1. Ciência e ordem natural

1.1 A invenção linguística da ordem

Quando observamos os fenômenos que ocorrem no mundo, eles são percebidos como objetos ou acontecimentos singulares, radicalmente individuais e transitórios. Cada pôr-do-sol é único, cada árvore é distinta de todas as outras, cada pessoa tem uma vida singular. Porém, quando observamos vários dias, várias árvores e várias pessoas, somos capazes de perceber que, além das qualidades próprias de cada elemento particular, existem traços comuns, atributos compartilhados e transformações semelhantes.

Nosso cérebro opera por meio da identificação dessas regularidades entre nossas várias percepções (Nicolelis, 2020), o que faz com que possamos considerá-lo como uma máquina de identificação de padrões (Sparkes, 1969). Não se trata simplesmente de que observamos muitos objetos singulares e arquivamos suas descrições em nossa memória, para depois tentar encontrar regularidades nesse conjunto de informações. Nossa atividade cortical envolve, em cada momento, a integração de cada percepção com todas as nossas memórias, de modo que nunca analisamos propriamente um evento singular: estamos constantemente estabelecendo relações, pois o processamento cerebral é realizado a partir da integração de perceptos particulares no sistema formado por todo o nosso conhecimento (Mattson, 2014).

Não se trata apenas de comparar percepções entre si (cores, formatos, tamanhos, etc.), mas também de comparar os efeitos emocionais que elas desencadearam em nosso sistema nervoso (espanto, medo, curiosidade, etc.) e com as descrições linguísticas que fazemos delas, usando as categorias classificatórias que as linguagens abstratas nos fornecem. O fato de que cada nova percepção desencadeia um processamento cerebral complexo faz com que os impactos cerebrais de nossa experiência sejam muito ricos, em termos de possíveis relações com a nossa memória perceptual, afetiva e linguística.

Esse eterno cotejo das novas percepções com a complexidade de nossas memórias faz com que nossa atividade cerebral processe cada objeto simultaneamente como uma entidade singular, definida pelo modo como ela impacta nosso sistema sensorial, e também como uma ocorrência particular de um gênero de objetos ou acontecimentos, que desencadearam em nós reações semelhantes. Cada árvore que observamos é percebida simultaneamente como um vegetal particular e também como uma das milhares de ocorrências do “padrão árvore”, o que nos permite projetar que aquela entidade singular se comportará de forma semelhante às outras que observamos ao longo do tempo.

Essa forma de operação cerebral tem impacto direto em nossas linguagens, que descrevem os objetos (o ipê do meu jardim, um certo plátano dos Jardins de Luxemburgo, uma paineira na península de Yucatán) a partir de categorias abstratas, como árvore, estrela ou pássaro. A manipulação linguística dessas categorias (que não são nomes de objetos concretos, mas de classes de objetos), nos permite criar explicações abrangentes, a partir das regularidades que identificamos nos fenômenos. Com isso, nossa atividade cortical permite o desenvolvimento e a comunicação de conhecimentos sobre as árvores em geral, sobre os pássaros em geral, sobre os dias em geral. Além disso, a combinação de nossas capacidades linguísticas com nossa memória de longo prazo permite que esses conhecimentos sejam acumulados e ensinados, o que faz com que os seres humanos sejam capazes de uma complexidade cultural ímpar em nosso planeta.

A compreensão dessa articulação entre singularidade e generalidade é fundamental para entender os vários tipos de conhecimento que podemos produzir. Nossos sentidos somente são capazes de perceber objetos concretos, radicalmente individuais: uma árvore, um salto, um acidente. Contudo, essas percepções particulares são processadas em nosso córtex a partir da semelhança dos processos cerebrais que elas desencadeiam, o que gera um cotejo incessante entre atributos do objeto concreto e qualidades dos conjuntos de objetos que integram um mesmo padrão. Esse tipo de comparação faz com que nossas habilidades linguísticas nos permitam descrever objetos particulares em termos de sua inserção em categorias linguísticas que refletem tais padrões.

Tal operação nos permite descrever nossas percepções por meio de enunciados como: eu vi uma arara e ela era azul. Essa frase fala de uma experiência vivida (eu vi) e atribui uma qualidade geral (ser azul) a um objeto determinado (a arara que eu vi).

Analisamos a veracidade desse tipo de enunciado linguístico por meio de uma avaliação de correspondência. Talvez eu não tenha visto uma arara, e eu esteja mentindo deliberadamente sobre as minhas experiências. Talvez eu tenha visto uma arara vermelha, e esteja mentindo sobre a sua cor. Muitas vezes faltamos deliberadamente com a verdade, para impressionar ou enganar nossos interlocutores, e isso tipicamente ocorre mediantes a enunciação intencional de descrições que não correspondem aos objetos ou às situações observadas.

Outras vezes, trata-se de falsidades não intencionais. Quando contamos histórias antigas, não nos lembramos exatamente dos fatos vividos, e podemos acessar memórias que não correspondem aos fatos. Posso me lembrar de ter visto uma arara azul, e me surpreender ao ver uma foto daquele dia, provando que o pássaro era vermelho. Também posso lembrar de ter visto uma arara, mas depois descobrir que meu cérebro misturou eventos diversos, e que eu só tenha visto esse tipo de pássaro em vídeos ou em sonhos. A memória prega peças, e por vezes fazemos afirmações sinceras acerca de eventos inexistentes. Continuamos aqui com uma noção de falsidade pro falta de correspondência, mesmo que não se trate de uma mentira intencional.

Porém, a veracidade das afirmações pode ser questionada a partir de outros elementos da linguagem. Talvez eu tenha observado uma arara que eu descrevi como azul, mas que se trata de uma canindé, que é azul e amarela. Será que é verdadeiro afirmar que eu vi uma arara azul, sendo que ela era azul e amarela? Por um lado, parece que sim, pois ela era preponderantemente azul. Por outro lado, seria estranho eu falar que vi um quadro verde de Monet, para indicar que eu mirei alguma tela que retratava seu jardim. Essa comparação talvez não seja adequada, pois quando falamos de “quadros azuis”, tipicamente nos referimos a telas monocromáticas, enquanto tratar um pássaro como azul normalmente indique apenas sua cor preponderante. Esse tipo de dificuldade não se relaciona com uma falta de correspondência, intencional ou não, mas com uma indeterminação no sentido do enunciado: o que significa afirmar que um pássaro é azul?

Também poderia ocorrer de eu ter visto o mesmo pássaro e ter dito a frase: eu vi um papagaio azul. Nesse caso, a frase poderia ser falsa porque os papagaios são todos verdes. Embora araras e papagaios façam parte da mesma família (psitacídeos), eles integram gêneros diferentes, de tal forma que parece um equívoco classificatório chamar uma arara de papagaio. Esse tipo de falsidade não aponta para o pássaro enquanto entidade singular, mas para as nossas possibilidades de classificá-los como parte de um determinado conjunto, que têm atributos comuns.

Toda vez que falamos de araras ou papagaios, utilizamos conceitos que envolvem classificações. A formulação de descrições linguísticas envolve a mobilização de um saber classificatório, que é propriamente linguístico: não se trata de informações sobre os objetos empíricos, mas de um conhecimento acerca das categorias linguísticas que utilizamos para fazer descrições: papagaio, arara, planeta, azul, voar.

Toda categoria é abstrata, pois elas somente existem como generalizações linguísticas. Há muitos papagaios no mundo, mas a categoria “papagaio” é somente um nome, que usamos para formular enunciados e que somente temos capacidade de reconhecer por causa das formas próprias de nosso processamento cortical. Não existe, na ordem dos próprios fenômenos observados, um conceito de papagaio, de arara ou de azul. Tais categorias se formam na história de uma cultura, decorrendo dos costumes classificatórios que se cristalizam em uma comunidade de falantes.

Uma vez que constituímos uma comunidade linguística que compartilha uma mesmo código, por ter sido socializada em contato com ele, podemos mobilizar as suas categorias e estruturas para produzir uma série de descrições acerca do mundo, que somente serão compreensíveis pelas pessoas que observam a realidade a partir das categorias classificatórias compartilhadas.

A capacidade de comunicação permite que as pessoas dialoguem e troquem impressões, fazendo circular saberes sobre estratégias de caça, sobre rituais de purificação e sobre os deveres dos filhos perante os pais. Também produzimos enunciados compreensíveis sobre demônios, unicórnios e espíritos. Para todo objeto do qual podemos falar, existente ou não no mundo, os seres humanos podem desenvolver narrativas que um determinado grupo entende como verdadeiras. Neste ponto, usamos não usamos veracidade para apontar uma correspondência efetiva entre descrições e fenômenos descritos, mas como uma indicação de que certas afirmações podem ser reconhecidas como corretas.

No caso das descrições sobre fenômenos observáveis, tais afirmações podem ser empiricamente testadas. Uma vez que essas afirmações sejam recorrentemente confirmadas pelas nossas observações, nossa tendência não é a de acreditar que se trata de classificações eficientes, mas de uma descrição objetivamente verdadeira do modo como as coisas são. Isso ocorre porque a operação normal de nossas linguagens parte do pressuposto implícito de que, ao produzir enunciados sobre o mundo, estamos falando não apenas de objetos concretos que existem, mas de categorias e relações que também têm existência própria. Nossa linguagem comum não permite diferenciar os modos de existir de um ser humano particular, do “padrão humano” que usamos para diferenciá-lo de outros animais ou das finalidades que atribuímos aos animais que são dotados de humanidade.

Como nossas línguas nos permitem falar de quaisquer classes de objetos (coisas, relações, ações, acontecimentos), terminamos sendo capazes de tratar categorias abstratas como se elas fossem objetos concretos. Este me parece ser o ponto crucial a ser percebido: a linguagem abstrata dos seres humanos permite que falemos de nossas categorias classificatórias como se elas fossem objetos empiricamente observáveis.

A principal dessas categorias é a relação de causa e consequência. Devemos a Hume a clara percepção de que nunca observamos empiricamente a causalidade, pois o que nossos sentidos nos mostram é apenas a sequência recorrente de certos fenômenos. Causalidade não é um objeto empírico, mas uma forma linguística de relacionar certos objetos, afirmando que existe uma ligação entre eles que é invisível, mas que pode ser percebida por meio da observação dos seus resultados. O mesmo podemos dizer da intencionalidade: nunca vemos os desejos das pessoas, mas explicamos a suas ações em função das intenções que lhes atribuímos.

O desenvolvimento da linguagem nos permite explicar o mundo como uma rede de fenômenos que se relacionam por laços invisíveis, mas absolutamente reais. Nossa capacidade de formular discursos nos possibilita descrever as relações entre objetos (causalidade, intencionalidade, finalidade, etc.) como entidades tão existentes como os próprios objetos descritos. Em nossas culturas, a existência de entes abstratos (almas, causas e normas) não é entendida como uma propriedade diversa da existência de entes concretos (como árvores, crianças ou vulcões). Essa unicidade do atributo “existir” faz com que nossas culturas realizem uma espécie de “ontologização das relações”, que nos leva a tratar nossas categorias linguísticas abstratas como se designassem seres concretos (ontos é ser em grego) como entidades existentes no mundo, em vez de reconhecê-las como categorias linguísticas.

Essa operação termina por nos fazer enxergar o mundo como uma série de objetos concretos, que percebemos sensorialmente, mas que somente se tornam compreensíveis na medida em que admitimos que eles seguem uma ordem abstrata e necessária de relações, que inferimos por meio de nosso intelecto. Dentro de nossas linguagens, a ordem abstrata subjacente aos fenômenos não aparece como menos real do que os objetos concretos que ela regula. Justamente pelo contrário: nossas culturas tendem a reconhecer na ordem abstrata uma espécie primeira e mais elevada de realidade, dado que ela constitui uma espécie de realidade primeira, que serve como fundamento para a existência dos próprios objetos empíricos.

Essa ordem natural imanente foi compreendida de modos diferentes pelas diversas culturas: o cosmos dos gregos, o tao dos chineses e o dharma dos indianos são conceitos que apontam (cada um à sua maneira) para a existência de uma ordem que não enxergamos, mas cuja existência devemos ser capazes de reconhecer. Tal ordem não se limita a estabelecer interações regulares entre os fenômenos. Ela define os papéis que devem ser desempenhados por cada um dos seres: cada animal, cada planta e cada pessoa tem um lugar definido. Quem vive conforme a ordem, pratica ações justas e pode encontrar felicidade, pode ter uma vida completa, pode ter o benefício dos deuses. Quem vive em desacordo com a ordem fatalmente enfrentará dificuldades, enfrentará a ira divina e fatalmente será infeliz, nesta vida ou em outra.

Uma vez que concebemos a existência dessa ordem, podemos ler cada um dos fenômenos do mundo como uma expressão de uma natureza necessária. Cada árvore é uma concretização particular dos atributos que definem a natureza da árvore. Cada dever que um cidadão tem perante seu monarca é expressão do lugar que governantes e governados ocupam na ordem natural.

A pressuposição de que existe uma ordem imanente não deve ser percebida como um equívoco, mas como um artefato cultural que possibilita adotarmos uma postura hermenêutica perante a realidade. Não nos perguntamos se existe um sentido para a vida, mas “qual” é o sentido da vida. Não nos perguntamos se existe uma “finalidade” para o sentimento de medo, mas qual é a sua finalidade. Não nos perguntamos se existem valores naturais, mas “quais” são os princípios de justiça inerentes à ordem do mundo. Ao tratar a realidade como um conjunto de fenômenos dotados de sentido, nós produzimos modelos explicativos que possibilitam uma interação muito eficiente com essa própria realidade.

A admissão de uma ordem imaginária permite que os fenômenos sejam interpretados como eventos significativos: eles não são meras ocorrências aleatórias, mas decorrências necessárias do próprio modo de ser do mundo. Povoamos o mundo com relações, abstrações e significados, pois é nessa Realidade que os seres humanos conseguem estabelecer os laços de coordenação que garantem a vida de nossa espécie. Dependemos uns dos outros e a constituição de redes de atuação “co-ordenada” depende do compartilhamento de narrativas sobre o mundo. E várias culturas humanas desenvolveram uma versão particular da crença de que o mundo somente se torna compreensível sob o pressuposto de que existe uma ordem natural imanente e holística, que envolve todos os objetos do mundo dentro de uma unidade significativa.

Pouco importa se a ordem que identificamos é verdadeira ou falsa. Como dizia o poeta Carlos Nejar, o sentido que não me dás, eu invento (Nejar, 2003). Não é relevante se existem direitos naturais dos súditos ou se as mulheres estão naturalmente submetidas a seus maridos. É irrelevante se o povo é soberano ou se estamos submetidos à providência divina. O que importa é que as narrativas que produzimos podem ser compartilhadas e que os modelos explicativos dominantes na cultura desenvolvida por uma unidade política determinada se tornam a base das relações sociais que se estabelecem entre as pessoas que a integram.

1.2 Filosofia e ciência

Quando descrevemos algum fenômeno, partimos tipicamente do pressuposto de que ele pode ser compreendido como parte de uma ordem invisível, que determina o modo de ser das coisas do mundo. Esse pressuposto não precisa ser explicitamente articulado, pois ele parece estar implícito em nossas próprias categorias linguísticas, que falam dos objetos como se eles fizessem parte de uma ordem que determina suas essências, finalidades e causas.

Foi apenas na contemporaneidade que formulamos a hipótese de que a ordem natural talvez não passe de um artefato cultural. Nietzsche, que muito contribuiu para percebermos a historicidade de nossos valores, chegou a dizer que integrava a primeira geração que se tornou consciente da historicidade de seus princípios fundamentais (Nietzsche, 2006).

Desde a antiguidade até a modernidade, o desafio que a filosofia ocidental se propôs foi justamente a descrição dessa organização imanente, sem a qual o mundo seria despido de significação e finalidades. Herdamos dos gregos essa ideia de que, embora a ordem imanente não seja percebida diretamente pelos sentidos, nós devemos ser capazes de conhecê-la indiretamente, por meio da observação cuidadosa de suas consequências: ela não pode ser vista, mas a sua estrutura pode ser inferida de uma análise rigorosa dos fenômenos observáveis.

Em muitas culturas, o desvelamento da ordem imanente restou ligado ao âmbito do sagrado, de forma que sua descrição cabia a instituições religiosas voltadas a garantira a primazia de uma tradição consolidada. No caso dos gregos, a grande novidade foi afirmar que cada ser humano poderia conhecer a ordem natural pelo exercício cuidadoso de suas próprias habilidades cognitivas. Longe de uma razão a serviço da fé, como encontramos em Tomás de Aquino, antigos filósofos gregos puderam articular a racionalidade como critério fundamental para descobrir as verdades fundamentais do mundo. Com isso, a filosofia grega conseguiu deslocar a ideia de ordem natural de sua função tipicamente conservadora, utilizando-a justamente para efetuar uma crítica das tradições culturais vigentes.

Segundo Platão, é o nosso intelecto que nos compele a reconhecer a existência de uma ordem natural subjacente, sem a qual o mundo não teria explicação nem justificativa. Uma realidade despida de ordem e de sentido era algo tão absurdo para Platão que ele considerou mais plausível afirmar que a realidade era composta por dois mundos interligados: o mundo visível, composto de coisas perecíveis que podem ser apreendidas pelos nossos sentidos, e um mundo invisível, composto por ideias eternas e imutáveis, que somente se apresentam à nossa razão.

O legado da filosofia grega nos indica a necessidade de compreender o entrelaçamento desses dois mundos, mas com o reconhecimento de que era mais importante (e mais difícil) conhecer a ordem subjacente. Esse dualismo era central para as perspectivas antigas: de um lado, o corpo, os sentidos, um mundo físico e perecível; de outro, a alma, o intelecto, os valores de justiça e de bem, um mundo metafísico e eterno.

Durante séculos, as pessoas buscaram compreender o mundo físico como uma espécie de manifestação dessa ordem superior, que determinava o modo de ser (a essência) de cada objeto e as suas formas de interação. Nesse tipo de perspectiva holista (em que tudo é visto como parte de uma ordem totalizante), uma teoria moderna da ciência provavelmente seria sentida como incompleta. Os fenômenos não tinham apenas existência, mas tinham também um significado, dado por sua relação com a ordem imanente: a vida, a morte, as transformações, os movimentos celestes, as reações químicas, tudo fazia parte dessa grande ordem. Entender o movimento dos astros era também desvelar a intencionalidade divina que estava por trás de tudo (nas vertentes deístas), ou perceber o fluxo inexorável do tao (em vertentes que dispensavam divindades e se concentravam apenas na ordem natural).

É nesse contexto que podemos nos perguntar qual é o sentido da vida. Não apenas da nossa vida pessoal, mas da Vida, que partilhamos. “Para onde vamos?” não é simplesmente uma pergunta sobre itinerários a serem percorridos, mas sobre destinos a serem realizados. A filosofia grega não nos estimula a uma investigação autônoma do mundo físico e de suas regularidades, mas nos impele a buscar as “causas não causadas”, as “verdades transcendentes”, as “formas perfeitas”. Todos esses elementos integram a ordem natural imanente, da qual fazemos parte e que torna o mundo um lugar organizado e compreensível.

No contexto das culturas antigas, a unidade da ordem imanente fazia com que a física e a ética fossem disciplinas próximas: a primeira estuda as regras naturais que organizam o mundo físico, a segunda estuda as regras que organizam as comunidades humanas. Como ambos eram entendidos como subconjuntos da mesma grande ordem, eles deveriam ser coerentes entre si e poderiam ser conhecidos a partir das mesmas estratégias. A cultura grega não fugiu a esse padrão unitário, na medida em que chamou de filosofia o conhecimento de todas as dimensões dessa ordem simultaneamente física, ética, lógica e política.

Não é por acaso que o primeiro nome da ciência foi o de philosophia naturalis, ou seja, a filosofia que se dedicava a compreender as regras da natureza, e que se distinguia dos domínios filosóficos que lidavam com o comportamento humano. Quando Newton formulou suas famosas leis da física, em 1687, o nome do livro em que as divulgou foi justamente Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, ou seja, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (Smith, 2008).

Aos poucos, a ciência moderna rompeu essa grande unidade da filosofia, mas tratou-se de um lento processo. René Descartes, por exemplo, afirmou acreditar na existência dessa ordem imanente e na necessária existência de um Deus que garantisse a estabilidade do mundo, para que ele fosse compreensível (Descartes, 2001). Por outro lado, no Discurso sobre o Método (de 1637), ele afirmou que deveríamos explicar o mundo físico como se ele fosse um grande mecanismo, que precisava ser compreendido em função da interação de suas partes, e não por finalidades imanentes ou decorrentes de um plano divino. O mecanicismo de descartes oferecia uma base filosófica para as observações empíricas e descrições matemáticas que já vinha sendo realizadas pelos filósofos naturais que revolucionaram nossa concepção de mundo, como Galileu, Kepler e Francis Bacon, que eram seus contemporâneos.

Na medida em que a ciência foi se limitando a explicar os fenômenos a partir de suas interações mecânicas visíveis, ela adotava perspectivas cada vez mais afastadas daquelas que eram utilizadas por outros ramos da filosofia, ainda vinculados ao holismo de uma ordem natural englobante. Sem fazer tanto alarde filosófico, os cientistas foram deixando de tentar descobrir a grande ordem invisível e perfeita, que governava os mundos, mas apenas explicar os padrões de interação regular entre os fenômenos.

A partir da revolução científica, o conhecimento da “filosofia natural” passou a se desenvolver por meio do acúmulo de observações descritivas minuciosas, possibilitando que essa grande quantidade de observações pudesse ser sistematizada na forma de equações que evidenciassem padrões quantitativos recorrentes na variação das grandezas mensuradas. O fato de que essas equações foram construídas a partir de uma quantidade gigantesca de informações bastante precisas fazia com que elas alcançassem um poder preditivo muito grande: a partir delas, era possível antecipar o movimento dos astros, a mudança de estado dos materiais e a formação de novas combinações químicas.

Tratava-se de um conhecimento extremamente útil, mas a sua utilidade estava no fato de que o grau de precisão com o qual se trabalhava somente era possibilitado por uma matematização rigorosa, que não deixou espaço para considerações de natureza ética ou ontológica. As matemáticas são linguagens cuja clareza e precisão é conquistada à custa de sua pobreza: elas somente conseguem expressar relações quantitativas. Uma física constituída por explicações formuladas em termos puramente matemáticos não tem uma linguagem capaz de falar na linguagem ontológica dos filósofos, que continuavam tratando de qualidades necessárias, de essências imanentes e de tendências naturais. Mesmo que ainda hoje falemos em “leis da física”, a matematização fez com que elas leis perdessem seu conteúdo normativo, de regulação dos fenômenos, e se reduzissem ao reconhecimento de que certas regularidades podem ser quantificadas.

Devemos reconhecer, contudo, que essa redução dos discursos científicos a descrições matemáticas de relações causais nunca se operou completamente. As pessoas compreendem os fenômenos dentro dos quadros categoriais que lhe são oferecidas por sua cultura, e nossas culturas continuavam ligadas à noção de uma ordem imanente global, simultaneamente física e normativa. Essa mistura de campos fazia com que o conhecimento observacional fosse constantemente limitado pelos preconceitos ideológicos e pelas crenças religiosas, que eram muitas vezes incompatíveis com os resultados sugeridos pelas observações empíricas. Até hoje, por exemplo, existem tensões entre as explicações darwinistas e as concepções teológicas comprometidas com a existência de uma alma imortal e de uma natureza humana espelhada no divino.

Antecipando que mesmo o pensador mais rigoroso seria suscetível de distorcer suas observações do mundo para acomodar suas crenças, Descartes propôs uma solução radical: abandonar todo o saber antigo porque ele não sabia em que medida se tratava de conhecimento verdadeiro ou mera reprodução de preconceitos estratificados. Sua proposta era recomeçar do zero e reconstruir o edifício do conhecimento humano, assentando em bases sólidas (Descartes, 2001).

Apesar de interessante, a proposta cartesiana não era realista, porque as nossas próprias descrições dos fatos são elaboradas contra o pano de fundo desses repertórios compartilhados de conhecimentos e crenças, que determinam uma espécie de horizonte de compreensão. A filosofia da linguagem do século XX nos ensinou que não somos capazes de criar explicações puramente objetivas para os fatos. Porém, o reconhecimento desse limite não deve nos levar a dizer que todos os conhecimentos são equivalentes. Por mais que não exista um lugar da observação puramente neutra e factual, nós podemos desenvolver um olhar crítico com relação às culturas em que estamos imersos.

Embora seja impossível exigir neutralidade, espera-se que os cientistas atuais cultivem um nível razoável de ceticismo quanto a esses quadros conceituais, que são reconhecidamente provisórios e imperfeitos, mas também indispensáveis. A ciência contemporânea está ligada ao estabelecimento desse olhar crítico, que nos permite rever nossas percepções sobre o mundo a partir de estratégias cognitivas que nos conduzam a desenvolver teorias capazes de explicar as complexidades que conseguimos observar.

É por isso que o criacionismo não é uma explicação científica, enquanto a teoria da evolução é. O terraplanismo não é frágil porque a ciência tem modelos objetivamente verdadeiros, mas porque o terraplanismo não consegue articular uma série de fatos que observamos, a não ser incidindo no malabarismo retórico de apelar para uma teoria da conspiração. A tese olavista do marxismo cultural (Carvalho, 2008) não é frágil por ser conservadora e cristã, mas porque ela precisa distorcer demasiadamente os fatos conhecidos para que se encaixem em sua narrativa cristã e conservadora.

A lenta transformação da filosofia natural em ciência culmina na elaboração do conceito positivista de ciência, formulado por Augusto Comte. Em seu curso de filosofia positiva, Comte diferenciou as abordagens teológicas (baseadas em narrativas mitológicas protagonizadas por deuses e heróis que impõem suas intenções ao mundo) das perspectivas metafísicas (baseadas em sistemas filosóficos, que fazem referência a princípios morais, objetivos sociais e outros elementos extraídos de concepções culturalmente determinadas) e também das abordagens propriamente científicas, que ele chamou de positivas, que são aquelas baseadas unicamente na observação rigorosa de fenômenos empíricos (Comte, 1982), sem qualquer referência a intenções divinas, finalidades naturais ou essências imanentes.

2. Técnica e Ciência

2.1 Conhecimento e Tecnhe

Para quem conta a história da lenta cristalização da ciência como um conhecimento baseado em pesquisas empíricas, pode parecer estranho que durante muitos séculos não se reconheceu aos os conhecimentos experimentais um estatuto epistemológico particular. Por outro lado, precisamos ter em mente que os discursos científicos não foram os primeiros a acentuar a importância dos testes empíricos para avaliar as nossas hipóteses explicativas. Creio que o problema fundamental está em definir qual é o grau de importância que devemos atribuir ao conhecimento empírico quando se trata de tomar decisões práticas eficientes.

Desde a antiguidade, os pilotos de um navio precisam traçar os caminhos que seguirão, e para tomar essas decisões eles contam com uma série de elementos: os conhecimentos tradicionais, os saberes aprendidos em sua formação (e que podem diferir daqueles compartilhados pela maioria) e as conclusões que eles derivam de sua própria experiência. Os governantes atuais precisam tomar decisões sobre as taxas de juros e sobre as políticas de investimento público, e para isso contam com esses mesmos elementos, acrescidos dos conhecimentos decorrentes de pesquisas empíricas.

Ocorre que as pesquisas empíricas das quais dispomos nos oferecem um conhecimento parcial e limitado. A física nos oferece uma capacidade ímpar para prever os resultados da interação de objetos que parecem estabelecer relações regulares, que podem ser descritas a partir de um conjunto limitado de grandezas quantitativas. As relações sociais são muito mais imprevisíveis e complexas do que os fenômenos físicos, especialmente porque envolvem a interação de pessoas que reagem de formas muito diferentes a situações semelhantes. Até hoje, os conhecimentos empíricos disponíveis nos permitem prever com confiança apenas muito relativa os fenômenos meteorológicos, que envolvem a interação complexa de muitos fatores. Quanto maior a complexidade do sistema descrito, menor a capacidade preditiva oferecida pelos nossos modelos explicativos.

A pesquisa observacional e o teste empírico são instrumentos muito úteis quando conseguimos isolar as variáveis de maneira precisa. Mas ocorre que esse tipo de isolamento nem sempre é factível: a análise de fenômenos históricos irrepetíveis nos impede de fazer qualquer tipo de isolamento de variáveis, o que requer formas de compreensão capazes de conferir sentido a uma interação complexa de fatores inter-relacionados.

Frente a problemas concretos e complexos, como devemos proceder? Nossas habilidades cognitivas fazem com que projetemos soluções para os problemas, a partir das nossas experiências e conhecimentos. Porém, sabemos que essa intuição muitas vezes nos conduz a caminhos que posteriormente se mostram equivocados, pois o desejo sincero de produzir bons resultados não é suficiente para que sejamos capazes de alcançá-los.

O que faz com que uma pessoa seja mais capaz de atingir resultados eficientes do que outras? Parece que parte da resposta está no fato de que toda atividade humana mobiliza saberes. Caçar, tecer, guerrear. Em cada um desses ofícios, podemos desenvolver nossas capacidades por meio do aprendizado de novos conhecimentos e do aprimoramento de nossas habilidades. A tradução latina da obra de Hipócrates traz um velho aforismo que se tornou célebre: ars longa, vita brevis (Hippocrates, [s.d.]). Essas artes, que são mais longas do que a vida que temos para aprendê-las, correspondem justamente aos saberes práticos, que os gregos chamavam de techne e hoje costumamos designar como know how (Warin, 2022). Não se trata apenas de um conhecimento teórico, mas de um saber fazer (savoir faire), como aquele que observamos nos saltos olímpicos de Rebeca (« Rebeca Andrade », 2022), nos acordes de Baden (Powell et Moraes, 2012) ou nas habilidades curativas de um médico ou de um pajé.

A percepção de que os resultados atingidos por uma pessoa são ótimos (na ginástica, na música ou em qualquer outro campo prático) nos sugere que o indivíduo que os realizou possui uma qualidade que podemos chamar de perícia. Não seria impossível interpretar que tais sucessos decorreriam de uma sorte constante ou de uma iluminação divina, mas a existência de um histórico de sucessos recorrentes nos permite inferir que a excelência dos resultados decorre de uma techne apurada, e não de fatores extrínsecos ou casuais.

O que permite que certas pessoas tenham capacidades excelentes para determinados ofícios? Reconhecemos que alguns indivíduos têm disposições inatas que facilitam o exercício de suas atividades, tais como força, agilidade ou inteligência. Entendemos, porém, que as competências de um perito não decorrem diretamente dessas aptidões, mas de um longo processo de aperfeiçoamento, que aprimora as potencialidades de uma pessoa por meio de uma combinação de conhecimentos teóricos aprendidos (que podemos designar como episteme ou scientia) e de habilidades práticas adquiridas ou aprimoradas. São os saberes de um perito que lhe permitem fazer bons diagnósticos e escolhas adequadas, mas os resultados atingidos por um excelente advogado (ou jardineiro, ou dançarino) também dependem das habilidades que lhe permitem implementar suas decisões com destreza.

Um maestro pode saber exatamente os sons que devem ser tocados e os movimentos que um violoncelista deve fazer com as mãos para que uma sinfonia seja magnificamente apresentada. Entretanto, tal conhecimento não lhe possibilita tocar violoncelo como Jaqueline du Pré ou Antônio Meneses. Embora maestros e intérpretes partam de uma série de conhecimentos compartilhados, a techne do maestro é a de levar uma orquestra a tocar de forma excelente, enquanto a techne do violoncelista é a de extrair sons adequados de próprio instrumento.

Os latinos traduziram a noção de techne com a palavra ars (Warin, 2022), que foi usada para designar as disciplinas ensinadas nas escolas desde o final da Idade Antiga até o fim da Idade Média: as sete artes liberais, que compunham a formação de um cidadão educado (Joseph, 2008). Este conjunto de disciplinas era composta pela combinação das competências linguísticas do trivium (dialética, gramática e retórica) e pelos saberes mais abstratos do quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia) (Joseph, 2008). Assim, a conhecida definição romana de que "o direito é a arte do bom e do equitativo" (ius est ars boni et aequi) não indica que o direito seja uma atividade voltada à produção de obras de elevada qualidade estética (como a música ou a pintura), mas que a excelência de um jurista pode ser medida a partir de sua capacidade de produzir soluções justas para os conflitos que ele arbitra.

Apesar dessa clássica aproximação entre jus e ars, a palavra “jurisprudência”, que os romanos utilizavam para designar a atividade dos juristas, é composta por um outro conceito: “prudência”, que é tradução latina da categoria grega de phronesis (Ferraz Jr., 1980). Essa opção talvez revele uma influência de Aristóteles, que considerava a techne como uma dimensão da racionalidade ligada à fabricação de objetos, enquanto ligava a phronesis ao exercício da razão prática, ou seja, da capacidade de tomar decisões justas e adequadas (Parry, 2021). Porém, dentro da tradição estoica, que é a vertente filosófica que mais influencia a cultura romana, essa distinção conceitual é relativizada, visto que a phronesis era entendida como uma espécie de techne, que tinha por objeto a própria conduta do indivíduo (Parry, 2021). Portanto, não deve causar estranhamento o fato de o saber dos juristas ser qualificado simultaneamente como ars e como prudentia, visto que ambas as qualificações ressaltam o caráter prático dessa perícia.

Esse caráter prático se opõe à noção grega de episteme, palavra que aponta para um conhecimento seguro acerca de um objeto, mas que não se relaciona com a dimensão do agir (Parry, 2021). A categoria de episteme é usada para ressaltar o fato de que o conhecimento teórico é fundamental para que uma pessoa possa identificar opções adequadas de ação, mas que a simples episteme não faz com que o indivíduo seja capaz de realizar boas escolhas. Aristóteles sustentava que a excelência moral não se esgotava no conhecimento intelectual sobre o bem, mas envolvia também o cultivo de uma disposição da alma para praticar ações justas (Aristóteles, 1984).

A pessoa justa não é a que sabe reconhecer as ações excelentes, mas aquela que as pratica de forma recorrente. Saber calcular riscos não torna alguém corajoso, embora seja essencial para diferenciar o corajoso do temerário. Um indivíduo que conheça excepcionalmente o direito positivo pode ser um advogado ruim, pela falta de habilidades retóricas, ou uma péssima juíza, por não ter a sensibilidade necessária para fazer com que as partes se sintam ouvidas em uma sessão de julgamento.

Apesar de ser preciso reconhecer que a techne dos juristas nunca foi redutível a uma episteme, seria um equívoco defender a prevalência das habilidades sobre os conhecimentos, da praxis sobre a teoria. De fato, em várias atividades humanas, como as artes marciais ou a dança, a formação dos estudantes exige uma dedicação muito maior ao exercício de habilidades corporais do que ao aprendizado dos fundamentos teóricos. Porém, há outras perícias, como é o caso clássico da medicina, nas quais a atuação eficiente depende de um conhecimento teórico excepcionalmente extenso e abrangente. Embora haja ramos da medicina em que as habilidades corporais sejam vitais (como na realização de cirurgias ou partos), o maior desafio dos médicos é o de fazer diagnósticos precisos e designar terapias adequadas. Não é por acaso que a citação completa do referido trecho de Hipócrates trata justamente da dificuldade de tomar decisões adequadas em tempo hábil.

A vida é breve,
a arte é longa,
a oportunidade fugaz,
a experimentação perigosa,
o julgamento difícil. (Hippocrates, [s.d.])

De fato, esse aforismo poético justapõe as várias dificuldades do exercício de uma techne, que nos exige tomar decisões difíceis dentro do tempo fugaz em que temos oportunidade para uma intervenção viável. Esse aforismo, que também parece valer para juízes e advogados, não fala propriamente das dificuldades epistemológicas envolvidas no desenvolvimento de um conhecimento adequado sobre os objetos do mundo, mas dos desafios específicos envolvidos na escolha de cursos de ação adequados, a partir de um conhecimento inevitavelmente limitado das situações concretas que enfrentamos.

A resposta ao desafio hipocrático não envolve a formação de médicos capazes de decidir rapidamente, com base em reflexos bem condicionados, mas a de proporcionar uma educação abrangente, que seja capaz de mobilizar em cada caso todo o conhecimento disponível sobre a saúde. É evidente que, para situações de urgência, em que o tempo é crucial, os médicos desenvolvem protocolos de atuação que não dependem de uma longa reflexão, mas que envolvem a aplicação de uma sequência predefinida de passos. Porém, os médicos devem ser capazes de fazer a difícil escolha entre aplicar tais protocolos ou analisar detidamente as peculiaridades de um caso, cuja excepcionalidade pode exigir uma abordagem particular.

No caso das artes marciais ou da ginástica, que são atividades nas quais é preciso reagir de modo sempre imediato, o desafio fundamental é o de tornar uma pessoa hábil para a execução de certas formas predefinidas de movimento. O karatê e o kendô envolvem um conjunto bastante restrito de golpes, cuja eficiência é atestada por uma longa experiência, e cujo domínio completo exige anos de treinamento exaustivo, que torna uma pessoa capaz de desferi-los no momento propício de um combate. Cada estilo de arte marcial pode ser pensada como um protocolo de atuação, definido por um conjunto de especialistas, que estabelecem algumas formas de movimento que devem ser inscritas nas respostas automáticas de um cérebro. Nesses casos, quanto menos reflexão, maior a rapidez da ação e a efetividade do movimento.

Um cirurgião também passa anos treinando sua capacidade de movimentar as mãos de forma precisa. Um jurista passa anos treinando suas habilidades gramáticas e retóricas, para produzir peças claras e legíveis, capazes de promover nos leitores o tipo de reação intencionado pelos autores de uma petição ou de uma sentença. Não podemos perder de vista a relevância dessas habilidades práticas, especialmente em sistemas educacionais que muitas vezes não lhes conferem a centralidade devida na formação dos estudantes. A educação jurídica contemporânea não tende a pecar pelo foco excessivo nos exercícios práticos, por meio dos quais os estudantes desenvolvem suas competências, mas por não lhes dedicar um tempo compatível com a sua importância.

O foco contemporâneo no conhecimento teórico talvez deixe pouco espaço para o desenvolvimento de competências práticas, mas tal exagero parece ter motivações compreensíveis: tal como na medicina, o exercício das atividades jurídicas depende da mobilização de um conhecimento tão grande que nossas pequenas vidas se tornam incompatíveis com o seu completo domínio.

2.2 Tradição e Empiria

Todo profissional precisa adotar um certo conjunto de conhecimentos como referência para a tomada de decisões práticas, e esses conhecimentos podem ser desenvolvidos de várias formas. Em nossas culturas, existe uma acumulação de saberes que constitui o repertório comum de conhecimentos que são ensinados às pessoas que recebem formação específica para o exercício de atividades especializadas. Esse conjunto de conhecimentos compartilhados por uma comunidade de especialistas decorre de uma lenta depuração e devemos reconhecer que eles são constantemente submetidos a um teste empírico: na medida em que eles são aplicados por uma comunidade de especialistas, os seus resultados práticos estão sob constante escrutínio.

Esses conhecimentos compartilhados tipicamente não foram desenvolvidos por meio de experimentos científicos, mas por meio de uma observação cuidadosa, que promove a formulação de explicações compatíveis com os demais conhecimentos partilhados. Seja na medicina, no direito ou na astrologia, essas explicações são objeto de diálogo entre os vários especialistas, que as avaliam sob a luz de suas experiências e de seus conhecimentos, de tal forma que o conjunto de opiniões compartilhadas por um grupo de especialistas tende a ser o guia mais eficiente disponível para orientar as nossas ações.

Um profissional que segue os conhecimentos estratificados no seu meio parece ter mais chance de alcançar resultados adequados do que uma pessoa que se empenha em seguir as suas próprias intuições. Porém, em vários momentos, profissionais conscientes e reflexivos são capazes de observar que o conhecimento compartilhado é muitas vezes lacunar ou que a sua aplicação não conduz aos resultados esperados. Frente ao reconhecimento dos limites desses repertórios comuns de conhecimentos, alguns dos especialistas se dedicam a fazer observações cuidadosas dos fatos, produzindo hipóteses explicativas que contrariam o senso comum.

Esse embate entre explicações estratificadas e hipóteses alternativas nos leva ao núcleo do problema do conhecimento científico. Será que determinadas observações, realizadas por certos indivíduos ou grupos, podem derrogar os conhecimentos partilhados, decorrentes da lenta acumulação e avaliados por toda uma comunidade? A resposta dos cientistas é de que sim: desde que sejam seguidos certos procedimentos investigativos, o conhecimento resultante é tão sólido que deve substituir o senso comum compartilhado, como guia para uma atuação profissional eficiente.

Para a ciência, a certeza de uma explicação vem da solidez dos processos pelos quais ela é produzida, e não pelo seu reconhecimento social em uma comunidade de especialistas. Embora a adoção dessa postura seja tentadora, devemos reconhecer que a sua prática é bem menos evidente, pois várias das hipóteses explicativas sustentadas pela observação contradizem frontalmente as bases do conhecimento compartilhado. Nesses casos, é comum que as teses emergentes sejam rejeitadas, por serem consideradas explicações implausíveis.

Quando os médicos chineses indicaram para os europeus que o uso de máscaras era uma providência fundamental para enfrentar a Covid-19, a primeira resposta foi rejeitar essa proposta porque ela contradizia a tese dominante de que vírus respiratórios eram transmitidos tipicamente por superfícies contaminadas, e não pelo ar. Foram necessários meses de intenso debate até que o uso de máscaras fosse reconhecido como uma medida fundamental para o combate à pandemia, tanto porque a justificativa dessa medida estava em desacordo com o conhecimento compartilhado, como porque esse tipo de medida era pouco compatível com a cultura dos países ocidentais.

Nesses tempos de pandemia, enfrentamos a cada dia os limites do conhecimento científico (que não tem muitas das respostas que gostaríamos de ter), mas isso não justifica que misturemos o pouco que sabemos com segurança sobre a COVID-19 com as várias teorias mirabolantes que circulam pelos grupos de WhatsApp. O embate entre um conhecimento crítico e as crenças socialmente compartilhadas continua aceso, assim como o debate incessante que existe nas próprias ciências.

No caso dos cursos de metodologia, interessa-nos especialmente uma das facetas desse embate: a contraposição entre os saberes compartilhados pelos especialistas e o aparecimento de novas teorias, que desafiam frontalmente as explicações que não são hegemônicas no senso comum das pessoas em geral, mas aquelas que são hegemônicas dentro de uma comunidade de especialistas: como médicos, juristas ou engenheiros. No contexto da pandemia atual, o exemplo mais claro desse embate pode ser encontrado na tortuosa história do médico Ignaz Phillip Semmelweis, que viveu em meados do século XIX.

Semmelweis era um médico húngaro, que se graduou em 1844, época em que a chamada “febre puerperal” era muito comum nas maternidades europeias. Dois anos depois o jovem médico de 28 anos tornou-se assistente do principal obstetra do Hospital Geral de Viena, instituição na qual a Maternidade era segmentada em duas divisões, que ofereciam serviços gratuitos, por serem voltadas ao ensino de médicos (na Primeira Divisão) e de parteiras (na Segunda Divisão) (Kadar, Romero et Papp, 2018).

Ocorre que o índice de mortalidade por febre puerperal da Primeira Divisão era de cerca de 9%, o que significava uma mortalidade praticamente 3 vezes maior que na Segunda Divisão. (Kadar, Romero et Papp, 2018). As clínicas atendiam em dias alternados, mas muitas mulheres pediam para ser atendidas na Segunda Clínica em virtude da merecida má reputação da Primeira Clínica. (Ataman, Vatanoğlu-Lutz et Yıldırım, 2013)

Semmelweis tentou compreender as razões dessa discrepância, isolando as variáveis que podiam explicar tal diferença (Ataman, Vatanoğlu-Lutz et Yıldırım, 2013). Uma explicação plausível poderia estar na superlotação, mas o fato é que a Segunda Clínica tinha sempre uma proporção maior de pacientes. Outra explicação poderia estar em uma diferença de procedimentos, mas o fato é que as duas clínicas utilizavam os mesmos protocolos. O resultado dessa análise terminava apontando para uma situação enigmática: a única diferença substancial parecia ser a das pessoas que trabalhavam nesses dois locais, e isso não parecia fazer sentido.

Em 1847, ocorreu um fato que fez com que Semmelweis formulasse uma explicação que não tinha ainda sido avaliada. Seu amigo Jakob Kolletschka, médico patologista forense, faleceu vítima de sintomas muito parecidos com o da febre puerperal, depois que um estudante acidentalmente o cortou com um bisturi, enquanto eles realizavam uma autópsia. Isso fez com que Semmelweis intuísse que, se a doença que acometeu Kolletschka seguiu o mesmo processo da febre puerperal, a causa deveria ser a mesma. (Kadar, Romero et Papp, 2018)

Como a morte de Kolletschka parecia ter decorrido do corte acidental, ele propôs a ideia de que haveria uma relação causal entre a doença e a contaminação cadavérica, o que poderia explicar a alta mortalidade da Primeira Divisão, tendo em vista que os estudantes de medicina realizavam autópsias como parte de seu treinamento, enquanto as parteiras não.

Por mais que essa tese pareça evidente para nós, que somos ensinados desde cedo sobre o papel dos micro-organismos nas doenças, essa era uma tese que não era aceita pelo círculo médico de Viena naquela época. Tanto é assim que a tese de Semmelweis era a de que certas “partículas cadavéricas” passavam para as mãos dos estudantes e professores e que eram essas emanações dos cadáveres que causavam a doença. Mesmo para Semmelweis, era totalmente estranha a tese de que uma doença poderia ser causada por formas de vida invisíveis.

A observação cuidadosa dos fatos indicou que a febre puerperal era contagiosa e que o contágio estava relacionado ao contato dos médicos com cadáveres. Semmelweis considerou que essa conclusão era sólida, apesar de a teoria médica de sua época não oferecer uma explicação adequada de como essa contaminação operava.

Tal diagnóstico levou Semmelweis a propor uma solução para o problema: que todos os médicos lavassem a mão com hipoclorito de cálcio antes de realizar partos. Ele chegou a essa conclusão após fazer experimentos com várias substâncias e concluir que o hipoclorito era a mais capaz de remover o odor característico que restava nas mãos depois de realizar uma autópsia (Kadar, Romero et Papp, 2018).

A lavagem das mãos antes do parto reduziu imediatamente o índice de mortalidade de 7,8% para 1,8%. Nos meses seguintes, houve episódios de novas mortes, cuja causa Semmelweis terminou por identificar que não eram as autópsias, e sim o fato de que algumas pacientes tinham doenças infecciosas. Com isso, ele mudou sua explicação: em vez de “partículas cadavéricas”, ele propôs que a causa da febre puerperal estava em alguma forma de “matéria orgânica animal em decomposição”. (Kadar, Romero et Papp, 2018)

Tal percepção fez com que o protocolo de profilaxia fosse estendido: a lavagem, antes necessária apenas depois do contato com os cadáveres, passou a ser exigida entre quaisquer atendimentos. Além disso, criou-se também um protocolo de desinfecção de todos os instrumentos que entraram em contato com as pacientes, o que possibilitou que a incidência de febre puerperal na Primeira Divisão (dos médicos) chegasse a ficar ligeiramente abaixo da que ocorria na Segunda Divisão (das parteiras). (Kadar, Romero et Papp, 2018)

Tais resultados fizeram com que a prática de lavar as mãos com uma solução de hipoclorito continuasse a ser usada no hospital. Todavia, as explicações de Semmelweis sobre a origem da doença foram rejeitadas por serem incompatíveis com as teorias médicas da época. Não se afigurava razoável a ideia de que tal febre pudesse decorrer da matéria orgânica em decomposição, pois o conhecimento médico hegemônico indicava não haver uma causa única para a febre puerperal. O fato de que esta doença que se manifestava de várias formas fazia com que os médicos considerassem haver cerca de 30 causas diferentes para tal condição (Kadar, Romero et Papp, 2018). Tampouco parecia plausível a tese de que essa enfermidade era a mesma que atingiu o patologista Kolletschka.

Em 1848, Semmelweis tornou públicos os resultados preliminares de uma maneira pouco convencional: publicou-os em um editorial da Revista da Sociedade Médica de Viena e convidou os chefes de outras maternidades a confirmar suas conclusões. Todavia, a maioria das respostas que foram recebidas foram em sentido negativo, especialmente porque era rejeitada a tese de Semmelweis de que a febre puerperal era uma espécie de infecção causada pela introdução de um agente externo.

Não se tratava propriamente de uma rejeição dos resultados da profilaxia (que por vezes nem chegava a ser tentada), mas principalmente de uma rejeição do conceito de doença como infecção, que estava na base do diagnóstico de Semmelweis (Kadar, Romero et Papp, 2018) .

Em seu livro de 1861, intitulado “A etiologia, o conceito e a profilaxia da febre puerperal”, Semmelweis lamentou que suas ideias não tenham sido aceitas pela comunidade médica: “em 1854, em Viena, o lugar em que minha teoria nasceu, 400 pacientes morreram de febre puerperal. Nas publicações médicas, meus ensinamentos são ou ignorados, ou atacados” (Ataman, Vatanoğlu-Lutz et Yıldırım, 2013). Depois de sua precoce morte aos 47 anos, em 1865, a sua tese foi sendo gradualmente reconhecida, inclusive por seus críticos mais ferrenhos, que se rendiam à eficácia da profilaxia. Porém, um reconhecimento mais geral somente veio a ocorrer depois que foi acatada a teoria microbiana de Louis Pasteur, que demonstrou que várias doenças eram causadas por micro-organismos. (Kadar, Romero et Papp, 2018)

3. Os discursos científicos

3.1 Características dos discursos científicos

A história de Semmelweis nos mostra alguns pontos interessantes para compreender a posição atual dos pesquisadores no direito. A primeira é a de que uma sensibilidade científica precisa estar aberta a uma observação dos fatos e à busca de interpretá-los sem estar demasiadamente presa às explicações tradicionais. Olhando do momento atual, pode ser difícil entender a posição dos médicos que rejeitaram as suas hipóteses. Todavia, se tentarmos nos colocar no lugar dos colegas de Semmelweis, talvez cheguemos a conclusões um pouco diversas.

A situação que ele enfrentava é relativamente comum na ciência: a observação dos fatos mostra padrões que não são explicáveis pelo conhecimento existente e conduziu Semmelweis à formulação de hipóteses inovadoras. Inobstante, essas hipóteses não eram tão melhores do que as explicações antigas, pois elas também sofriam de limitações e precisaram de novos desenvolvimentos para que a comunidade médica as percebesse como mais sólidas que as noções correntes.

“Partículas cadavéricas” não eram uma explicação tão boa, nem para os padrões da época, nem para os nossos. “Matéria orgânica animal em decomposição” é uma causa mais geral, que explica casos não englobados pela primeira hipótese, mas esta é uma definição muito imprecisa. Além disso, a tese vigente na época, de que a febre puerperal tinha causas múltiplas, parecia consistente com as autópsias das mulheres mostrarem resultados muito diferentes entre si. Tal multiplicidade de situações também parecia incompatível com a hipótese de causa única, formulada por Semmelweis. Por mais que fosse claro que o uso da solução de hipoclorito reduzia a mortalidade, não havia uma explicação sólida capaz de explicar tais resultados.

Outro problema da tese de Semmelweis é que ele somente veio a publicar seus resultados definitivos quinze anos depois dos primeiros experimentos. Nesse meio tempo, houve a publicação de resultados provisórios, mas boa parte das pessoas que ouviram falar de suas experiências com o hipoclorito tiveram acesso a narrativas de segunda mão. Tais relatos eram insuficientes para que os médicos compreendessem exatamente o sentido e o alcance das propostas de Semmelweis, especialmente o significado de sua inovadora afirmação de que a febre puerperal teria uma causa única.

Apesar dessas dificuldades, a abordagem de Semmelweis nos mostra bastante sobre a estrutura do discurso científico e sobre o seu tensionamento com relação ao discurso dogmático, baseado nas concepções compartilhadas (sobre medicina ou direito).

a. O discurso científico é baseado em evidências

Semmelweis poderia ter buscado suas respostas nos modelos explicativos sobre as doenças, sobre os equilíbrios de fluidos corporais, sobre os quatro humores, sobre os miasmas (o “mau ar” que se acreditava espalhar as doenças). Porém, em vez de se concentrar nas explicações consolidadas, o obstetra húngaro apresentou uma tese inovadora que ele buscou justificar diretamente com base nas evidências fáticas.

Além disso, ele testou a sua hipótese por meio de um experimento cujos resultados deveriam servir como critério para determinar a aceitabilidade ou não de sua hipótese. Se a doença fosse causada por partículas cadavéricas, então uma lavagem de mãos deveria ser capaz de eliminar essas partículas. Assim, bastava comparar os resultados de duas situações, em que a única variação era justamente o fato de os médicos lavarem as mãos do modo definido por Semmelweis.

b. Construção de modelos explicativos baseados em relações de causalidade

Para articular suas hipóteses e os resultados alcançados, Semmelweis articulou explicações causais: ele partiu dos pressupostos de que cada doença tem uma causa determinada e de que a interferência nas causas deve gerar impactos na contaminação ou no tratamento.

A tese de que há uma influência causal entre o uso do hipoclorito e a redução da mortalidade se revelou sólida. A explicação dada para essa relação não era convincente, mas a verificação de que a introdução isolada de um fator novo está correlacionada com uma queda de 90% na mortalidade é um indicador muito robusto de causalidade.

De fato, a ciência trabalha com interferências muito mais leves. Hoje, em plena pandemia de COVID-19, diariamente ouvimos falar de protocolos que reduziram a mortalidade em cifras muito menos dramáticas, e que por isso mesmo levantam dúvidas sobre se esses estudos comprovam a eficácia dos tratamentos testados. Quando os impactos são relativamente pequenos e isolar a influência dos fatores é complicado, torna-se muito difícil a tarefa de afirmar a existência de conexões causais.

O próprio surgimento da ideia de Semmelweis somente foi possível porque ele teve a oportunidade de analisar uma situação na qual havia a divisão da maternidade em duas clínicas, diferenciadas pela presença ou não de estudantes de medicina. É muito raro que o mundo nos ofereça, assim, a divisão dos dados que viabiliza conclusões sólidas. Bem mais normal é que tenhamos nós que segmentar as experiências para tentar isolar as consequências de cada uma das variáveis estudadas.

Essa grande dificuldade dá especial peso às teorias estatísticas que nos oferecem modelos para afirmar que certas correlações (ou seja, variações no mesmo sentido) implicam causalidade.

c. Somente evidências empíricas podem ser usadas como argumentos para sustentar uma teoria

Um dos problemas enfrentados por Semmelweis é que suas ideias não foram descartadas apenas porque explicavam mal os fatos, mas porque elas eram incompatíveis com as teorias vigentes sobre o que é doença.

No direito, temos hoje em dia teorias semelhantes às da época de Semmelweis sobre o que é decidir, o que é interpretar, o que constitui o direito e sobre os fatores que influenciam uma decisão judicial. Essas teorias tendem a descrever o direito como uma atividade racional, de tal forma que certas interpretações podem ser consideradas objetivamente válidas, por observarem alguns critérios hermenêuticos. Além disso, elas descrevem as características que deve ter uma interpretação para ser considerada “correta”.

Quais são os critérios usados para justificar que uma determinada interpretação é correta? Embora haja vários modelos hermenêuticos diferentes, poucos deles utilizam evidências empíricas como critérios interpretativos válidos.

Uma interpretação não é correta em função de fatos observáveis, mas em função da observância de certos critérios dogmáticos, que fazem parte da cultura jurídica e não dos fatos observáveis. Por isso, é comum que os juristas em geral se comportem, em grande medida, como os colegas de Semmelweis: avaliando as teses novas com base em sua coerência com as explicações vigentes, e não com base em sua capacidade de articular devidamente os fatos observados.

d. Teorias como modelos explicativos de relações entre fatos

O caráter dogmático dos discursos jurídicos faz com que sejam privilegiados os modelos normativos (que orientam a prática, definindo padrões de condutas a serem realizadas) em vez de modelos explicativos.

Os modelos normativos podem usar diretamente a noção de “dever”, mas eles também podem optar por construções alternativas, como a definição de certas “finalidades que devem ser buscadas”. Nessa versão, mais típica dos discursos jurídicos, é possível utilizar uma linguagem descritiva (que fala de princípios e de valores como objetos que podem ser conhecidos objetivamente), pelo fato de que há uma conexão deôntica implícita (a de que os princípios corretos devem guiar a ação).

No caso das ciências sociais, os modelos explicativos são centrados em explicar o que os vários agentes e instituições efetivamente fazem. No caso do direito, o comportamento dos atores jurídicos se dá por meio da enunciação de discursos (sentenças, contratos, acórdãos, etc.), o que gera uma peculiar tensão: a tensão entre o que um magistrado diz e o que um magistrado faz.

Um magistrado pode afirmar que está aplicando rigorosamente a letra da lei, quando interpreta a lei (consciente ou inconscientemente) de acordo com seus parâmetros pessoais de justiça ou com seus interesses político-partidários. Toda decisão judicial afirma que aplica a lei de maneira estrita, mesmo quando não faz isso. Os próprios fundamentos de uma decisão podem ser uma justificativa vazia, que não corresponde aos motivos reais do julgamento.

A dogmática jurídica se concentra demasiadamente sobre os discursos que são aceitáveis, sobre os argumentos que são reconhecidos como sólidos. Mas ela se concentra pouco sobre o que fazem efetivamente os juízes quando decidem, sobre os fatores que podem ser correlacionados com as decisões (e que nem sempre são os argumentos, mas podem ser o partido do réu, o gênero do acusador ou as concepções de bem do julgador).

e. Teorias podem ser refutadas por observações empíricas

O caráter normativo da dogmática altera o impacto das observações empíricas nas teorias jurídicas. Se uma teoria afirma que o poder judiciário “deve agir de certa maneira” e as observações fáticas indicam que ele age de maneira diversa, a conclusão não é de que a teoria dogmática descreve equivocadamente a prática judicial, mas que o judiciário atua de modo errado.

Isso se reflete especialmente no que toca às próprias categorias que organizam a percepção da atividade judicial. Um dos pontos mais problemáticos das teorias atuais é que continuamos encarando as decisões judiciais como decisões de juízes, que é a forma tradicional de lidar com elas. Porém, nas últimas décadas, as decisões de tribunais superiores se tornaram cada vez mais produtos de um gabinete e não de uma pessoa.

Inobstante esse reconhecimento de uma mudança empírica no funcionamento do judiciário (a ampliação dos gabinetes e do número de decisões), essa mudança interfere pouco na ideia de que a decisão judicial pode ser referida ao magistrado, como seu “autor”.

Quem é o autor de um smartphone? As pessoas que projetam o seu chip? As pessoas que projetam seu software? A empresa que é dona da sua marca? Obras que envolvem um esforço coletivo coordenado de milhares de pessoas desafiam as noções tradicionais de autoria.

Os parlamentos do século XIX desafiaram as noções jurídicas de vontade do legislador forçando a criação de novas categorias, mais abstratas e idealizadas, como uma suposta vontade da lei. Esses trânsitos teóricos foram importantes para criar teorias adaptadas a um direito legislado por parlamentos.

Um trânsito parecido parece ocorrer hoje em dia com relação às decisões judiciais. As decisões institucionais dos Tribunais já eram vistas como decisões coletivas, mas temos categorias muito idealizadas para lidar com elas, pois é comum falarmos da opinião do Tribunal como se ele fosse uma pessoa e não uma coletividade. Opinião do Tribunal e a posição da Corte são categorias que guardam problemas muito semelhantes à vontade do legislador.

Nesse contexto, talvez fosse o caso de renovarmos as nossas teorias, redimensionando o que chamamos de decisão, colocando em dúvida as relações entre decisão e intenções, entendendo que as decisões são obra de um processo coletivo de criação.

Essas novas explicações, essas novas teorias (que estão por ser desenvolvidas) devem ser avaliadas em função de sua capacidade para explicar as observações empíricas que efetuamos, sobre o comportamento efetivo das cortes. Porém, é muito comum que essas explicações baseadas na observação dos fatos sejam rejeitadas pelos juristas porque elas não oferecem as respostas que eles esperariam encontrar.

f. Ceticismo quanto aos discursos baseados apenas na experiência e na autoridade

Se um pesquisador avalia a capacidade das ADIs para garantir os direitos sociais, ele pode chegar à conclusão de que ela não tem capacidade de realizar esse objetivo (ao menos do modo como ela é compreendida e manejada pelo STF hoje em dia). Inobstante, é bem possível que os ministros do STF e seus assessores tenham uma visão diferente, inspirada pela sua própria vivência.

Mas a experiência pessoal, as intuições, as percepções individuais não são bons critérios para avaliar uma teoria científica. Nossas percepções são demasiadamente influenciadas por nossos valores, nossas concepções de mundo, nossas ideologias políticas. A ciência precisa lidar com essa complexidade e isso nos aponta para a necessidade de reflexões metodológicas explícitas.

Enquanto atividade técnico-profissional, várias das opções técnicas dos juristas (nas decisões e nas argumentações) são baseadas nas expectativas projetadas por sua experiência pessoal. Para superar os limites dessa experiência, seria necessário que os juristas fizessem levantamentos de dados mais amplos, que possibilitassem observar um conjunto de fatos mais amplo do que aquele que lhes é proporcionado por suas vivências pessoais. Essa, porém, não é a realidade típica dos juristas nem de suas pesquisas.

3.2 Os limites da ciência

Nossas capacidades linguísticas nos permitem falar de várias coisas que não têm existência empírica, como os unicórnios, os deuses e as obrigações de reciprocidade. O fato de que as pessoas efetivamente discutem acerca desses temas faz com que, gradualmente, sejam estabelecidos certos consensos sociais acerca de valores objetivos, de finalidades imanentes e de regras objetivamente válidas.

Esses elementos simbólicos são muito importantes para a ordem social porque a sociedade se autorregula justamente a partir dessas percepções. As mitologias religiosas interferem diretamente na organização social, ainda que os deuses talvez não existam. O modo como uma sociedade conta a sua história interfere nas decisões políticas, sejam verdadeiras ou não as narrativas tradicionais. Nas sociedades humanas, o conhecimento acerca da ordem simbólica compartilhada sempre foi de importância tão grande quanto o conhecimento sobre a natureza, visto que a sobrevivência das pessoas e das comunidades depende dos processos de coordenação comportamental que esses sistemas simbólicos fomentam.

O direito é um campo de atividade humana que se relaciona justamente com as percepções sociais acerca das obrigações que as pessoas têm umas com as outras, e das consequências devidas em virtude da violação dos seus deveres. As regras jurídicas, tal como os cânones interpretativos e as diretrizes religiosas, somente existem enquanto percepções sociais compartilhadas. Se observamos uma sociedade, podemos identificar empiricamente relações de obediência, sentimentos de medo e concepções de dever. Todavia, os conceitos fundamentais de uma ordem jurídica são todos abstratos: eles decorrem dos valores sociais que orientam os comportamentos.

No que toca a tais objetos, um observador externo pode entender que o único critério de veracidade aplicável é o próprio reconhecimento pelo grupo. Seguindo as orientações do positivismo de Comte, deveríamos produzir um conhecimento científico sobre as sociedades por meio da observação cuidadosa das interações sociais, que nos permitisse explicar as regularidades observadas. Todavia, não é assim que os próprios grupos vivenciam a construção de narrativas compartilhadas sobre objetos que não podem ser empiricamente observados. Na perspectiva interna de uma cultura, a religião e o direito não são considerados apenas como artefatos culturais, mas como ordens normativas objetivamente válidas, que impõem direitos e deveres para as pessoas. O desafio que move os juristas tipicamente não é o de saber como os juízes efetivamente decidem, mas o de definir quais seriam os direitos e obrigações de cada um dos agentes sociais.

Um observador externo pode estudar os acórdãos de um Tribunal, em busca de esclarecer quais são as posições predominantes, os argumentos mais usados, as concepções cristalizadas. Já a posição de um observador interno adota uma perspectiva diferente, comprometida com a validade da ordem normativa pressuposta pelo tribunal e com a sua função de intérprete dessa ordem. A existência de múltiplos observadores internos (juízes, advogados, professores, jornalistas, etc.) em constantes interações linguísticas conduz à realização de uma série de intercâmbios comunicativos, nos quais é previsível que alguns padrões se cristalizem com o tempo.

Tal como ocorre com as línguas, a iteração das comunicações constitui uma comunidade de conhecimento, que compartilha sensibilidades e conhecimentos, e que desenvolve uma cultura comum. O conhecimento acerca do direito é como o conhecimento acerca da religião e da justiça: trata-se de um saber reflexivo, em que uma cultura se descreve a si mesma. A validade desse tipo de conhecimento não pode ser mensurada em termos de correspondência com o mundo, dado que o critério de validade de seus enunciados é justamente a medida em que os membros de uma comunidade estão dispostos a reconhecê-las como válidas.

Enquanto o paradigma dominante interpretava as regularidades do mundo como expressão de uma ordem imanente, os deveres jurídicos e religiosos poderiam ser percebidos como elementos constitutivos dessa ordem natural. Durante séculos, a cultura ocidental esteve envolvida no projeto de identificar racionalmente as regras e valores jurídicos que decorrem da própria natureza das coisas (o direito natural), assim como de descobrir as regras religiosas que podem ser descobertas pela observação do mundo (a teologia natural).

Enquanto preponderava a ideia de que a aplicação de uma análise racional cuidadosa seria capaz de identificar a ordem natural subjacente, não havia espaço inclusive para aflorar uma separação entre filosofia e ciência, vistas ambas como conhecimentos acerca do mesmo objeto: a ordem do mundo. Na medida em que a ciência foi se convertendo em um discurso baseado exclusivamente em pesquisas empíricas, tornou-se duvidoso o estatuto científico de ramos do conhecimento que não fazem afirmações empiricamente testáveis, como o direito, a teologia e a astrologia.

Por outro lado, a epistemologia contemporânea deixa claro que discutir a cientificidade de um saber não é debater sobre a sua relevância social ou sobre a sua dignidade. A ciência nos oferece um determinado tipo de episteme, cuja solidez deve ser afirmada, mas cujos limites também devem ser reconhecidos. Por um lado, somente é possível fazer ciência sobre objetos empíricos, o que deixa de fora da ciência uma série de saberes absolutamente vitais para o funcionamento das comunidades políticas.

O saber dos juristas envolve afirmações sobre a contagem de prazos, sobre garantias contratuais ou sobre os requisitos de validade de um ato discricionário. A definição do sentido desses termos define estratégias decisórias e intervenções governamentais nas vidas dos cidadãos, o que faz com que as repercussões práticas desse tipo de conhecimento sejam inegáveis. Embora seja possível produzir conhecimento científico sobre a atuação ou as crenças de uma comunidade de pessoas, parece estar fora dos limites da ciência qualquer discussão interpretativa, voltada a realizar atividades de tipo hermenêutico, como a compreensão de textos e a aplicação normativa.

Além disso, devemos reconhecer que o discurso científico é mais capaz de produzir modelos explicativos nos contextos em que se mostra viável um isolamento de variáveis. Por isso, é duvidoso se devemos nos guiar pela tese positivista de que é possível fazer uma ciência empírica da sociedade, mas que ela deve limitar-se a descrever e explicar as regularidades observáveis nos grupos sociais. Dada a complexidade das relações sociais, tratar delas de uma forma hermenêutica (a partir da projeção de compreensões que podem ser justificadas perante uma comunidade de intérpretes) pode se mostrar uma abordagem mais eficiente, em termos de nossa capacidade de orientar ações adequadas no campo da política, da economia e do direito.