1. A filosofia e a ciência

Uma das questões fundamentais da filosofia sempre foi a de entender como é possível alcançar um conhecimento verdadeiro sobre o mundo. Bem antes do nascimento da filosofia grega, várias sociedades desenvolveram a noção de que, por trás dos fenômenos visíveis, havia uma ordem invisível.

Essa ordem natural imanente foi compreendida de várias formas: o cosmos dos gregos, o tao dos chineses e o dharma dos indianos são conceitos que apontam (cada um à sua maneira) para a existência de uma ordem que não enxergamos, mas que devemos ser capazes de reconhecer para podermos viver adequadamente neste mundo.

Tal ordem imanente não se limita a estabelecer interações regulares entre os fenômenos. Ela define os papéis que devem ser desempenhados por cada um dos seres: cada animal, cada planta e cada pessoa tem um lugar definido. Quem vive conforme a ordem, pratica ações justas e pode encontrar felicidade, pode ter uma vida completa, pode ter o benefício dos deuses. Quem vive em desacordo com a ordem fatalmente enfrentará dificuldades, enfrentará a ira divina e fatalmente será infeliz, nesta vida ou em outra.

Embora a ordem imanente não seja percebida diretamente pelos sentidos, nós devemos ser capazes de conhecê-la indiretamente, por meio da observação cuidadosa de suas consequências. Segundo Platão, é o nosso intelecto que nos compele a reconhecer a existência de uma ordem natural subjacente, sem a qual o mundo não teria explicação nem justificativa. Uma realidade despida de ordem e de sentido era algo tão absurdo para Platão que ele considerou mais plausível afirmar que a realidade era composta por dois mundos interligados: o mundo visível, composto de coisas perecíveis que podem ser apreendidas pelos nossos sentidos, e um mundo invisível, composto por ideias eternas e imutáveis, que somente se apresentam à nossa razão.

O legado da filosofia grega nos indica a necessidade de compreender o entrelaçamento desses dois mundos, mas com o reconhecimento de que era mais importante (e mais difícil) conhecer a ordem subjacente. Esse dualismo era central para as perspectivas antigas: de um lado, o corpo, os sentidos, um mundo físico e perecível; de outro, a alma, o intelecto, os valores de justiça e de bem, um mundo metafísico e eterno.

Durante séculos, as pessoas buscaram compreender o mundo físico como uma espécie de manifestação dessa ordem superior, que determinava o modo de ser (a essência) de cada objeto e as suas formas de interação. Nesse tipo de perspectiva holista (em que tudo é visto como parte de uma ordem totalizante), uma teoria moderna da ciência provavelmente seria sentida como incompleta. Os fenômenos não tinham apenas existência, mas tinham também um significado, dado por sua relação com a ordem imanente: a vida, a morte, as transformações, os movimentos celestes, as reações químicas, tudo fazia parte dessa grande ordem. Entender o movimento dos astros era também desvelar a intencionalidade divina que estava por trás de tudo (nas vertentes deístas), ou perceber o fluxo inexorável do tao (em vertentes que dispensavam divindades e se concentravam apenas na ordem natural).

É nesse contexto que podemos nos perguntar qual é o sentido da vida. Não apenas da nossa vida pessoal, mas da Vida, que partilhamos. Para onde vamos? não é simplesmente uma pergunta sobre itinerários a serem percorridos, mas sobre destinos a serem realizados. A filosofia grega não nos estimula a uma investigação autônoma do mundo físico e de suas regularidades, mas nos impele a buscar as “causas primeiras”, as “verdades transcendentes”, as “causas não causadas”, as “ideias”, as “formas perfeitas”. E todos esses são elementos da ordem natural imanente, da qual fazemos parte e que torna o mundo um lugar organizado e compreensível.

Nessa perspectiva, a física e a ética eram muito próximas: a primeira estuda as regras que organizam o mundo físico, a segunda estuda as regras que organizam as comunidades humanas. Ambos os conjuntos de regras deviam ser consistentes, pois ambos eram subconjuntos da mesma grande ordem. Durante muito tempo, chamou-se de filosofia esse conhecimento integrado de tudo o que existe.

A ciência moderna rompeu essa unidade da ordem natural e a grande unidade da filosofia. René Descartes, por exemplo, acreditava na existência dessa grande ordem e na necessária existência de um Deus que garantisse a estabilidade do mundo. Todavia, no Discurso sobre o Método (de 1637), ele sugeriu que deveríamos explicar o mundo físico como se ele fosse um grande mecanismo, compreendido pela interação de suas partes e não por finalidades imanentes ou decorrentes de um plano divino (Descartes, 2001). Com isso, Descartes ofereceu compreensão filosófica para a atividade que já vinha sendo realizada pelos cientistas modernos (como Galileu, Kepler e Francis Bacon, que eram seus contemporâneos), que se limitavam a explicar os fenômenos a partir de suas interações mecânicas visíveis.

A ciência não deveria tentar descobrir a grande ordem invisível e perfeita, mas apenas explicar os padrões de interação regular entre os fenômenos. O cientista precisa observar os fatos e explicá-los a partir de suas conexões causais.

Essa concentração nos fatos, contudo, nunca foi perfeita, pois os fenômenos sempre são compreendidos dentro de um quadro conceitual que nossa cultura nos oferece. Sabendo disso, Descartes propôs uma solução radical: abandonar todo o saber antigo porque ele não sabia em que medida se tratava de conhecimento verdadeiro ou mera reprodução de preconceitos estratificados. Sua proposta era recomeçar do zero, mas com bases sólidas.

Apesar de interessante, a proposta cartesiana não era realista, porque as nossas próprias descrições dos fatos são elaboradas contra o pano de fundo desses repertórios compartilhados de conhecimentos e crenças, que determinam uma espécie de horizonte de compreensão.

A filosofia da linguagem do século XX nos ensinou que não somos capazes de criar explicações puramente objetivas para os fatos. Porém, o reconhecimento desse limite não deve nos levar a dizer que todos os conhecimentos são equivalentes. Por mais que não exista um lugar da observação puramente neutra e factual, nós podemos desenvolver um olhar crítico com relação às culturas em que estamos imersos.

Embora seja impossível exigir neutralidade, espera-se que os cientistas atuais cultivem um nível razoável de ceticismo quanto a esses quadros conceituais, que são reconhecidamente provisórios e imperfeitos, mas também indispensáveis. A ciência contemporânea está ligada ao estabelecimento desse olhar crítico, que nos permite rever nossas percepções sobre o mundo a partir de estratégias cognitivas que nos conduzam a desenvolver teorias capazes de explicar as complexidades que conseguimos observar.

É por isso que o criacionismo não é uma explicação científica, enquanto a teoria da evolução é. O terraplanismo não é frágil porque a ciência tem modelos objetivamente verdadeiros, mas porque o terraplanismo não consegue articular uma série de fatos que observamos (a não ser com o malabarismo de apelar para uma teoria da conspiração). A tese olavista do marxismo cultural não é frágil por ser conservadora e cristã, mas porque ela precisa distorcer demasiadamente os fatos conhecidos para que se encaixem em sua narrativa cristã e conservadora.

Nesses tempos de pandemia, enfrentamos a cada dia os limites do conhecimento científico (que não tem muitas das respostas que gostaríamos de ter), mas isso não justifica que misturemos o pouco que sabemos com segurança sobre a COVID-19 com as várias teorias mirabolantes que circulam pelos grupos de WhatsApp. O embate entre um conhecimento crítico e as crenças socialmente compartilhadas continua aceso, assim como o debate incessante que existe nas próprias ciências.

No caso dos cursos de metodologia, interessa-nos especialmente uma das facetas desse embate: a contraposição entre os saberes compartilhados pelos especialistas e o aparecimento de novas teorias, que desafiam frontalmente as explicações que não são hegemônicas no senso comum das pessoas em geral, mas aquelas que são hegemônicas dentro de uma comunidade de especialistas: como médicos, juristas ou engenheiros. No contexto da pandemia atual, o exemplo mais claro desse embate pode ser encontrado na tortuosa história do médico Ignaz Phillip Semmelweis, que viveu em meados do século XIX.

2. A história de  Ignaz Semmelweis

Semmelweis era um médico húngaro, que se graduou em 1844, época em que a chamada “febre puerperal” era muito comum nas maternidades europeias. Dois anos depois o jovem médico de 28 anos tornou-se assistente do principal obstetra do Hospital Geral de Viena, instituição na qual a Maternidade era segmentada em duas divisões, que ofereciam serviços gratuitos, por serem voltadas ao ensino de médicos (na Primeira Divisão) e de parteiras (na Segunda Divisão) (Kadar e outros, 2019).

Ocorre que o índice de mortalidade por febre puerperal da Primeira Divisão era de cerca de 9%, o que significava uma mortalidade praticamente 3 vezes maior que na Segunda Divisão. (Kadar e outros, 2019) As clínicas atendiam em dias alternados, mas muitas mulheres pediam para ser atendidas na Segunda Clínica em virtude da merecida má reputação da Primeira Clínica. (Ataman e outros, 2013)

Segundo Ataman e outros, Semmelweis tentou compreender as razões dessa discrepância, isolando as variáveis que podiam explicar tal diferença. Uma explicação plausível poderia estar na superlotação, mas o fato é que a Segunda Clínica tinha sempre uma proporção maior de pacientes. Outra explicação poderia estar em uma diferença de procedimentos, mas o fato é que as duas clínicas utilizavam os mesmos protocolos. O resultado dessa análise terminava apontando para uma situação enigmática: a única diferença substancial parecia ser a das pessoas que trabalhavam nesses dois locais, e isso não parecia fazer sentido.

Em 1847, ocorreu um fato que fez com que Semmelweis formulasse uma explicação que não tinha ainda sido avaliada. Seu amigo Jakob Kolletschka, médico patologista forense, faleceu vítima de sintomas muito parecidos com o da febre puerperal, depois que um estudante acidentalmente o cortou com um bisturi, enquanto eles realizavam uma autópsia. Isso fez com que Semmelweis intuísse que, se a doença que acometeu Kolletschka seguiu o mesmo processo da febre puerperal, a causa deveria ser a mesma. (Kadar e outros, 2019)

Como a morte de Kolletschka parecia ter decorrido do corte acidental, ele propôs a ideia de que haveria uma relação causal entre a doença e a contaminação cadavérica, o que poderia explicar a alta mortalidade da Primeira Divisão, tendo em vista que os estudantes de medicina realizavam autópsias como parte de seu treinamento, enquanto as parteiras não.

Por mais que essa tese pareça evidente para nós, que somos ensinados desde cedo sobre o papel dos micro-organismos nas doenças, essa era uma tese que não era aceita pelo círculo médico de Viena naquela época. Tanto é assim que a tese de Semmelweis era a de que certas “partículas cadavéricas” passavam para as mãos dos estudantes e professores e que eram essas emanações dos cadáveres que causavam a doença. Mesmo para Semmelweis, era totalmente estranha a tese de que uma doença poderia ser causada por formas de vida invisíveis.

A observação cuidadosa dos fatos indicou que a febre puerperal era contagiosa e que o contágio estava relacionado ao contato dos médicos com cadáveres. Semmelweis considerou que essa conclusão era sólida, apesar de a teoria médica de sua época não oferecer uma explicação adequada de como essa contaminação operava.

Tal diagnóstico levou Semmelweis a propor uma solução para o problema: que todos os médicos lavassem a mão com hipoclorito de cálcio antes de realizar partos. Ele chegou a essa conclusão após fazer experimentos com várias substâncias e concluir que o hipoclorito era a mais capaz de remover o odor característico que restava nas mãos depois de realizar uma autópsia (Kadar e outros, 2019).

A lavagem das mãos antes do parto reduziu imediatamente o índice de mortalidade de 7,8% para 1,8%. Nos meses seguintes, houve episódios de novas mortes, cuja causa Semmelweis terminou por identificar que não eram as autópsias, e sim o fato de que algumas pacientes tinham doenças infecciosas. Com isso, ele mudou sua explicação: em vez de “partículas cadavéricas”, ele propôs que a causa da febre puerperal estava em alguma forma de “matéria orgânica animal em decomposição”. (Kadar e outros, 2019)

Tal percepção fez com que o protocolo de profilaxia fosse estendido: a lavagem, antes necessária apenas depois do contato com os cadáveres, passou a ser exigida entre quaisquer atendimentos. Além disso, criou-se também um protocolo de desinfecção de todos os instrumentos que entraram em contato com as pacientes, o que possibilitou que a incidência de febre puerperal na Primeira Divisão (dos médicos) chegasse a ficar ligeiramente abaixo da que ocorria na Segunda Divisão (das parteiras). (Kadar e outros, 2019)

Tais resultados fizeram com que a prática de lavar as mãos com uma solução de hipoclorito continuasse a ser usada no hospital. Todavia, as explicações de Semmelweis sobre a origem da doença foram rejeitadas por serem incompatíveis com as teorias médicas da época. Não se afigurava razoável a ideia de que tal febre pudesse decorrer da matéria orgânica em decomposição, pois o conhecimento médico hegemônico indicava não haver uma causa única para a febre puerperal. O fato de que esta doença que se manifestava de várias formas fazia com que os médicos considerassem haver cerca de 30 causas diferentes para tal condição (Kadar e outros, 2019). Tampouco parecia plausível a tese de que essa enfermidade era a mesma que atingiu o patologista Kolletschka.

Em 1848, Semmelweis tornou públicos os resultados preliminares de uma maneira pouco convencional: publicou-os em um editorial da Revista da Sociedade Médica de Viena e convidou os chefes de outras maternidades a confirmar suas conclusões. Todavia, a maioria das respostas que foram recebidas foram em sentido negativo, especialmente porque era rejeitada a tese de Semmelweis de que a febre puerperal era uma espécie de infecção causada pela introdução de um agente externo.

Não se tratava propriamente de uma rejeição dos resultados da profilaxia (que por vezes nem chegava a ser tentada), mas principalmente de uma rejeição do conceito de doença como infecção, que estava na base do diagnóstico de Semmelweis (Kadar e outros, 2019).

Em seu livro de 1861, intitulado “A etiologia, o conceito e a profilaxia da febre puerperal”, Semmelweis lamentou que suas ideias não tenham sido aceitas pela comunidade médica: “em 1854, em Viena, o lugar em que minha teoria nasceu, 400 pacientes morreram de febre puerperal. Nas publicações médicas, meus ensinamentos são ou ignorados, ou atacados”. Depois de sua precoce morte aos 47 anos, em 1865, a sua tese foi sendo gradualmente reconhecida, inclusive por seus críticos mais ferrenhos, que se rendiam à eficácia da profilaxia. Porém, um reconhecimento mais geral somente veio a ocorrer depois que foi acatada a teoria microbiana de Louis Pasteur, que demonstrou que várias doenças eram causadas por micro-organismos. (Kadar e outros, 2019).

3. Características dos discursos científicos

A história de Semmelweis nos mostra alguns pontos interessantes para compreender a posição atual dos pesquisadores no direito. A primeira é a de que uma sensibilidade científica precisa estar aberta a uma observação dos fatos e à busca de interpretá-los sem estar demasiadamente presa às explicações tradicionais. Olhando do momento atual, pode ser difícil entender a posição dos médicos que rejeitaram as suas hipóteses. Todavia, se tentarmos nos colocar no lugar dos colegas de Semmelweis, talvez cheguemos a conclusões um pouco diversas.

A situação que ele enfrentava é relativamente comum na ciência: a observação dos fatos mostra padrões que não são explicáveis pelo conhecimento existente e conduziu Semmelweis à formulação de hipóteses inovadoras. Inobstante, essas hipóteses não eram tão melhores do que as explicações antigas, pois elas também sofriam de limitações e precisaram de novos desenvolvimentos para que a comunidade médica as percebesse como mais sólidas que as noções correntes.

“Partículas cadavéricas” não eram uma explicação tão boa, nem para os padrões da época, nem para os nossos. “Matéria orgânica animal em decomposição” é uma causa mais geral, que explica casos não englobados pela primeira hipótese, mas esta é uma definição muito imprecisa. Além disso, a tese vigente na época, de que a febre puerperal tinha causas múltiplas, parecia consistente com as autópsias das mulheres mostrarem resultados muito diferentes entre si. Tal multiplicidade de situações também parecia incompatível com a hipótese de causa única, formulada por Semmelweis. Por mais que fosse claro que o uso da solução de hipoclorito reduzia a mortalidade, não havia uma explicação sólida capaz de explicar tais resultados.

Outro problema da tese de Semmelweis é que ele somente veio a publicar seus resultados definitivos quinze anos depois dos primeiros experimentos. Nesse meio tempo, houve a publicação de resultados provisórios, mas boa parte das pessoas que ouviram falar de suas experiências com o hipoclorito tiveram acesso a narrativas de segunda mão. Tais relatos eram insuficientes para que os médicos compreendessem exatamente o sentido e o alcance das propostas de Semmelweis, especialmente o significado de sua inovadora afirmação de que a febre puerperal teria uma causa única.

Apesar dessas dificuldades, a abordagem de Semmelweis nos mostra bastante sobre a estrutura do discurso científico e sobre o seu tensionamento com relação ao discurso dogmático, baseado nas concepções compartilhadas (sobre medicina ou direito).

3.1 O discurso científico é baseado em evidências

Semmelweis poderia ter buscado suas respostas nos modelos explicativos sobre as doenças, sobre os equilíbrios de fluidos corporais, sobre os quatro humores, sobre os miasmas (o “mau ar” que se acreditava espalhar as doenças). Porém, em vez de se concentrar nas explicações consolidadas, o obstetra húngaro apresentou uma tese inovadora que ele buscou justificar diretamente com base nas evidências fáticas.

Além disso, ele testou a sua hipótese por meio de um experimento cujos resultados deveriam servir como critério para determinar a aceitabilidade ou não de sua hipótese. Se a doença fosse causada por partículas cadavéricas, então uma lavagem de mãos deveria ser capaz de eliminar essas partículas. Assim, bastava comparar os resultados de duas situações, em que a única variação era justamente o fato de os médicos lavarem as mãos do modo definido por Semmelweis.

3.2 Construção de modelos explicativos baseados em relações de causalidade

Para articular suas hipóteses e os resultados alcançados, Semmelweis articulou explicações causais: ele partiu dos pressupostos de que cada doença tem uma causa determinada e de que a interferência nas causas deve gerar impactos na contaminação ou no tratamento.

A tese de que há uma influência causal entre o uso do hipoclorito e a redução da mortalidade se revelou sólida. A explicação dada para essa relação não era convincente, mas a verificação de que a introdução isolada de um fator novo está correlacionada com uma queda de 90% na mortalidade é um indicador muito robusto de causalidade.

De fato, a ciência trabalha com interferências muito mais leves. Hoje, em plena pandemia de COVID-19, diariamente ouvimos falar de protocolos que reduziram a mortalidade em cifras muito menos dramáticas, e que por isso mesmo levantam dúvidas sobre se esses estudos comprovam a eficácia dos tratamentos testados. Quando os impactos são relativamente pequenos e isolar a influência dos fatores é complicado, torna-se muito difícil a tarefa de afirmar a existência de conexões causais.

O próprio surgimento da ideia de Semmelweis somente foi possível porque ele teve a oportunidade de analisar uma situação na qual havia a divisão da maternidade em duas clínicas, diferenciadas pela presença ou não de estudantes de medicina. É muito raro que o mundo nos ofereça, assim, a divisão dos dados que viabiliza conclusões sólidas. Bem mais normal é que tenhamos nós que segmentar as experiências para tentar isolar as consequências de cada uma das variáveis estudadas.

Essa grande dificuldade dá especial peso às teorias estatísticas que nos oferecem modelos para afirmar que certas correlações (ou seja, variações no mesmo sentido) implicam causalidade.

3.3 Somente evidências empíricas podem ser usadas como argumentos para sustentar uma teoria

Um dos problemas enfrentados por Semmelweis é que suas ideias não foram descartadas apenas porque explicavam mal os fatos, mas porque elas eram incompatíveis com as teorias vigentes sobre o que é doença.

No direito, temos hoje em dia teorias semelhantes às da época de Semmelweis sobre o que é decidir, o que é interpretar, o que constitui o direito e sobre os fatores que influenciam uma decisão judicial. Essas teorias tendem a descrever o direito como uma atividade racional, de tal forma que certas interpretações podem ser consideradas objetivamente válidas, por observarem alguns critérios hermenêuticos. Além disso, elas descrevem as características que deve ter uma interpretação para ser considerada “correta”.

Quais são os critérios usados para justificar que uma determinada interpretação é correta? Embora haja vários modelos hermenêuticos diferentes, poucos deles utilizam evidências empíricas como critérios interpretativos válidos.

Uma interpretação não é correta em função de fatos observáveis, mas em função da observância de certos critérios dogmáticos, que fazem parte da cultura jurídica e não dos fatos observáveis. Por isso, é comum que os juristas em geral se comportem, em grande medida, como os colegas de Semmelweis: avaliando as teses novas com base em sua coerência com as explicações vigentes, e não com base em sua capacidade de articular devidamente os fatos observados.

3.4 Teorias como modelos explicativos de relações entre fatos

O caráter dogmático dos discursos jurídicos faz com que sejam privilegiados os modelos normativos (que orientam a prática, definindo padrões de condutas a serem realizadas) em vez de modelos explicativos.

Os modelos normativos podem usar diretamente a noção de “dever”, mas eles também podem optar por construções alternativas, como a definição de certas “finalidades que devem ser buscadas”. Nessa versão, mais típica dos discursos jurídicos, é possível utilizar uma linguagem descritiva (que fala de princípios e de valores como objetos que podem ser conhecidos objetivamente), pelo fato de que há uma conexão deôntica implícita (a de que os princípios corretos devem guiar a ação).

No caso das ciências sociais, os modelos explicativos são centrados em explicar o que os vários agentes e instituições efetivamente fazem. No caso do direito, o comportamento dos atores jurídicos se dá por meio da enunciação de discursos (sentenças, contratos, acórdãos, etc.), o que gera uma peculiar tensão: a tensão entre o que um magistrado diz e o que um magistrado faz.

Um magistrado pode afirmar que está aplicando rigorosamente a letra da lei, quando interpreta a lei (consciente ou inconscientemente) de acordo com seus parâmetros pessoais de justiça ou com seus interesses político-partidários. Toda decisão judicial afirma que aplica a lei de maneira estrita, mesmo quando não faz isso. Os próprios fundamentos de uma decisão podem ser uma justificativa vazia, que não corresponde aos motivos reais do julgamento.

A dogmática jurídica se concentra demasiadamente sobre os discursos que são aceitáveis, sobre os argumentos que são reconhecidos como sólidos. Mas ela se concentra pouco sobre o que fazem efetivamente os juízes quando decidem, sobre os fatores que podem ser correlacionados com as decisões (e que nem sempre são os argumentos, mas podem ser o partido do réu, o gênero do acusador ou as concepções de bem do julgador).

3.5 Teorias podem ser refutadas por observações empíricas

O caráter normativo da dogmática altera o impacto das observações empíricas nas teorias jurídicas. Se uma teoria afirma que o poder judiciário “deve agir de certa maneira” e as observações fáticas indicam que ele age de maneira diversa, a conclusão não é de que a teoria dogmática descreve equivocadamente a prática judicial, mas que o judiciário atua de modo errado.

Isso se reflete especialmente no que toca às próprias categorias que organizam a percepção da atividade judicial. Um dos pontos mais problemáticos das teorias atuais é que continuamos encarando as decisões judiciais como decisões de juízes, que é a forma tradicional de lidar com elas. Porém, nas últimas décadas, as decisões de tribunais superiores se tornaram cada vez mais produtos de um gabinete e não de uma pessoa.

Inobstante esse reconhecimento de uma mudança empírica no funcionamento do judiciário (a ampliação dos gabinetes e do número de decisões), essa mudança interfere pouco na ideia de que a decisão judicial pode ser referida ao magistrado, como seu “autor”.

Quem é o autor de um smartphone? As pessoas que projetam o seu chip? As pessoas que projetam seu software? A empresa que é dona da sua marca? Obras que envolvem um esforço coletivo coordenado de milhares de pessoas desafiam as noções tradicionais de autoria.

Os parlamentos do século XIX desafiaram as noções jurídicas de vontade do legislador forçando a criação de novas categorias, mais abstratas e idealizadas, como uma suposta vontade da lei. Esses trânsitos teóricos foram importantes para criar teorias adaptadas a um direito legislado por parlamentos.

Um trânsito parecido parece ocorrer hoje em dia com relação às decisões judiciais. As decisões institucionais dos Tribunais já eram vistas como decisões coletivas, mas temos categorias muito idealizadas para lidar com elas, pois é comum falarmos da opinião do Tribunal como se ele fosse uma pessoa e não uma coletividade. Opinião do Tribunal e a posição da Corte são categorias que guardam problemas muito semelhantes à vontade do legislador.

Nesse contexto, talvez fosse o caso de renovarmos as nossas teorias, redimensionando o que chamamos de decisão, colocando em dúvida as relações entre decisão e intenções, entendendo que as decisões são obra de um processo coletivo de criação.

Essas novas explicações, essas novas teorias (que estão por ser desenvolvidas) devem ser avaliadas em função de sua capacidade para explicar as observações empíricas que efetuamos, sobre o comportamento efetivo das cortes. Porém, é muito comum que essas explicações baseadas na observação dos fatos sejam rejeitadas pelos juristas porque elas não oferecem as respostas que eles esperariam encontrar.

3.6 Ceticismo quanto aos discursos baseados apenas na experiência e na autoridade

Se um pesquisador avalia a capacidade das ADIs para garantir os direitos sociais, ele pode chegar à conclusão de que ela não tem capacidade de realizar esse objetivo (ao menos do modo como ela é compreendida e manejada pelo STF hoje em dia). Inobstante, é bem possível que os ministros do STF e seus assessores tenham uma visão diferente, inspirada pela sua própria vivência.

Mas a experiência pessoal, as intuições, as percepções individuais não são bons critérios para avaliar uma teoria científica. Nossas percepções são demasiadamente influenciadas por nossos valores, nossas concepções de mundo, nossas ideologias políticas. A ciência precisa lidar com essa complexidade e isso nos aponta para a necessidade de reflexões metodológicas explícitas.

Enquanto atividade técnico-profissional, várias das opções técnicas dos juristas (nas decisões e nas argumentações) são baseadas nas expectativas projetadas por sua experiência pessoal. Para superar os limites dessa experiência, seria necessário que os juristas fizessem levantamentos de dados mais amplos, que possibilitassem observar um conjunto de fatos mais amplo do que aquele que lhes é proporcionado por suas vivências pessoais. Essa, porém, não é a realidade típica dos juristas nem de suas pesquisas.