1. Os limites da dogmática jurídica

1.1 Um direito baseado em evidências?

Como devemos formar os juristas contemporâneos?

Embora os debates acerca da educação jurídica tenham sido intensos ao longo dos últimos séculos, era de se esperar que uma questão atravessada por tantos elementos ideológicos e políticos não se deixasse responder de forma consensual. Apesar das amplas divergências, parece haver um reconhecimento geral de que os juristas exercem uma atividade prática e que, portanto, devem receber uma formação que lhes permita tomar decisões adequadas, em tempo hábil (Tholozan, 2021).

Os juristas não são cientistas, pois a sua função primária não é a de compreender a sociedade e produzir novos conhecimentos, mas a de integrar um processo de “construção social” (Chérot, 2021). Tal como outros técnicos especializados (médicos, arquitetos, policiais, etc.), o trabalho de cada jurista se relaciona com as situações concretas nas quais ele intervém, cabendo-lhe produzir discursos jurídicos (sentenças, pareceres, petições, etc.) relacionados com os diretos e deveres das pessoas envolvidas em um conflito. Mesmo que a atividade jurídica típica envolva a análise das consequências jurídicas de situações particulares, não podemos perder de vista que o resultado combinado dos comportamentos dos vários atores do sistema de justiça tem um impacto político imenso, contribuindo para a definição das relações estabelecidas entre os vários membros de uma sociedade. Assim como o exercício da clínica médica opera sobre indivíduos particulares, mas contribui para a produção social da saúde, os impactos das atividades dos juristas sempre transcendem as questões concretas que lhes cumpre avaliar.

A proximidade entre o raciocínio médico e o jurídico (Rouvière, 2021a) faz com que seja proveitoso explorar os paralelos entre esses dois tipos de profissionais que analisam situações concretas, fazem diagnósticos e tomam decisões com base em uma combinação do conhecimento disponível e de sua experiência pessoal. Apesar dessas semelhanças, existe hoje uma diferença sensível entre as abordagens que são esperadas de clínicos e de juristas. Desde meados da década de 1990, o avanço da medicina baseada em evidências (evidence-based medicine) deixou claro que boa parte da prática médica não era executada de acordo com os conhecimentos produzidos pela pesquisa científica, mas caracterizava-se pela aplicação da intuição, da experiência clínica e, principalmente, de deduções baseadas nos modelos patofisiológicos existentes (Guyatt, 1992).

Os defensores da medicina baseada em evidências sempre acentuaram que a experiência clínica é crucial, dado o caráter lacunar do conhecimento científico, mas chamaram atenção para o fato de que devemos nos precaver contra os limites dos raciocínios dedutivos realizados com base na cultura compartilhada. Tais deduções podem conduzir a terapias ineficazes e a perpetuação de equívocos, e é por esse motivo que os resultados de pesquisas empíricas devem sempre prevalecer sobre deduções e intuições (Guyatt, 1992). Não se trata, portanto, de uma desqualificação da experiência profissional dos clínicos ou do conhecimento tradicional, mas do estabelecimento do princípio de que, nas decisões médicas, é necessário dar prevalência aos resultados de testes empíricos que avaliem tratamentos, medicamentos e protocolos de intervenção.

Em 2006, em um artigo que propunha adotar esse enfoque científico ao campo da administração de empresas, Pfeffer e Sutton estimaram que apenas 15% das decisões médicas eram baseadas em pesquisas empíricas publicadas, sendo que a maior parte do exercício profissional da medicina era baseada em:

[...] saberes obsoletos adquiridos na faculdade, conhecimentos tradicionais persistentes, mas nunca provados, métodos em que cada profissional acredita e se treinou para aplicar, bem como em informações produzidas por hordas de negociantes que lhe apresentam os produtos e serviços que tentam vender. (Pfeffer et Sutton, 2006).

Os descaminhos do enfrentamento da pandemia de Covid-19 indicam continuarem vivas na medicina as tensões entre abordagens tradicionais, fundadas na longa experiência dos profissionais de prestígio, e estratégias baseadas em evidências científicas. Juntamente com todos os conselhos anticientíficos e fake news que foram veiculados no contexto pandêmico, cada um de nós foi bombardeado ao longo do período pandêmico por uma enxurrada de informações relativas ao campo da pesquisa biomédica, tornando-se comuns na mídia referências a pre prints, exames duplo cego, peer review e margens de erro das análises estatísticas.

Em 2020, ansiávamos por uma orientação científica sólida, que ainda não existia, e a cuja produção assistimos em tempo real. Os sobreviventes da pandemia aprenderam muito sobre as limitações dos saberes científicos e sobre os seus imensos custos, mas também sobre as suas grandes potencialidades. O reconhecimento do impacto positivo das pesquisas primária e aplicada cristalizou a exigência de que cada um dos médicos tomasse suas decisões a partir do conhecimento científico mais sólido que estivesse disponível no momento do diagnóstico e da definição das terapias. Embora algumas pessoas preferissem consultar médicos que ecoavam suas ideologias, a maior parte de nós exigia dos clínicos uma atualização constante, que os capacitasse a se apropriar de um conjunto de conhecimentos que estava em frenética alteração.

A importância das máscaras, das vacinas e de cada medicamento testado era analisada e revista a cada semana, sendo divulgados na mídia resultados conflitantes, baseados em artigos cuja solidez era muitas vezes controvertida. Tornou-se claro que a ciência não é um campo de consensos, mas uma arena de debates, em que as propostas de cada investigador eram submetidas ao escrutínio de uma comunidade científica que divergia constantemente sobre a interpretação adequada dos dados disponíveis. Em vez de respostas serenas e unânimes, era perceptível a existência de um processo coletivo em que se cruzavam diversas apreciações das pesquisas, na busca de definir os protocolos terapêuticos mais adequados para a prevenção, o diagnóstico e o tratamento da Covid-19.

A percepção dessa grande dificuldade em definir os melhores padrões de atuação poderia ter gerado uma redução de confiança na ciência, baseada na interpretação de que a falta divergência entre os médicos decorria de uma abordagem científica falha e enviesada. Contudo, esse não parece ter sido o resultado de assistirmos ao desenrolar do desenvolvimento científico, visto que o reconhecimento das limitações da ciência não conduziu a sua desvalorização, exceto em alguns limitados círculos de conservadores negacionistas e militantes antivax. De fato, parece ter ocorrido o fenômeno oposto: observar ansiosamente a formação dos conhecimentos sobre a Covid-19 nos tornou muito mais exigentes com os médicos. Os clínicos já não tinham apenas que nos indicar os tratamentos que eles julgavam adequados, mas também precisavam justificá-los perante os pseudo-especialistas que todos nós nos tornamos quando aprendemos a perguntar aos doutores sobre a eficácia dos tratamentos divulgados pela mídia.

Esse bombardeio de informações fez com que todos nós tivéssemos algum conhecimento sobre o andamento das pesquisas científicas, mas ao mesmo tempo deixou claro que esse saber genérico era insuficiente para a tomada de decisões clínicas adequadas. O enfrentamento da crise pandêmica deixou claro que precisamos de médicos capacitados a filtrar essas interpretações, analisar os resultados das pesquisas e tomar decisões eficazes com base no limitado conhecimento disponível.

No caso do direito, a situação parece bem diversa. As turbulências políticas que enfrentamos ao longo dos últimos anos não se resumem à pandemia e não nos levaram a valorizar o conhecimento técnico dos juristas. Muito pelo contrário: no Brasil, as grandes divergências interpretativas ganharam os noticiários e fomos inundados por informações acerca de uma série de decisões controversas, tomadas pelo judiciário. A naturalização do uso politicamente enviesado da persecução criminal, realizado pela Operação Lava-Jato e pelas decisões inconsistentes de Sérgio Moro, fez com que os setores de esquerda acentuassem seu antigo ceticismo quanto à neutralidade política do judiciário. De outro lado, as tentativas judiciais de contenção da erosão democrática produzida pelo governo de Jair Bolsonaro geraram provimentos judiciais cuja legitimidade foi intensamente contestada pelos setores conservadores, que chegaram a demandar o fechamento da Suprema Corte. Em todos os espectros da política, a instabilidade do direito e um sentimento crescente de que o judiciário tinha capacidade de produzir soluções absurdas semeou dúvidas acerca da legitimidade do sistema brasileiro de justiça.

1.2 Crise atual da dogmática jurídica

Diferente do que ocorre na medicina ou na engenharia, com seus cálculos diferenciais e complexas estatísticas, o discurso jurídico não opera por meio de uma linguagem matemática inacessível às pessoas comuns. Os juristas lidam com leis cujo sentido deveria ser claro para todos os cidadãos, o que torna evidentemente legítimo que todos os cidadãos se entendam como capacitados a ter opiniões razoáveis sobre a correta interpretação do direito. Por mais que muitos juristas se esforcem para caracterizar a existência de um saber técnico que lhes é próprio (Rouvière, 2021b), não parece possível estabelecer limites rígidos entre um saber especializado dos juristas e o saber comum dos cidadãos.

O fato de a pandemia ter gerado muitos pseudo-especialistas médicos não foi capaz de colocar em xeque a capacidade especial dos profissionais da medicina para tomar decisões clínicas adequadas. Já no caso do direito, os pseudo-especialistas sempre constituíram um grande contingente de pessoas, inteiramente convencidas de que as leis protegem claramente seus interesses. Uma leitura enviesada da ordem jurídica, que sempre confirma as respostas que o intérprete projeta intuitivamente, sempre foi largamente praticada nos meios de comunicação, nos comícios e nos bares. Hoje, essa prática se amplia nas bolhas das redes sociais, em que as concepções mais estapafúrdias são normalizadas por encontrarem um reduzido público que as aplaude, considerando absurda qualquer divergência.

Enquanto as últimas tempestades sanitárias reforçaram a confiança social na ciência médica, as tempestades políticas contemporâneas têm conduzido a um ceticismo generalizado acerca da existência de critérios técnicos, capazes de organizar posicionamentos jurídicos que não sejam imediatamente percebidos com uma manifestação de preferências ideológicas. Essa situação não pode ser considerada imprevista, dado que faz mais de um século que as abordagens críticas vêm acentuando o caráter ideológico das práticas judiciais e apontando uma distância substancial entre o que as cortes fazem e aquilo que elas dizem fazer (Brunet, 2022).

Considerando a forma atual de prática jurídica, a crise de confiança social nos saberes jurídicos constitui um desafio muito difícil de enfrentar. Se os médicos dos anos 1990 amparavam 15% de suas decisões em pesquisas científicas sólidas, o impacto da pesquisa científica na prática judicial ou advocatícia é certamente ainda menor. Na configuração atual da cultura jurídica, os diversos atores não baseiam suas escolhas em pesquisas científicas, mas na reprodução de modelos dogmáticos, que são altamente sensíveis às posições ideológicas hegemônicas. O direito se reproduz a partir da lógica dedutiva, em que as afirmações tipicamente não são empíricas (mas interpretativas, pois tratam dos significados das normas) e mesmo as afirmações fáticas (sobre consequências de certas decisões ou prevalência de certos posicionamentos) não são submetidas a um teste empírico consistente.

Ao longo dos últimos séculos, a persistência de um campo jurídico oligárquico (organizado em torno de um número limitado de centros de poder) e de uma cultura jurídica estratificada parece ter sido capaz de garantir certo grau de previsibilidade na atuação judicial. Todavia, a complexificação da sociedade, com o gradual incremento de sua necessidade de acomodar percepções ideológicas conflitantes, tem promovido a adoção de um discurso judicial mais dúctil, potencialmente capaz de tomar decisões que busquem promover um equacionamento dos valores e interesses contrapostos.

Nesse contexto, as garantias de sistematicidade oferecidas por uma cultura jurídica unificada se perdem juntamente com a formação de um judiciário mais plural, tanto em suas origens como em suas afinidades ideológicas. Esse multiface amento parece uma decorrência inevitável dos processos democráticos, em sua radical polifonia, e por isso mesmo ele coloca em risco a operação de um sistema de justiça cuja previsibilidade é assentada em bases aristocráticas: a produção de um grupo de julgadores com subjetividades atravessadas por um habitus compartilhado.

No próximo capítulo, A invenção da Ciência, discutiremos os resultados da combinação da atual estrutura do sistema de justiça (com sua necessidade de coordenar milhares de magistrados) com a polifonia valorativa das sociedades contemporâneas. Essa situação desafia o pressuposto dogmático de que existe uma ordem jurídica implícita nos textos legislativos, que pode ser descoberta a partir de uma interpretação realizada de acordo com os cânones técnicos predominantes. O fato de que a atividade judicial continua sendo legitimada por meio desse tipo de referência a uma ordem normativa imanente faz com que seja previsível uma persistência dos discursos dogmáticos, como eixo legitimador das decisões jurídicas.

O caráter dogmático do campo jurídico tem raízes históricas antigas, pois a constituição de uma dogmática estável foi, ao longo de séculos, a única estratégia eficiente para organizar os esforços da comunidade formada pelos atores jurídicos. Ainda hoje, parece que esse modelo ainda é o mais hábil para orientar uma prática decisória consistente. Todavia, no contexto atual, o número imenso de atores e de fontes jurídicas disponíveis faz com que tal consistência não seja alcançável por meio dos meios dogmáticos tradicionais, que envolvem a constante reintepretação das normas e decisões por um conjunto de especialistas, cuja atividade tende a gerar um discurso organizado.

A estabilidade jurídica dependeu, por milênios, dessa estratégia fundada na produção de um habitus unitário, que se reproduz de forma inconsciente. Contudo, o desafio de produção de uma ordem semântica unitária dependerá cada vez mais das habilidades dos juristas de lidarem com a infinidade de dados produzidos por um sistema judiciário amplo e plural.

Parece que estamos próximos de um ponto em que a efetiva divulgação dos resultados da prática judicial se torna capaz de nos fazer duvidar da ficção unitária a partir da qual descrevemos a atividade jurídica. Como descreve Pierre Brunet, a acumulação de dados contraditórios faz com que o paradigma formalista perca seu poder explicativo acerca do modo como os tribunais aplicam o direito (Brunet, 2022). Essa interpretação desenvolve o argumento de Gilmore, que identificou um ponto de ruptura no aumento exponencial dos casos publicados nos EUA, no final do século XIX:

A hundred years ago a lawyer, in the course of his professional career, could-and many did-become familiar with the entire body of case law, both in this country and in England. In any given field, a competent lawyer could easily master all the available precedents. […]
The theory of precedent depends, for its ideal operation, on the existence of a comfortable number of precedents, but not too many. […] But hen the store of raw materials becomes too great, too varied, too confused, the bridge-building process turns into a random operation. When it becomes possible to cite to a court not merely two or three prior cases which bear a reasonable relationship to this case, but dozens of cases, many of them so nearly identical on their facts as to be indistinguishable, decided every which way-then what is the court to do? (Gilmore, 1961)

A multiplicação infinita das referências faz com que a ficção de unidade da ordem jurídica se perca, especialmente quando se trata do pressuposto de que o conjunto dos precedentes forma um conjunto sistemático. No caso do sistema romano-germânico, esse risco sempre foi mitigado pelo fato de que a produção de uma ordem normativa unificada nunca dependeu diretamente das decisões, mas do esforço sistematizador promovido pelos juristas. Tradicionalmente, os juristas brasileiros e franceses não estudavam diretamente o corpus de decisões judiciais, mas os manuais didáticos que apresentavam o direito como um sistema de normas e de conceitos.

Nos sistemas de civil law, o papel unificador da doutrina tem sido minado ao longo das últimas décadas, visto que a disponibilidade de sistemas de informática tem permitido que a pesquisa de jurisprudência seja feita de forma direta. Os tribunais têm se mostrado muito sensíveis aos argumentos de base jurisprudencial, o que vem conferido uma utilidade prática imensa ao domínio dos precedentes. Todavia, a multiplicação infinita de decisões tem levado o conjunto dos atos a serem coordenados a um ponto tal de complexidade que parece aplicável a tese de Gilmore, no sentido de que não é possível construir um sistema a partir de um conjunto tão heterogêneo de fontes (Gilmore, 1961).

Como não está no horizonte o abandono da forma judicial de solução de questões e não parece viável o retorno a um tempo no qual os sistemas de justiça produziam um conjunto relativamente restrito de decisões paradigmáticas, precisamos de estratégias voltadas a conhecer, classificar e sistematizar as decisões efetivamente produzidas. Frédéric Rouvière acentua que esse tipo de abordagem somente é possível por meio da utilização de estratégias de informática, notadamente pelo uso de inteligência artificial, visto que somente esse tipo de estratégia possibilitará um tratamento eficiente dos dados, tanto pelos julgadores como pelos advogados (Rouvière, 2021a).

Esse processo de informatização das atividades jurídicas poderia se constituir apenas em uma forma de se apropriar de estratégias de tecnologia da informação, para realizar com mais eficiência as atividades tradicionais dos juristas: escrever petições, pareceres e decisões. A informática nos possibilita lidar rapidamente com uma quantidade maior de dados, e parece que este é o desafio mais imediato dos juristas. No curto prazo, essa digitalização não parece mesmo capaz de alterar substancialmente a prática judicial, visto que as decisões continuariam a ser tomadas por meio do exercício do habitus dos juristas.

No capítulo seguinte, analisaremos a conformação dos saberes que são normalmente manejados pelos profissionais do direito e das dificuldades que, no curto prazo, possa aflorar no direito um movimento mais amplo de valorização das práticas baseadas em evidências. No cenário atual, não vislumbramos ainda uma possibilidade de substituição da dogmática pela ciência, mas a tentativa de viabilizar a sobrevivência de uma dogmática minimamente sistemática, frente a um ambiente decisional complexo. Uma dogmática baseada em sistemas de informática continua sendo uma forma de sistematizar o direito a partir da produção de um sistema simbólico de referência, que possibilite o exercício da atividade decisória com se fosse uma prática interpretativa.

Cabe ressaltar que a medicina baseada em evidência não é feita por médicos pesquisadores, mas por profissionais cuja prática envolve uma constante atualização, acerca da pesquisa empírica disponível. A diferença entre o clínico e o cientista não foi desconstruída, mas apenas a noção de que a experiência do clínico seria um guia mais confiável para diagnósticos e tratamentos do que a produção científica. Porém, é preciso ressaltar que a condição para uma medicina baseada em evidências é a prévia construção de um sólido repertório de conhecimentos científicos, tão amplo e complexo que pode se tornar um guia mais eficaz do que as tradições médicas. Os próprios médicos reconhecem que um dos limites para a abordagem baseada em evidência é que há áreas em que a pesquisa não tem densidade suficiente para orientar a prática clínica (Guyatt, 1992).

No caso do direito, não seria exagero afirmar que essa falta de conhecimento científico é comum a praticamente todas as suas áreas. A construção desse tipo de saberes não ocorre do dia para a noite, pois trata-se de uma lenta acumulação de décadas de investigações multifacetadas, realizadas por uma comunidade de pesquisa ampla e sólida. Além disso, tal construção depende de uma opção política consciente, no sentido de fomentara realização dessas investigações, pois o desenvolvimento de uma comunidade de pesquisa depende de um financiamento duradouro e estável, que permita que tal atividade se torne atrativa para as pessoas capazes de realizar esse tipo atividade, altamente complexa e especializada.

Grandes investimentos em pesquisa biomédica são muito anteriores a uma prática baseada em evidências, e o exercício da pesquisa precisa ser uma atividade minimamente atraente para o tipo especializado de profissional que é habilitado a realizá-la. O que o evidence-based medicine combateu não foi a falta de conhecimentos científicos, mas a existência de uma grande barreira entre a produção científica e sua incorporação na prática dos clínicos. Já no caso do direito, a pesquisa empírica é ainda incipiente, conta com um financiamento limitado e não oferece aos investigadores o mesmo nível de prestígio e remuneração que são acessíveis aos estudantes habilidosos que se dedicam às profissões clássicas da magistratura, do ministério público ou da advocacia.

Esse caráter incipiente das pesquisas empíricas em direito impede que ela seja um guia alternativo para a ação. Para os juristas em geral, a reprodução competente dos discursos dogmáticos ainda parece ser a estratégia capaz de maximizar os ganhos e minimizar os investimentos. Porém, este livro é produzido a partir da intuição de que essa situação tende a ser alterada em um prazo relativamente curto, dentro do qual se tornarão vitais para uma prática jurídica eficaz os conhecimentos produzidos por pesquisas científicas adequadamente conduzidas. Nesse momento, passaremos de uma dogmática que se apropria dos sistemas informatizados de gestão de dados, para uma atuação jurídica efetivamente baseada nos conhecimentos gerados pela acumulação das pesquisas empíricas que realizaremos ao longo desse processo. Contudo, a realização desse trânsito dependerá da produção coordenada de novos conhecimentos sobre o direito, que dependem de uma reorientação dos esforços de pesquisa que ocorrem no campo.

2. Direito e pesquisa

2.1 Estudos e Pesquisas

Pesquisa é uma investigação voltada a desenvolver o conhecimento de determinado campo, seja produzindo novos saberes ou avaliando partes do conhecimento existente, seja para reforçá-las ou para refutá-las. Embora seja comum que pesquisadores digam que estão "realizando um estudo" sobre determinado tema, você somente conseguirá formular adequadamente um projeto de pesquisa se tiver clareza sobre as fronteiras essas duas atividades.

A palavra pesquisa se relaciona com a palavra perquirir, que significa buscar intensamente. Trata-se de uma palavra originada do latim perquirere, formada pela união da palavra quaerere, que significa buscar, reforçada pelo prefixo per, que indica intensidade. Essa mesma combinação está na base da palavra francesa recherche (chercher é buscar, e re também indica intensidade), que por sua vez é a origem da palavra inglesa research. Pesquisar, portanto, é realizar uma investigação voltada a descobrir algo.

Embora as pesquisas sempre busquem alguma coisa, não devemos tratar a busca de informações em um banco de dados como se fosse uma pesquisa. A língua portuguesa tem vários usos para o verbo pesquisar, que é empregado em expressões como “pesquise no dicionário o sentido de uma palavra” ou “realize uma pesquisa de jurisprudência sobre casamento de pessoas do mesmo sexo”. É nesse mesmo sentido que a página inicial do Google, em português, indica que você pode “pesquisar no Google”:

Embora o Google utilize a palavra pesquisar, e que tal uso seja possível na língua portuguesa, a tradução mais precisa de search não é pesquisar, mas buscar. O que os diversos mecanismos de busca efetuam é procurar a ocorrência de certas expressões em um banco de dados, retornando resultados em que a expressão foi encontrada.

As pesquisas acadêmicas também procuram algo: responder a indagações cujas respostas são desconhecidas. Por seu turno, o Google busca documentos que se relacionam com determinados termos. Se você apresentar ao Google uma questão que poderia ser objeto de uma pesquisa acadêmica (por exemplo: qual é o tempo médio de julgamento de uma ADI?), o algoritmo retorna alguns resultados em menos de um segundo.

O que o Google faz é tratar as suas palavras como um tema: ele busca documentos que se relacionam com os termos inseridos no mecanismo de busca, a partir de um algoritmo que atribui um valor de relevância para cada resultado. No exemplo acima, o documento que aparece como mais relevante é um artigo republicado pela Anamatra no site jusbrasil.com.br, que efetivamente contém uma resposta para a nossa questão, indicando que o tempo médio de julgamento é de seis anos.

Esse texto é a cópia de uma reportagem publicada pelo jornal “O Globo”, em 2014, e que trata de conhecimentos produzidos pela FGV Direito Rio, posteriormente publicados no relatório de pesquisa Supremo em Números III: O Supremo e o Tempo (Falcão, Hartmann et Chaves, 2014). Essa é uma importante investigação realizada por pesquisadores da FGV, mas é sintomático que o primeiro resultado da “pesquisa” do Google não seja o relatório original em que os dados são expostos, mas um texto de divulgação dessa pesquisa, fruto provavelmente da assessoria de imprensa da GV-Rio.

Embora tenha sido o trabalho da equipe coordenada por Falcão, Hartmann e Chaves que mensurou o tempo médio de tramitação, o texto considerado mais relevante pelo Google foi a republicação de um artigo jornalístico que trata especificamente dos longos tempos de tramitação. Isso indica que o algoritmo privilegia textos menores e mais diretos, escritos diretamente em HTML, muito diversos do PDF de 150 páginas que veicula o relatório de pesquisa.

Para buscar textos com relevância acadêmica, você pode optar por utilizar o Google Acadêmico (scholar.google.com.br), que deveria ter critérios mais próximos daqueles utilizados pelos pesquisadores. Essa é uma iniciativa da Google que tenta oferecer resultados que deem mais visibilidade aos modos típicos de divulgação científica, cuja circulação opera tipicamente por arquivos em PDF, que têm baixa visibilidade no algoritmo usual. Todavia, a repetição da busca anterior leva a um resultado frustrante: o Google recupera uma série de arquivos PDF que contêm as palavras que foram pesquisadas, mas a maioria desses arquivos não responde à nossa questão.

O primeiro resultado tem um vínculo indireto com nossa pergunta, tratando-se de uma monografia acerca da jurisprudência do STF em ações relativas ao federalismo, escrita por um estudante da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP). Já os outros textos não se relacionam com a nossa dúvida, embora neles ocorram as palavras usadas como parâmetro de busca.

Esse exemplo nos sugere que, previsivelmente, a utilização de web browsers para responder perguntas de pesquisa não nos leva muito longe. Os principais resultados de interesse acadêmico nem sempre são retornados, a relevância científica dos textos não é o critério de ordenação dos resultados e eles tampouco oferecem uma visão atualizada do tema. Ademais, as perguntas originais de pesquisa nos colocam frente a questões que não foram respondidas e que, portanto, não contam com respostas a serem buscadas nas páginas de internet.

A busca do Google nos ajuda a localizar documentos potencialmente relacionados a determinados parâmetros. O Google não efetua (ao menos ainda) uma interpretação da sua pergunta. Tampouco realiza uma análise dos dados judiciais em busca de descobrir o tempo médio de julgamento. O que ele faz é tomar essa pergunta como uma expressão linguística e buscar textos que contenham referências diretas ou indiretas a essas palavras. Trata-se de um instrumento muito útil para levantamento de dados, mas que precisa ser utilizado dentro de suas limitações e possibilidades. Quando lemos os textos retornados pela busca do Google, podemos aprender muitas coisas interessantes sobre ADIs, tempo e julgamento. Isso faz com que esse seja um ótimo instrumento de estudo, mas que seja um instrumento bastante limitado de pesquisa.

Neste ponto, devemos atentar para as diferenças entre estudos e pesquisas. É compatível com a língua portuguesa que um pesquisador fale de seus estudos quando ele faz referência a suas pesquisas. Todavia, por maior que seja a similaridade semântica entre esses termos, na linguagem comum, convém que o seu uso acadêmico respeite uma distinção que evita confusões metodológicas:

  • o estudo é voltado a aprender;
  • a pesquisa é voltada a descobrir, ou seja, produzir novos conhecimentos.

No estudo, aprendemos algo que não sabemos por meio do contato com as pessoas que sabem ou da leitura de textos que elas escreveram. Na pesquisa, buscamos descobrir relações que não são adequadamente esclarecidas pelo conhecimento disponível. No campo da ciência, os pesquisadores estudam o conhecimento que já foi produzido, com o objetivo de se capacitar para investigar de forma original aquilo que não sabemos.

2.2 A gestão da ignorância

Frente à consciência de nossa própria ignorância, podemos estabelecer estratégias para gerir o fato de que saberemos sempre muito menos do que desejamos. Uma dessas estratégias é o estudo, no qual partimos de uma dúvida pessoal (O que eu não sei?) e buscamos fontes de conhecimento capazes de suprir essa falta. O estudo se orienta normalmente por temas (história do direito, direito comercial, contratos de compra e venda) e a amplitude do tema vai definir se os estudos serão mais panorâmicos ou mais especializados. O bom estudante precisa saber os locais em que o conhecimento está disponível e precisa ter instrumentos para diferenciar o conhecimento que é sólido daquelas informações que são inconsistentes.

Outra das abordagens é a gestão da ignorância pela pesquisa. Nesse caso, partimos de uma questão que não é apenas pessoal, mas coletiva: O que não sabemos ou sabemos mal? A pesquisa se orienta por problemas, que veiculam justamente as perguntas que o conhecimento disponível não é capaz de responder. O estudo é sumamente importante, até porque a pesquisa é uma atividade exigente, cara e lenta. Se você pode obter os conhecimentos necessários por meio de estudo, não há nenhuma necessidade de gastar seus recursos pessoais (e muitas vezes recursos públicos) para investigar coisas que já estão devidamente mapeadas.

Nos variados campos acadêmicos, costuma haver uma diferenciação clara entre o ensino e a pesquisa. O exercício pedagógico típico das universidades é o ensino de um conjunto de informações, aliado ao treinamento prático de certas habilidades. No caso dos cursos jurídicos, essas competências estão ligadas às velhas disciplinas do trivium: compreender textos, argumentar e convencer. A formação dos profissionais especializados se dá por meio desse misto de estudos (que oferecem o conhecimento teórico necessário) com atividades de aprendizagem prática (que, conduzidas sob orientação, permitem o desenvolvimento de competências, ou seja, de capacidades relacionadas à realização adequada de um ofício).

Nas faculdades de direito, a maior parte dos esforços dos estudantes é dedicada justamente ao estudo: leitura de textos predefinidos, busca de referências e sistematização dos conhecimentos aprendidos. Tal estudo torna os estudantes mais eruditos, no sentido de que passamos a dominar um corpo de conhecimentos que fazem parte da cultura de um povo (ou de um grupo profissional determinado). É estudo a atividade que você realiza quando leem esse texto. Mesmo a busca de novas referências é também estudo: um exercício autônomo de estudo, que exige capacidades maiores do que a simples leitura dos textos indicados, e que gera resultados mais ricos, pois essa exploração gera contato com muitas ideias imprevisíveis.

Se dirigido de forma adequada, o estudo universitário pode formar estudantes mais autônomos, na medida em que os prepara para continuar a busca incessante de atualizar suas práticas, à luz do conhecimento disponível. Porém mesmo o ensino de melhor qualidade não é capaz de nos preparar para o exercício da produção de novos conhecimentos, pois não proporciona o desenvolvimento da competência específica dos pesquisadores, que é a de planejar e executar uma pesquisa.

A pesquisa começa onde o estudo encontra seus limites. Todo campo pode ser estudado, pois você sempre pode buscar os conhecimentos disponíveis acerca de qualquer temática:

  • Direito
  • Artes
  • Arquitetura
  • Astrologia
  • Mitologia grega
  • Pecados mortais segundo São Tomás de Aquino
  • Habilidades dos pokémons de tipo fogo

Todo objeto também admite alguma forma de pesquisa, na medida em que é possível buscar respostas para as perguntas que não são abrangidas pelo repertório de conhecimentos disponíveis. No mínimo, é possível fazer uma investigação para mapear e consolidar informações que não existem de forma organizada. Isso não quer dizer, contudo, que todo objeto de estudo pode ser objeto de pesquisa científica, pois esse é um tipo de investigação que opera de forma indutiva, a partir da observação de fatos.

A ciência é um discurso baseado na observação de fatos e os fatos são sempre singulares. O cientista acumula informações sobre fenômenos e busca identificar, nessas ocorrências, alguma espécie de padrão. Os padrões podem ser inferidos a partir dos fatos, mas eles não são, em si mesmos, fenômenos observáveis. Lembre-se do cachimbo de René Magritte:

René Magritte: 'La trahison des images'

Este quadro, de 1928, chamado A traição das imagens, é uma lembrança do fato de que a pintura de um cachimbo não é um cachimbo, mas uma pintura. O quadro, em si, é uma coisa, mas a coisa-quadro não é a coisa-cachimbo. De forma similar, a descrição de um padrão não pode ser confundida com um atributo dos objetos descritos: o padrão é sempre uma descrição, é sempre linguagem.

No caso do cachimbo, a distinção é mais fácil porque se trata de diferenciar uma coisa de um nome. Porém, no caso do direito (e de muitos fenômenos culturais), o objeto descrito já tem uma estrutura linguística. O processo não é uma coisa, no mesmo sentido de um cachimbo. O processo é um conjunto de textos, que relatam comportamentos humanos que se efetivam por meio da linguagem: tanto pedidos como decisões são enunciados linguísticos.

O processo é uma relação humana e os autos processuais são o relato dessas interações, de tal forma que o próprio objeto dos nossos estudos tem uma dimensão linguística inafastável (diferente dos cachimbos, das maçãs e dos planetas, que são coisas que existem fora da linguagem). Para sermos mais precisos, cada cachimbo, cada planeta e cada interação humana pode ser observada como um objeto concreto. Mas, quando falamos dos cachimbos em geral ('cachimbos são diferentes de piteiras') ou dos planetas em geral ('planetas são diferentes de estrelas'), não tratamos de um objeto concreto, mas de um objeto abstrato: uma categoria linguística.

Objetos empíricos (ou seja, coisas) podem ser observadas no mundo: Plutão, ADI 6666, a maçã que está à venda no mercado. Populações de objetos (planetas, processos, cachimbos) não existem empiricamente, mas são recortes arbitrários: elas não são coisas, mas são conjuntos. A Terra pertence ao conjunto dos planetas porque ela tem certas características que permitem subsumi-la à categoria "planeta".

Quando falamos das "características de um conjunto", estamos em um alto grau de abstração: não se trata de qualidades de objetos concretos, mas de qualidades médias (ou preponderantes, ou mínimas, etc.) de um certo conjunto abstrato. É nesse grau de abstração que nos encontramos quando fazemos perguntas simples como:

  • Qual é o tempo médio de julgamento de uma ADI?
  • Qual é o número médio de andamentos de uma ADI?
  • Qual é a idade média dos brasileiros?

A média de tempo de julgamento é um cálculo feito com base em uma série de observações particulares. O número médio de andamentos e a idade média dos brasileiros também. Toda média é uma abstração. Não existe um "brasileiro médio", com uma "idade média". O que existe é um número, calculado somando-se a idade de todos os brasileiros e dividindo-se esse valor pela quantidade de pessoas brasileiras.

O gráfico abaixo indica o número de andamentos das ADIs e ADPFs ajuizadas até 2020. O número médio de andamentos é 44,7, mas seria absurdo pensar essa descrição como se houvesse um "processo médio", que tivesse 44,7 andamentos, até porque a própria ideia de um andamento fracionário não faz sentido, exceto como uma abstração.

A leitura adequada desses dados mostra que a grande maioria dos processos está distribuída em uma faixa em torno da média, que chamamos de desvio padrão. 83,7% dos processos estão localizados nessa faixa de 1 desvio padrão acima ou abaixo da média, sendo que apenas 16,7% estão acima ou abaixo dessa faixa.

A média e o desvio padrão não são grandezas existentes, mas são conceitos. São medidas que nos ajudam a compreender como o número de andamentos (ou as idades, ou os tempos de tramitação) se distribuem dentro de uma determinada população.

Como podemos saber a média de idade de uma população? Isso somente pode ser descoberto por meio da observação da idade real de pessoas concretas. Nesse caso, você pode levantar dados com relação a cada uma das pessoas que compõem a população brasileira, uma abordagem tão cara e tão demorada que não se imagina que ela possa ser feita por um pesquisador de mestrado ou doutorado.

Não é por acaso que os censos somente são realizados no Brasil a cada dez anos. Além dessa abordagem censitária, também é possível uma estratégia amostral, que levante dados de uma parcela da população e, com base nela, faça inferências sobre a "idade média" da população como um todo. Tanto nas abordagens censitárias como nas amostrais, o que fazemos é observar vários elementos concretos para fazer inferências acerca das características gerais de uma população. Essa passagem de uma multiplicidade de conhecimentos sobre elementos singulares para um conhecimento geral é o que chamamos raciocínio indutivo (ou simplesmente indução).

O levantamento de dados acerca de cada brasileiro e brasileira não é indutivo nem dedutivo. Trata-se apenas de uma descrição de um objeto concreto, que não nos oferece conhecimento de natureza geral, ou seja, conhecimento sobre uma população. Quando essas observações concretas geram uma série de dados (sobre cada brasileiro), podemos fazer uma inferência acerca da população brasileira (que nós não observamos, pois nossas observações ocorreram no nível das pessoas).

O censo coleta dados sobre indivíduos, mas seu objetivo não é falar das pessoas concretas, e sim da população que elas formam. É esse salto do conhecimento sobre elementos particulares (informações sobre objetos concretos) para um conhecimento geral (sobre as crenças religiosas ou sobre a renda dos brasileiros em geral) que é a marca do raciocínio indutivo.

A pesquisa, em ciências sociais e naturais, é tipicamente um exercício de indução: as informações são coletadas no nível dos objetos concretos, mas o conhecimento é produzido em um nível abstrato. Para construir a categoria abstrata de "eficácia vacinal", a medicina avalia a reação de uma série de pessoas a uma vacina. A psicologia avalia uma série de comportamentos individuais para afirmar, de modo genérico, que os humanos têm um "viés de confirmação" ou que atuam em diversos graus de "dissonância cognitiva".

A produção de novos saberes (ou a revisão de velhas ideias) exige essa confrontação com os fatos, pois as ciências naturais e sociais são discursos acerca de elementos empiricamente observáveis. Uma vez que nossas pesquisas indutivas nos ofereceram uma descrição suficientemente rica sobre os objetos que compõem uma população, podemos fazer inferências relevantes sobre essas populações de pessoas (os brasileiros), de processos (as ADIs), de fenômenos (como a fusão nuclear).

Tais descrições gerais nem sempre são úteis de forma isolada. A média de idade da população brasileira em 2021 pode não nos dizer muita coisa, mas a comparação desta média com a que existia em 2019 pode nos oferecer elementos para avaliar o impacto real da pandemia de Covid-19. Quando analisamos séries históricas de idades, podemos projetar uma expectativa de vida para as pessoas, que é uma informação relevante para diversas dinâmicas sociais, como a definição das idades para a aposentadoria.

Esse fato nos diz algo de relevante sobre o conhecimento científico: ele somente se torna relevante quando temos um conhecimento muito amplo, sobre muitas coisas, para podermos testar se os padrões que nossa intuição nos indica são efetivamente confirmados pelos dados observados. Quando temos poucas informações, o senso comum nos oferece respostas plausíveis, e a ciência não nos oferece nada.

No início da pandemia de Covid-19, a ausência de pesquisas sólidas fazia com que os médicos tivessem de tomar decisões baseadas em sua experiência e sua intuição. Naquele momento, vários tratamentos foram testados, e alguns deles pareceram ter bons resultados. O que a pesquisa científica nos oferece é uma estratégia rigorosa para testar essas intuições e verificar se elas são compatíveis com os dados observados (diretamente ou por meio de experimentos controlados). A sistematicidade, caracterizada pela existência de regras e métodos que orientam sua realização, também serve de critério diferenciador da pesquisa em relação aos simples estudos, que não necessariamente são guiados por parâmetros que possam atestar sua qualidade.

As pesquisas demandam tempo e investimento, e nos oferecem resultados mais confiáveis. Mais do que isso: são necessárias múltiplas pesquisas para que esses dados possam ser cruzados e possamos identificar padrões nos fatos suficientemente sólidos para que os resultados desse conhecimento sejam mais eficazes que a intuição de um médico experiente e as deduções que ele consegue fazer, a partir do conhecimento disponível.

Aqui entramos no raciocínio dedutivo: dado que temos um repertório de saberes de caráter geral sobre doenças (sobre patologias virais, sobre complicações pulmonares, sobre transmissibilidade de patógenos, sobre respostas imunológicas), um médico pode fazer inferências acerca dos melhores diagnósticos e tratamentos de um caso particular. Esse conjunto de conhecimentos gerais (ou seja, conhecimentos sobre populações de objetos) permite que um clínico trace estratégias plausíveis para a solução de uma situação concreta.

A formação de um médico consiste em dar a uma pessoa acesso a esse repertório de conhecimentos (tanto científicos como de senso comum) e em submetê-la a vivências que permitam desenvolver as capacidades de observar situações concretas com cuidado, identificar nelas os padrões que foram descritos na literatura médica e formular estratégias de enfrentamento adequado das patologias.

A clínica médica é um exercício dedutivo: buscam-se soluções particulares, a partir de conhecimentos gerais. A prática jurídica também é dedutiva: parte-se de uma cultura jurídica e de pesquisas científicas, com o objetivo de viabilizar que os profissionais do direito façam escolhas acerca da forma mais acertada de apresentar solicitações e de decidir questões.

A maior parte da formação dos juristas, assim como dos médicos e engenheiros, consiste na capacitação das pessoas para o exercício eficiente dessa prática dedutiva. Esses profissionais são altamente capacitados para analisar situações particulares complexas e oferecer soluções adequadas, a partir do repertório de conhecimentos disponíveis. No caso do direito, esse repertório é o que chamamos de dogmática jurídica: um conjunto de parâmetros que viabiliza o exercício de atividades jurídicas como se fossem uma prática dedutiva, que extraia conclusões particulares a partir de certas proposições de caráter geral.

3. A formação dos juristas

3.1 A reprodução dos saberes tradicionais

Os cursos jurídicos têm como foco a formação de pessoas capacitadas para o exercício das profissões mais típicas do campo do direito (a magistratura e as várias espécies de advocacia), dedicando normalmente um tempo marginal para a formação de pesquisadores. O exercício dessas profissões tem como base a habilidade de produzir teses jurídicas, ou seja, posicionamentos devidamente justificados acerca dos direitos e deveres que as pessoas têm em determinadas situações. Como bem identificou Marcos Nobre, o exercício dessa habilidade se dá por meio da formulação de pareceres, ou seja, de opiniões fundamentadas e que têm por função convencer um determinado auditório acerca da correção de uma tese (Nobre, 2009).

Ao longo de vários anos de formação profissional, os juristas aprendem a dominar um discurso dogmático que regula a produção social de tais pareceres. Aprendem a analisar os casos, a conhecer e interpretar as normas e os precedentes, a formular contratos, petições e sentenças que sejam percebidos pelos demais juristas como adequados. Um jurista competente é um técnico especializado na produção de pareceres adequados, sendo que o critério da adequação do parecer é retórico: um bom parecer é capaz de convencer o auditório a que se dirige, influenciando o comportamento dos outros atores envolvidos em um processo.

A academia jurídica é tradicionalmente um dos lugares em que o saber acerca da formulação de tais pareceres é reproduzido, o que leva a uma comunicação direta entre o prestígio acadêmico e o prestígio jurídico-profissional. O jurista que desempenha papel docente normalmente tem o seu prestígio profissional ampliado pelo reconhecimento de seu papel acadêmico. Os títulos acadêmicos normalmente são vistos como um signo de status profissional.

Um advogado que se apresenta como professor de uma universidade, ou como mestre em direito, tem o seu prestígio profissional reforçado. Em todos esses campos, o prestígio profissional é reforçado pelo desempenho de uma função acadêmica, que sugere uma capacidade profissional especialmente desenvolvida. Nesses campos, é natural que os profissionais se sintam estimulados a desempenhar uma função docente, que é vista como um signo de status. Essa peculiaridade faz com que seja bastante comum que profissionais reconhecidos no campo jurídico sejam também professores universitários e autores dos livros sobre o direito.

O mesmo não ocorre com um político que conclui um doutorado em ciência política, nem com um clérigo que se torna professor de sociologia da religião. Isso acontece porque, em campos mais ligados à ciência, o tipo de habilidade necessária ao exercício acadêmico é muito distante das capacidades ligadas ao exercício profissional. Um político de prestígio pode ter muitos votos e muita influência, mas não existe nenhuma expectativa de que ele seja versado em ciência política. Um sociólogo da religião pode ter um grande prestígio científico, e nenhum prestígio religioso. O discurso acadêmico dos cientistas, nesses casos e em outros, não se confunde com os discursos que o pesquisador estuda.

Já no direito, o mesmo tipo de discurso é desenvolvido tradicionalmente tanto pelos juristas acadêmicos como pelos operadores do direito: ambos produzem pareceres sobre os direitos que as pessoas têm. A função tradicional da academia jurídica é a de oferecer formação profissional, e essa formação é proporcionada normalmente por especialistas no exercício desse discurso, e não por cientistas que estudam os comportamentos dos juristas. Já na ciência política e na sociologia, tal como na física e na biologia, os cursos de bacharelado são voltados a formar pesquisadores.

Todavia, esse é um cenário que tem se modificado rapidamente nos últimos anos. Em especial, existe uma tendência muito clara a que o prestígio jurídico de atores com grande projeção no campo profissional (promotores, advogados, ministros) não tenham nenhuma projeção acadêmica. Esse fenômeno parece estar bastante ligado ao fato de que, desde o final dos anos 1990, o sistema de pós-graduação em direito tem sido avaliado em função da produção científica, o que gerou uma pressão muito grande para que o perfil dos professores fosse gradualmente alterado, com valorização crescente das atividades de pesquisa.

A UnB da década de 1990 era um lugar de juristas experientes, que atuavam na prática judicial e eram também professores. Tratava-se de um ambiente de grande erudição, com professores bastante cultos, mas de um local em que praticamente inexistia pesquisa científica. Tanto na graduação quanto na pós-graduação, o objetivo era a realização de estudos (e não de pesquisa) e a capacitação para a produção de pareceres complexos. Exemplo dessa mentalidade foi o fato de que, em 1997, a minha disciplina de metodologia científica no mestrado em direito da UnB foi voltada apenas à produção de comentários a acórdãos. Hoje, a situação é bastante diversa, pois se espera que todos os professores sejam capazes de produzir (e orientar) pesquisas, tanto no nível de graduação como de pós-graduação.

Essa mudança tem sido profunda nas universidades, pois os professores deixaram de ser tipicamente profissionais que ensinam sobre sua prática e reproduzem os conhecimentos do campo, e cada vez mais têm se tornado pesquisadores que ensinam sobre os seus objetos de pesquisa. O espaço para os docentes exclusivamente ligados à prática profissional está cada vez mais restrito aos núcleos de prática jurídica, e rapidamente se amplia a distância entre o prestígio acadêmico e o prestígio profissional.

Essa mudança não decorre apenas de uma alteração da estrutura universitária e do próprio sentido da pós-graduação. Ela decorre também de um certo esgotamento do saber jurídico tradicional, que ainda é o mais ensinado nas faculdades e cobrado nos concursos públicos. A função prática dos juristas sempre foi a de oferecer respostas aos dilemas que envolvem os direitos e deveres, e essa capacidade tradicionalmente esteve ligada a uma combinação de habilidades retórico-argumentativas e de conhecimento do campo, que nos últimos 200 anos tem sido primordialmente o domínio do conteúdo dos atos legislativos.

Embora as habilidades do trivium (retórica, gramática e dialética) permaneçam altamente relevantes, as habilidades de memorização, que eram centrais para a atividade dos juristas até a década de 1990, perderam espaço considerável na vida dos juristas. Na década de 1980, uma parte muito relevante do conhecimento jurídico era saber de cor o conteúdo das leis, dos precedentes relevantes, dos artigos do código, pois a memória era o instrumento mais eficaz para encontrar referências que subsidiassem as nossas teses. Infelizmente, esse tipo de memorização perdura como sendo a principal habilidade ensinada nas faculdades e cobrada nos concursos públicos da área jurídica, como se estivéssemos 30 anos atrás.

Em 1988, quando a atual constituição brasileira foi promulgada, não havia internet, telefones celulares, “pesquisas” no Google, legislação publicada digitalmente ou “pesquisa” informatizada de jurisprudência. Um smartphone com capacidade de pesquisar imediatamente todas as leis do país era um objeto tão fora do horizonte da imaginação daquela época que somente aparecia na ficção científica juntamente com naves interestelares e teletransporte. O conhecimento jurídico atual é baseado na nossa capacidade de utilizar ferramentas de informática para encontrar subsídios para formular as nossas teses. Encontrar as informações legislativas e jurisprudenciais não é mais o grande desafio dos juristas, e sim processar de maneira adequada o imenso conjunto de informações que se encontram disponíveis.

Tanto hoje como em 1988, ninguém é capaz de conhecer o texto de todas as leis do país ou de todas as decisões judiciais. Se hoje enfrentamos essa dificuldade com aprimorados mecanismos de busca (ou seja, com máquinas), naquela época tínhamos de enfrentar essa dificuldade com outros tipos de artefatos: tínhamos mapas que nos auxiliavam, e esses mapas eram construídos pela doutrina.

A função social da doutrina era justamente a de sistematizar o direito, tornando possível apreendê-lo em alguns anos de estudo. Não era preciso saber todas as leis porque os estudantes de direito podiam contar com o fato de que a leitura de um conjunto relativamente pequeno de textos (os manuais) seria capaz de oferecer um mapa de cada campo do direito, explicando não apenas os conceitos, mas também o conteúdo das normas. Ninguém nunca foi capaz de conhecer todas as normas, e por isso o conhecimento jurídico dependia de uma sistematização doutrinária do direito, que reduzisse o que se precisava saber a certo número de livros que, se fossem lidos e memorizados, seriam garantia de um conhecimento suficiente para operar o direito

A academia jurídica era justamente o lugar onde esses mapas eram elaborados, por docentes preocupados em oferecer para seus estudantes uma sistematização adequada do conhecimento jurídico. Esse primado da doutrina acabou já faz algum tempo, quando os sistemas de informática nos permitiram consultar diretamente as decisões. Em 1988, era muito difícil conhecer um precedente que não fosse descrito em um livro doutrinário, incluindo aí os repertórios de legislação comentada.

Por um lado, as mudanças tecnológicas induziram um declínio da importância dos autores de manuais, que não gozam mais da centralidade que tinham na cultura jurídica nem na formulação dos discursos práticos, que cada vez mais utilizam referências diretas à jurisprudência, não mediadas pelos livros doutrinários. Por outro lado, esse novo cenário criou novas necessidades e novos desafios para os juristas: a capacidade de lidar com a multiplicidade de precedentes, com a falta de sistematicidade dos posicionamentos dos tribunais e com a imprevisibilidade das decisões relativas a um caso concreto.

Os juristas ainda precisam de mapas, mas eles precisam também de novas técnicas cartográficas. A elaboração dessas novas cartografias exige justamente a produção de um conhecimento novo, que observe com cuidado o comportamento judicial efetivo, os padrões decisórios reais e as distâncias existentes entre o que é dito e o que é feito pelos nossos juízes e tribunais. Essas novas cartografias exigem, portanto, habilidades de pesquisa empírica.

Não basta mais aos juristas lerem os livros de doutrina e escreverem suas opiniões com base nesses modelos, pois essa não é a forma efetiva de articulação dos saberes e das práticas do direito contemporâneo. Esses argumentos tradicionais ainda têm relevância, mas são guias relativamente limitados para a prática judicial e advocatícia nos dias de hoje.

Devemos reconhecer, inclusive, que as próprias habilidades retóricas têm um papel crescentemente reduzido, na medida em que as decisões são cada vez mais padronizadas, o que as torna cada vez menos influenciáveis pela capacidade argumentativa dos advogados. Não temos um cenário no qual os tribunais julgam um número pequeno de causas de alto valor agregado, mas um contexto em que a ampliação do acesso à justiça fez com que a litigância se encontre espalhada por uma infinidade de casos de pequeno valor, que inundam os tribunais com problemas repetitivos, a ponto de alterar substancialmente as estratégias tanto de peticionamento como de julgamento.

Nas últimas décadas, a comunidade jurídica brasileira experimentou várias estratégias voltadas a solucionar populações de processos com uma mesma decisão (em vez de decidir cada caso isoladamente), a selecionar as controvérsias que serão julgadas e se transformarão em paradigmas, a tornar mais abstratas as questões enfrentadas (em vez de analisar as peculiaridades do caso concreto) e a gerar precedentes estáveis e vinculantes.

Todas essas mudanças exigem uma renovação nas capacidades dos juristas de analisar os padrões decisórios efetivos e as consequências que uma decisão tem para além das relações entre as partes. Nesses novos contextos, ganhou centralidade uma habilidade que não é a usual dos juristas tradicionais: a capacidade de fazer pesquisas empíricas, que observem os padrões efetivos das interações sociais ligadas ao direito. Para o enfrentamento dos desafios jurídicos atuais, não basta mais uma habilidade hermenêutica e interpretativa.

Precisamos de novos instrumentos analíticos, que permitam ao judiciário gerar sistemas estáveis, de decisões replicáveis e capazes de gerar consequências sociais adequadas. E os advogados precisam de conhecimentos que lhes permitam prever a atuação judicial e, com isso, interferir nos processos decisórios de maneira efetiva. Esse tipo de atuação, no judiciário e fora dele, exige um conhecimento mais preciso do direito, uma identificação mais clara das práticas judiciais e dos impactos sociais das decisões.

Em resumo, mesmo a produção dos discursos jurídicos típicos (ou seja, dos pareceres) já não exige mais apenas as habilidades retóricas e hermenêuticas que marcaram a atuação jurídica do século XX, pois também exigem um conhecimento mais preciso dos fatos, que somente pode ser alcançado pela pesquisa. Com isso, alterou-se substancialmente o tipo de habilidade que precisa ser ensinada aos estudantes de direito, para exercerem adequadamente as suas funções sociais.

3.2 A produção de novos saberes

Na maior parte das disciplinas científicas, a produção acadêmica envolve pesquisas empíricas que são publicadas na forma de artigos em periódicos especializados. Essas pesquisas, como veremos adiante, podem adotar abordagens qualitativas (em que são interpretadas descrições feitas em termos de atributos qualitativos) ou quantitativas (nas quais a interpretação incide sobre descrições baseadas em quantificações).

No campo do direito, para além dos pareceres dogmáticos, predominam análises qualitativas sobre objetos documentais, especialmente sobre decisões judiciais, na busca de compreender padrões argumentativos (focados nas argumentações) ou identificar padrões fáticos (focados nos comportamentos). Porém, são cada vez mais utilizadas abordagens quantitativas, que se baseiam na medição numérica e na análise estatística para identificar regularidades e relações causais.

Em toda área, existem também ensaios teóricos, nos quais o pesquisador busca avaliar em que medida as categorias teóricas existentes são capazes de lidar adequadamente com os resultados empíricos das pesquisas. Se as observações empíricas acerca do universo estão em choque com os modelos conceituais hegemônicos, é preciso ajustar os modelos para existir uma correspondência adequada entre teoria e empiria.

No campo do direito, não é bem isso o que acontece porque a teoria jurídica não constitui um modelo explicativo do mundo empírico, e sim um modelo normativo voltado a orientar o exercício de uma atividade prática. Melhor dizendo: é possível desenvolver modelos explicativos sobre os fenômenos jurídicos, mas o desenvolvimento de tais modelos não é o papel típico dos juristas. O discurso típico dos juristas é dogmático, e não científico: trata-se de dimensionar as consequências normativas de certas situações e não de avaliar as causas e consequências fáticas de tais situações.

Para poder atribuir consequências normativas a certos fatos, o jurista precisa partir da ideia de que (i) existe uma ordem jurídica que atribui consequências normativas válidas aos fatos jurídicos e que (ii) os juristas são capazes de identificá-las por meio de uma forma de reflexão analítica. Os juristas são treinados para confiar em sua capacidade de determinar consequências válidas para os fatos que lhes cabe analisar. No âmbito dos sistemas jurídicos modernos, não lhes é dado reconhecer que (i) o sistema é impreciso e que, por isso, (ii) não é possível extrair soluções seguras para muitas situações.

O problema central do direito é a decisão, e essa exigência tem impactos profundos sobre a prática jurídica e sobre a teoria que orienta essa prática. As decisões sempre operam sobre situações concretas, e é por isso que as perguntas tipicamente respondidas pela prática jurídica são acerca das consequências normativas de certos fatos. Nesse contexto, o problema da interpretação (no sentido de conhecer o sentido das normas) somente aflora como parte de uma estratégia decisória: a decisão implica a adoção de certos significados, e o interesse na interpretação de textos é sempre ligado ao modo como essas interpretações podem condicionar processos decisórios.

A dogmática jurídica envolve um discurso teórico, mas se trata de um conhecer para decidir. Não escolhemos os conceitos jurídicos conflitantes em virtude de sua correspondência com os fatos, mas em virtude das estruturas decisórias que eles condicionam (ou seja, das consequências normativas implícitas nos modelos teóricos utilizados). Portanto, a escolha entre modelos jurídicos conflitantes (como o naturalismo e o positivismo, por exemplo) tem uma dimensão fundamentalmente política: adotamos os modelos teóricos cujas consequências práticas consideramos mais legítimas. Com isso, a escolha do modelo jurídico (ou seja, do repertório de conceitos utilizado pelos juristas) decorre de uma análise de sua legitimidade (correspondência entre práticas e certos valores) e não de sua veracidade (correspondência entre enunciados e fatos empíricos).

De fato, esse primado da legitimidade sobre a verdade ocorreria se o direito fosse uma questão de escolha individual, como é atualmente o caso da religião. Uma pessoa adota ou não certo discurso religioso a partir de suas convicções pessoais, de seus valores, e não de um critério objetivo de comprovação empírica. Uma tal liberdade pode ocorrer no campo da academia, na qual um pesquisador pode adotar os marcos teóricos de sua preferência pessoal.

Porém, para a prática jurídica, especialmente dos advogados, essa questão política vem combinada com um problema estratégico: não existe grande liberdade para utilizar publicamente os modelos jurídicos considerados mais legítimos porque a atividade jurídica envolve a interação entre vários atores. Com isso, por maior que seja a liberdade de escolha dos modelos que a pessoa utilizará para compreender o direito, a escolha dos repertórios de conceitos utilizados na composição das peças processuais é sempre movida por imperativos de estratégia retórica: os juristas precisam elaborar discursos públicos com base em argumentos capazes de promover uma persuasão retórica.

É justamente esse o ponto em que o caráter dogmático do discurso jurídico passa a ter uma conexão muito direta com os elementos empíricos: o potencial retórico de um argumento é uma questão de fato, não é uma questão de direito. Um bom advogado, portanto, precisa saber manejar o discurso dogmático, mas precisa operar uma série de escolhas retóricas que envolvem um conhecimento profundo sobre os fatos.

Enquanto a dogmática indica como os tribunais deveriam decidir, somente pesquisas empíricas são capazes de identificar como os tribunais efetivamente decidem. Em certos momentos históricos, pode ser que a argumentação dogmática constitua, de fato, o expediente retórico mais eficaz para os advogados. Quando isso acontece, ganham força as teorias legalistas da atividade judicial, baseadas na suposição de que os magistrados decidem a partir dos critérios definidos pela dogmática jurídica prevalecente.

Existem outros momentos, porém, em que os magistrados utilizam o discurso dogmático apenas como mecanismo para conferir uma forma jurídica para decisões fundamentalmente políticas. Nesses casos, a aplicação de teorias legalistas tem pouca capacidade explicativa, sendo mais razoável descrever as decisões jurídicas em termos de ideologia política ou de estratégias individuais.

Há vários indícios de que vivemos em um momento desse segundo tipo, no qual muitas vezes os argumentos dogmáticos são apenas uma cortina de fumaça. Nesses contextos, existe uma possibilidade grande de que advogados com formação legalista tenham baixos índices de eficiência, pois a utilização de argumentos dogmáticos pode não ser suficiente para promover a persuasão dos magistrados.

Mas pode ser que essa própria percepção seja enganosa. Os juízes podem ser individualmente ideológicos, mas talvez a sua atuação colegiada possa garantir que as teorias legalistas continuem sendo os modelos mais eficientes de explicação. Talvez os juízes sejam individualmente engajados na tentativa de garantir a segurança jurídica por meio de decisões compatíveis com a dogmática vigente. Talvez os argumentos dogmáticos sejam mais capazes de gerar prestígio para os magistrados. Talvez a combinação das preferências de vários juízes termine conduzindo os tribunais a interpretações que podem ser compreendidas adequadamente como uma tentativa de aplicar um direito impessoal.

De fato, não sabemos com muita precisão como funcionam as cortes, qual é o impacto real dos argumentos e quais são as consequências de nossas escolhas institucionais. Não sabemos precisar quais serão os resultados das modificações que são propostas, a cada momento, para reformar os sistemas de justiça. O fato de que o desenvolvimento de pesquisas sobre a área jurídica está em um nível muito inicial faz com que não tenhamos clareza sobre os possíveis impactos dessas pesquisas, nem sobre se chegaremos a um ponto no qual elas serão capazes de oferecer diretrizes melhores que as intuições de juristas bem formados no discurso dogmático.

Essas respostas somente poderão ser dadas quando avançarmos, e muito, numa série de agendas de pesquisa. Precisamos desenvolver categorias analíticas adequadas, precisamos adaptar as metodologias disponíveis para serem capazes de gerar conclusões relevantes para o campo jurídico, com seus ritmos próprios, sua cultura particular e seus regimes de autoridade. Estamos longe da capacidade de produzir conhecimento jurídico de alto impacto na prática judicial, mas, quando esse ponto chegar, a atividade prática dos juristas será profundamente alterada. Embora esse horizonte de mudança não esteja no curto prazo, é bem possível que essas pesquisas ganhem densidade e impacto ao longo da próxima década, de forma que os conhecimentos desenvolvidos hoje podem modificar substancialmente o panorama jurídico da próxima geração de juristas.

Em suma, não defendemos que os juristas práticos devem se transformar em pesquisadores, tal como o movimento da medicina baseada em evidências não converteu os clínicos em cientistas. Todavia, deve fazer parte da formação dos juristas a capacitação mínima na produção de novos conhecimentos e, principalmente, na avaliação da solidez dos conhecimentos produzidos pelos investigadores.

Tal como todo médico clínico precisa saber o suficiente sobre pesquisas para se tornar capaz de incorporá-las à sua prática, os juristas também precisam adquirir essa competência, que é gerada por meio do desenvolvimento de um conhecimento básico acerca das atividades científicas (abordagens, metodologias, limites, etc.) e por um treinamento mínimo na sua execução, que são justamente os objetivos fundamentais do presente curso de Metodologia de Pesquisa em Direito.

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