para aferir a qualificação mínima necessária para o exercício de uma função e, por isso, ela é adequada apenas para interferir na classificação dos candidatos, nunca podendo ter como conseqüência a reprovação.

Todavia, no outro caso de controle de atos administrativos de cunho normativo que identificamos, não se avaliou a adequação entre meios e fins, mas o peso atribuído aos diversos valores em jogo:

Ministro Processo Redescrição
Marco Aurélio AGRRE 205.535 (1998) Em uma prova de títulos, não é razoável atribuir o mesmo peso para um título de doutor em Direito e para três anos de efetivo exercício de cargo público.

Nesse processo, não se discute a adequação da prova de títulos para a finalidade de selecionar as pessoas mais capacitadas para exercer um cargo público. Também não se trata do problema de definir se o grau de doutor ou o exercício anterior de cargos públicos são títulos adequados para avaliar a formação profissional dos candidatos. O que se discute é o peso relativo que foi atribuído a esses dois elementos. Em uma redescrição dessa decisão utilizando a terminologia germânica, identificaríamos a utilização do subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito.

Todavia, embora se trate de um controle de razoabilidade de normas, a regra impugnada não é fruto da atividade do Congresso Nacional, mas apenas uma norma administrativa, a qual visa a regular um concurso público para o preenchimento de cargos da administração estadual. Embora os editais de concurso sejam espécies de normas, o seu âmbito de aplicação é muito específico e eles são editados por autoridades administrativas para regular a realização procedimento administrativo. Com isso, o nível de ativismo judicial necessário para rever judicialmente a escolha valorativa do agente que estabeleceu um edital é muito menor que o necessário para justificar uma intervenção profunda na discricionariedade do Poder Legislativo.

Além disso, a razoabilidade é um conceito cuja utilização como parâmetro para a avaliação de concursos públicos já se encontra consolidada. Assim, a referência a esse critério nos AGRAG 194.188 e AGRRE 205.535 parece ser resultado da autonomização do critério da razoabilidade no tocante aos concursos públicos. Esse processo já foi por nós referido quando da análise da ADI 1.326 (1997) e, aparentemente, esses dois agravos inserem-se nesse contexto de transformação. Todavia, por tratar-se da evolução do conceito em um campo muito restrito e em relação ao qual o self-restraint do STF não se mostra com toda a sua força, não julgamos adequado concluir a partir desses precedentes que os mesmos critérios provavelmente serão utilizados para a avaliação de normas editadas pelo Poder Legislativo.

Reforça essa conclusão o fato de que nenhuma ação direta de inconstitucionalidade foi julgada tendo como base o princípio da razoabilidade. Além disso, somente em três medidas cautelares em ação direita [ADI(MC)] esse princípio foi invocado, sendo que por duas vezes funcionou apenas como argumento acessório[319] e na outra foi utilizado sem grande consistência[320]. E convém ressaltar que os dois processos relacionados nesse ponto são ambos Agravos Regimentais, processos que não são julgados pelo Pleno e que normalmente não recebem uma atenção especial dos ministros nem têm uma fundamentação mais cuidadosa — já que se trata apenas da revisão de uma decisão monocrática de um dos ministros, que é levada à apreciação da Turma de que ele faz parte e normalmente é mantida pelos seus próprios fundamentos.

2. Controle dos atos administrativos que não estabelecem normas

a) Utilizações indevidas

Em apenas seis casos o princípio foi invocado pelo min. Marco Aurélio como fundamento para o controle de razoabilidade de atos administrativos e, em três desses casos, o princípio não serviu como instrumento para a avaliação das opções discricionárias. Nesses casos, o Tribunal não procedeu a um controle de razoabilidade, mas a um controle formal de legalidade, o que torna indevida a utilização de argumentos fundados no princípio da razoabilidade.

Ministro Processo Assunto
Marco Aurélio HC 75.331 (1997) Reconhecimento de suspeitos
RE 192.568 (1996) Prorrogação de validade de concurso
RE 221.066 (1998) Importação de pneus usados

No HC 75.331, a completa ausência de motivação do ato administrativo leva à nulidade do ato, sem ser necessário indagar sobre os motivos que levaram o agente público a praticá-lo. Nesse processo, a questão julgada foi meramente formal. A prova que deu margem à condenação de um certo réu não observou as formalidades estabelecidas pelo artigo 226 do Código de Processo Penal, que estabelece regras sobre reconhecimento de suspeitos. Argüiu-se, então, a nulidade da condenação por absoluta falta de observação dos procedimentos estabelecidos em lei. Não se trata, pois, da avaliação de uma escolha discricionária, mas de um simples controle de legalidade. Defendemos, assim, ter sido indevida essa referência ao princípio da razoabilidade.

Todavia, esse equívoco é bastante revelador. Consideramos que a utilização equívoca foi resultado da falta de uma clara diferenciação entre atividade vinculada e discricionária. O artigo 266 do Código de Processo Penal dá margem à apreciação discricionária da autoridade pública na medida em que condiciona a dispensa de uma formalidade à impossibilidade prática de sua realização. O Relator identificou muito bem que a discricionariedade envolvida nessa decisão — sobre se é possível ou não a realização da exigência legal — deve ser avaliada segundo critérios de razoabilidade.

No entanto, não atentou para o fato de que, no caso em análise, não se tratava de uma avaliação da escolha discricionária em si, mas de verificar se o ato havia rompido a vinculação aos critérios formais de legalidade. Essa decisão indica a grande importância de estabelecer claramente a distinção entre atividade vinculada e discricionária para que se possa definir com precisão os limites do controle de razoabilidade.

No RE 192.568, tratou-se de um caso de prorrogação de concurso no qual parecia claro ter havido um desvio de finalidade. No entanto, não se enfrentou expressamente esse problema e deu-se ao caso uma solução incoerente com a jurisprudência anterior do Supremo, em uma decisão tão inconsistente que não oferece bases sólidas para firmar um entendimento adequado sobre o princípio.

No RE 221.066, julgou-se que o Poder Executivo tinha competência para regular a importação de pneus usados, sendo desnecessária a manifestação do legislativo.

Em todos esses casos, o princípio foi utilizado apenas como uma remissão a uma idéia geral de razoabilidade, e não como um princípio dotado um conteúdo jurídico específico. Nos três casos, havia apenas uma questão de legalidade, e não de legitimidade — motivo pelo qual consideramos inadequada a argumentação com base no princípio da razoabilidade.

b) Utilização adequada

Em matéria de controle de razoabilidade de atos administrativos, apenas no MS 22.944 houve uma aplicação consistente do princípio, com a finalidade de admitir que o julgamento valorativo do administrador era correto perante as peculiaridades do caso concreto, na medida em que o prazo estipulado era adequado para realizar a finalidade da lei que regula a questão.

Ministro Processo Redescrição
Marco Aurélio MS 22.944 (1998) Em casos de desapropriação, é adequado o prazo de 1 dia entre a notificação e a vistoria quando o propietário já tinha tomado ciência do ato e expressado sua anência.

3. Mudanças no controle dos atos discricionários

A teoria tradicional no Direito brasileiro era a recusa da possibilidade do controle judicial do poder discricionário. Essa concepção foi exposta de forma bastante adequada, no início dos anos 60, por Victor Nunes Leal, que demonstrou uma consciência da relação entre a doutrina brasileira e os institutos mais importantes do direito comparado:

É, pois, da nossa tradição o reconhecimento de uma esfera de ação discricionária da administração pública, segundo um conceito tímido de excesso de poder, o qual, de um lado, exclui a amplitude do détournement de pouvoir dos franceses e, de outro, define a nossa apreciação jurisdicional em limites mais estreitos que os da judicial review dos norte-americanos. À luz dessa tradição é que devemos considerar as chamadas limitações internas do poder discricionário.

Sem dúvida, o fim legal, expresso ou implícito, é integrante de toda atividade administrativa, que pressupõe, por definição, a promoção do interesse coletivo. Sempre, porém, que o interesse coletivo não esteja definido em situações concretas pela própria lei, não pode o judiciário adotar um conceito de fim legal em bases tão restritas que venha a manietar a administração pública, substituindo o administrador pelo juiz.

Nunca se admitiu, entre nós, que o judiciário pudesse descer a certas indagações para verificar se, entre duas ou mais possibilidades legais de solução, foi menos acertada a escolhida pela administração pública, embora esteja o juiz convencido de que outra, não adotada, atenderia melhor ao interesse coletivo. A noção de interesse coletivo é tão vaga e imprecisa que nenhuma garantia teriam os particulares com a substituição do critério administrativo pelo judiciário. Sempre, portanto, que a discussão girar em torno de uma questão de conveniência pública ou de oportunidade — questão por sua natureza controvertida —, a administração se move com plena liberdade, imune da intromissão do judiciário.

Casos há, todavia, em que fica patenteada a ausência da conveniência pública, pela manifesta preponderância do favoritismo, da perseguição, ou do puro proveito pessoal do agente. Em tais casos, a prova é sempre difícil, freqüentemente impossível, o que reduz as conseqüências práticas do princípio. Algumas vezes, porém, ela ressalta, ostensivamente, do conjunto das circunstâncias e até de evidências documentais. Em situações dessa natureza, pode o judiciário proclamar que a autoridade exorbitou, abusando do seu poder discricionário, agiu, portanto, arbitrariamente.

A hipótese prevista tem muita semelhança com o abuso do direito praticado pelo particular. O uso do direito — como o uso do poder discricionário — pressupõe, por definição, que seja regular ou normal, isto é, objetivando um fim lícito, no que toca ao particular, ou um fim legal, no que respeita à administração pública. Do mesmo modo, se a administração abusa do seu poder discricionário, excede os limites da ação discricionária, penetrando no terreno da ação arbitrária, equiparando o seu ato a um ato ilegal. [...]

Não se há de concluir daí, entretanto, que o poder discricionário está sujeito à revisão judicial. Haveria, em tal afirmativa, uma contradictio in adjecto. O que faz o poder judiciário, mesmo quando se atém ao desvio do fim legal do ato praticado, é balizar ou demarcar a esfera de ação discricionária da administração, dizendo em cada caso, se se trata de ação discricionária ou arbitrária. A discricionária é legítima e escapa ao controle jurisdicional, que se limita a demarcar a esfera de ação do poder discricionário, enquanto que a ação arbitrária exige o corretivo da justiça, equiparada como está aos atos ilegais. Quando, porém, o ato administrativo se deve qualificar de arbitrário por haver transposto os limites intrínsecos ou internos do poder discricionário (preterição do fim legal, em favor de um fim ilegal), as cautelas do judiciário devem ser extremas, para não se substituir ao administrador na mera apreciação da conveniência ou oportunidade da medida questionada. O critério mais adequado consiste (salvo circunstâncias excepcionais), não em indagar se o fim visado é diverso do objetivado pela lei instituidora da competência (como ocorre no détournement de pouvoir dos franceses), mas se o fim real do ato, embora dissimulado, constitui, em si mesmo, uma ilegalidade.[321]

Verificamos, assim, que Victor Nunes admite o controle dos atos administrativos segundo o critério da finalidade, embora somente admita como inválidos os atos que visem a fins ilegais. Esse entendimento, com o tempo, foi cedendo à teoria do détournement de pouvoir, passando-se a admitir que a finalidade implícita na norma vincula o legislador. Essa teoria tem um de seus representantes mais ilustres em Hely Lopes Meirelles, que reafirmou o self-restraint, mas introduziu a idéia de mérito administrativo como limite à intervenção judicial:

Ao Poder Judiciário é permitido perquirir todos os aspectos de legalidade e legitimidade para descobrir e pronunciar a nulidade do ato administrativo onde ela se encontre, e seja qual for o artifício que a encubra. O que não se permite ao Judiciário é pronunciar-se sobre o mérito administrativo, ou seja, sobre a conveniência, oportunidade, eficiência ou justiça do ato, porque, se assim agisse, estaria emitindo pronunciamento de administração, e não de jurisdição judicial. O mérito administrativo, relacionando-se com conveniências do Governo ou com elementos técnicos, refoge do âmbito do Poder Judiciário, cuja missão é a de deferir a conformação do ato com a lei escrita, ou, na sua falta, com os princípios gerais de Direito.[322]

Entretanto, o self-restraint judicial defendido na passagem acima fica mitigado pela admissão de que:

A atividade do administrador público — vinculada ou discricionária — há de estar sempre dirigida para o fim legal, que, em última análise, colima o bem comum. Discricionários, portanto, só podem ser os meios e modos de administrar, nunca os fins a atingir. Em tema de fins — a lição é de Bonnard[323] — não existe jamais, para a administração, um poder discricionário. Porque não lhe é nunca deixado poder de livre apreciação quanto ao fim a alcançar. O fim é sempre imposto pelas leis e regulamentos, seja explícita, seja implicitamente.[324]

Verificamos, assim, que, para o controle de adequação entre meios e fins dos atos administrativos, já existe um critério jurídico consolidado, não sendo necessária a utilização do controle de razoabilidade para tanto: ao menos desde o início da década de 80 admite-se que o Judiciário pode verificar a adequação entre o ato administrativo discricionário e a finalidade implícita na norma que o autoriza. Por mais que a jurisprudência do STF seja marcada por um self-restraint bastante acentuado, há mais de duas décadas admite-se que a finalidade da norma vincula o administrador e que, portanto, a observância dos objetivos subjacentes à lei é uma obrigação à qual o agente público não se pode furtar. Com base nessa construção, transfere-se o juízo de adequação entre fins e meios do campo discricionário para o âmbito vinculado, o que possibilita um controle judicial sem a interferência no que normalmente se chama de mérito administrativo, que são os juízos valorativos de oportunidade e conveniência.

No momento atual, Celso Antônio Bandeira de Mello esforça-se por limitar ainda mais o conceito de mérito administrativo, sustentando que o juiz pode intervir no âmbito de discricionariedade do administrador para avaliar a obediência ao princípio da razoabilidade que, segundo esse autor, exige que a Administração, “ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida”[325]. Em um posicionamento mais realista que o de Hely Lopes Meirelles, Bandeira de Mello reconhece que não existe uma vinculação absoluta à finalidade da norma, na medida em que não é possível definir objetivamente quais são os objetivos de cada regra jurídica. Assim, quando a indeterminação da linguagem dá margem a diversas interpretações, é possível reconhecer um certo grau de discricionariedade aos agentes públicos, no tocante à determinação da finalidade das normas.[326]

Todavia, apesar dessa flexibilização da idéia de vinculação à finalidade, Bandeira de Mello propõe um conceito muito rígido de discricionariedade, na medida em que exige que o administrador não apenas eleja, dentro da moldura criada pelas normas jurídicas, uma das possíveis soluções, mas que escolha a melhor solução possível. E, segundo esse autor, o controle judicial de razoabilidade pode avaliar se a solução escolhida pelo agente público era ou não a melhor opção possível.

Enquanto Hely Lopes Meirelles esforçou-se para retirar a finalidade do âmbito discricionário e localizá-la no campo da vinculação, Bandeira de Mello esforça-se por transferir ao âmbito vinculado boa parte da possibilidade de escolha do legislador — na medida em que considera que há critérios vinculantes para a escolha valorativa. “A discricionariedade fica, então, acantonada nas regiões em que a dúvida sobre a extensão do conceito ou sobre o alcance da vontade legal é ineliminável”[327]. Percebe-se em Bandeira de Mello o abandono da forte posição de self-restraint que marcava a doutrina anterior, embora ainda se mostre nas idéias desse autor a tendência a retirar do campo da discricionariedade tudo o que deva ser avaliado pelo Judiciário.

Todavia, o desenvolvimento de uma teoria consistente de controle de razoabilidade pode gerar uma intervenção ainda maior do Judiciário. Como bem percebeu Siqueira Castro no final da década de 80, os administrativistas brasileiros atribuíam ao mérito dos atos administrativos uma “exagerada onipotência”, e a introdução da cláusula do devido processo legal pela Constituição de 1988 poderia “abrir um amplo horizonte para o questionamento judicial” do mérito administrativo[328]. E mesmo que a cláusula do devido processo legal não tenha sido objeto dos desenvolvimentos que merecia, o controle judicial dos atos administrativos vem-se tornando cada vez mais profundo.

Nessa tendência de ampliação do controle judicial por meio do desenvolvimento de um controle de razoabilidade mais ativo, podemos enquadrar, por exemplo, a referida decisão do AGRRE 205.535 (1998), na qual o Tribunal modificou os pontos atribuídos a títulos em um concurso público, por julgar absurdo conceder mais valor a três anos de serviço público que a um título de doutor. Essa ampliação do controle de razoabilidade, contudo, ainda não atingiu o controle das leis, mas apenas o de atos editados pela Administração Pública.

Por fim, convém ressaltar que essa mudança no controle dos atos discricionários mereceu a atenção do legislador, que por meio da Emenda Constitucional n° 19, de 4.6.1998, inseriu no artigo 37 da CF um novo princípio constitucional para reger a administração pública: o da eficiência. A redação anterior estabelecia apenas que a administração pública obedeceria aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da publicidade e da moralidade. Os três primeiros são princípios tradicionais do Direito Administrativo, plenamente compatíveis com os ideais positivistas.

O princípio da moralidade, introduzido apenas com a CF de 1988, caracteriza um rompimento com o positivismo na medida em que admite a utilização de juízos de valor como critérios de validade de atos jurídicos. Entretanto, esse rompimento é restrito aos casos limite, no qual a flagrande imoralidade faria com que os atos estivessem fora da moldura estabelecida pelo sentido literal possível das normas positivas. Ademais, dez anos após a promulgação da nova Carta, esse princípio ainda não logrou um desenvolvimento consistente na jurisprudência nacional.

O princípio da eficiência, se entendido como uma exigência de que o administrador escolha, entre as opções juridicamente possíveis, aquela que for a mais eficaz para a realização das finalidades da norma, caracterizaria uma ruptura profundo com o paradigma positivista. Isso acontece porque o juiz, ao controlar a legalidade dos atos administrativos, teria a possibilidade de avaliar o julgamento do administrador sobre a eficiência dos meios por ele escolhidos para dar cumprimento às normas positivas. E, se o juiz puder anular um ato por considerar que ele não tinha um grau ótimo de eficiência, ficaria ainda mais restrita a própria idéia de mérito administrativo, enquanto âmbito intocável pelo controle judicial.

Todavia, não é possível retirar conclusões apressadas sobre as inovações que deverão advir de tal emenda constitucional, pois não há ainda uma interpretação jurisprudencialmente definida sobre esse tema. Várias inovações legislativas, ao serem interpretadas à luz das concepções tradicionais, tiveram sua carga inovadora extremamente reduzida ou até mesmo tornaram-se disposições inócuas: o mandado de injunção, a função social da propriedade, o próprio princípio da moralidade administrativa, entre outros. E, se o princípio da eficiência for submetido ao esse mesmo processo, é possível que o STF entenda que a eficiência é um critério que deverá ser observado pelo administrador, mas que o seu descumprimento teria repercussões apenas no âmbito administrativo, dado que a impugnação judicial de um ato ineficiente implicaria a invasão do mérito administrativo. Dessa forma, podemos identificar que atualmente está em curso um processo de mudança na concepção de mérito administrativo, mas ainda não é possível prever qual será o conceito resultante desse processo.

G - Controle de razoabilidade de interpretações

1. Controle de interpretações administrativas

Ministro Processo
Marco Aurélio AGRAG 203.186 (1998) – deflação RE 158.448 (1998) – professoras – administrativo

Embora as questões analisadas nesses dois processos sejam relacionadas a atos praticados pela administração — correção monetária de tributos e estabilidade de funcionários públicos —, o controle de razoabilidade não tem como objeto as opções valorativas do agente na escolha das linhas de ação que deveriam dar cumprimento à norma, mas às escolhas do agente público quanto à interpretação de uma norma jurídica positiva. Assim, não se trata propriamente da avaliação da razoabilidade de um ato em si, mas da interpretação que orientou a sua prática. Também devemos ressaltar que essas interpretações foram avaliadas pelos juízes de primeiro e segundo grau e que, portanto, o julgamento do Supremo não tem relação apenas com as interpretações dos administradores, mas também com as dos juízes que oficiaram na causa.

O posicionamento do STF nessas duas questões tem sua relevância acentuada pelo fato de que se tratam de questões de interpretação, e não do controle de atos pontuais, servindo a sua decisão como orientação para a prática de futuros atos administrativos. No RE 158.448, trata-se da definição de um aspecto importante sobre o que se deve entender por continuidade de prestação de serviços e, no AGRAG 203.186, discutiu-se a possibilidade de aplicar índices de deflação para corrigir dívidas tributárias.

Nesses dois casos, o Tribunal demonstrou uma grande dose de ativismo judicial e procedeu à revisão da interpretação feita pelo Executivo. Em ambos casos, não se tratou de uma simples verificação de adequação entre fins e meios, mas da afirmação de que não era razoável a interpretação atribuída pelo Executivo às regras em questão. Com isso, o STF sobrepôs a sua interpretação àquela proposta pelo Executivo, por considerar esta valorativamente menos adequada que aquela.

Verificamos, assim, que nas questões relativas à interpretação de normas jurídicas, o Tribunal não manifesta o mesmo self-restraint que marca a sua atuação no controle de razoabilidade dos outros atos estatais. Isso indica que, no exercício das funções judiciais mais típicas — e a interpretação de normas positivas é uma delas —, o STF utiliza seu poder de controle de forma mais contundente. Todavia, quando o Supremo é chamado a exercer suas funções eminentemente políticas — como o controle abstrato de constitucionalidade das normas —, nas quais é preciso intervir nas decisões tradicionalmente atribuídas a outros poderes, a intervenção se dá de uma forma mais tímida.

2. Controle de razoabilidade de interpretações judiciais

Ministro Processo
Marco Aurélio HC 75.192 (1997) REED 199.066 (1997) RE 175.161 (1998) RE 192.553 (1998) RE 224.667 (1999)
Sepúlveda Pertence HC 76.060 (1998)

A teoria tradicional sobre a revisão de decisões judiciais[329] é a de que as decisões razoáveis não podem ser modificadas. Essa doutrina encontra sua melhor tradução na Súmula 400 do STF, expedida em 1964, segundo a qual não é passível de revisão a decisão judicial “que deu razoável interpretação a lei, ainda que não seja a melhor”. Por um lado, temos aqui um reconhecimento expresso do campo de discricionariedade judicial e o entendimento de que os tribunais não podem intervir no âmbito discricionário das decisões que lhe são submetidas mediante recurso extraordinário. Como a linguagem utilizada pela Súmula é a exigência de razoabilidade das decisões, a ninguém deve causar espécie o fato de que o Tribunal avalie as decisões que lhe são submetidas pela ótica da razoabilidade.

Todavia, é nesse campo que se encontram as referências mais problemáticas ao princípio da razoabilidade. A análise da jurisprudência mostra que o STF tem uma posição de grande self-restraint no tocante à declaração de inconstitucionalidade de leis com base em controle de razoabilidade, uma auto-limitação um pouco menor no caso de revisão de atos administrativos (ainda que de caráter normativo), e um self-restraint ainda menor no caso em que o objeto da revisão é uma interpretação. É nesse campo que o Tribunal exerce com maior liberdade o seu poder discricionário e é nele que a intervenção no campo discricionário dos outros poderes tem tido uma justificação menos consistente. Talvez porque considere que a sua função é definir quais são as interpretações juridicamente válidas — o que não exige a persuasão do meio jurídico e social de que essa interpretação é efetivamente a mais adequada —, as fundamentações dos controles de razoabilidade de interpretações, sejam administrativas ou judiciais, têm sido as mais pobres.

Quando há necessidade de intervir nas decisões típicas dos outros poderes, o STF demonstra grande cuidado e uma tendência a justificar suas decisões de forma mais completa. O mesmo não acontece no caso de controle de razoabilidade de interpretações, nos quais várias vezes considera-se suficiente uma mera remissão ao princípio da razoabilidade — o que identificamos como uma fundamentação deficiente.

3. Necessidade de fundamentação da decisões judiciais

Se admitíssemos a teoria positivista de Kelsen ou de Hart, seríamos levados a considerar que o Tribunal pode tomar suas decisões de forma meramente dogmática: quando o juiz se encontra no seu espaço de “discricionariedade judicial”[330] ou frente a uma indeterminação do direito[331], ele tem completa liberdade para escolher entre as diversas possibilidades de interpretação. Na medida em que não há critérios jurídicos que possam conduzir o julgador a uma solução necessária, a sua autoridade lhe permite escolher qualquer das opções, sem que lhe seja necessário fundamentar essa escolha. No entanto, acreditamos que o positivismo não oferece respostas aceitáveis aos problemas jurídicos atuais e que os limite por ele auto-impostos devem ser superados.

A opção que nos parece mais adequada é a teoria da argumentação de Perelman, que fornece subsídios para uma superação do positivismo, na medida em que oferece critérios para o controle da atividade judicial discricionária. A principal conseqüência dessa teoria é estabelecer para os juízes a necessidade de justificar argumentativamente as suas opções valorativas. Não considera aceitável o mero argumento de autoridade: como o STF é o órgão competente para julgar determinado caso, a interpretação elegida por seus membros torna-se Direito apenas pelo fato de que seus membros têm autoridade para tanto. A teoria da argumentação coloca aos juízes um novo desafio, mais adequado aos ideais democráticos contemporâneos que o argumento de autoridade inerente à teoria positivista: a necessidade de persuadir as demais pessoas de que as suas opções são adequadas. Não basta pressupor a legitimidade das decisões do Supremo em virtude de uma norma fundamental ou de uma regra de reconhecimento — o que nos conduz a um conceito meramente formal de legitimidade. É preciso que a legitimidade seja conquistada por meio de uma fundamentação adequada da decisão.

E quem são as pessoas que devem ser persuadidas de que a decisão é adequada, conveniente e boa? Segundo Perelman, um auditório universal, formado por pessoas tão heterogêneas que forçam o emissor do discurso a respeitar ao máximo a lógica formal. Cremos que nesse ponto a teoria de Perelman não é adequada, pois a referência a um auditório universal como um princípio regulador da atividade argumentativa não nos garante a racionalidade das decisões nem a sua aceitabilidade social. Quanto à questão dos sujeitos que devem ser persuadidos, consideramos que a teoria do discurso de Habermas oferece uma resposta melhor. Essa teoria entende que todas as pessoas estão envolvidas em um grande processo discursivo, da qual todas elas tomam parte e, nesse contexto, uma solução é legítima quando aceitável pelas pessoas envolvidas no discurso. Quando Habermas busca uma fundamentação das normas morais, as quais devem ser aceitas por todos os homens, ele chega ao mesmo problema de Perelman com o auditório universal: um auditório universal é tão heterogêneo que se torna impossível justificar uma decisão valorativa — pois não há um consenso mínimo sobre o que deve ser considerado valioso.

Embora esse esquema apresente imensas dificuldades para a descrição da Moral[332], ele nos parece muito útil para a descrição do Direito, no qual o auditório a ser convencido não é formado pela universalidade dos homens, mas pelos integrantes de uma determinada sociedade — os quais têm uma série de valores comuns[333], o que possibilita argumentar com base em valores e, conseqüentemente, fundamentar uma decisão valorativa. Entretanto, a crescente complexidade da sociedade contemporânea coloca um problema sério a esta proposta: mesmo dentro de uma sociedade determinada, as diferenças que existem entre os valores dos diversos grupos sociais é tão grande que a possibilidade de justificar uma decisão valorativa é quase nula. Se não levássemos a sério esse problema, poderíamos entender os juízes como porta-vozes dos valores sociais — função que não cabe a eles exercer, na medida em que eles fazem parte de grupos específicos. Mas é justamente quando enfrentamos essa questão que a teoria do discurso nos parece a mais adequada.

São vários os grupos sociais, que defendem os interesses mais diversos. As decisões tomadas pelo Estado — e que são impostas a toda a sociedade — devem respeitar ao máximo todos esses valores. Mas não existe nenhum ponto ótimo de harmonização que possa ser conhecido a priori, e seria por demais pretensioso um Tribunal que desejasse afirmar que as decisões tomadas por seus membros são as mais adequadas. Ao mesmo tempo, não parece admissível recusar liminarmente a possibilidade de que uma decisão seja aceitável por toda a sociedade e, descartada essa hipótese, impor as decisões dos tribunais apenas por força da sua autoridade — em outras palavras, não parecem admissíveis os pressupostos positivistas. Nessa tensão entre a necessidade de tomar decisões eficazes e impô-las à sociedade e a necessidade de tomar decisões que sejam aceitáveis pela sociedade à qual elas serão impostas — descrita por Habermas como a tensão entre faticidade e validade[334] —, é preciso buscar uma solução que harmonize essas duas exigências.

E a solução que nos parece mais plausível é a exigência de que os Tribunais justifiquem suas decisões, especialmente as que envolvam opções valorativas. Ainda que se possa admitir que o resultado de um determinado processo decisório tenha sido adequado aos valores sociais, ou ao menos os valores do senso comum teórico dos juristas, muitas vezes será possível criticar o método de tomada de decisões utilizados por um órgão judiciário. Em vários casos do STF, não há qualquer argumentação no sentido de explicar os motivos da decisão, de explicitar os critérios utilizados, limitando-se o Tribunal a afirmar que a interpretação anterior era contrária ao princípio da razoabilidade, sem esclarecer os motivos que o levaram a essa conclusão. Com isso, iniciou-se o processo de utilização de referências ao princípio da razoabilidade apenas como um argumento retórico de persuasão, invocando a favor da decisão — ou contra a norma impugnada — os valores supostamente admitidos pela sociedade, cuja validade seria tão óbvia que dispensaria qualquer espécie de fundamentação mais elaborada.

Não basta afirmar que o ato X ofende o princípio da igualdade ou que o ato Y ofende o princípio da razoabilidade. Quando as opções valorativas do julgador não são explicitadas, isso indica que ele considera que as suas escolhas são objetivamente válidas — seja por força da sua autoridade, seja porque ele considera que a sua hierarquia de valores é a hierarquia correta. Em ambos os casos, não se chega ao devido respeito às pessoas que têm opiniões e valores diversos e que deverão obedecer às decisões dos tribunais. Para manter a ordem, basta dar força a uma decisão. Mas para que a ordem seja legítima, é necessário que as pessoas aceitem a decisão — e, portanto, faz parte do papel dos tribunais persuadir a sociedade de que as suas escolhas valorativas são adequadas. A necessidade de que os tribunais fundamentem suas escolhas valorativas foi muito bem examinada por Aulis Aarnio no seguinte trecho:

En una situación tal, el juez tiene la responsabilidad de procurar que la expectativa de certeza jurídica se realice o, al menos, quede suficientemente satisfecha. Esta responsabilidad puede ser asumida de diferentes maneras. Una forma de asumir la responsabilidad es apoiarse en la propia posición de autoridad. El uso sofisticado e la autoridad reduce el contenido de la decisión a una posición de menor importancia. El decisor justifica su decisión haciendo referencia a su autoridad. Esta idea puede ser formulada de la siguiente manera: la decisión es la correcta ya que es la interpretación de una ley válida por parte del tribunal.

La ideología de la autoridad no ha sido llevada tan lejos, por ejemplo, en Finlandia. Pero, aun así, pueden percibirse síntomas de un desarrollo en esta dirección en la forma como en la actualidad son justificadas las decisiones de los tribunales de justicia. Es posible que los hechos del caso sean expuestos com todo detalle, pero la posición del tribunal com respecto a la cuestión jurídica puede ser formulada de una manera más bien lacónica. Por ejemplo “como obviamente há quedado demonstrado que (...), X es condenado de acuerdo com el artículo (...) del Código Penal (...)”. No se ofrece una justificación de la elección de los contenidos alternativos de la norma legal, tampoco en el caso en que sea evidente que el texto de la ley puede ser interperetado de maneras diversas.

Como se ha mencionado, el decisor ya no puede apoyarse, en una mera autoridad formal. En una sociedad moderna, la gente exige no sólo decisiones dotadas de autoridad sino que pide razones. Esto vale también para la administración de la justicia. La responsabilidad del juez se ha convertido cada vez más en la responsabilidad de justificar sus decisiones. La base para el uso del poder por parte del juez reside en la aceptabilidad de sus decisiones y no en la posición formal de poder que pueda tener. En este sentido, la responsabilidad de ofrecer justificiación es, específicamente, una responsabilidad de maximizar el control público de la decisión. Así pues, la presentación de la justificación es siempre también un medio para aseguar, sobre una base racional, la existencia de la certeza jurídica en la sociedad. [...]

[E]s específicamente a través de la justificación como el decisor — sin que importe que se trate de un juez o de una autoridad administrativa — crea la credibilidad en la que descansa la confianza que los ciudadanos tienen en él. [...] Parece correcto afirmar que la decisión puede ser totalmente comprensible sólo sobre la base de razones justificatorias y — lo que es más importante — también la parte perdedora aceptará el resultado si la decisión está basada en razones adecuadas. Teniendo en conta este trasfondo, no es sorprendente que uno de los tópicos centrales de la teoría del pensamiento jurídico sea la teoría de la justificación de la decisión jurídica interpretativa. La cuestión no puede ser examinada únicamente desde el punto de vista de la exigencia de certeza jurídica. En un sentido más amplio, la actitude frente a la justificiación de la decisión refleja, en general, creencias acerca del derecho y de la adminsitración de la justicia.[335]

A necessidade de oferecer argumentos racionalmente aceitáveis está prevista no inciso IX do artigo 5o da Constituição Federal, segundo o qual todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário devem ser fundamentados, sob pena de nulidade. Pode essa justificação dar-se apenas com base em argumentos de autoridade? O paradigma da modernidade — que continua sendo dominante — recusa o argumento de autoridade há cerca de quatro séculos[336]. A Teoria Pura do Direito de Kelsen, bem como o positivismo de Hart, negavam essa concepção tão cara à nossa ideologia ao afirmar que o juiz não estava sujeito a qualquer limite no seu campo de discricionariedade: a sua autoridade permitia que ele tomasse qualquer decisão que julgasse correta, a partir de critérios meramente subjetivos.

E a resposta que propomos a essa questão é a de que a legitimidade dos atos judiciais nunca pode ser pressuposta. Se a legitimidade democrática provém da aceitabilidade social, então a legitimidade dos atos judiciais deve ser construída a partir de uma argumentação que busque persuadir os membros da comunidade jurídica de que as opções valorativas do Tribunal são aceitáveis. O resultado dessa proposta é considerar as decisões judicias como uma proposta, uma participação — ainda que privilegiada — no discurso a partir do qual a sociedade define as suas normas jurídicas.

Nem toda decisão judicial será legítima, mas a explicitação dos seus fundamentos possibilita que as outras pessoas envolvidas no discurso critiquem as opções valorativas dos juízes e dêem sua contribuição para o desenvolvimento do discurso jurídico. Assim, a legitimidade das decisões não pode ser identificada a priori — pois ela não deriva da autoridade do Tribunal —, mas apenas pode ser verificada a posteriori, a partir da efetiva aceitação da decisão pelos membros da sociedade.

Não podemos admitir que o Supremo Tribunal Federal possa simplesmente impor à sociedade as opções valorativas de seus membros, especialmente quando isso é feito a partir de uma mera invocação do princípio da razoabilidade. Se admitíssemos tal postura, estaríamos indo contra os valores que inspiram o próprio princípio: na medida em que admitimos que as decisões do STF não precisam de uma justificação racional suficiente, colocamos as posições dos ministros do Supremo acima de qualquer possibilidade de controle de razoabilidade.

O pressuposto necessário para o controle de razoabilidade é a fundamentação das decisões, que possibilita a avaliação das opções valorativas tomadas. Uma decisão sem fundamentos não pode sequer ser criticada nos quadros do princípio da razoabilidade — a não ser que sejamos capazes de extrair justificativas implícitas ou que determinemos, de forma mais ou menos arbitrária, quais foram os fundamentos racionais necessários da decisão. E devemos lembrar que a crítica a operações desse tipo (que buscam identificar os fundamentos racionais necessários de um ato estatal) já foi suficientemente desenvolvida na clássica discussão da possibilidade de se determinar a metafísica vontade do legislador. Por tudo isso, consideramos inadequadas as decisões nas quais os julgadores simplesmente afirmam uma posição valorativa, sem oferecer uma argumentação racional no sentido de persuadir a sociedade da razoabilidade da decisão.

4. Papel do princípio da razoabilidade no controle de interpretações

No controle das interpretações, tanto administrativas quanto judiciais, o princípio da razoabilidade funcionou como um instrumento que possibilitou ao STF modificar uma interpretação por considerar que ela não era o resultado de valorações adequadas. Isso equivale a dizer que, no campo das interpretações, a posição valorativa adotada pelo Supremo tem prevalência sobre as opções de qualquer outro órgão ou agente estatal. Isso fica claro, por exemplo, no AGRAG 203.186, em que o Tribunal considerou devida a correção monetária referente à deflação, embora não houvesse qualquer previsão legislativa nesse sentido. O mesmo ocorreu no RE 158.448, quando afirmou-se que uma sucessão de contratos para o exercício de atividade de caráter permanente deve ser entendido como uma prestação continuada. E esse processo foi ainda mais acentuado no AGRAG 153.493, quando um procedimento consolidado de pagamento de precatórios foi modificado por via interpretativa, sem que houvesse ocorrido inovação legislativa relevante.

O mesmo ocorreu no caso das interpretações judiciais. No HC 75.192, o princípio da razoabilidade foi invocado para justificar a revisão de uma interpretação pelo fato de que o STF não aprovou a avaliação do juiz sobre as peculiaridades de um caso concreto. Todavia, a função desempenhada pela referência ao princípio da razoabilidade foi apenas a de reforçar o argumento principal, ligado à aplicabilidade de um dispositivo constitucional específico. Nesse processo, toda a discussão gira em torno da constitucionalidade do artigo 594 do Código Penal, segundo o qual “o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto”. O argumento invocado para justificar a inconstitucionalidade deste dispositivo é a sua contrariedade ao inciso LVII do artigo 5o da CF, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”[337]. Apenas na ementa é feita uma alusão ao princípio da proporcionalidade, e mesmo assim de forma bastante superficial. O argumento não gira em torno do princípio da razoabilidade — o qual é invocado somente na ementa, para afirmar que o dispositivo legal impugnado viola não apenas o princípio da não-culpabilidade, mas também o da razoabilidade.

No RE 192.553, decidiu-se que um certo número de indícios era suficiente para que se reconhecesse a regularidade de uma representação processual, contrariamente ao que havia decidido o TST. No RE 175.161, Marco Aurélio desenvolveu uma argumentação consistente no sentido de demonstrar que a ausência de correção monetária na restituição de parcelas pagas por uma pessoa a um grupo consorciado implicaria enriquecimento sem causa.

Mas a aplicação mais consistente do princípio ocorreu no HC 76.060, em que Sepúlveda Pertence reduz a questão a uma colisão de princípios e resolve esse conflito com base no princípio da razoabilidade. Todavia, mesmo nesse caso não se indicam claramente os motivos pelos quais os valores adotados pelo STF são mais relevantes que os adotados pela Administração ou pelos demais juízes e tribunais. O controle de razoabilidade das interpretações não envolve, portanto, um julgamento de adequação entre meios e fins, mas uma avaliação das escolhas valorativas a elas subjacentes frente aos valores dominantes dentro do Supremo Tribunal Federal.

5. Fontes de valores relevantes para o controle de razoabilidade

Nos controles de razoabilidade de leis houve sempre uma tentativa de se oferecer argumentos que justificassem valorativamente a anulação das normas[338]. Todavia, como não há nenhum consenso sobre quais são as fontes de valores relevantes para o controle de razoabilidade, cada ministro oferece a justificativa que lhe parece mais persuasiva. O processo em que esse fato mostra-se mais claramente é a ADI(MC) 223, na qual foram levantados diversos argumentos, não houve dois votos idênticos e vários dos votos que compuseram a maioria eram incompatíveis entre si. Devido ao modelo de tomada de decisões vigente no Supremo, não existe qualquer esforço para se buscar uma solução de consenso, cuja fundamentação receba o apoio da maioria dos membros da Corte, vigorando sistema de justaposição dos posicionamentos dos diversos ministros. Com isso, para a tomada de uma decisão, exige-se apenas que a maioria dos votos aponte para o mesmo resultado, ainda que as justificativas sejam as mais diversas.

Essa prescindibilidade de consenso quanto à fundamentação deixa os ministros livres para fazerem referência aos princípios jurídicos que mais lhe agradem e para as pautas valorativas que considerem mais adequadas. Como a escolha dos princípios e das pautas valorativas mais adequados ao caso depende unicamente da convicção íntima do julgador, o resultado é que não há qualquer discussão jurisprudencial sobre quais são as fontes de valores aceitáveis para funcionar como parâmetros de um controle de razoabilidade. E identificamos nessa ausência um grave déficit metodológico.

Em países em que o controle de razoabilidade se encontra em estágio mais avançado, já não mais se discute se o Judiciário pode ou não invalidar um ato estatal a partir da avaliação da sua legitimidade. Reconhecida a conveniência de que haja um controle de razoabilidade, passou-se à discussão sobre os seus limites, especialmente sobre os tipos de argumentos valorativos que pode um juiz invocar para afirmar que um ato estatal não é razoável. Na Alemanha, a solução que o BVerfG atribuiu a esse problema não parece satisfatória, na medida em que a ordem objetiva de valores funciona muitas vezes como uma forma de dar uma aparência de lógica e formalismo — tão valorizados no nosso sistema romano-germânico — a uma decisão fundada em valores dominantes em um estrato social limitado, de que fazem parte os membros da Corte[^352]. Embora durante décadas não tenha havido reações sérias às decisões do Tribunal, o grande nível de rejeição da postura do BVerfG no Caso do Crucifixo tem forçado uma revisão desses conceitos, bem como do papel da Corte Constitucional no Estado alemão[^353].

Nos Estados Unidos, a percepção de que as decisões valorativas da Suprema Corte podem estar em desacordo com os valores dominantes na sociedade é mais antiga. Há uma série de decisões que se tornaram célebres pelas controvérsias que levantaram. Começando por Dred Scott e passando pelos Slaughterhouse Cases, chegamos a dois casos marcantes, que sofreram sérias contestações por parte da sociedade: Brown v. Board of Education e principalmente Roe v. Wade[339]. Esses casos levaram a grandes debates, dividiram a opinião pública e contribuíram para consolidar uma tendência que hoje é bastante forte no Direito norte-americano: a necessidade de que a sociedade admita a legitimidade das decisões da Corte.

Não é de se estranhar, pois, que a principal discussão sobre o controle de constitucionalidade nos Estados Unidos desenvolva-se entre os interpretativistas e os não-interpretativistas. Enquanto os primeiros somente consideram legítimo o controle de constitucionalidade quando feito com base em uma literal disposição da Constituição, os segundos admitem que outros tipos de argumentos podem ser utilizados validamente no discurso jurídico. Trata-se de uma discussão sobre os topoi que a Suprema Corte pode utilizar para justificar a anulação de uma norma jurídica, a qual se encontra em um grau bastante desenvolvido. Que esse era o ponto fundamental da discussão, já percebera Alexander Bickel em 1962, quando escreveu: “it remains to ask the hardest questions. Which values [...] qualify as sufficiently important or fundamental or whateveyou to be vindicated by the Court against other values affirmed by legislative acts? And how is the Court to evolve and apply them?”[340]

Uma das obras fundamentais da atual discussão norte-americana sobre esse assunto é Democracy and Distrust, de John Hart Ely. No terceiro capítulo desse livro, bastante propriamente intitulado de descovering fundamental values [descobrindo valores fundamentais][341], o autor faz uma análise aprofundada sobre as fontes de valores utilizados pela Suprema Corte para fundamentar suas decisões em sede de controle de constitucionalidade — especialmente na aplicação do substantive due process[342]. Ely recusa como fontes adequadas de valores os valores pessoais do juiz, o Direito Natural, os princípios neutros de Wechsler[343], a razão, a tradição, o consenso (no sentido de valores largamente aceitos) e a engenharia social de Oliver Wendell Holmes.[344] Todavia, a proposta que ele oferece não parece menos arbitrária que as outras: sustentou Ely que o único parâmetro valorativo que deveria ser imposto pela Corte aos outros poderes seria a necessidade de manter livres os canais democráticos de câmbio político e de representação popular. Embora haja bons motivos para considerar importantes os valores eleitos por Ely, não parece haver qualquer razão para que eles mereçam ser considerados os únicos valores capazes de justificar a revisão das opções valorativas do legislador.

De toda forma, o simples fato de que há décadas[345] a discussão americana gira em torno da aceitabilidade de certos valores como justificativas para a intervenção na discricionariedade legislativa ou administrativa indica o quanto esse debate é mais desenvolvido que o brasileiro (que ainda não resolveu devidamente o problema da possibilidade de haver um controle de razoabilidade) e mesmo que o alemão (onde se reconheceu que existe uma ordem objetiva de valores, mas não há uma definição mais clara de como o BVerfG deve extrair essa ordem hierárquica a partir do texto constitucional).

Todavia, acreditamos que uma discussão dessa natureza dificilmente poderia ser levada adiante no Supremo Tribunal Federal. Em primeiro lugar, porque o self-restraint ainda é muito grande, o que se reflete em uma tendência do Tribunal a resolver as questões de fundo mediante argumentos de índole formal — opção que dificulta uma discussão aberta sobre o papel político do STF. Em segundo lugar, como não há uma necessidade de se chegar a um consenso entre os membros da Corte quanto aos fundamentos das decisões, sendo possível que cada um ofereça a solução que lhe pareça pessoalmente mais adequada, não se exige dos ministros o desenvolvimento de padrões valorativos consensuais para operar o controle de razoabilidade.

Por fim, as histórias da Suprema Corte norte-americana e do BVerfG indicam que os tribunais não decidem estabelecer critérios valorativos razoavelmente objetivos sem que haja uma forte pressão externa nesse sentido — provavelmente porque quanto mais definidos os padrões, menor a liberdade da Corte. Se é nos Estados Unidos que encontramos as discussões mais desenvolvidas sobre o tema, é porque desde o início do século questiona-se a amplitude do poder da Suprema Corte e o seu papel político. Em especial, a forte reação contra o ativismo judicial das era Warren e Burger tem forçado o Judiciário a justificar mais cuidadosamente as suas decisões, na busca de conquistar a aceitação social que garante a legitimidade da Corte. E esse mesmo processo provavelmente ocorrerá em breve no BVerfG, dada a recente reavaliação do papel desse Tribunal, causada pela reação popular ao julgamento do Caso dos Crucifixos. Dessa forma, como o STF não assumiu — ao menos ainda — uma postura de maior ativismo, não deve causar espécie o fato de que os critérios de orientação do controle de razoabilidade ainda não tenham sido devidamente discutidos pelo Supremo Tribunal Federal.

Conclusão

A - Controle de razoabilidade e superação do positivismo

O desenvolvimento de um modelo definido de controle de razoabilidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal caracterizaria o rompimento com o paradigma juspositivista que ainda impera no senso comum teórico dos juristas brasileiros. A concepção de que é muito perigoso conferir ao juiz o poder de realizar apreciações valorativas de forma expressa[346] ainda domina o imaginário jurídico nacional, e o abandono dessa concepção é um pressuposto necessário para que se possa discutir o controle de razoabilidade de uma forma consistente. Com isso, fica claro que a adoção do princípio da razoabilidade, longe de ser uma escolha valorativamente neutra[347], implica a afirmação de uma postura ideológica definida: a crença de que convém atribuir ao Poder Judiciário competência para rever as escolhas valorativas efetuadas pelos outros poderes.

Essa é uma concepção bastante discutível e várias são as vozes discordantes quanto à pretensão de submeter todas as decisões estatais, mesmo as discricionárias, ao crivo do Judiciário. É possível que atualmente haja mais juristas dispostos a combater esse programa que a defendê-lo. Entretanto, as experiências ditatoriais e totalitaristas da época contemporânea demonstram claramente os efeitos perversos dos limites (auto-impostos) do positivismo jurídico, que ao considerar arbitrários quaisquer juízos de valor, não se mostra capaz de lidar com o problema da legitimidade. Um golpe especialmente forte contra a viabilidade deste paradigma, e da concepção de legitimidade formal que lhe é subjacente, foi dado pela experiência nazista, que mostrou ser possível que o voto popular conduza democraticamente ao governo representantes com ideais expressamente antidemocráticos.

Tendo em vista as experiências traumáticas deste século que se encerra, já não nos parece defensável a mera pressuposição de legitimidade das escolhas valorativas do Legislativo e do Executivo, não é possível sacrificar completamente os ideais de justiça com vistas a garantir uma presumida segurança jurídica. Utilizando uma linguagem típica do controle de razoabilidade, podemos identificar uma colisão entre os valores da segurança jurídica e da justiça, sendo necessário buscar uma solução que harmonize esses valores, sem suprimir qualquer deles em favor do outro. Por tudo isso, a busca de um teoria jurídica que responda aos problemas levantados pela pretensão de legitimidade, que marca as democracias contemporâneas, passa necessariamente por uma superação do positivismo.

Convém ressaltar que a atribuição ao Judiciário da possibilidade de controlar a legitimidade dos atos estatais não é a única via possível de superação dos limites do positivismo jurídico. Entretanto, esse parece-nos o único caminho viável nas circunstâncias atuais, apesar de todos os seus problemas e limitações[348]. Discutindo o problema do controle de razoabilidade nos Estados Unidos, Ronald Dworkin sustenta que, por mais que a Suprema Corte seja uma instituição contramajoritária[349], a experiência mostrou que a sua existência foi benéfica à manutenção do próprio regime democrático. Essa é uma afirmação constestável — e efetivamente bastante contestada —, mas caracteriza a tomada de uma posição em uma discussão muito importante e que infelizmente não tem merecido a devida atenção dos juristas brasileiros: a definição do papel do Supremo Tribunal Federal.

A posição tradicional do Supremo é a de deferência frente às escolhas valorativas dos outros poderes e de uma participação muito tímida no processo de tomada de decisões políticas de caráter nacional. Essa situação vem-se modificando na última década, especialmente porque o instituto da Ação Direta de Inconstitucionalidade tem possibilitado que seja levada ao Supremo uma série de questões politicamente tão relevantes quanto controversas[350]. Voluntária ou involuntariamente, o STF tem adquirido uma importância crescente na vida política nacional, sendo esse um dos principais fatores no recente movimento de judicialização da política e politização da justiça. A atual conjuntura política exige que o STF não funcione apenas como um quarto grau de jurisdição, mas como uma instância política que possa tomar suas decisões com responsabilidade.

Nesse contexto, não parece viável a manutenção do dogma positivista de que o juiz deve abster-se de operar decisões valorativas. Tais pressupostos estimulam um self-restraint acrítico, na medida em que o órgão julgador evita fazer juízos de valor explícitos, por considerar que tais operações escapam à natureza da função jurisdicional. Entretanto, devemos deixar claro que o self-restraint também pode ser fruto de uma decisão política consciente e justificável com base em argumentos muito plausíveis, especialmente os ligados à garantia da segurança jurídica. Esse tipo de self-restraint seria mais saudável para o Poder Judiciário, na medida em que não pretende impor-se como uma necessidade lógica inerente à natureza da função jurisdicional, mas apenas como uma opção política entre as várias possibilidades existentes. Adotada uma postura como essa, certamente o controle de razoabilidade não seria objeto de maiores desenvolvimentos.

Mas não é esse o movimento que se vem delineando na última década, durante a qual o nível de ativismo judicial vem atingindo níveis cada vez maiores. Um dos índices mais visíveis dessa mudança de postura foi o julgamento, no último ano, da ADI(MC) 1.753, na qual o Supremo suspendeu uma medida provisória por considerar que ela carecia de relevância ou urgência. Todavia, não se pode perder de vista que ativismo judicial não acarreta necessariamente decisões de caráter progressista, como bem demonstra a combinação de ativismo judicial e conservadorismo político que marcou a Era Lochner, impedindo por mais de três décadas a instituição de direitos sociais nos Estados Unidos. Admitir o ativismo judicial significa possibilitar às cortes uma interpretação da constituição de acordo com os valores dominantes entre os seus membros — sejam tais valores progressistas ou conservadores. Dessa forma, a instituição de um controle de razoabilidade em um tribunal de linha conservadora — tal como a Suprema Corte norte-americana do início deste século — poderia significar um sério entrave para a realização de mudanças políticas de conseqüências mais profundas.

Além disso, o desenvolvimento de um controle de razoabilidade consistente envolveria uma mudança de alguns valores consolidados na nossa cultura judicial, especialmente no tocante à fundamentação das decisões. Enquanto os juízes perceberem-se como agentes que meramente aplicam as decisões valorativas contidas nas normas, a tendência é considerar desnecessário justificar argumentativamente as posições valorativas implícitas nas decisões judiciais ou mascarar essas decisões valorativas com um manto de formalismo. Para que o controle de razoabilidade seja minimamente legítimo, é preciso abandonar esse estilo dogmático de fundamentação[351], assumindo o Supremo Tribunal uma postura mais adequada às pretensões contemporâneas de legitimidade, o que envolveria uma justificação efetiva e expressa de suas opções valorativas, na busca de persuadir a sociedade da correção de tais escolhas. Se parece óbvio que essa mudança acarretaria uma melhoria qualitativa das decisões do Supremo, também é certo que ela exigiria um trabalho maior para elaborar cada decisão.

Neste ponto, devemos ressaltar que a presente discussão em torno da reforma do Judiciário — especialmente no tocante ao Supremo Tribunal Federal — tem como um dos seus maiores objetivos desenvolver métodos para acelerar a resolução dos litígios. Assim, não há uma perspectiva favorável para a implementação de políticas que implique um aumento do esforço necessário para o julgamento de cada processo. Como a modificação do estilo argumentativo do Tribunal somente pode ser operada pelos próprios ministros, seria necessário que eles se persuadissem — ou fossem persuadidos — de que não vale a pena sacrificar a qualidade das decisões para conseguir julgar uma quantidade maior de processos. E, dado o imenso número de processos recebidos diariamente pelo STF e a falta de celeridade no julgamento dessas causas, parece-nos bastante difícil que os ministros convençam-se de que é necessário desenvolver uma metodologia definida para o controle de razoabilidade, especialmente porque qualquer método eleito implicaria um aumento do esforço argumentativo ligado a cada decisão.

Enquanto o controle de razoabilidade continuar sendo operado de forma camuflada[352] ou de maneira descontínua e pontual, ou seja, enquanto não houver um modelo consistente de controle, o Tribunal poderá continuar a oferecer soluções ad hoc para as questões a ele apresentadas. Todavia, a partir do momento em que se estabelecesse uma orientação jurisprudencial definida sobre o controle de razoabilidade, seria necessário estender esse controle a uma série de casos que hoje são resolvidos com base em outros institutos jurídicos. Além disso, uma série de novas questões provavelmente seria levada à apreciação jurisdicional, problemas que escapam à competência do Judiciário de acordo com o paradigma atual, mas que passariam a ser juridicamente relevantes com a superação do positivismo implicada pelo desenvolvimento de um controle de razoabilidade. E mais uma vez esbarraríamos em óbices operacionais: poderia o Poder Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal, absorver essa nova demanda?

Todavia, não acreditamos que essas questões pragmáticas sejam suficientes para justificar o impedimento do acesso à justiça por parte das pessoas envolvidas nessas questões emergentes. Embora seja óbvio que os problemas operacionais do Judiciário dificultem sobremaneira que os processos tenham uma decisão célere e adequada, essas dificuldades não podem servir como base para excluir certos direitos de toda e qualquer possibilidade de apreciação jurisdicional. Os argumentos de cunho teleológico, fundados no prognóstico de conseqüências prováveis — tais como o aprofundamento da tão propalada crise do Judiciário —, são relevantes, mas devem ser preteridos em favor de argumentos deontológicos, fundados em princípios como o do acesso à justiça. Para utilizar a terminologia de Dworkin, no campo jurídico, os argumentos de princípio devem ter prevalência sobre os argumentos fundados em programas [policies].

Por tudo isso, professamos nossa crença na importância do desenvolvimento de um modelo consistente de controle judicial de razoabilidade, na medida em que o consideramos o melhor instrumento de que dispomos para garantir a legitimidade dos atos estatais. Quanto aos conceitos utilizados para operar tal controle, cremos que o devido processo legal seria a escolha mais adequada, tendo em vista essa garantia estar expressamente prevista na Constituição Federal de 1988. Embora o caminho de buscar princípios implícitos seja mais tortuoso e possa levantar relevantes objeções metodológicas e políticas, não consideramos inviável o entendimento de que o princípio da razoabilidade é uma das concretizações do princípio do Estado de Direito. Todavia, a consolidação dessa linha de fundamentação dependeria de uma manifestação inequívoca nesse sentido por parte do Supremo — o que não ocorreu até a presente data.

De qualquer forma, parece-nos de menor importância o debate sobre o título em nome do qual se realizará o controle. As discussões em torno desse tema têm consumido boa parte dos esforços dos juristas, os quais não se têm dedicado ao problema, a nosso ver mais relevante, da definição dos padrões — princípios, regras, valores etc. — que poderão ser utilizados como critérios do controle de razoabilidade. Todavia, discutir esse problema não é o nosso objetivo neste trabalho, cuja pretensão é apenas a de analisar a jurisprudência do STF, buscando descrever a função que têm desempenhado as referências ao princípio da razoabilidade na jurisprudência do Tribunal.

B - O princípio da razoabilidade na jurisprudência do STF

A análise dos acórdãos do Supremo Tribunal Federal indica claramente que não existe uma teoria do princípio da razoabilidade na jurisprudência da Corte. Apenas três ministros fizeram referências a esse princípio, sendo que apenas dois deles têm-se esforçado para consolidar esse topos na jurisprudência do Supremo: Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio. Mesmo assim, apenas o min. Marco Aurélio utilizou argumentos fundados no princípio da razoabilidade com certa freqüência[353]. Já Sepúlveda Pertence fez apenas três referências esparsas a tal princípio[354].

Entretanto, seria um engano concluir a partir desse fato que no STF apenas esses dois ministros buscam operar controles de razoabilidade. Como foi repetido por várias vezes, o princípio da razoabilidade é apenas um dos argumentos a partir dos quais um tribunal pode controlar a legitimidade das opções valorativas dos agentes estatais. No Brasil, devemos reconhecer que boa parte do controle de razoabilidade é realizado por meio do princípio da igualdade. Trata-se de um instrumento tradicional de controle e que, na cultura jurídica brasileira, afastou-se do seu conteúdo original de garantia de uma igualdade formal e afirmou-se como uma exigência com base na qual se pode invalidar qualquer discriminação arbitrária. Atualmente, percebe-se uma tendência de utilizar a razoabilidade como um critério para a avaliação da validade das discriminações, o que aponta para a possibilidade do desenvolvimento de relações entre os princípios da isonomia e da razoabilidade[355].

No direito comparado, dois são os instrumentos mais influentes na questão do controle de razoabilidade: o devido processo legal norte-americano e o princípio da proporcionalidade germânico. As influências desses institutos fazem-se notar tanto na jurisprudência quanto na doutrina brasileiras. Por um lado, dois ministros esforçaram-se por desenvolver o devido processo como um instrumento válido de controle de razoabilidade por parte do STF: Moreira Alves e Celso de Mello. Houve também consistentes esforços doutrinários nesse mesmo sentido, especialmente o de Siqueira Castro e, mais modernamente, de Maria Rosynete Lima.

Já a influência germânica pode ser percebida tanto na terminologia adotada por Sepúlveda Pertence — que preferencialmente fala de princípio da proporcionalidade e da razoabilidade — como na maior parte da doutrina sobre o tema. Gilmar Mendes, Paulo Bonavides, Willis Guerra Filho, Suzana Barros e Raquel Stumm, entre outros, entendem que da Constituição Federal brasileira é possível — e até mesmo necessário — extrair um princípio implícito, nos moldes do princípio da proporcionalidade alemão. Todavia, não consideramos adequada essa aproximação do problema, pois apenas a suposição de que esse princípio seria um conceito jurídico a priori justificaria a pretensão de que o STF adotasse os mesmos critérios interpretativos desenvolvidos pela teoria jurídica alemã. Os pressupostos envolvidos nessa operação não nos parecem aceitáveis, especialmente por entenderem o controle de razoabilidade como um problema de lógica jurídica e não como um instrumento de controle político construído historicamente e que precisa levar em consideração os aspectos peculiares de cada sociedade.[^371]

Como há uma previsão expressa na Constituição Federal que garante o direito ao devido processo legal, parece-nos que seria mais consistente uma teoria que fundasse o controle de razoabilidade nessa cláusula. Seria conveniente, pois, dar continuidade aos esforços de Moreira Alves e Celso de Mello, no sentido de desenvolver uma fundamentação do controle de razoabilidade na previsão constitucional do devido processo, o que nos levaria a uma aproximação maior com a teoria norte-americana. Todavia, embora essa linha de fundamentação pareça mais sólida, a inexistência de qualquer referência ao devido processo na jurisprudência dos últimos cinco anos deixa-nos céticos perante a possibilidade de que o Supremo venha a desenvolver esforços nesse sentido, ao menos a curto prazo.

Nos últimos anos, especialmente em 1998, foi o princípio da razoabilidade que recebeu maior atenção, ainda que por parte de um número reduzido de ministros — fato que indica que o desenvolvimento de um controle de razoabilidade com base nesse princípio pode ter uma maior viabilidade. Entretanto, também somos céticos quanto à possibilidade de que esse princípio venha a ter um desenvolvimento consistente a curto prazo. Embora os esforços de Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence tenham sido grandes, o princípio da razoabilidade ainda tem um caráter muito incipiente na jurisprudência do Tribunal.

Ele foi utilizado como parâmetro de controle de vários objetos diversos — leis, atos administrativos, interpretações e até mesmo de um dispositivo constitucional, ainda que de forma velada —, sem que se tenha atentado para o fato de que em cada um desses usos ele desempenha um papel diverso na argumentação. Embora haja uma certa constância no seu uso como um parâmetro de adequação entre meios e fins, em vários processos as referências ao princípio da razoabilidade extrapolam esses limites estreitos e são utilizadas para avaliar a aceitabilidade dos próprios fins ou a validade da ponderação de valores que deu origem aos atos estatais impugnados. Também devemos ressaltar que o nível de ativismo judicial possibilitado pela introdução do princípio da razoabilidade na argumentação do tribunal não é uniforme. Por um lado, o respeito exacerbado à separação dos poderes leva a um self-restraint exagerado no controle de razoabilidade das leis. Por outro, identificamos uma certa a tendência a tomar decisões de forma dogmática[356], sem uma maior fundamentação discursiva das escolhas valorativas do próprio Tribunal, especialmente no controle de razoabilidade de operações interpretativas.

Essa indefinição sobre o conteúdo do princípio da razoabilidade tem levado a algumas utilizações inadequadas, que reduzem esse princípio a uma exigência geral e abstrata de razoabilidade ou justiça. Essa concepção tende a desnaturar o próprio princípio, que perde a possibilidade de funcionar como um requisito de validade dos atos estais na medida em que tem o seu campo de aplicação excessivamente ampliado (por ser aplicável a todo e qualquer ato jurídico) e o seu conteúdo rarefeito (por causa da sua generalização e abstração).

O desenvolvimento de uma teoria consistente sobre o princípio da razoabilidade passa por uma definição dos seus contornos, reservando-lhe um conteúdo limitado mas preciso, e por uma delimitação do seu âmbito de aplicação. Além disso, é necessário enfrentar adequadamente o delicado problema de definir quais são os valores que podem ser utilizados pela Corte como parâmetro para o controle de razoabilidade. Nenhuma dessas questões foi enfrentada devidamente na jurisprudência do Supremo, nem mesmo pelos ministros que mais se têm esforçado para a consolidação do princípio da razoabilidade como um topos jurídico na argumentação ligada ao Direito Constitucional.

Todavia, a ausência de uma teoria consistente não significa uma utilização absolutamente desordenada, pois é possível verificar certas tendências na utilização da expressão princípio da razoabilidade. No caso do controle de razoabilidade de leis, esse princípio foi invocado principalmente como um instrumento de avaliação da adequação entre meios e fins (ADI(MC) 855 e ADI(MC) 1.813). No controle de atos administrativos normativos, uma das referências ao princípio limitou-se ao problema da adequação (AGRAG 194.188), mas no AGRRE 205.535 houve uma intervenção judicial mais acentuada, pois avaliou-se a razoabilidade do peso que o administrador atribuiu aos interesses em jogo e concluiu-se que a ponderação de bens operada pelo administrador não foi aceitável. No controle de atos administrativos, houve algumas utilizações indevidas — tentativas de aplicação do princípio a atos vinculados — e apenas uma referência adequada, na qual se procedeu a um exame de adequação entre meios e fins.

Portanto, no controle de razoabilidade de leis e atos administrativos, identificamos a preponderância da utilização do princípio da razoabilidade como uma pauta valorativa para realizar um exame de adequação entre meios e fins. Além disso, verificamos que o Tribunal acena para a possibilidade de utilizar o princípio como um instrumento para avaliar as ponderações de valores realizadas pelos administradores. Todavia, não há ainda qualquer indício de que os atos legislativos serão submetidos a esse mesmo exame, pois esse controle de legitimidade mais estrito somente está sendo operado em relação aos concursos públicos. Essa questão normalmente é tratada com base no princípio da igualdade, mas está consolidada na Corte a utilização da razoabilidade como um critério para a aplicação da isonomia a esses casos.

A excessiva ampliação do alcance do princípio da isonomia na questão dos concursos públicos faz com que esse princípio venha sendo utilizado para coibir tratamentos arbitrários, embora não discriminatórios. Para tanto, tem-se utilizado a razoabilidade das restrições ao ingresso no serviço público como um critério para a aplicação do princípio da igualdade. Identificamos que o reiterado uso do critério da razoabilidade nos julgamentos relativos a concursos públicos gerou um processo que tende a reconhecer a possibilidade de uma utilização autônoma do princípio da razoabilidade nessa questão específica. Já houve tentativas de combinar a utilização do princípio da isonomia e da razoabilidade nesses casos (ADI 1.326) e, no AGRRE 205.535, o min. Marco Aurélio chegou a invocar apenas este princípio. A problemática relativa aos concursos públicos é, assim, um dos campos mais férteis para a utilização do princípio da razoabilidade e aquele que se mostra mais viável a consolidação de critérios objetivos para a sua aplicação.

Mas foi no controle das interpretações judiciais e administrativas, que encontramos o menor self-restraint. Nesses casos, não é possível reduzir a atuação do STF a um mero controle de adequação, pois o Tribunal invalidou várias decisões judiciais por considerar que as interpretações não eram as mais corretas, de acordo com os padrões valorativos dominantes dentro da própria Corte. O uso do termo razoabilidade como parâmetro para a avaliação de interpretações é bastante antigo[357] e a consolidação desse critério na jurisprudência do Tribunal é uma explicação plausível para justificar as tentativas de aplicar o princípio da razoabilidade a essa matéria.

Todavia, é nesse campo que encontramos as fundamentações mais débeis, pois em vários momentos o princípio da razoabilidade é utilizado como um instrumento para invalidar interpretações que estejam em desacordo com os valores dominantes no Tribunal, sem que os ministros justifiquem argumentativamente as suas próprias opções valorativas. Assim, os valores dominantes na Corte são impostos apenas com base na sua autoridade, sem uma tentativa de persuadir o restante da sociedade de que essas posturas são as mais adequadas — o que identificamos como um déficit metodológico nas fundamentações do STF.

Um caso à parte é o AGRAG 153.493, no qual o controle de razoabilidade da interpretação de um dispositivo constitucional foi utilizado para encobrir o controle de adequação entre meios e fins da opção valorativa do próprio constituinte. Como fundamentação expressa, temos uma interpretação sistemática do § 1o do artigo 100 da Constituição Federal e a referência ao princípio da razoabilidade como um argumento de reforço. Todavia, embora não ultrapasse o sentido literal possível, ela interpreta o dispositivo contrariamente ao seu sentido original — o que implica um controle de razoabilidade das escolhas valorativas do próprio constituinte, no qual a Corte concluiu que não havia uma adequação entre os fins eleitos pelo constituinte e os meios por ele instituídos.

Verificamos, assim, que a utilização do princípio da razoabilidade como parâmetro para o controle de razoabilidade das leis ainda é muito pouco desenvolvido. Já no controle de atos administrativos normativos, há uma tendência para a autonomização desse princípio na questão da validade dos critérios para acesso a cargos públicos, campo em que ele pode vir a substituir a tradicional utilização do princípio da igualdade. Outro campo em que o princípio vem adquirindo certa autonomia é o do controle de razoabilidade das decisões judiciais, embora a falta de uma justificação mais adequada das opções valorativas da Corte torne essa utilização bastante problemática em alguns casos.

Por tudo isso, concluímos que o princípio da razoabilidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ainda é um instrumento incipiente de controle de razoabilidade, dado que não há na Corte uma utilização consistente desse conceito. Entretanto, devemos reconhecer que esse princípio está em fase de desenvolvimento e que os vários trabalhos que vêm sendo elaborados em torno desse tema têm propiciado um gradual amadurecimento da discussão sobre o princípio da razoabilidade. Todavia, acreditamos que o modelo de tomada de decisões do STF, na medida em que não estimula a busca de soluções de consenso entre os ministros, funciona como uma barreira que dificulta bastante que esses debates doutrinários tenham a devida repercussão na jurisprudência da Corte.

Durante esta década apenas dois ministros têm-se esforçado para desenvolver o princípio da razoabilidade e não há indícios de que o Tribunal como um todo venha a envolver-se em uma discussão aprofundada sobre o tema, o que praticamente impede o desenvolvimento de uma teoria consistente sobre o princípio da razoabilidade. E, o que é mais grave, a ausência de debates jurisprudenciais sobre o tema indica que não está próximo o dia em que o Supremo Tribunal Federal terá desenvolvido uma teoria consistente sobre o controle de legitimidade. O princípio da razoabilidade não é mais que um dos argumentos possíveis dentro de um controle de razoabilidade e apenas dois ministros demonstraram sua preferência pessoal por esse conceito. Dois outros já demonstraram sua preferência pelos argumentos fundados no devido processo legal. Os demais não apelaram para qualquer princípio que oriente suas opções valorativas. Isso tudo não significa que o controle de razoabilidade não tem sido feito, mas apenas que ele tem sido operado sem uma metodologia definida.

Identificamos no sistema de tomada de decisões vigente no STF uma das principais causas dessa falta de orientação. Como para que um processo seja decidido exige-se apenas que a maioria dos ministros concorde quanto ao resultado, sendo irrelevantes os fundamentos invocados, não há qualquer estímulo para a busca de um fundamento consensual. Com isso, cada ministro pode efetuar o controle de razoabilidade com base nos argumentos que julgue mais apropriados, o que faz com que muitas decisões sejam tomadas com base em uma série de posições divergentes ou até mesmo incompatíveis. Assim, por mais que consideremos necessário o desenvolvimento de critérios adequados para a operação do controle de razoabilidade e que reconheçamos o valor das reflexões teóricas que esse tema tem merecido, devemos admitir o nosso ceticismo quanto à possibilidade de que o Supremo Tribunal Federal venha a desenvolver, a curto prazo, um modelo consistente de controle de razoabilidade.

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  1. E/ou os aspectos relevantes de certos fatos. ↩︎

  2. Ressalte-se que não devemos enxergar nisso um defeito das teorias. Trata-se antes de uma de suas características fundamentais: todo conhecimento é limitado e devemos conviver com essa realidade, por mais que ela possa ser incômoda a certas visões de mundo. ↩︎

  3. Ou ao menos intersubjetiva. ↩︎

  4. Dentro do qual haja o mínimo de lacunas. ↩︎

  5. Dentro do qual não haja contradições. ↩︎

  6. Especialmente de viés kantiano ou neokantiano. ↩︎

  7. Anteriores e independentes da experiência. ↩︎

  8. E as limitações da pretensão descritiva do direito foram muito bem percebidas por Gustav Radbruch, quando afirmou que “a ciência do direito já tem, efectivamente, repetidas vezes, tentado captar por via indutiva um tal conceito [de direito], procurando extraí-lo dos próprios factos ou fenómenos jurídicos, e nenhuma dúvida pode haver de que é fundamentalmente possível chegar, por meio do confronto de diferentes fenômenos dessa natureza, a determinar o conceito que lhes está a todos na base. Evidentemente, é possível colher por este meio o conceito de direito; o que não é possível é fundamentá-lo” [Radbruch*,* Filosofia do Direito, p. 85] ↩︎

  9. Seja pela autoridade de um Tribunal, pela consolidação na doutrina ou ambos. ↩︎

  10. Embora devamos reconhecer que nenhuma teoria é meramente descritiva. ↩︎

  11. E essa forma de encarar a jurisprudência parece ser reforçada pela falta de coerência da jurisprudência de nossos tribunais. ↩︎

  12. E conseqüente rejeição da teoria. ↩︎

  13. Mais precisamente, desde o julgamento da ADI(MC) 855, em 1.7.1993. ↩︎

  14. Evitemos, desde logo, problemas com relação à terminologia. Princípio da proporcionalidade é uma expressão de origem alemã que, no direito germânico, designa um instituto jurídico consolidado e de características definidas, o qual será analisado no Capítulo III. Na Alemanha, esse mesmo instituto também é chamado de princípio da proibição do excesso. Princípio da razoabilidade é o nome com o qual os argentinos se apropriaram do due process of law [devido processo legal] norte-americano e que, desde então, ganhou alguma projeção nos países de língua hispânica. Embora já se tenha afirmado que o princípio da razoabilidade tem origem nos Estados Unidos, trata-se de um conceito que não é usado pelos juristas norte-americanos ou em outros países do common law, onde a razoabilidade é apenas um standard do devido processo legal. No STF já houve algumas referências aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, bem como a um princípio da razoabilidade ou proporcionalidade, tratando-os em conjunto, sem reduzir um conceito ao outro. No entanto, não houve qualquer tentativa jurisprudencial no sentido de diferenciar esses dois conceitos, o que indica que se trata mais de uma indefinição da própria jurisprudência que de uma referência a dois institutos considerados distintos. Alguns autores propõem que diferencemos os conceitos, principalmente em respeito às suas origens diversas (germânica e norte-americana) [Barros, O princípio da proporcionalidade..., p. 70. Willis Santiago Guerra Filho manifestou a mesma opinião em sua participação em banca da defesa de dissertação de mestrado em Direito realizada na Universidade de Brasília em janeiro de 1999]. No entanto, como a jurisprudência do STF não faz diferença entre os dois conceitos, admitiremos que esses termos são intercambiáveis — ao menos até que um deles se imponha como dominante ou que se estratifique uma diferenciação jurisprudencial. Quanto a nós, manifestamos nossa preferência pelo termo princípio da razoabilidade porque a expressão princípio da proporcionalidade tem um significado muito específico na dogmática jurídica alemã, o qual não é necessariamente o mesmo que ele adquiriu (ou adquirirá) no direito nacional. Já o princípio da razoabilidade não tem um sentido dogmático específico, o que deixa o STF mais livre para desenvolver o seu significado e cria menos preconceitos sobre qual deveria ser o entendimento do Supremo. Em sentido contrário, a própria admissão do termo princípio da proporcionalidade tende a levar-nos à conclusão de que os três subprincípios da doutrina alemã devem estar presentes na jurisprudência do STF. Dessa forma, embora consideremos sinônimas as expressões, daremos preferência ao termo princípio da razoabilidade. ↩︎

  15. O artigo 38 da Lei Geral de Telecomunicações [Lei n° 9.472, de 16.07.97] dispõe que “a atividade da Agência [Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL] será juridicamente condicionada pelos princípios da legalidade, celeridade, finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, impessoalidade, igualdade, devido processo legal, publicidade e moralidade.” [grifos nossos] ↩︎

  16. Vide Capítulo IV - A - 3. ↩︎

  17. Os demais podem simplesmente acompanhar o relator ou o voto de algum outro ministro. ↩︎

  18. Pois é sempre possível acompanhar um voto dado anteriormente. ↩︎

  19. O termo razoável, por repetir a literalidade das súmulas, foi usado de forma bastante repetida, constando de aproximadamente 1.400 acórdãos do STF. Entre esses casos, houve 189 referências diretas à Súmula 400 nos textos das ementas e 395 remissões a ela como legislação relacionada. As referências à Súmula 285 nos casos de indexações que utilizavam o termo razoável são menores — totalizando 8 —, mas o número de referências diretas as essa súmula, em um total de 82, dez vezes mais que os casos em que ocorre o termo razoável, aponta para o fato de que o modo como são indexadas as decisões do Supremo dificulta uma apreensão exata do número de vezes em que o argumento da razoabilidade das decisões foi realmente utilizado.

    Para oferecer uma idéia mais adequada da amplitude da utilização desse argumento, se tomarmos os 1400 casos em que ocorre o termo razoável e deles subtrairmos os que se referem à Súmula 400, teremos aproximadamente 800 casos. E, se retirarmos desse conjunto todos os casos em que se faz referência a uma interpretação, entendimento, decisão, exegese, fundamento ou inteligência razoável, teremos apenas 186 casos. Todavia, a grande maioria dos acórdãos que restam na pesquisa também utiliza a razoabilidade como um critério de admissibilidade dos recursos, embora utilizando uma construção gramatical diversa da simples combinação entre os termos interpretação, entendimento, decisão, exegese, fundamento ou inteligência e os termos razoável ou razoáveis. Em todos esses casos, faz-se referência à razoabilidade dos atos judiciais impugnados como um critério para que o Tribunal afirme a sua validade.Já o termo razoabilidade foi utilizado em apenas 91 casos, provavelmente por não ser a repetição exata dos textos das súmulas. Retiradas todas as menções às Súmulas 400 e 285, bem como a interpretações razoáveis, restam apenas 40 acórdãos. Nesse contingente, existe em torno de uma dezena de referências expressas ao princípio da razoabilidade e o restante é uma repetição do argumento da razoabilidade como forma de evitar o conhecimento. ↩︎

  20. Ou seja, de acordo com critérios interpretativos fixados pelo próprio Tribunal. ↩︎

  21. Nesse caso, o órgão investido de jurisdição. ↩︎

  22. Especialmente nas concepções de Kelsen e Hart. ↩︎

  23. Embora as recentes decisões do STF que admitem ações rescisórias para alterar coisa julgada com base em questões meramente interpretativas possam ser um indício de possíveis mudanças nessa orientação. ↩︎

  24. Inspirada pelo positivismo. ↩︎

  25. Entretanto, devemos adiantar que essa linha jurisprudencial está em um processo de transformação, já existindo uma série de casos nos quais o Supremo intervém no aspecto discricionário das decisões recorridas. Atualmente, começa a consolidar-se uma nova postura, que admite o controle de razoabilidade dos atos judiciais e distancia-se cada vez mais da Súmula 400. Alguns desses casos serão avaliados no exame que faremos sobre a jurisprudência da Corte, como os RE 221.066 (1998) e RE 158.428 (1998). Vide I - C - ↩︎

  26. RF 145:163. Publicado no DJU de 8.11.1951, p. 10865. Ementário 63/1:283. Ementa: “O poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, de comércio e de indústria e com o direito de propriedade. É um poder cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do “détournement de pouvoir”. Não há que estranhar a invocação dessa doutrina ao propósito da inconstitucionalidade, quando os julgados têm proclamado que o conflito entre a norma comum e o preceito da Lei Maior pode se acender não somente considerando a letra, o texto, como também, e principalmente, o espírito do dispositivo invocado. O imposto, ainda que imodesto, é exigível, a não ser que aniquile a atividade particular”. ↩︎

  27. RF 145:165. ↩︎

  28. RF 145:168. ↩︎

  29. Isso se explica, em parte, porque o due process é o instituto que permite às cortes federais impor aos estados os princípios constitucionais do bill of rights. No Brasil, a referência a um instituto que fizesse tal intermediação seria desnecessária, pois o Supremo reconhecia a força normativa dos princípios constitucionais. No entanto, o conceito de devido processo adquiriu um conteúdo próprio, que não se reduz apenas a uma ponte que possibilita a exigência de que os estados observem os direitos constitucionais expressamente garantidos. Atualmente, a referência ao due process envolve uma noção de exigência de razoabilidade que escapa à simples imposição do Bill of Rights. ↩︎

  30. Dworkin, Taking rights seriously, p. 26. ↩︎

  31. No entanto, citamos aqui este acórdão porque ele é normalmente referido como o primeiro em que surge a preocupação com a proporcionalidade. Mendes, O principio da proporcionalidade..., p. 475 : “É interessante notar que a primeira referência de algum significado ao princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal — tanto quanto é possível identificar — está intimamente relacionada com a proteção ao direito de propriedade. No RE nº 18.331, da relatoria do eminente Ministro Orozimbo Nonato, deixou-se assente, verbis: [cita a ementa do acórdão]”. Barros, O princípio da proporcionalidade..., p. 99. Stumm, Princípio da proporcionalidade, p. 89. ↩︎

  32. RTJ 45/2:530. Publicado no DJU de 28.6.1968, p. 2440. Ementário 732/3:760. Ementa: O parágrafo único do art. 126 da L. est. 8.101, de 16.4.1964, estabelecendo critério de provimento de serventia vitalícia, em benefício exclusivo de certo serventuário da Justiça, afeta o direito de outros serventuários que guardam identidade de situação. [RTJ 45/2:530] ↩︎

  33. Não há referência expressa no acórdão aos interesses do impetrante, mas fica claro que ele que tinha pretensões de obstar a divisão do cartório ou de ser ele próprio nomeado para a nova serventia. ↩︎

  34. Esse ponto permanece obscuro no acórdão. Por um lado, o Tribunal Estadual afirma-se que parágrafo único foi vetado e que, mesmo assim, o Governador fez a nomeação. Por outro o autor pede a declaração da inconstitucionalidade do dispositivo, a qual é exaustivamente discutida pelo STF, o que pressupõe a vigência do dispositivo. Para reconhecer maior consistência aos argumentos do Supremo Tribunal, trabalharemos com a hipótese — única que parece plausível, caso ambos os posicionamentos sejam verdadeiros — de que houve o veto, mas que este fora derrubado pela Assembléia Legislativa. ↩︎

  35. RTJ 45:530-531. ↩︎

  36. Fizemos aqui uma pequena inversão da ordem em que os argumentos foram colocados, com o objetivo de facilitar a compreensão da discussão. Essa intervenção de Prado Kelly é posterior à de Victor Nunes, citada logo adiante. ↩︎

  37. RTJ 45/2:538. ↩︎

  38. RTJ 45/2:537. ↩︎

  39. RTJ 45/2:539-40. ↩︎

  40. RTJ 45/2:540. ↩︎

  41. RTJ 45/2:540-2. ↩︎

  42. Conceitos que, convenhamos, ainda não eram consolidados à época. ↩︎

  43. Como podemos perceber a partir do voto de Aliomar Baleeiro, que afirmou ser inédito no mundo um sistema abstrato de controle de constitucionalidade, embora um tal sistema já houvesse sido implantado na Alemanha quase dez anos antes. ↩︎

  44. Enfrentar os problemas de legitimidade utilizando o conceito de abuso de poder. ↩︎

  45. No sentido que tendia a manter a tradicional liberdade do legislador nas questões de discricionariedade. ↩︎

  46. Que claramente visava a garantir interesses particulares, um tipo de corrupção que já havia sido caracterizado desde Aristóteles e que ganha um reconhecimento especial de São Tomás de Aquino, no século XIII, quando afirma na Suma Teológica que “a lei, sendo por excelência relativa ao bem comum, nenhuma outra ordem, relativa a uma obra particular, terá natureza de lei, senão enquanto se ordena ao bem comum” [Aquino, Suma Teológica, Q. XC, art. II, Solução]. Vemos que São Tomás não afirma que a generalidade é uma característica essencial à lei, que pode tratar de casos particulares desde que voltada ao bem comum. Essa é uma das concepções centrais da teoria jurídica tomista — e, de resto, de toda teoria jurídica cristã —, e ainda hoje nos parece uma verdade quase evidente, dado que nossa formação moral tem grande fundamento na ética cristã. ↩︎

  47. Argumento esse que, como vimos na nota anterior, já havia sido devidamente refutado por São Tomás de Aquino há mais de 700 anos atrás. ↩︎

  48. RTJ 45/2:539. ↩︎

  49. Leal, Problemas de Direito Público..., vol. II, p. 303. Reprodução do artigo “Reconsideração do tema do abuso de poder”, conferência proferida na Justiça Federal, em São Paulo, na data de 26.11.1981 e publicada originalmente na Revista de Direito Administrativo n° 144, abr/jun, 1981. ↩︎

  50. Leal, Problemas de Direito Público..., vol. I, p. 273 ↩︎

  51. Sobre essa problemática, vide 0 ↩︎

  52. Sobre esse ponto, vide I - C - ↩︎

  53. Ou seja, o conteúdo discricionário dos atos. ↩︎

  54. E é interessante notar que as referências expressas ao princípio da razoabilidade foram feitas por ministros que ingressaram no Tribunal após o fim do regime militar, especialmente após a promulgação da atual Constituição. Embora aqui devamos fazer a ressalva de que o Ministro Moreira Alves, que faz parte do tribunal desde meados da década de 70, tem empreendido esforços para a consolidação do instituto do devido processo legal na jurisprudência do STF. ↩︎

  55. RTJ 44/2:322. Publicado no DJU de 17.6.1968, p. 2228. Ementário 721/2:792. ↩︎

  56. RTJ 44/2:325. ↩︎

  57. RTJ 44/2:327. ↩︎

  58. RTJ 44/2:327. ↩︎

  59. Mendes, Princípio da proporcionalidade..., p. 473. ↩︎

  60. RTJ 50/2:383. Publicado no DJU de 09.6.1969. ↩︎

  61. Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968, que marcou o início da época de maior repressão dentro do regime militar pós-64. ↩︎

  62. Trata-se do julgamento de embargos de declaração dirigidos contra a decisão do RE 63.752, julgado em 5.12.1968, no qual foi vencedora a mesma tese sustentada pela maioria dos membros do Tribunal no processo aqui analisado, sendo que as ementas de ambos os processos têm idêntico conteúdo. ↩︎

  63. Ato Institucional no 1, de 9 de abril de 1964. ↩︎

  64. Ementário 50/1:383-384. ↩︎

  65. Castro, O devido processo legal..., p. 192. ↩︎

  66. RTJ 59/2:333. Publicado no DJU de 13.12.1971, p. 7096. Ementário 859/1:36. Ementa: “Reclamação. Desprezada a preliminar do seu não conhecimento, por maioria de votos deu-se, no mérito, pela sua improcedência, ainda por maioria, visto caber ao Dr. Procurador-Geral da República a iniciativa de encaminhar ao Supremo Tribunal Federal a representação de inconstitucionalidade. jurisprudência do STF, que se harmoniza com esse entendimento.” ↩︎

  67. RTJ 59/2:334. ↩︎

  68. RTJ 59/2:347-348. ↩︎

  69. RTJ 59/2:349. ↩︎

  70. RTJ 59/2:350. ↩︎

  71. Leal, Problemas de Direito Público..., vol. II, p. 196. ↩︎

  72. Publicado no DJU de 02.9.1977, p. 5969. Ementário 1068/1:9. Lei n° 4.116, de 28.8.1962 – Inconstitucionalidade. Exercício livre de qualquer trabalho, ofício ou profissão (CF, art. 153, § 23). É inconstitucional a lei que atenta contra a liberdade consagrada na Constituição Federal, regulamentando e conseqüentemente restringindo exercício de profissão que não pressupõe “condições de capacidade”. ↩︎

  73. RTJ 58/1:279. ↩︎

  74. Por ter sido o propositor da ação, Moreira Alves, que então já era ministro do Supremo Tribunal Federal, ficou impedido de participar do julgamento do processo. ↩︎

  75. Em suas conclusões, Francisco Linares afirmou que: “En la primera parte de este trabajo estudiamos los antecedentes históricos y políticos de la garantía, así como su desenvolvimiento y modalidades en los Estados Unidos. En la segunda parte lo hicimos com la teoría que permite comprender sistemáticamente la institución. En la última, su vigencia en Argentina. Con ello creemos haber demonstrado que en nuestro país existe una garantía constitucional que permite atacar ante los jueces, las leyes formales y formal-materiales, tanto de la Nación como de las provincias, que sean irrazonables. [...] Debe advertirse que se declare o no irrazonable una ley como coronamiento de un proceso judicial de impugnación, la garantía habría sido aplicada, pues se obligó al juez a pronunciarse sobre el asunto, sin que el magistrado pueda considerarlo como no justiciable. Por eso no tiene importancia, para la teoría, el hecho de que sean muy pocos los casos en que se haya declarado la inconstitucionalidade de una lei por ser irrazonable.” [Linares, Razonabilidad de las leyes, pp. 225-226] ↩︎

  76. “Reasonable. It would be unreasonable to expect an exact definition of the word “reasonable”. Reason varies in its conclusions according to the idiosyncrasy of the individual, and the times and circumstances in which he thinks. The reasoning which built up the old scholastic logic sounds now like the jingling of a child’s toy” [Stroud’s Judicial Dictionary of Words and Phrases, 3a ed., 1953]” ↩︎

  77. De l’esprit géometrique et de l’Art de Persuader, in “Oeuvres Completes”, ed. Seuil, p. 330. ↩︎

  78. As applied to legislative measures, within proper limits, fit and appropriate to the end in view” [Cyclopedia of Law and Procedure, v. 33, New York, The American law book company, 1909.] ↩︎

  79. RTJ 56/3:811. Publicado no DJU de 02.4.1971. Ementário 830/2:394. ↩︎

  80. RTJ 56/3:812. ↩︎

  81. Vide I - B - 3. ↩︎

  82. RTJ 110/3:937. Publicado no DJU de 29.6.1984, p. 739. Ementário 1342/1:2197. ↩︎

  83. RTJ 110/3:937-938. ↩︎

  84. RTJ 110/3:940. ↩︎

  85. RTJ 110/3:945-947. ↩︎

  86. RTJ 110/3:957-958. ↩︎

  87. Que nada mais é que uma apropriação da teoria norte-americana do devido processo substantivo. ↩︎

  88. Vide I - B - 7. ↩︎

  89. A captação de clientela não, é, portanto, condição de capacidade, pois não se enquadra em nenhuma das modalidades possíveis desta, nem visa a proteger o interesse público, mas sim a impedir a possibilidade de concorrência que se tem por desleal com os outros profissionais da mesma profissão. Proteção desta ordem — que não é sequer de natureza moral, pois captação moralmente reprovável é aquela que decorre de ação do profissional para atrair clientes, e não a que resulta de prestígio funcional, social ou intelectual, adveniente de outra atividade lícita — proteção dessa ordem, repito, é característica de corporações de ofício abolidas desde a Constituição Imperial de 1824 (artigo 179, item XXV), e incompatíveis com a liberdade de trabalho, ofício ou profissão. E especialmente de profissão liberal. [RTJ 110/3:968-969] ↩︎

  90. RTJ 110/3:972-973. ↩︎

  91. O qual envolve necessariamente apreciações valorativas. ↩︎

  92. RTJ 110/3:976. ↩︎

  93. RTJ 110/3:976. ↩︎

  94. Vide I - C - 8. a) ↩︎

  95. RTJ 101/2:499. Publicado no DJU de 28.9.1984, p. 15.955. Ementário 1.351/1:18. ↩︎

  96. A lei referida cria um sistema complexo de cálculo da taxa judiciária e todos os seus dispositivos foram contestados. Contudo, referir-nos-emos apenas aos argumentos relativos ao problema da fixação da taxa em uma percentagem fixa. ↩︎

  97. RTJ 112/1:56. ↩︎

  98. RTJ 112/1:58-59. ↩︎

  99. Mendes, O princípio da proporcionalidade..., p. 472. ↩︎

  100. Convém ressaltar que esta é a mesma estratégia de fundamentação utilizada por Moreira Alves na RP 1.054, julgada no mesmo ano. Vide I - B - 9. ↩︎

  101. Seria plausível até afirmar que nem mesmo se trata de um controle de constitucionalidade, já que a lei do Rio de Janeiro estaria contrariando conceitos de Direito Tributário fixados pelo Código Tributário Nacional, que é uma lei complementar. ↩︎

  102. “Logo, o excesso de cobrança desses valores poderá importar, além de desbordamento da taxa em verdadeiro imposto, em negação de justiça.” [RTJ 112/1:67] ↩︎

  103. Vide I - B - 3. ↩︎

  104. De forma mais precisa, uma lei que, segundo uma interpretação plausível, contrariava o princípio da razoabilidade a tal ponto que se justificaria concluir pela invalidade da norma positiva. ↩︎

  105. Publicado no DJU de 22.5.1987, p. 9761. Ementário 1462/4:723. ↩︎

  106. RTJ 122/3:1135. ↩︎

  107. §1o A primeira investidura em cargo público dependerá de aprovação prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, salvo os cargos indicados em lei. ↩︎

  108. RTJ 122/3:1137-8. ↩︎

  109. RTJ 122/3:1130. ↩︎

  110. RTJ 122/3:1138. ↩︎

  111. Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, p. 215. ↩︎

  112. Castro, O devido processo legal..., p. 201. ↩︎

  113. Castro, O devido processo legal..., pp. 187-188. ↩︎

  114. Castro, O devido processo legal..., p. 192. ↩︎

  115. Castro, O devido processo legal..., p. 384. ↩︎

  116. Vide I - B - 4. ↩︎

  117. Vide I - B - 4. ↩︎

  118. Leal, Problemas de Direito Público..., vol. I, pp. 265-268. ↩︎

  119. Leal, Problemas de Direito Público..., vol. I,, p. 270. ↩︎

  120. Baleeiro, O Supremo Tribunal Federal, p. 8. ↩︎

  121. Um dos motivos que contribuíram para o futuro afastamento compulsório do min. Victor Nunes foi o fato de ele ter-se contraposto publicamente ao projeto de elevação do número de ministros do Supremo. Publicou ele um artigo no qual afirmava que: “É justamente o princípio da independência do Poder Judiciário que fica irremediavelmente comprometido, quando a nomeação de juízes tem o sentido de um comissionamento político, por mais bem inspiradas que tenham sido suas intenções. Esse comprometimento será muito mais grave quando a nomeação de novos juízes for em tal número que possa mudar a orientação de um Tribunal. [...] Quando se trata de juízes integrantes de um tribunal, é a independência desse tribunal que a Constituição defende, ao proteger individualmente os seus juízes. Mas essa garantia do tribunal estará fraudada, se ficar ao arbítrio dos outros dois poderes ampliar o seu quadro de juízes, de modo a neutralizar a opinião dos que ali foram mantidos e, portanto, resguardados na sua condição pessoal. A criação de novos juízes, formando maioria ou quase maioria num tribunal, equipara-se, a bem dizer, à criação de um tribunal post factum. A opinião pública, nos países civilizados, vê com extremo desfavor expedientes dessa natureza.” [Essa texto faz parte de uma conferência pronunciada por Victor Nunes, a qual foi posteriormente publicada na Revista de Informação Legislativa, v. 2, n° 7, set. 1965, e republicada em Leal, Problemas de Direito Público..., vol. I,, p. 80.]

    Pouco após ter proferido essa conferência, o então Presidente do Tribunal Ribeiro da Costa, procurou-o em particular e, segundo o próprio Ministro, “aproveitou a oportunidade para transmitir críticas, ouvidas em círculos que não me revelou, quanto aos meus pronunciamentos sobre a reforma judiciária” [Leal, Problemas de Direito Público..., vol. I,, p. 274]. ↩︎

  122. Leal, Problemas de Direito Público..., vol. I,, p. 275. ↩︎

  123. Leal, Problemas de Direito Público..., vol. I,, p. 276. ↩︎

  124. Leal, Problemas de Direito Público..., vol. I,, p. 276. ↩︎

  125. Convém ressaltar o fato de que Ribeiro da Costa faleceu em meados de 1967. ↩︎

  126. Leal, Problemas de Direito Público..., vol. I,, p. 270. ↩︎

  127. RP 930, julgado em 5.5.1976, rel. min. Cordeiro Guerra. Vide I - B - 7. ↩︎

  128. RTJ 132/2:571. Publicado no DJU de 29.6.1990, p. 6218. Ementário 1587/1:1. Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade contra medida provisória 173, de 18.3.1990, que veda a concessão de medida liminar em mandado de segurança e em ações ordinárias e cautelares decorrentes das medidas provisórias números 151, 154, 158, 160, 162, 167 e 168. Indeferimento do pedido de suspensão cautelar da vigência do diploma impugnado: razões dos votos vencedores. Sentido da inovadora alusão constitucional à plenitude da garantia da jurisdição contra a ameaça a direito: ênfase à função preventiva de jurisdição, na qual se insere a função cautelar e, quando necessário, o poder de cautela liminar. Implicações da plenitude da jurisdição cautelar, enquanto instrumento de proteção ao processo e de salvaguarda da plenitude das funções do Poder Judiciário. Admissibilidade, não obstante, de condições e limitações legais ao poder cautelar do juiz. A tutela cautelar e o risco do constrangimento precipitado a direitos da parte contrária, com violação da garantia do devido processo legal. Conseqüente necessidade de controle da razoabilidade das leis restritivas ao poder cautelar. Antecedentes legislativos de vedação de liminares de determinado conteúdo. Critério de razoabilidade das restrições, a partir do caráter essencialmente provisório de todo provimento cautelar, liminar ou não. Generalidade, diversidade e imprecisão de limites do âmbito de vedação de liminar da MP 173, que, se lhe podem vir, a fina, a comprometer a validade, dificultam demarcar, em tese, no juízo de delibação sobre o pedido de sua suspensão cautelar, até onde são razoáveis as proibições nela impostas, enquanto contenção ao abuso do poder cautelar, e onde se inicia, inversamente, o abuso das limitações e a conseqüente afronta à plenitude da jurisdição e ao Poder Judiciário. Indeferimento da suspensão liminar da MP 173, que não prejudica, segundo o relator do acórdão, o exame judicial em cada caso concreto da constitucionalidade, incluída a razoabilidade, da aplicação da norma proibitiva da liminar. Considerações, em diversos votos, dos riscos da suspensão cautelar da medida impugnada. ↩︎

  129. RTJ 132/2:572. ↩︎

  130. RTJ 132/2:575. ↩︎

  131. RTJ 132/2:575. ↩︎

  132. RTJ 132/2:576-579. ↩︎

  133. RTJ 132/2:582. ↩︎

  134. RTJ 132/2:584. ↩︎

  135. RTJ 132/2:585-590. ↩︎

  136. RTJ 132/2:595-596. ↩︎

  137. RTJ 132/2:598. ↩︎

  138. RTJ 132/2:600. ↩︎

  139. RTJ 132/2:601. ↩︎

  140. E afirmamos que se trata de uma reconstrução justamente porque nem Celso de Mello nem Sepúlveda Pertence fazem qualquer referência ao devido processo legal. O que faz Moreira Alves não é uma referência expressa aos votos, mas uma redescrição das idéias a eles subjacentes a partir dos critérios do devido processo legal. ↩︎

  141. RTJ 132/2:602-603. ↩︎

  142. E essa limitação do controle de razoabilidade às normas “aberrantes da razão” é tão estrita que, na prática, esse controle seria aplicado apenas aos casos limite — que são muito poucos — e não funcionaria como uma exigência geral de legitimidade. ↩︎

  143. No qual somam-se as decisões independentemente dos fundamentos invocados. ↩︎

  144. Cf. Pritchett, The American Constitution System, pp. 76-77. ↩︎

  145. Kommers, The constitutional jurisprudence..., pp. 25-26. ↩︎

  146. Ementa: Servidor público estadual: legislação estadual que manda contar em dobro o tempo de serviço como secretario de Estado ou assemelhado para o cálculo do período legal necessário à incorporação do valor da remuneração do cargo em comissão aos vencimentos do cargo efetivo ou aos correspondentes proventos de aposentadoria: argüição de inconstitucionalidade fundada no princípio constitucional da isonomia: relevância da questão, embora complexa e delicada, como sói, quando se cuida de verificar a razoabilidade ou não da distinção legal de situações de fato: conseqüente rigor na aferição do “periculum in mora” para a concessão da suspensão liminar da lei questionada, que, na espécie, não é de proporção tal que a autorize: denegação da medida cautelar pelo relator, referendada pelo Tribunal. ↩︎

  147. Publicado no DJU de 01.10.1993, p. 20212. Ementário 1719/1:71. ↩︎

  148. Ementário 1719/1:72-73. ↩︎

  149. Parte do parecer do INMETRO transcrita no acórdão. [Ementário 1719/1:80-82] ↩︎

  150. Ementário 1719/1:88. ↩︎

  151. No voto do min. Marco Aurélio há uma referência ao voto do min. Moreira Alves, no sentido de concordar com ele quanto à inexistência de inconstitucionalidade formal. Voto de Marco Aurélio:

    “Senhor Presidente, peço vênia ao nobre Relator para indeferir a liminar, e o faço tendo em vista que, na aquisição de gás, não se adquire em si o bujão, mas o peso a quantidade de gás que nele se contém, a ser utilizado, portanto, pelo consumidor.
    Ora, a legislação federal é escassa quanto aos meios a serem colocados à disposição do consumidor para conferir o que está adquirindo, para ter convicção quanto à compra efetuada e à correspondência entre o valor cobrado e a mercadoria que está sendo vendida.
    O Ministro Moreira Alves ressaltou que a própria Constituição Federal – e nela se inspirou o legislador ordinário ao editar a Lei do Consumidor – prevê, no inciso VIII do artigo 24, a competência concorrente dos Estados no tocante à responsabilidade por dano causado ao consumidor, e, no inciso IV, quanto às normas relativas à produção e ao consumo. A experiência deve prosseguir, e estamos, aqui, no campo da apreciação da liminar.
    Peço vênia ao Ministro Relator para votar mantendo a eficácia da Lei n° 10.248, do Estado do Paraná.
    Todavia, o voto do min. Moreira Alves não está presente no acórdão do processo. [Ementário 1719/1:90-91] ↩︎

  152. O pedido também estava fundado na sustentação de competência exclusiva da União para legislar sobre questões de metrologia e que envolvessem combustíveis derivados de petróleo. ↩︎

  153. Ementário 1719/1:88-89. ↩︎

  154. Ementário 1719/1:71. ↩︎

  155. Votaram contra os ministros Marco Aurélio e Moreira Alves, e estavam ausentes os ministros Paulo Brossard e Ilmar Galvão. ↩︎

  156. Como se infere do voto de Marco Aurélio. ↩︎

  157. Quer dizer, foi dado um passo maior para a consolidação do conteúdo do princípio, ainda que ele não tenha sido o principal argumento jurídico que influenciou a decisão do Tribunal. ↩︎

  158. Publicado no DJU de 25.2.94, p. 2593. Ementário 1734/2:198. ↩︎

  159. Que eram corrigidos no dia 1o de julho mas podiam ser pagos até o fim do exercício financeiro seguinte. ↩︎

  160. No sentido de fazer parte do texto original da Constituição. ↩︎

  161. Art. 33. Ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluído o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1o de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até cento e oitenta dias da promulgação da Constituição.

    Parágrafo único. Poderão as entidades devedoras, para o cumprimento do disposto neste artigo, emitir, em cada ano, no exato montante do dispêndio, títulos de dívida pública não computáveis para efeito de limite global de endividamento. ↩︎

  162. Ementário 1734/2:201. ↩︎

  163. Pois a utilização de um topos retórico seria necessária todas as vezes em que ultrapassássemos os limites da linguagem jurídica ou, nos termos kelsenianos, enfrentássemos o problema da indefinição necessária das leis. ↩︎

  164. Publicado no DJU de 25.8.1995, p. 26021. Ementário 1797/1:77. Ementa: Partidos Políticos – Indicação de candidatos – Pressupostos – inconstitucionalidade. Exsurgem conflitantes com a Constituição Federal os preceitos dos §§ 1o e 2o do artigo 5o da Lei n° 8.713/93, no que vincularam a indicação de candidatos a Presidente e Vice-Presidente da República, Governador e Vice-Governador e Senador a um certo desempenho do Partido Político no pleito que a antecedeu e, portanto, dados fáticos conhecidos. A Carta de 1988 não repetiu a restrição contida no artigo 152 da pretérita, reconhecendo, assim, a representação dos diversos segmentos sociais, inclusive os que se formam dentre as minorias. ↩︎

  165. Que são discutidos em conjunto porque em conjunto foram julgados. ↩︎

  166. Lei n° 8.173/93, art. 5o Poderá participar das eleições previstas nesta Lei o partido que, até 3 de outubro de 1993, tenha obtido, junto ao Tribunal Superior Eleitoral, registro definitivo ou provisório, desde que, neste último caso, conte com, pelo menos, um representante titular na Câmara dos Deputados, na data da publicação desta Lei.

    § 1o Só poderá registrar candidato próprio à eleição para Presidente e Vice-Presidente da República:
    I – O partido que tenha obtido, pelo menos, 5% dos votos apurados na eleição de 1990 para a Câmara dos Deputados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados; ou
    II – o partido que conte, na data da publicação desta lei, com representantes titulares na Câmara dos Deputados em número equivalente a, no mínimo, 3% da composição da Casa, desprezada a fração resultante deste percentual; ou
    III – coligação integrada por, pelo menos, um partido que preencha condição prevista em um dos incisos anteriores, ou por partidos que, somados, atendam às mesmas condições. ↩︎

  167. Ementário 1797/1:85-87. ↩︎

  168. Ementário 1797/1:88-90. ↩︎

  169. Ementário 1797/1:94. ↩︎

  170. É importante lembrar que, na Alemanha, a limitação dos 5% não é aplicada aos partidos que representam minorias. ↩︎

  171. Ementário 1797/1:96-97. ↩︎

  172. Ementário 1797/1:100. ↩︎

  173. Ementário 1797/1:100-101. ↩︎

  174. Ementário 1797/1:102-105. ↩︎

  175. Ementário 1797/1:112. ↩︎

  176. Ementário 1797/1:121. ↩︎

  177. Ementário 1797/1:120. ↩︎

  178. Publicado no DJU de 26.5.1995, p. 15154. Ementário 1788/1:51. Ementa: A norma legal, que concede a servidor inativo gratificação de férias correspondente a um terço (1/3) do valor da remuneração mensal, ofende o critério da razoabilidade que atua, enquanto projeção concretizadora da cláusula do “substantive due process of law “, como insuperável limitação ao poder normativo do Estado. Incide o legislador comum em desvio ético-jurídico, quando concede a agentes estatais determinada vantagem pecuniária cuja razão de ser se revela absolutamente destituída de causa. ↩︎

  179. Ementário 1788/1:52. ↩︎

  180. § 4.º Os proventos da aposentadoria serão revistos, na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendidos aos inativos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria, na forma da lei. ↩︎

  181. Ementário 1788/1:57. ↩︎

  182. Ementário 1788/1:57-59. ↩︎

  183. “Com efeito, no que concerne ao pressuposto do periculum in mora, devo observar que a presente ação direta somente veio a ser formalizada perante o Supremo Tribunal Federal quase seis anos após a promulgação da lei estadual em cujo contexto se insere a norma impugnada.

    A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em circunstâncias semelhantes, tem advertido que o tardio ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade, quando já decorrido lapso temporal considerável desde a edição do ato normativo impugnado, desautoriza – independentemente do relevo de que se possa revestir a tese de inconstitucionalidade deduzida – o reconhecimento da situação configuradora do periculum in mora, em ordem a inviabilizar a concessão da medida cautelar postulada.” ↩︎

  184. Ementário 1788-1:59. ↩︎

  185. Voto do min. Marco Aurélio: “Senhor Presidente, peço vênia ao eminente Ministro Celso de Mello para não acompanhá-lo neste caso, porque, na verdade, a Carta garante o gozo das férias e aí, sim, tem-se o salário superior em um terço ao normal. A concluir-se que os aposentados estão durante os doze meses do ano, em férias, teremos que reconhecer o direito ao acréscimo mês a mês.

    Tenho presente, também, a repercussão que pode haver nas demais unidades da federação, pois, se o Supremo Tribunal Federal não suspender o preceito, sinaliza como viável constitucionalmente o “plus” referente às férias, em que pese o servidor já estar aposentado.” ↩︎

  186. “Senhor Presidente, infelizmente sou obrigado a acompanhar o eminente Ministro-Relator, não pelos méritos evidentemente da decisão impugnada, mas pela evidência da situação jurídica. Assim sendo, indefiro a liminar.” [sic] [Ementário 1788-1:61] ↩︎

  187. Ementário 1788-1:61-63. ↩︎

  188. Ementário 1788-1:64. ↩︎

  189. Ementário 1788-1:65. ↩︎

  190. Publicado no DJU de 13.9.1996, p. 33241. Ementário 1841/4:662. ↩︎

  191. E vale aqui a observação de Larenz: “[P]or vezes, não se trata só no desenvolvimento judicial do Direito de colmatar lacunas da lei, mas da adopção e conformação ulterior de novas ideias jurídicas que, em todo caso, se tinham insinuado na própria lei, e cuja realização pela jurisprudência vai para além do plano originário da lei e o modifica em maior ou menor grau. Compreende-se que também um tal desenvolvimento do Direito “superador da lei” só deva ter lugar em consonância com os princípios directivos da ordem jurídica no seu conjunto; mais: muitas vezes será motivado precisamente pela aspiração a fazer valer estes princípios em maior escala do que aconteceu na lei.” [Larenz, Metodologia da ciência do Direito, p. 444]. ↩︎

  192. Ementário 1841/4:677. ↩︎

  193. Como, aliás, fez o min. Néri da Silveira. ↩︎

  194. Ementário 1841/4:700. ↩︎

  195. Sobre esse caso, recebi uma informação que não tenho como comprovar mas que explicaria o desfecho do processo. Afirmou-se que o próximo candidato na ordem de classificação era homossexual e que esse fôra o motivo que fez com que o Tribunal decidisse interromper as nomeações e não prorrogar o concurso — o que justificaria o argumento do abuso de autoridade. Todavia, não há nenhuma referência a esse fato no acórdão do STF. Supondo que essa informação seja verdadeira e que os ministros a conhecessem, esse caso seria um exemplo interessante do fato de que a justificativa expressamente apresentada pela Corte por vezes nada tem a ver com os motivos determinantes da decisão. ↩︎

  196. Ementário 1841/4:662. ↩︎

  197. Pois toda referência ao princípio, ainda que seja passível de críticas, contribui para a demarcação de um âmbito dentro do qual é aceitável a utilização de argumentos ligados à razoabilidade. ↩︎

  198. Publicado no DJU de 01.8.1997, p. 33483. Ementário 1876/7:1584. ↩︎

  199. Na medida em que se trata de um caso em que se avalia a discricionariedade judicial. ↩︎

  200. Ementário 1876/7:1588-1589. ↩︎

  201. Especialmente o fato de os Embargantes — que são funcionários da ECT — não terem alegado que o subscritor da procuração não tinha capacidade para estabelecer o mandato, limitando-se à afirmação de que não havia prova da sua condição funcional. ↩︎

  202. Expressão utilizada pelo min. Marco Aurélio no RE 192.553, que trata de problema semelhante e será analisado no I - C - 22. ↩︎

  203. Consideramos que seria mais adequada, por exemplo, uma argumentação nos seguintes moldes: “Embora não exista uma prova cabal de que o outorgante tem legitimidade, há vários indicadores de que a procuração é válida e nenhum indício em contrário, sendo que a experiência demonstra que são mínimas as probabilidades de que seja inválida a procuração. Logo, está de acordo com o princípio da razoabilidade a interpretação segundo a qual a referida procuração deve ser considerada válida.” Dessa forma, os valores invocados para sustentar que uma certa interpretação é a mais adequada a um caso concreto não seriam confundidos com concretizações do princípio da razoabilidade, aplicáveis em todas as hipóteses em que esse princípio possa ser utilizado. ↩︎

  204. Publicado no DJU de 26.9.1997, p. 47475. Ementário 1884/1:46. Ementa: Pode o legislador, observado o princípio da razoabilidade, estabelecer requisitos para a investidura em cargo, emprego ou função pública. C.F., art. 37, I. Inocorrência de ofensa ao princípio da isonomia no fato de o legislador estadual ter exigido, para o provimento dos cargos de Auditor Interno, Escrivão de Exatoria, Fiscal de Mercadorias em Trânsito, Exator e Fiscal de Tributos Estaduais, que os candidatos fossem diplomados em Direito, Administração, Economia ou Ciências Contábeis. ↩︎

  205. E ainda assim parece que essa afirmação é eufemística, pois não encontrei nenhuma referência a problemas dessa espécie no direito norte-americano (notável pela sua descrição minuciosa dos mais diversos tipos de casos concretos) ou no direito alemão. Entretanto, quanto a esse último, devemos admitir que as limitações bibliográficas deste trabalho não permitem uma afirmação mais categórica. ↩︎

  206. RE 177.570 (1996), RE 184.835 (1997), RE 150.165 (1997), RE 150.166 (1998), entre outros. ↩︎

  207. Embora nenhuma das decisões tenha sido manifestamente inadequada, algumas entre elas chegam ao resultado desejável por fundamentos deficientes. No AgRgRE 144.818-1 (rel. min. Maurício Corrêa), decidiu-se que “não fere o princípio constitucional da isonomia a previsão contida em norma estadual que dispensa [o limite máximo de idade], em favor de candidato que, já sendo professor, se proponha a acumular, licitamente, outra cadeira”. Por esse argumento, o Tribunal reconheceu o direito do professor em questão a participar do concurso — o que seria correto —, mas o faz afirmando a validade de uma norma inconstitucional. Semelhante raciocínio foi utilizado no RE 149.485, rel. min. Moreira Alves, julgado em 26.11.1996, mas sem a afirmação da constitucionalidade da norma estadual que excluía os servidores do limite de idade. Verdadeiramente, a Corte chegou a sugerir a possibilidade de que essa regra fosse inconstitucional, mas optou por admitir a validade da decisão de primeiro grau que nela se baseou.

    A primeira vista, parece difícil harmonizar essas decisões com o fato de que, em diversas ocasiões, o STF afirmou que, como os servidores públicos eram dispensados do limite de idade, tornava-se claro que não havia qualquer exigência etária ditada pela natureza das funções do cargo (RE 156972 e RE 184835, rel. min. Carlos Velloso, RE 176.369 e RE 185.300, rel. min. Moreira Alves, julgados em 15.10.1996). E no RE 184.635, rel. min. Carlos Velloso, julgado em 26.11.1996, afirma-se expressamente que não é razoável dar tratamento mais favorável aos servidores que aos demais cidadãos.
    Parece claro que, nos primeiros casos citados, a Corte optou por tomar uma decisão processualmente mais simples: o não conhecimento ao invés do improvimento. Conhecido o recurso, fatalmente ele seria rejeitado, em observância à linha do Tribunal. Pode ser compreensível que o imenso número de processos que ela recebe a leve a uma jurisprudência defensiva, especialmente quando é possível dar uma solução adequada ao caso concreto sem a necessidade de um julgamento mais longo — embora tecnicamente mais correto. Todavia, é preciso ter claro que essa atenção voltada para resolver os casos concretos da forma mais rápida possível somente é possível em detrimento da qualidade técnica das decisões, especialmente da possibilidade de se traçar com clareza a linha jurisprudencial da Corte em virtude da deficiência dos fundamentos apresentados. ↩︎

  208. Voto do min. Carlos Velloso (parte relativa ao mérito):

    “Assim a impugnação posta na inicial:
    ‘(...)Todavia, os ANEXO II - 26, ANEXO II - 55, ANEXO II 56, ANEXO II - 57 e ANEXO II - 58 DA LEI COMPLEMENTAR Nº 091 DE 10/03/1993 DO ESTADO DE SANTA CATARINA, ao exigirem respectivamente para os exercícios dos cargos de AUDITOR INTERNO, ESCRIVÃO DE EXATORIA, FISCAL DE MERCADORIAS EM TRÂNSITO, EXATOR E FISCAL DE TRIBUTOS ESTADUAIS, graduação em cursos superiores de Direito, Administração, Economia ou Ciências Contábeis, criaram um privilégio referente a estas profissões, pois nenhuma delas tem qualquer atribuição legal específica para o exercício destas funções.Na União e em muitos outros estados federados por exemplo, para manutenção do PRINCÍPIO DA ISONOMIA, o exercício do cargo de fiscal de tributos, pode ser provido por profissionais de nível superior genericamente, os quais lograram aprovação em um concurso com provas de conhecimento sobre matérias específicas sobre tributos, como Direito, Economia, Contabilidade, Matemática e outros, auferidos em concurso público com ou sem aprovação posterior em um curso específico, além de provas de títulos.
    Para a Administração Catarinense, em manter esta iníqua e inconstitucional ‘reserva de mercado’ para profissionais de Direito, Administração*, Economia e Contabilidade*, como pode ser notado em recente concurso para FISCAL DE TRIBUTOS ESTADUAIS e de AUDITOR EXTERNO (Edital 001/94), onde baseando-se na Supracitada Lei Complementar Nº 081/93, restringe o acesso a estes cargos aos profissionais supracitados neste parágrafo. (fls. 10/11)’
    Conforme já falamos, o que pretende a autora é, com a declaração de inconstitucionalidade, ensejar a todos os diplomados em cursos superiores, o exercício dos cargos mencionados. Argumenta com o princípio da isonomia e sustenta que o Estado não tinha competência para expedir a norma legal objeto da causa, dado que é da competência privativa da União legislar sobre direito do trabalho, organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício profissional (C.F., art. 22, I e XVI).
    Abrindo o debate, afasta-se a invocação feita pela autora, no sentido de que, no caso, teria havido invasão de competência legislativa da União — C.F., art. 22, I e XVI — dado que a matéria posta nos autos não é de direito do trabalho nem diz respeito à organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício profissional.
    Tem-se, no caso, matéria administrativa, relativa aos servidores públicos estaduais, sobre a qual cabe ao Estado-membro respeitados os princípios constitucionais federais relativos ao serviço público, legislar, tendo em vista a sua autonomia, que se caracteriza pela capacidade de auto-organização, autogoverno e auto-administração (C.F., art. 25). Os princípios constitucionais federais, que os Estados devem observar, no exercício de sua autonomia, são de três espécies: ou são sensíveis, ou são estabelecidos, ou são federais extensíveis, conforme dissertei em artigo de doutrina — ‘Estado Federal e Estados Federados na CF/88 - O Equilíbrio Federativo’, em ‘Temas de Dir. Público’, Del Rey Ed., 2ª. Tiragem, pág. 379.
    Também a alegação de ofensa ao princípio da isonomia não tem procedência.
    É que a Constituição Federal, ao estabelecer que os cargos, empregos e funções públicos são acessíveis aos brasileiros, deixou expresso, desde que ‘preencham os requisitos estabelecidos em lei.’ (C.F., art. 37, I). O legislador pode, portanto, observado, evidentemente, o princípio da razoabilidade, estabelecer requisitos para a investidura em cargo, emprego e função pública. No caso, o legislador estadual poderia exigir, para o provimento dos cargos de Auditor Interno, Escrivão de Exatoria, Fiscal e Mercadorias em Trânsito, Exator e Fiscal de Tributos Estaduais, que os candidatos fossem diplomados em Direito, Administração, Economia ou Ciências Contábeis, mesmo porque, bem registra a Procuradoria-Geral da República:
    ‘(...
    ) 13. A Requerente não alega que
    , em assim dispondo, tal Lei estadual haja outorgado, aos formados em Direito, Administração, Economia ou Ciências Contábeis, a faculdade de exercer atos profissionais para os quais não estivessem habilitados. Ao contrário, argumenta ter havido ofensa ao princípio da isonomia, por terem sido excluídos, do mesmo tratamento, quaisquer outros portadores de diplomas de curso superior:
    ‘Na União e em muitos outros estados federados por exemplo, para manutenção do PRINCÍPIO DA ISONOMIA, o exercício do cargo de fiscal de tributos, pode ser provido por profissionais de nível superior genericamente, os quais lograram aprovação em um concurso com provas de conhecimento sobre matérias específicas sobre tributos, como Direito, Economia, Contabilidade, Matemática e outros, auferidos em concurso público com ou sem aprovação posterior em um curso específico, além de provas de títulos.’ (fl. 11, destaques nossos)
    14. Afigura-se patente que a pretensão da Requerente, como deduzida, acarreta cerceamento da atividade legislativa, onde a Constituição Federal assim não autorizou.
    15. Por isso, certamente, é que essa Excelsa Corte assim decidiu, em caso precedente:
    CONCURSO PÚBLICO - QUALIFICAÇÃO - EXERCÍCIO PROFISSIONAL. A exigência de especificidade, no âmbito da qualificação, para a feitura de concurso público, não contraria o disposto no inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal, desde que prevista em lei e consentânea com os diplomas regedores do exercício profissional.’ (MS 21.733-2-RS, Tribunal Pleno, Relator Ministro Marco Aurélio, in DJ de 08.04.1994, p. 7.227)
    16. O parecer é, por conseguinte, de que a Ação Direta de Inconstitucionalidade deva ser julgada improcedente.
    No julgamento do MS 21.733-RS, Relator o Ministro Marco Aurélio, que cuidou de matéria semelhante, decidiu o Supremo Tribunal Federal:
    ‘CONCURSO PÚBLICO - QUALIFICAÇÃO - EXERCÍCIO PROFISSIONAL. A exigência de especificidade no âmbito da qualificação, para a feitura de concurso público não contraria o disposto no inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal, desde que prevista em lei a consentânea com os diplomas regedores do exercício profissional.’ (Plenário, 09.02.1994, ‘DJ’ 08.04.1994*)*.
    Do exposto, julgo improcedente a presente ação direta de inconstitucionalidade.” [grifos nossos] [Ementário 1884/1:55-59] ↩︎

  209. Art. 37, I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei. ↩︎

  210. Barros, O princípio da proporcionalidade..., pp. 185-186. ↩︎

  211. Barros, O princípio da proporcionalidade..., pp. 183. ↩︎

  212. RTJ 135/3:958. ↩︎

  213. Ou seja, casos em que se avalia a constitucionalidade de um critério para acesso a cargos públicos. ↩︎

  214. Castro, O devido processo legal..., p. 159. ↩︎

  215. Barros, O princípio da proporcionalidade..., p. 184. ↩︎

  216. Alexy, Teoría de los derechos fundamentales, p. 389. ↩︎

  217. Provavelmente por influência de Celso Antônio Bandeira de Melo, especialmente no seu O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. Vide Bandeira de Mello, Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 47. ↩︎

  218. Vide I - C - 17. ↩︎

  219. Publicado no DJU de 14.11.1997, p. 58766. Ementário 1891/1:79. ↩︎

  220. Marco Aurélio identifica neste dispositivo um princípio constitucional da não culpabilidade. ↩︎

  221. Publicado no DJU de 06.3.1998, p. 3. Ementário 1901/2:294. ↩︎

  222. Ementário 1901/2:300. ↩︎

  223. Ementário 1901/2:294. ↩︎

  224. Publicado no DJU de 15.5.1998, p. 44. Ementário 1910/1:130. Ementa: DNA: submissão compulsória ao fornecimento de sangue para a pesquisa do DNA: estado da questão no direito comparado: precedente do STF que libera do constrangimento o réu em ação de investigação de paternidade (HC 71.373) e o dissenso dos votos vencidos: deferimento, não obstante, do HC na espécie, em que se cuida de situação atípica na qual se pretende — de resto, apenas para obter prova de reforço — submeter ao exame o pai presumido, em processo que tem por objeto a pretensão de terceiro de ver-se declarado o pai biológico da criança nascida na constância do casamento do paciente: hipótese na qual, à luz do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, se impõe evitar a afronta à dignidade pessoal que, nas circunstâncias, a sua participação na perícia substantivaria. ↩︎

  225. Voto do relator (trecho final) : “Cuida-se aqui, como visto, de hipótese atípica, em que o processo tem por objeto a pretensão de um terceiro de ver-se declarado pai da criança gerada na constância do casamento do paciente, que assim tem por si a presunção legal da paternidade e contra quem, por isso, se dirige a ação.

    Não discuto aqui a questão civil da admissibilidade da demanda.O que, entretanto, não parece resistir, que mais não seja, ao confronto do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade — de fundamental importância para o deslinde constitucional da colisão de direitos fundamentais — é que se pretenda constranger fisicamente o pai presumido ao fornecimento de uma prova de reforço contra a presunção de que é titular.É de sublinhar que efetivamente se cuidaria de simples prova de reforço de um fato que, de outro modo, se pode comprovar.Com efeito. A revolução, na área da investigação da paternidade, da descoberta do código genético individual, em relação ao velho cotejo dos tipos sangüíneos dos envolvidos, está em que o resultado deste, se prestava apenas e eventualmente à exclusão da filiação questionada, ao passo que o DNA leva sabidamente a resultados positivos de índices probabilísticos tendentes à certeza.Segue-se daí a prescindibilidade, em regra, de ordenada coação do paciente ao exame hematológico, à busca de exclusão da sua paternidade presumida, quando a evidência positiva da alegada paternidade genética do autor da demanda pode ser investigada sem a participação do réu (é expressivo, aliás, que os autos já contenham laudo particular de análise do DNA do autor, do menor e de sua mãe — v. 4/f.853).Esse o quadro, o primeiro e mais alto obstáculo constitucional à subjugação do paciente a tornar-se objeto da prova do DNA não é certamente a ofensa da colheita de material, minimamente invasiva, à sua integridade física, mas sim a afronta à sua dignidade pessoal, que, nas circunstâncias, a participação na perícia substantivaria.De tudo, defiro a ordem para vedar definitivamente a produção da prova questionada: é o meu voto.” ↩︎

  226. Ementário 1910/1:138. ↩︎

  227. Publicado no DJU de 12.6.1998, p. 56. Ementário 1914/5:876. ↩︎

  228. Na decisão monocrática que negou seguimento ao Recurso Extraordinário interposto pelo Estado de São Paulo, a qual foi impugnada frente à Segunda Turma por meio do Agravo Regimental em análise. ↩︎

  229. Voto do Relator (trecho): “Nas razões do regimental, o Estado não procurou, talvez mesmo diante da insuplantável dificuldade que teria, infirmar as premissas da decisão atacada. Limitou-se a asseverar que não se teria conferido aos dispositivos constitucionais a melhor interpretação, remetendo às razões anteriormente apresentadas. Conforme fiz ver na decisão atacada, a interpretação do sistema constitucional tributário é conducente a considerar-se, relativamente ao cálculo do ICMS, o real valor da operação. Daí a inviabilidade de querer-se afastar do cenário jurídico deflação que acabou por diminuir o quantitativo inicial do negócio jurídico. O princípio da realidade, e também o da razoabilidade, por vezes esquecidos quando da interpretação da Carta Política da República, obstaculizam a acolhida do inconformismo do Estado.” ↩︎

  230. Ementário 1914/5:877. ↩︎

  231. Publicado no DJU de 05.6.1998, p. 2. Ementário 1913/1:63. ↩︎

  232. O cotejo do artigo 10 com o 11 da Lei nº 9.100, de 29 de setembro de 1995, concernente às eleições municipais de 3 de outubro de 1996, revela a adoção, para definir-se o número de candidatos, de critério diverso do adotado anteriormente. O artigo 11 da Lei nº 9.100/95, após revelar a possibilidade da cada partido ou coligação registrar candidatos para a Câmara Municipal até cento e vinte por cento do número de lugares a preencher, previu o acréscimo na proporção correspondente ao número de deputados federais. Vale dizer, enquanto a lei em comento tem como parâmetro o número de cadeiras destinadas a cada Estado na Câmara dos Deputados, a norma do artigo 11, quanto ao acréscimo, já que veio à balha com regra linear relativa a cento e vinte por cento do número de lugares a preencher, remetia à representação, em si, não do povo do Estado na Câmara dos Deputados, mas aquela existente e ligada a cada um dos partidos. Em síntese, conhecendo-se, a priori, o resultado da equação, acabou-se por proceder-se ao balizamento da apresentação de candidatos. Isso levou esta Corte a suspender a eficácia do preceito - Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.355-6/DF**.** Pois bem, se de um lado concorreu, no caso da Lei nº 9.100/95, a relevância do pedido formulado, porquanto se dispôs de modo a beneficiar, justamente, os partidos com maior número de deputados, exsurgindo, assim, deliberação favorável aos interesses da maioria, em detrimento da minoria dos votantes, ou seja, dos que aprovaram o projeto que resultou na Lei nº 9.100/95, em relação às próximas eleições partiu-se para critério objetivo, e aí tomou-se de empréstimo não o número, em si, de deputados por partidos, mas de cadeiras destinadas a cada um dos Estados. O fator de discriminação não se mostra merecedor de glosa, pois surge no campo próprio aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Tem como base, porque esta norteia, constitucionalmente, o número de cadeiras por Estado, a densidade populacional, em si, de cada qual. A conclusão a que se chega é que o legislador da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, inspirou-se, na definição dos candidatos e sem distinguir este ou aquele partido político, isso considerada a atual representação na Câmara dos Deputados, no § 1º do artigo 45 da Carta Política da República:

    § 1º O número total de Deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários, no ano anterior às eleições, para que nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de setenta Deputados.Ao contrário do afirmado, definir-se o número de candidatos em face das cadeiras destinadas a cada Estado atende à proporcionalidade prevista na própria Constituição Federal. ↩︎

  233. Publicado no DJU de 15.5.1998, p. 48. Ementário 1910/4:717. Ementa: CONCURSO PÚBLICO - TÍTULOS - REPROVAÇÃO. Coaduna-se com o princípio da razoabilidade constitucional conclusão sobre a circunstância de a pontuação dos títulos apenas servir à classificação do candidato, jamais definindo aprovação ou reprovação. Alcance emprestado por tribunal de justiça à legislação estadual, em tudo harmônico com o princípio da razoabilidade, não se podendo cogitar de menosprezo aos critérios da moralidade e da impessoalidade. ↩︎

  234. Voto do relator: “Na interposição deste agravo foram observados os pressupostos de recorribilidade que lhe são inerentes. A peça, subscrita por procuradora do Estado, foi protocolada no prazo em dobro a que tem jus o Agravante. A decisão impugnada foi veiculada no Diário de 4 de setembro de 1997, quinta-feira (folha 198), ocorrendo a manifestação do inconformismo em 15 imediato, segunda-feira (folha 199). Dele conheço.

    No mérito, reporto-me aos fundamentos da decisão monocrática que proferi. Conforme fiz ver, perante a Corte de origem não se explicitou, com os declaratórios, as matérias em relação às quais teria havido a omissão. Quanto ao mais, a Corte de origem, ao conceder a segurança, embasou-se em interpretação de diplomas locais, assentando, a seguir, a existência do direito líquido e certo. Somente pelo reexame dos preceitos evocados poder-se-ia, à mercê de quadro diverso do retratado no acórdão proferido, chegar-se à conclusão sobre o enquadramento do extraordinário na alínea “a “do inciso III do artigo 102 da Constituição Federal. Nego provimento a este regimental.É como voto, na espécie dos autos.” ↩︎

  235. Publicado no DJU de 12.6.1998, p. 51. Ementário 1914/1:40. Ementa: Ação rescisória: MProv. 1577-6/97, arts. 4º e parág. único: a) ampliação do prazo de decadência de dois para cinco anos, quando proposta a ação rescisória pela União, os Estados, o DF ou os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações públicas (art. 4º) e b) criação, em favor das mesmas entidades públicas, de uma nova hipótese de rescindibilidade das sentenças - indenizações expropriatórias ou similares flagrantemente superior ao preço de mercado (art. 4º, parág. único): argüição plausível de afronta aos arts. 62 e 5º, I e LIV, da Constituição: conveniência da suspensão cautelar: medida liminar deferida. 1. Medida provisória: excepcionalidade da censura jurisdicional da ausência dos pressupostos de relevância e urgência à sua edição: raia, no entanto, pela irrisão a afirmação de urgência para as alterações questionadas à disciplina legal da ação rescisória, quando, segundo a doutrina e a jurisprudência, sua aplicação à rescisão de sentenças já transitadas em julgado, quanto a uma delas - a criação de novo caso de rescindibilidade - é pacificamente inadmissível e quanto à outra - a ampliação do prazo de decadência - é pelo menos duvidosa. 2. A igualdade das partes é imanente ao procedural due process of law; quando uma das partes é o Estado, a jurisprudência tem transigido com alguns favores legais que, além da vetustez, tem sido reputados não arbitrários por visarem a compensar dificuldades da defesa em juízo das entidades públicas; se, ao contrário, desafiam a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade, caracterizam privilégios inconstitucionais: parece ser esse o caso das inovações discutidas, de favorecimento unilateral aparentemente não explicável por diferenças reais entre as partes e que, somadas a outras vantagens processuais da Fazenda Pública, agravam a conseqüência perversa de retardar sem limites a satisfação do direito do particular já reconhecido em juízo. 3. Razões de conveniência da suspensão cautelar até em favor do interesse público. ↩︎

  236. Constituição Federal, art. 62. “Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias.” [grifos nossos] ↩︎

  237. O qual é bem traduzido pelo posicionamento de Sydney Sanches no julgamento da ADI 1.754, onde afirmou que “é pacífica a jurisprudência da Corte, no sentido de lhe descaber o exame da relevância e da urgência, como requisitos da Medida Provisória (art. 62 da C.F.), quando dependam de avaliação subjetiva — e não meramente objetiva — como ocorre no caso presente” [Parte da ementa da ADI(MC) 1.754, de acordo com o voto do min. Sydney Sanches na ADI 1.896, julgada em 18.2.1999]. ↩︎

  238. Voto do relator (trecho final): “Sob o prisma substancial, de sua vez, igualmente não se pode negar plausibilidade à argüição de afronta por ambas as normas impugnadas dos princípios constitucionais da isonomia e do devido processo legal, que, no ponto, se confundem.

    Dispensa demonstração, com efeito, que a igualdade das partes é imanente ao procedural due process of law.
    Certo, quando uma das partes é o Estado, a jurisprudência tem transigido com alguns favores legais da tradição do nosso processo civil: assim, o reexame necessário da sentença contrária e a dilatação de prazos para a resposta e os recursos (cf., quanto a testes, RE 181130, Celso de Mello, DJ 12.5.1995; RE 196.430, Pertence, DJ 21.11.1997)
    São discriminações, contudo, que, além da vetustez que lhes dá uma certa aura de respeitabilidade, se tem reputado constitucionais porque não arbitrários, na medida em que visem a compensar deficiências da defesa em juízo das entidades estatais: “O fundamento hodierno da exceção “– lê-se em Pontes de Miranda (Comentários ao C. Pr. Civil, art. 188, 3a ed., 1996, III/45) - “está em precisarem os representantes de informações e provas que, dado o vulto dos negócios do Estado, duram mais que as informações e provas de que se precisam os particulares “.
    Se, ao contrário, desafiam a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade, caracterizam privilégios inconstitucionais.
    Assim é, por exemplo, que, quando o art. 6o da MP 314/93 – no curso da implantação do AGU – suspendeu os prazos da União – o tribunal restringiu o alcance da norma, a fim de excluir sua incidência nos processos em que a defesa da União coubesse à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, instituição de há muito organizada, em relação à qual, portanto, não concorriam os motivos conjunturais, que emprestavam razoabilidade ao dispositivo nas causas em que passaria a atuar a nascente Advocacia Geral (QO no Re 148754, Velloso, RTJ 150/888, 891)
    Nessa linha, parece denso o questionamento da razoabilidade dos preceitos questionados.
    Não está em causa que, pelo menos com relação a algumas das suas hipóteses do cabimento, o prazo bienal para a ação rescisória fundada na falsidade de documento apurada em processo criminal, o que levou autores de peso a sustentar que aí, da sentença penal, é que se deveria conter o prazo (assim, Pontes de Miranda, Comentários ao C.Pr. Civil, 1975, p. 464; Ernane Fidélis dos Santos, Manual de Direito. Proc. Civil, 1996, 4/590; contra J. C. Barbosa Moreira, Comentários, 7a ed. 1998, V/215).
    Não parece ser o caso do novo pressuposto de rescindibilidade criado pela medida provisória, em que o correr do tempo, antes de facilitar, dificulta a prova do descompasso entre a indenização expropriatória ou reparatória de limitações à propriedade imóvel e o preço de mercado do bem.
    De qualquer sorte, o que importa se possa pôr em dúvida não é a razoabilidade em si de uma ou de outra das regras editadas, mas sim a de sua unilateralidade, a favorecer unicamente o Poder Público
    Admita-se que a burocracia, o gigantismo e a conseqüente lerdeza da máquina estatal expliquem dilatação de prazos processuais em dimensões aceitáveis, qual a do prazo para responder – multiplicado de 15 para 60 dias, ou a duplicação dos prazos para a interposição de recursos.
    Mas é difícil dizer o mesmo da disparidade criada pela regra discutida, que mantém em dois anos o prazo do particular para propor a rescisória, seja qual for o vício da sentença, mas eleva a cinco o da Fazenda.
    Avulta mais a aparente discriminação quando se recorda que a diferença de prazo vai somar-se a três outras vantagens processuais da Fazenda Pública, todas com a conseqüência perversa de retardar sem limites a satisfação do direito do particular reconhecido em juízo: primeiro, o condicionamento da exeqüibilidade da sentença, malgrado a ausência de recurso, ao reexame em segundo grau; segundo, o sistema de execução mediante precatórios; terceiro, a possibilidade – recentemente explicitada – da suspensão dos efeitos da coisa julgada, a título de medida cautelar da ação rescisória.
    Procede, de sua vez, a observação de que, na prática dos processos de desapropriação ou similares, se é verdade a ocorrência de indenizações exageradas, não é nem menos verdade nem menos freqüente a indenização mofina – em afronta à garantia constitucional da prévia e justa compensação – substancialmente agravado o prejuízo do proprietário, primeiro, pela antecipação da perda da posse e depois pelas delongas da execução.
    Desse modo, para ser razoável e proporcional ao sacrifício imposto à segurança jurídica que a coisa julgada se destina a criar, parece que o único a reclamar de ambas as alterações legislativas argüidas é que fossem equânimes, bilaterais, tratando igualmente as partes, dado que uma e outra poderão queixar-se, seja da angústia do prazo bienal, seja da falta de remédio contra a indenização injusta.
    Finalmente, dada a impossibilidade da aplicação de uma às sentenças já transitadas em julgado e as dúvidas existentes quanto à aplicabilidade da outra aos prazos em curso, somadas à plausibilidade da argüição de invalidez, é patente a conveniência da suspensão cautelar da eficácia de ambas as normas, até no interesse do próprio Estado, a evitar que a confiança nas facilidades por elas criadas leve ao prejuízo de pretensões rescisórias que acaso pudessem ter êxito na disciplina originária do Código.
    Defiro a cautelar: é o meu voto.” [grifos nossos] [Ementário 1914/1:50-51] ↩︎

  239. Convém ressaltar que a ADI 1.753 já foi julgada, mas a sua decisão não tem reflexos no controle de razoabilidade. Em vista da suspensão cautelar da MP 1.577/97 pela ADI(MC) 1.753, o Executivo editou uma nova medida provisória, alterando os dispositivos impugnados e, por essa razão, a ADI 1.753 foi extinta sem julgamento do mérito. ↩︎

  240. Veja os primeiros dois parágrafos da nota anterior. ↩︎

  241. Ementário 1914/1:52. ↩︎

  242. Ementário 1914/1:52. ↩︎

  243. Ementário 1914/1:57. ↩︎

  244. Vide I - C - 8. ↩︎

  245. Publicado no DJU de 12.06.1998. Ementa: IMPORTAÇÃO - PNEUS USADOS - PROIBIÇÃO - PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. O princípio da razoabilidade constitucional é conducente a ter-se como válida a regência da proibição via Portaria, não sendo de se exigir lei, em sentido formal e material, especificadora, de forma exaustiva, de bens passíveis, ou não, de importação. ↩︎

  246. No RE 202.671, rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 13.5.1997, o Tribunal decidiu que a proibição de importar de veículos usados não violava o princípio da isonomia. ↩︎

  247. Publicado no DJU de 14.8.1998, p. 11. Ementário 1918/4:670. CONCURSO PÚBLICO - TÍTULOS. Discrepa da razoabilidade norteadora dos atos da Administração Pública o fato de o edital de concurso emprestar ao tempo de serviço público pontuação superior a títulos referentes a pós-graduação. ↩︎

  248. Ementário 1918/4:672-673. ↩︎

  249. Normalmente introduzida na discussão jurídica pelo conceito de legitimidade, mas que nesse caso foi expressamente reconhecida pelo voto quando afirma que a regulamentação do concurso criava uma injustiça. ↩︎

  250. A Fazenda Pública Estadual, tomando o procedimento impugnado por mero despacho, argumenta que a realização da prova de títulos está amparada pelo artigo 37, inciso II, da Constituição Federal, e que o artigo 19 das Disposições Transitórias prevê a valoração do tempo de serviço como título, critério que, assim, não pode ser considerado violador de princípios constitucionais. Salienta que o peso dado ao tempo de serviço objetivava a projeção de “candidato que já demonstrara adequação ao serviço público “, ou seja, ressaltar a experiência na atividade. Discorre a respeito da prova de títulos, procurando demonstrar a razoabilidade da fixação dos critérios, visando aos interesses da Administração, pelo que a alteração perpetrada pelo Poder Judiciário teria implicado ofensa aos artigos 2º, 25, 61, § 1º, II, “c “, 5º, 7º, XXX, 37, caput, e inciso II, todos do Diploma Maior. Aponta, noutro passo, que o reexame do ato administrativo pelo Judiciário deveria ficar adstrito aos aspectos da legalidade do procedimento (folha 123 à 131). ↩︎

  251. Especialmente tomando-se em conta o dever constitucional dos juízes de fundamentar suas decisões. ↩︎

  252. Publicado no DJU de 11.9.1998, p. 5. Ementário 1922/2:380. Ementa: JUSTA CAUSA - INSIGNIFICÂNCIA DO ATO APONTADO COMO DELITUOSO. Uma vez verificada a insignificância jurídica do ato apontado como delituoso, impõe-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa. A isto direcionam os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Consubstancia ato insignificante a contratação isolada de mão-de-obra, visando à atividade de gari, por município, considerado período diminuto, vindo o pedido formulado em reclamação trabalhista a ser julgado improcedente, ante a nulidade da relação jurídica por ausência do concurso público. ↩︎

  253. para a instrução do processo não foi apresentado um contrato de trabalho, contracheque, recibo ou qualquer outro elemento comprovador da prestação dos serviços. ↩︎

  254. Voto de mérito do Relator, acatado por unanimidade: “Rememore-se a hipótese que veio a movimentar esta máquina judiciária tão sobrecarregada, desprezando-se, até mesmo, a ordem natural das coisas e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. O cidadão Josias Santos da Silva ingressou com reclamação trabalhista contra o Município de São José da Coroa Grande, alegando que lhe prestara serviços no diminuto período de 12 de abril de 1992 a 28 de janeiro de 1993, ou seja, por nove meses (folhas 31 e 32). O Município adotou como estratégia de defesa, já não mais estando à frente do Poder Executivo a ora Paciente, a articulação sobre a ocorrência da contratação em período em que o fato era proibido por lei, ao que tudo indica, anterior às eleições, e à inexistência da observância do concurso público (folhas 33 e 34). O Juízo veio a acolher a defesa, julgando improcedente o pedido formulado, em face do vício do ajuste a contaminá-lo na totalidade. Entretanto, à luz da máxima de que não se pode deixar passar em branco certas atitudes, determinou a remessa de cópias de peças do processo ao Ministério Público Federal, olvidando que em jogo não se fez interesse da União, autarquia ou empresa pública federal. Aí, acabou o Ministério Público Estadual apresentando, em 29 de janeiro de 1996, ou seja, transcorridos mais de dois anos, a denúncia que está às folhas 26 e 27 dos autos. Senhor Presidente, tenha-se presente a lição do saudoso Heleno Fragoso: “Desde logo se deve excluir do sistema penal a chamada criminalidade de bagatela e os fatos puníveis que se situam puramente na ordem moral. A intervenção punitiva só se justifica quando está em causa um bem ou valor social e importante (Lições de Direito Penal).”

    No caso dos autos, cuida-se de contratação que teria ocorrido de forma isolada, ou seja, para a prestação de serviços pelo contratado como gari, e do ato não resultou, em si, prejuízo para a Municipalidade. O preceito que serviu de base à oferta da denúncia tem uma razão de ser, e esta não é, evidentemente, a persecução criminal considerado caso isolado de nenhuma significação no contexto jurídico da vida de uma pessoa jurídica de direito público. Destarte, a hipótese não sugeria o recebimento da denúncia. Mostram-se pertinentes as palavras do Ministro José Dantas, lançadas quando do julgamento, pelo Superior Tribunal de Justiça, do Habeas Corpus nº 3.557.9, impetrado, como está referido na inicial deste habeas, pelo nobre advogado Bóris Trindade: “Em suma, animo-me a, mais uma vez, filiar-me ao benfazejo princípio da insignificância, em função do qual acolho a argüição da falta de justa causa para a ação intentada contra a paciente.”
    Realmente, isto não se deu quando do julgamento do recurso especial. Os integrantes do Colegiado não tiveram em vista esse precedente. O que não se coaduna com os interesses maiores da sociedade é acionar-se o Judiciário, movimentando-o, no que já por demais sobrecarregado, tendo presente situação concreta que nenhum prejuízo trouxe para o bem protegido pelo Decreto-lei nº 201/67, no que proíbe a contratação de servidores sem o concurso público. Desprezaram-se, como já consignado, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, razão pela qual concedo a ordem para, cassando o acórdão proferido, assentar a inexistência de justa causa, fulminando, com isso, a ação penal intentada e que tomou o nº 002963.6 perante o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. [grifos nossos] [Ementário 1922/2:387-390] ↩︎

  255. Publicado no DJU de 11.9.1998, p. 5. Ementário 1924/2:232. Início do voto do Relator: As ora Recorridas foram contratadas, de forma sucessiva, para ministrar aulas. É que o Estado, tendo em conta os términos dos anos letivos, deu ensejo a desligamentos periódicos e a novas contratações, isso relativamente aos anos de 1976 a 1989, relativamente a Geralda Dias Pontes, e de 1977 a 1988, quanto a Maria das Graças Osório Gomes. Em última análise, no campo da economia, olvidando o princípio da continuidade da prestação dos serviços, bem como as peculiaridades da atuação dos professores, o Estado procedeu a desligamentos, ignorando a realidade, ou seja, a necessidade de ter que contar com a mão-de-obra no ano letivo subseqüente, tanto assim que, ao depois, promovia contratações. É certo que o artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ao prever, relativamente àqueles que foram admitidos sem concurso público, a estabilidade, trouxe à balha preceito revelador da impossibilidade de desligamento no tocante aos que, à época da promulgação da Carta de 1988, contavam com cinco anos continuados de serviços. [Ementário 1924/2:235-236] ↩︎

  256. Ementário 1924/2:236-237. ↩︎

  257. O que, em parte, parece ser explicável pela própria história pessoal do min. Marco Aurélio, que foi juiz do Trabalho — chegando mesmo ao Tribunal Superior do Trabalho — antes de ingressar no STF. ↩︎

  258. E isso não apenas no Brasil. Por exemplo, veja-se o Caso das Farmácias ou dos Confeitos de Chocolate, no capítulo referente ao princípio da proporcionalidade na Alemanha. ↩︎

  259. Publicado no DJU de 05.2.99, p. 11. Ementário 1937/1:50. Relatório: Na inicial deste mandado de segurança, aponta-se a insubsistência de decreto do Excelentíssimo Senhor Presidente da República, publicado no Diário Oficial de 15 de julho do corrente ano, mediante o qual foi declarado de interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel conhecido como Fazenda de Jerusalém, com extensão de seiscentos e setenta hectares e seis ares, situado no município de Nova Cantu-PR. Afirma-se que a ciência da inclusão da propriedade no processo de desapropriação decorreu de contato telefônico promovido por servidores do INCRA de Curitiba, dando notícia de que ocorrera a vistoria mediante a qual a Autarquia chegara à conclusão de tratar-se de imóvel improdutivo. Sustenta-se não haver sido feita a notificação prévia dos proprietários de que cuida o artigo 2º, § 2º, da Lei nº 8.629/93, sendo certo, ainda, que infrutífera restou a tentativa de conseguir-se cópia do processo administrativo, já que o INCRA opusera ao pleito pelo fato de tratar-se de documento interno e por isso alegando não caber a concessão de cópia ao público. ↩︎

  260. Ementário 1937/1:55. ↩︎

  261. Publicado no DJU de 14.5.1999, p. 19, Ementário 1950/3:464. ↩︎

  262. Cabe ressaltar que a restituição do valor pago apenas será feita após o encerramento do grupo consorciado e que não há controvérsia quanto a esse ponto, sendo a discordância restrita à questão da correção monetária. ↩︎

  263. Ementário 1950/3:469-470. ↩︎

  264. Ementário 1950/3:464. ↩︎

  265. Parte da Ementa ligada a esse ponto da argumentação: “CONSÓRCIO - DESISTÊNCIA - DEVOLUÇÃO DE VALORES - CORREÇÃO MONETÁRIA. Mostra-se consentâneo com o arcabouço normativo constitucional, ante os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, decisão no sentido de, ao término do grupo, do fechamento respectivo, o consorciado desistente substituído vir a receber as cotas satisfeitas devidamente corrigidas. Descabe evocar cláusula do contrato de adesão firmado consoante a qual a devolução far-se-á pelo valor nominal. Precedente: Verbete nº 35 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça: ‘Incide correção monetária sobre as prestações pagas, quando de sua restituição em virtude de retirada ou exclusão do participante de plano de consórcio’”. [grifos nossos] [Ementário 1950/3:464] ↩︎

  266. Ementário 1950/3:470-471. ↩︎

  267. Publicado no DJU de 15.12.1998, p. 24. Ementário 1946/6:1091. ↩︎

  268. Parte do acórdão do TST citado no voto do min. Marco Aurélio. [Ementário 1946/6:1092] ↩︎

  269. Ver I - C - 7. ↩︎

  270. Ementário 1876/7:1588. ↩︎

  271. Ementário 1946/6:1091. ↩︎

  272. E devemos ressaltar que, em ambos os casos, Marco Aurélio atribui um valor considerável ao fato de as petições e procurações serem redigidas em papel timbrado das instituições envolvidas, argumento esse que parece não ter grande poder de persuasão, dado que mesmo que houvesse efetiva irregularidade na representação, não haveria nenhuma dificuldade em se imprimir as procurações e petições em papel timbrado. ↩︎

  273. Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: [...]

    III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
    a) contrariar dispositivo desta Constituição. ↩︎

  274. Ementário 1946/6:1095-1096. ↩︎

  275. Publicado no DJU de 4.6.1999, p. 20. Ementário 1953/6:1139. Ementa: “DIRIGENTE SINDICAL - GARANTIA DE EMPREGO - COMUNICAÇÃO AO EMPREGADOR. A formalidade prevista no artigo 543, § 5º, da Consolidação das Leis do Trabalho — ciência do empregador da candidatura do empregado — não se mostrou incompatível com a norma do inciso VIII do artigo 8º da Constituição Federal, isto diante do princípio da razoabilidade.” ↩︎

  276. Ementário 1953/6:1144-1145. ↩︎

  277. Vide I - C - 22. ↩︎

  278. Vide I - C - 7. ↩︎

  279. Dado que, como afirmamos anteriormente, poderiam ter sido introduzidos por meio desse princípio argumentos fáticos e valorativos relevantes para a solução da questão jurídica. ↩︎

  280. Ou, na melhor das hipóteses, implícitos. ↩︎

  281. Quando falamos em ocorrências, contamos a referência em cada voto. Como há casos em que mais de um ministro fazem referência ao princípio, o número de ocorrências é maior que o número de processos em que se faz menção ao princípio da razoabilidade. ↩︎

  282. Ainda que esse seja um caso de menor relevo. ↩︎

  283. Nos processos: AGRAG 153.493 (1993), RE 192.568 (1996), REED 199.066 (1997), HC 75.192 (1997), HC 75.331 (1997), AGRAG 203.186 (1998), AGRAG 194.188 (1998), ADI(MC) 1.753 (1998), RE 221.066 (1998), RE 158.448 (1998), MS 22.944 (1998), RE 192.553 (1998) e RE 224.667 (1999). ↩︎

  284. Sobre esse assunto, vide: Lima, Devido processo legal, pp. 280-287 (Proporcionalidade e Razoabilidade: noções idênticas?) ↩︎

  285. Lima, Devido processo legal, p. 287. Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, p. 204. Barros, O princípio da proporcionalidade..., p. 72. ↩︎

  286. Os três que constam da tabela abaixo. ↩︎

  287. Como em dois desses julgados há dois ministros que fazem menção ao princípio da razoabilidade, consideramos que existem 21 acórdãos e 23 ocorrências do princípio na jurisprudência do STF. Ressaltamos que, dos processos analisados no ponto anterior, em dois deles não há qualquer referência ao princípio da razoabilidade, mas apenas ao devido processo legal. ↩︎

  288. Processos julgados em 1999 e publicados antes do recesso forense de julho. ↩︎

  289. Como afirmamos acima, a utilização que Carlos Velloso fez do princípio foi pontual. ↩︎

  290. Ao menos em parte, parece ser esse o caso de Moreira Alves e Celso de Mello, pois são muito próximas as conclusões a que somos levados pelo princípio da razoabilidade e pelo devido processo legal. ↩︎

  291. Convém ressaltar que essa tendência de ampliação da importância do princípio da razoabilidade não ocorre apenas no Supremo Tribunal Federal. Das 74 ocorrências desse princípio nos acórdãos do Superior Tribunal de Justiça – STJ, a imensa maioria ocorreu a partir de 1997. ↩︎

  292. Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, p. 213. ↩︎

  293. RTJ 45/2:539. ↩︎

  294. Alguns teóricos propuseram respostas à questão do fundamento normativo, as quais analisaremos posteriormente. ↩︎

  295. O que é inevitável, por se tratar de um topos que somente tem adquirido relevância há poucos anos. Embora ele tenha ingressado na jurisprudência em 1993, foi apenas a partir de 1997 que o argumento começou a consolidar seu espaço na jurisprudência. ↩︎

  296. Willis Santiago Guerra Filho, durante defesa de dissertação de mestrado realizada na UnB em março de 1999, afirmou que o princípio da proporcionalidade havia-se tornado o principal objeto das suas reflexões. ↩︎

  297. Incluímos nesse número as referências ao devido processo legal. ↩︎

  298. Tratamos essas duas ADI como uma unidade, pois ambas tratam do mesmo assunto e foram julgadas em conjunto. Como a questão principal do trabalho não é o número de processos, mas a freqüência dos argumentos, esse tratamento indistinto é justificado. ↩︎

  299. ADI(MC) 855. ↩︎

  300. ADI(MC) 1.158. ↩︎

  301. O min. Leitão de Abreu, na RP 930, fez referência a esse significado com base em um dicionário jurídico de 1909. Vide I - B - 6. ↩︎

  302. Mendes, O princípio da razoabilidade. Barros, O princípio da razoabilidade.... Stumm, Princípio da razoabilidade.... Bonavides, Curso de Direito constitucional. Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição. Guerra Filho, Os princípios das isonomia e proporcionalidade..., p. 301. ↩︎

  303. Castro, O devido processo legal.... ↩︎

  304. Lima, Devido processo legal. ↩︎

  305. Mendes, O princípio da razoabilidade, p. 472. Barros, O princípio da razoabilidade..., p. 121. Stumm, Princípio da razoabilidade... pp. 91-92. Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, p. 219. ↩︎

  306. Lima, Devido processo legal, p. 289. ↩︎

  307. Castro, O devido processo legal..., p. 381. ↩︎

  308. Essas características já estavam presentes na cultura dos povos germânicos antes mesmo da unificação da Alemanha. Ainda em meados do século XIX, e tratando de fatos que aconteceram no início desse século, o russo Léon Tolstoy assim descreveu Pfuel, um estrategista prussiano a serviço do Império Russo durante a invasão napoleônica. “Pfuel was one of those hopelessly and immutably self-confident men, self-confident to the point of martyrdom as only Germans are, because only Germans are self-confident on the basis of an abstract notion – science, that is, the supposed knowledge of absolute truth. A Frenchman is self-assured because he regards himself personally both in mind and body as irresistibly attractive to men and women. As Englishman is self-assured as being a citizen of the best-organized state in the world and therefore, as an Englishman, always knows what he should do and knows that all he does as an Englishman is undoubtedly correct. And Italian is self-assured because he is excitable and easily forgets himself and other people. A Russian is self-assured just because he knows nothing and does not want to know anything, since he does not believe that anything can be known. The German’s self-assurance is worst of all, stronger and more repulsive thn any other, because he imagines that he knows the truth – science – which he himself has invented but which is for him the absolute truth. [...] Pfuel was one of those theoreticians who so love their theory that they lose sight of the theory’s object – its practical application. His love of theory made him hate everything practical, and he would not listen to it He was even pleased by failure, for failures resulting from deviations in practice from the theory, only proved to him the accuracy of his theory.” [Tolstoy, War and Peace, pp. 518-519] ↩︎

  309. Joint Anti-Fascist Refugee Committee v. McGrath (1951). Citado por Pritchett, The American Constitution, p. 589. ↩︎

  310. Pessoalmente, creio que a solução mais consistente para oferecer uma fundamentação sólida e uma orientação adequada para o controle de legitimidade no Brasil seria desenvolvê-lo a partir da garantia constitucional expressa do devido processo legal. Nesse caso, deveríamos dar continuidade ao caminho aberto por Moreira Alves e Celso de Mello, que sustentaram — a partir de uma clara influência da jurisprudência da Suprema Corte norte-americana — que a razoabilidade era um critério de aplicação do devido processo legal. O aparente abandono desse projeto por parte dos seus iniciadores — que há cinco anos não envidam esforços nesse sentido —, indica a grande dificuldade de retomá-lo dentro do STF. Todavia, acredito que a incipiência da nossa jurisprudência quanto ao tema faz com que seja mais adequado desenvolver um critério mais flexível e de mais simples aplicação — como o devido processo norte-americano —, ao contrário do controle sistemático e preciso contido na teoria germânica da proporcionalidade. ↩︎

  311. Castro, O devido processo legal..., p. 369. ↩︎

  312. A qual teve muito poucos resultados práticos. ↩︎

  313. Castro, O devido processo legal..., p. 384. ↩︎

  314. Estabelecendo o sentido no qual uma norma deve ser interpretada. ↩︎

  315. E a interpretação da Constituição é uma função política, pois a avaliação das conseqüências políticas de uma decisão é um argumento que uma Corte Constitucional não pode perder de vista. ↩︎

  316. Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, p. 213. ↩︎

  317. Vide II - E - 1. ↩︎

  318. No caso, tratou-se do controle de razoabilidade de um edital de concurso público. ↩︎

  319. ADI(MC) 855 e ADI(MC) 1.158. ↩︎

  320. ADI(MC) 1.853. ↩︎

  321. Leal, Problemas de Direito Público..., vol. I, pp. 291-293. ↩︎

  322. Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 578. ↩︎

  323. Bonnard, Roger. Précis de Droit administratif. 1940, p. 228. ↩︎

  324. Meirelles, Direito administrativo brasileiro, p. 150. ↩︎

  325. Bandeira de Melo, Curso de Direito administrativo, p. 66. ↩︎

  326. Bandeira de Melo, Curso de Direito administrativo, p. 595. ↩︎

  327. Bandeira de Melo, Curso de Direito administrativo, p. 598. ↩︎

  328. Castro, O devido processo legal..., p. 154. ↩︎

  329. Como visto no I - B - 1. ↩︎

  330. Hart, O conceito de Direito, p. 335. ↩︎

  331. Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 364. ↩︎

  332. E a ética do discurso não nos parece uma teoria moral consistente, na medida em que a moralidade discursiva — que pretende ser o fundamento de toda a Moral — pressupõe a prévia aceitação de valores de moralidade por parte dos participantes do discurso, o que torna circular a argumentação. ↩︎

  333. Ou ao menos homogêneos. ↩︎

  334. Habermas, Between facts and norms, p. 447. ↩︎

  335. Aarnio, Lo racional como razonable, pp. 28-30. ↩︎

  336. Ao menos desde a crítica de Descartes à tradição escolástica e de sua afirmação no sentido de que a evidência racional seria o único critério de verdade admissível. ↩︎

  337. Marco Aurélio identifica neste dispositivo um princípio constitucional da não culpabilidade. ↩︎

  338. Já no controle de razoabilidade dos atos administrativos e interpretações judiciais, essa preocupação nem sempre mostrou-se muito forte. ↩︎

  339. Vide Capítulo II. ↩︎

  340. Bickel, A. The least dangerous branch. 1962, p. 55. Citado por Ely, Democracy and distrust,, p. 43. “[R]esta perguntar as questões mais difíceis. Que valores devem ser qualificados como suficientemente importantes ou fundamentais ou qualquer coisa que o valha para que sejam invocados pela Corte contra outros valores e positivados por normas legislativas? E como deve a Corte identificá-los e aplicá-los?” ↩︎

  341. E cuja epígrafe é a questão de Bickel citada logo acima. ↩︎

  342. Ely, Democracy and distrust,, p. 43. ↩︎

  343. Concepção de Herbet Wechsler que se tornou conhecida a partir da publicação do artigo “Rumo a princípios neutros de Direito Constitucional” [Wechsler, H. Towards neutral principles of Constitutional Law. Harvard Law Review, n° 73, 1959], na qual ele defendia que “the Supreme Court, rather than functioning as a ‘naked power organ’ simply announcing its conclusions ad hoc, should proceed on the basis of principles that transcend the case at bar and treat like cases alike. Having announced such a principle in one case, the Court should then proceed unflinchingly to apply it to all others it controls. Consciousness of this obligation to the future will obviously help shape the principle the Court will formulate, and thus the result it will reach, in the first case.” [Ely, Democracy and Distrust, p. 54] “[A] Suprema Corte, ao contrário de funcionar como um órgão de poder, simplesmente enunciando suas conclusões ad hoc, deveria proceder na base de princípios que transcendessem o caso concreto e tratassem casos semelhantes. Tendo anunciado um princípio em um caso, a Corte deveria aplicá-lo a todos os outros casos por ele abrangidos. A consciência dessa obrigação frente ao futuro obviamente ajudaria a determinar o princípio que a Corte formularia e, por conseguinte, o resultado a que ela chegaria no primeiro caso.” ↩︎

  344. Ely, Democracy and distrust, pp. 43-72. ↩︎

  345. O livro The least dangerous branch, de Alexander Bickel, é de 1962. ↩︎

  346. Embora seja sabido que são constantes as apreciações valorativas implícitas, embora revestidas com uma máscara de procedimentos formais e objetivos. ↩︎

  347. E escolha valorativamente neutra nos parece uma contradição em termos. ↩︎

  348. Por um lado, a busca de garantir soluções justas certamente causa uma redução no nível de segurança jurídica. Além disso, há um risco de que o Judiciário imponha a toda a sociedade os valores de uma elite determinada, dentre a qual são recrutados todos os membros de uma corte constitucional e boa parte dos integrantes do Poder Judiciário. ↩︎

  349. Na medida em que não é construída com base em nenhum critério de representatividade. ↩︎

  350. O melhor exemplo disso talvez seja a ADI(MC) 223. Vide I - C - 1. ↩︎

  351. No sentido de que as escolhas valorativas dos órgãos julgadores — especialmente do STF, enquanto órgão máximo — são válidas em virtude da simples autoridade do Tribunal ou da observância de procedimentos legalmente estabelecidos, sendo desnecessário persuadir a sociedade da legitimidade dessas opções. ↩︎

  352. Como se se tratasse apenas de um controle formal de legalidade. ↩︎

  353. Identificamos 18 referências ao princípio. ↩︎

  354. Uma vez em 1993, outra em 1994 e, por fim, mais uma vez em 1998. ↩︎

  355. Já houve no Supremo algumas tentativas nesse sentido, especialmente no voto de Carlos Velloso na ADI 1.326, mas nenhuma delas chegou a resultados adequados. ↩︎

  356. No sentido de que as opções valorativas do próprio Tribunal não são devidamente justificadas. Ao considerar que a autoridade do STF é um fundamento suficiente para a legitimidade dessas escolhas valorativas, não há um esforço consistente no sentido de persuadir a sociedade de que essas opções foram adequadas. ↩︎

  357. Já havia sido sumulado na década de 60, com a súmula 400 do STF. ↩︎