1. Estudos e Pesquisas

1.1 Buscas e Pesquisas

Pesquisa é uma investigação voltada a desenvolver o conhecimento de determinado campo, seja produzindo novos saberes ou avaliando partes do conhecimento existente, seja para reforçá-las ou para refutá-las. Embora seja comum que pesquisadores digam que estão "realizando um estudo" sobre determinado tema, você somente conseguirá formular adequadamente um projeto de pesquisa se tiver clareza sobre as fronteiras essas duas atividades.

A palavra pesquisa se relaciona com a palavra perquirir, que significa buscar intensamente. Trata-se de uma palavra originada do latim perquirere, formada pela união da palavra quaerere, que significa buscar, reforçada pelo prefixo per, que indica intensidade. Essa mesma combinação está na base da palavra francesa recherche (chercher é buscar, e re também indica intensidade), que por sua vez é a origem da palavra inglesa research. Pesquisar, portanto, é realizar uma investigação voltada a descobrir algo.

Embora as pesquisas sempre busquem alguma coisa, não devemos tratar a busca de informações em um banco de dados como se fosse uma pesquisa. A língua portuguesa tem vários usos para o verbo pesquisar, que é empregado em expressões como “pesquise no dicionário o sentido de uma palavra” ou “realize uma pesquisa de jurisprudência sobre casamento de pessoas do mesmo sexo”. É nesse mesmo sentido que a página inicial do Google, em português, indica que você pode “pesquisar no Google”:

Embora o Google utilize a palavra pesquisar, e que tal uso seja possível na língua portuguesa, a tradução mais precisa de search não é pesquisar, mas buscar. O que os diversos mecanismos de busca efetuam é procurar a ocorrência de certas expressões em um banco de dados, retornando resultados em que a expressão foi encontrada.

As pesquisas acadêmicas também procuram algo: responder a indagações cujas respostas são desconhecidas. Por seu turno, o Google busca documentos que se relacionam com determinados termos. Se você apresentar ao Google uma questão que poderia ser objeto de uma pesquisa acadêmica (por exemplo: qual é o tempo médio de julgamento de uma ADI?), o algoritmo retorna alguns resultados em menos de um segundo.

O que o Google faz é tratar as suas palavras como um tema: ele busca documentos que se relacionam com os termos inseridos no mecanismo de busca, a partir de um algoritmo que atribui um valor de relevância para cada resultado. No exemplo acima, o documento que aparece como mais relevante é um artigo republicado pela Anamatra no site jusbrasil.com.br, que efetivamente contém uma resposta para a nossa questão, indicando que o tempo médio de julgamento é de seis anos.

Esse texto é a cópia de uma reportagem publicada pelo jornal “O Globo”, em 2014, e que trata de conhecimentos produzidos pela FGV Direito Rio, posteriormente publicados no relatório de pesquisa Supremo em Números III: O Supremo e o Tempo. Esse é um importante trabalho realizado por pesquisadores da FGV, mas é sintomático que o primeiro resultado da “pesquisa” do Google não seja o relatório original em que os dados são expostos, mas um texto de divulgação dessa pesquisa, fruto provavelmente da assessoria de imprensa da GV-Rio.

Embora tenha sido o trabalho da equipe coordenada por Falcão, Hartmann e Chaves que mensurou o tempo médio de tramitação, o texto considerado mais relevante foi a republicação de um artigo jornalístico que trata especificamente dos longos tempos de tramitação. Isso indica que o algoritmo privilegia textos menores e mais diretos, escritos diretamente em HTML, e não o PDF de 150 páginas que veicula o relatório de pesquisa.

Para buscar textos com relevância acadêmica, você pode optar por utilizar o Google Acadêmico (scholar.google.com.br), que deveria ter critérios mais próximos daqueles utilizados pelos pesquisadores. Todavia, a repetição da busca anterior leva a um resultado frustrante: o Google recupera uma série de arquivos em PDF, que têm as palavras que foram pesquisadas, mas a maioria deles não responde à nossa questão.

O primeiro resultado tem um vínculo indireto com nossa pergunta, tratando-se de uma monografia acerca da jurisprudência do STF em ações relativas ao federalismo, escrita por um estudante da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP). Já os outros textos não se relacionam com a nossa dúvida, embora neles ocorram as palavras usadas como parâmetro de busca.

Esse exemplo nos sugere que, previsivelmente, a utilização de web browsers para responder perguntas de pesquisa não nos leva muito longe. Os principais resultados de interesse acadêmico nem sempre são retornados, a relevância científica dos textos não é o critério de ordenação dos resultados e eles tampouco oferecem uma visão atualizada do tema. Ademais, as perguntas originais de pesquisa nos colocam frente a questões que não foram respondidas e que, portanto, não contam com respostas a serem buscadas nas páginas de internet.

1.2 Aprender x Descobrir

A busca do Google nos ajuda a localizar documentos potencialmente relacionados a determinados parâmetros. O Google não efetua (ao menos ainda) uma interpretação da sua pergunta. Tampouco realiza uma análise dos dados judiciais em busca de descobrir o tempo médio de julgamento. O que ele faz é tomar essa pergunta como uma expressão linguística e buscar textos que contenham referências diretas ou indiretas a essas palavras.

Trata-se de um instrumento muito útil para levantamento de dados, mas que precisa ser utilizado dentro de suas limitações e possibilidades. Quando lemos os textos retornados pela busca do Google, podemos aprender muitas coisas interessantes sobre ADIs, tempo e julgamento. Isso faz com que esse seja um ótimo instrumento de estudo, mas que seja um instrumento bastante limitado de pesquisa.

Neste ponto, devemos atentar para as diferenças entre estudos e pesquisas. É compatível com a língua portuguesa que um pesquisador fale de seus estudos quando ele faz referência a suas pesquisas. Todavia, por maior que seja a similaridade semântica entre esses termos, na linguagem comum, convém que o seu uso acadêmico respeite uma distinção que evita confusões metodológicas:

  1. o estudo é voltado a aprender;
  2. a pesquisa é voltada a descobrir, ou seja, produzir novos conhecimentos.

No estudo, aprendemos algo que não sabemos por meio do contato com as pessoas que sabem ou da leitura de textos que elas escreveram. Na pesquisa, buscamos descobrir relações que não são esclarecidas pelo conhecimento disponível.

No campo da ciência, os pesquisadores estudam o conhecimento que já foi produzido, com o objetivo de se capacitar para investigar aquilo que não sabemos. Essa originalidade faz parte de toda pesquisa científica.

O exercício pedagógico típico é o da relação ensino-aprendizagem, em que certos conteúdos são ensinados para as pessoas em formação. Os trabalhos acadêmicos da graduação são tipicamente trabalhos de estudo: leitura de textos predefinidos, busca de outras referências e sistematização dos conhecimentos aprendidos.

Esse estudo nos torna mais eruditos, no sentido de que passamos a dominar um corpo de conhecimentos que fazem parte da cultura de um povo (ou de um grupo profissional determinado). Nas faculdades de direito, a maior parte dos esforços dos estudantes é dedicada justamente ao estudo. É estudo a atividade que vocês realizam quando leem esse texto. Mesmo a busca de novas referências é também estudo: um exercício autônomo de estudo, que exige capacidades maiores do que a simples leitura dos textos indicados, e que gera resultados mais ricos, pois essa exploração gera contato com muitas ideias imprevisíveis.

A formação dos técnicos se dá por um misto de estudos (que oferecem o conhecimento teórico necessário) com atividades de aprendizagem prática (que, conduzidas sob orientação, permitem o desenvolvimento de competências, ou seja, de capacidades relacionadas à realização adequada de certas atividades).

Nos cursos de direito, a educação é basicamente um ensino técnico, que oferece aos alunos um repertório de conhecimentos e lhes proporciona a possibilidade de desenvolver as competências do velho trivium: compreender textos, argumentar e convencer. Esse tipo de abordagem não proporciona o desenvolvimento da competência específica dos cientistas, que é a de planejar e executar uma pesquisa.

1.3 Estratégias de gestão da ignorância

Frente à consciência de nossa própria ignorância, podemos estabelecer estratégias para gerir o fato de que saberemos sempre muito menos do que desejamos.

Uma das abordagens é a da gestão da ignorância pelo estudo. Esse é um processo em que partimos de uma dúvida pessoal (O que eu não sei?) e buscamos fontes de conhecimento capazes de suprir essa falta.

O estudo se orienta normalmente por temas (história do direito, direito comercial, contratos de compra e venda) e a amplitude do tema vai definir se os estudos serão mais panorâmicos ou mais especializados. O bom estudante precisa saber os locais em que o conhecimento está disponível e precisa ter instrumentos para diferenciar o conhecimento que é sólido daquelas informações que são inconsistentes.

Outra das abordagens é a gestão da ignorância pela pesquisa. Nesse caso, partimos de uma questão que não é apenas pessoal, mas coletiva: O que não sabemos ou sabemos mal?

A pesquisa se orienta por problemas, que veiculam justamente as perguntas que o conhecimento disponível não é capaz de responder. O estudo é sumamente importante, até porque a pesquisa é uma atividade exigente, cara e lenta. Se você pode obter os conhecimentos necessários por meio de estudo, não há nenhuma necessidade de gastar seus recursos pessoais (e muitas vezes recursos públicos) para investigar coisas que já estão devidamente mapeadas.

A pesquisa começa onde o estudo encontra seus limites.

Todo campo pode ser estudado, pois você sempre pode buscar os conhecimentos disponíveis sobre qualquer temática:

  • Direito
  • Artes
  • Arquitetura
  • Astrologia
  • Mitologia grega
  • Pecados mortais segundo São Tomás de Aquino
  • Habilidades dos pokémon de tipo fogo

Todo campo também admite alguma forma de pesquisa, na medida em que é possível buscar respostas para as perguntas que não são abrangidas pelo conhecimento disponível. No mínimo, é possível fazer uma investigação para mapear e consolidar informações que não existem de forma organizada.

Isso não quer dizer, contudo, que todo objeto de estudo pode ser objeto de pesquisa científica, pois esse é um tipo de investigação que opera de forma indutiva, a partir da observação de fatos.

1.4 As palavras e as coisas

A ciência é um discurso baseado na observação de fatos e os fatos são sempre singulares. O cientista acumula informações sobre fenômenos e busca identificar, nessas ocorrências, alguma espécie de padrão.

Os padrões podem ser inferidos a partir dos fatos, mas eles não são, em si mesmos, fenômenos observáveis. Lembre-se do cachimbo de René Magritte:

https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.dailyartmagazine.com%2Fpainting-week-rene-magritte-treachery-images%2F&psig=AOvVaw1B1KFaY_VRHMB3tZvywn9K&ust=1623156915851000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCMiwlLLJhfECFQAAAAAdAAAAABAS
René Magritte: 'La trahison des images'

Este quadro, de 1928, chamado A traição das imagens, é uma lembrança do fato de que a pintura de um cachimbo não é um cachimbo, mas uma pintura. O quadro, em si, é uma coisa, mas a coisa-quadro não é a coisa-cachimbo. De forma similar, a descrição de um padrão não pode ser confundida com um atributo dos objetos descritos: o padrão é sempre uma descrição, é sempre linguagem.

No caso do cachimbo, a distinção é mais fácil porque se trata de diferenciar uma coisa de um nome. Porém, no caso do direito (e de muitos fenômenos culturais), o objeto descrito já tem uma estrutura linguística. O processo não é uma coisa, no mesmo sentido de um cachimbo. O processo é um conjunto de textos, que relatam comportamentos humanos que se efetivam por meio da linguagem: tanto pedidos como decisões são enunciados linguísticos.

O processo é uma relação humana e os autos processuais são o relato dessas interações, de tal forma que o próprio objeto dos nossos estudos tem uma dimensão linguística inafastável (diferente dos cachimbos, das maçãs e dos planetas, que são coisas que existem fora da linguagem).

Para sermos mais precisos, cada cachimbo, cada planeta e cada interação humana pode ser observada como um objeto concreto. Mas, quando falamos dos cachimbos em geral ('cachimbos são diferentes de piteiras') ou dos planetas em geral ('planetas são diferentes de estrelas'), não tratamos de um objeto concreto, mas de um objeto abstrato: uma categoria linguística.

Objetos empíricos (ou seja, coisas) podem ser observadas no mundo: Plutão, ADI 6666, a maçã que está à venda no mercado. Populações de objetos (planetas, processos, cachimbos) não existem empiricamente, mas são recortes arbitrários: elas não são coisas, mas são conjuntos. A Terra pertence ao conjunto dos planetas porque ela tem certas características que permitem subsumi-la à categoria "planeta".

Quando falamos das "características de um conjunto", estamos em um alto grau de abstração: não se trata de qualidades de objetos concretos, mas de qualidades médias (ou preponderantes, ou mínimas, etc.) de um certo conjunto abstrato. É nesse grau de abstração que nos encontramos quando fazemos perguntas simples como:

  1. Qual é o tempo médio de julgamento de uma ADI?
  2. Qual é o número médio de andamentos de uma ADI?
  3. Qual é a idade média dos brasileiros?

A média de tempo de julgamento é um cálculo feito com base em uma série de observações particulares. O número médio de andamentos e a idade média dos brasileiros também.

Toda média é uma abstração. Não existe um "brasileiro médio", com uma "idade média". O que existe é um número, calculado somando-se a idade de todos os brasileiros e dividindo-se esse valor pela quantidade de pessoas brasileiras.

O gráfico abaixo indica o número de andamentos das ADIs e ADPFs ajuizadas até 2020. O número médio de andamentos é 44,7, mas seria absurdo pensar essa descrição como se houvesse um "processo médio", que tivesse 44,7 andamentos, até porque a própria ideia de um andamento fracionário não faz sentido, exceto como uma abstração.

A leitura adequada desses dados mostra que a grande maioria dos processos está distribuída em uma faixa em torno da média, que chamamos de desvio padrão. 83,7% dos processos estão localizados nessa faixa de 1 desvio padrão acima ou abaixo da média, sendo que apenas 16,7% estão acima ou abaixo dessa faixa.

A média e o desvio padrão não são grandezas existentes, mas são conceitos. São medidas que nos ajudam a compreender como o número de andamentos (ou as idades, ou os tempos de tramitação) se distribuem dentro de uma determinada população.

1.5 Indução e Dedução

Como podemos saber a média de idade de uma população? Isso somente pode ser descoberto por meio da observação da idade real de pessoas concretas. Nesse caso, você pode levantar dados com relação a cada uma das pessoas que compõem a população brasileira, uma abordagem tão cara e tão demorada que não se imagina que ela possa ser feita por um pesquisador de mestrado ou doutorado.

Não é por acaso que os censos somente são realizados no Brasil a cada dez anos. Além dessa abordagem censitária, também é possível uma estratégia amostral, que levante dados de uma parcela da população e, com base nela, faça inferências sobre a "idade média" da população como um todo.

Tanto nas abordagens censitárias como nas amostrais, o que fazemos é observar vários elementos concretos para fazer inferências acerca das características gerais de uma população. Essa passagem de uma multiplicidade de conhecimentos sobre elementos singulares para um conhecimento geral é o que chamamos raciocínio indutivo (ou simplesmente indução).

O levantamento de dados acerca de cada brasileiro e brasileira não é indutivo nem dedutivo. Trata-se apenas de uma descrição de um objeto concreto, que não nos oferece conhecimento de natureza geral, ou seja, conhecimento sobre uma população. Quando essas observações concretas geram uma série de dados (sobre cada brasileiro), podemos fazer uma inferência acerca da população brasileira (que nós não observamos, pois nossas observações ocorreram no nível das pessoas).

O censo coleta dados sobre indivíduos, mas seu objetivo não é falar das pessoas concretas, e sim da população que elas formam. É esse salto do conhecimento sobre elementos particulares (informações sobre objetos concretos) para um conhecimento geral (sobre as crenças religiosas ou sobre a renda dos brasileiros em geral) que é a marca do raciocínio indutivo.

A pesquisa, em ciências sociais e naturais, é tipicamente um exercício de indução: as informações são coletadas no nível dos objetos concretos, mas o conhecimento é produzido em um nível abstrato. Para construir a categoria abstrata de "eficácia vacinal", a medicina avalia a reação de uma série de pessoas a uma vacina. A psicologia avalia uma série de comportamentos individuais para afirmar, de modo genérico, que os humanos têm um "viés de confirmação" ou que atuam em diversos graus de "dissonância cognitiva".

A produção de novos saberes (ou a revisão de velhas ideias) exige essa confrontação com os fatos, pois as ciências naturais e sociais são discursos acerca de elementos empiricamente observáveis. Uma vez que nossas pesquisas indutivas nos ofereceram uma descrição suficientemente rica sobre os objetos que compõem uma população, podemos fazer inferências relevantes sobre essas populações de pessoas (os brasileiros), de processos (as ADIs), de fenômenos (como a fusão nuclear).

Tais descrições gerais nem sempre são úteis de forma isolada. A média de idade da população brasileira em 2021 pode não nos dizer muita coisa, mas a comparação desta média com a que existia em 2019 pode nos oferecer elementos para avaliar o impacto real da pandemia de Covid-19. Quando analisamos séries históricas de idades, podemos projetar uma expectativa de vida para as pessoas, que é uma informação relevante para diversas dinâmicas sociais, como a definição das idades para a aposentadoria.

Esse fato nos diz algo de relevante sobre o conhecimento científico: ele somente se torna relevante quando temos um conhecimento muito amplo, sobre muitas coisas, para podermos testar se os padrões que nossa intuição nos indica são efetivamente confirmados pelos dados observados. Quando temos poucas informações, o senso comum nos oferece respostas plausíveis, e a ciência não nos oferece nada.

No início da pandemia de Covid-19, a ausência de pesquisas sólidas fazia com que os médicos tivessem de tomar decisões baseadas em sua experiência e sua intuição. Naquele momento, vários tratamentos foram testados, e alguns deles pareceram ter bons resultados. O que a pesquisa científica nos oferece é uma estratégia rigorosa para testar essas intuições e verificar se elas são compatíveis com os dados observados (diretamente ou por meio de experimentos controlados). A sistematicidade, caracterizada pela existência de regras e métodos que orientam sua realização, também serve de critério diferenciador da pesquisa em relação aos simples estudos, que não necessariamente são guiados por parâmetros que possam atestar sua qualidade.

As pesquisas demandam tempo e investimento, e nos oferecem resultados mais confiáveis. Mais do que isso: são necessárias múltiplas pesquisas para que esses dados possam ser cruzados e possamos identificar padrões nos fatos suficientemente sólidos para que os resultados desse conhecimento sejam mais eficazes que a intuição de um médico experiente e as deduções que ele consegue fazer, a partir do conhecimento disponível.

Aqui entramos no raciocínio dedutivo: dado que temos um repertório de saberes de caráter geral sobre doenças (sobre patologias virais, sobre complicações pulmonares, sobre transmissibilidade de patógenos, sobre respostas imunológicas), um médico pode fazer inferências acerca dos melhores diagnósticos e tratamentos de um caso particular. Esse conjunto de conhecimentos gerais (ou seja, conhecimentos sobre populações de objetos) permite que um clínico trace estratégias plausíveis para a solução de uma situação concreta.

A formação de um médico consiste em dar a uma pessoa acesso a esse repertório de conhecimentos (tanto científicos como de senso comum) e em submetê-la a vivências que permitam desenvolver as capacidades de observar situações concretas com cuidado, identificar nelas os padrões que foram descritos na literatura médica e formular estratégias de enfrentamento adequado das patologias.

A clínica médica é um exercício dedutivo: buscam-se soluções particulares, a partir de conhecimentos gerais. A prática jurídica também é dedutiva: parte-se de uma cultura jurídica e de pesquisas científicas, com o objetivo de viabilizar que os profissionais do direito façam escolhas acerca da forma mais acertada de apresentar solicitações e de decidir questões.

A maior parte da formação dos juristas, assim como dos médicos e engenheiros, consiste na capacitação das pessoas para o exercício eficiente dessa prática dedutiva. Esses profissionais são altamente capacitados para analisar situações particulares complexas e oferecer soluções adequadas, a partir do repertório de conhecimentos disponíveis.

No caso do direito, esse repertório é o que chamamos de dogmática jurídica: um conjunto de parâmetros que viabiliza o exercício de atividades jurídicas como se fossem uma prática dedutiva, que extraia conclusões particulares a partir de certas proposições de caráter geral.

2. Modelos de pesquisas

Muitas são as coisas que não sabemos sobre o mundo e essa imensa ignorância pode ser mitigada pela realização de investigações voltadas a suprir as lacunas de nosso conhecimento. Essas pesquisas são normalmente movidas por três tipos de perguntas:

  1. Como as coisas são?
  2. Por que elas são assim?
  3. Como elas deveriam ser?

2.1 Modelos descritivos

A resposta às perguntas do primeiro tipo nos leva a construir modelos descritivos acerca do mundo.

Tenha sempre em mente que o modelo não é a realidade, assim como o mapa não é o território. Para usar a terminologia do item anterior deste texto, não se deve confundir as palavras com as coisas. O modelo é uma simplificação da realidade, que usa certas categorias linguísticas para descrever uma situação. Podemos mapear um território de várias formas, acentuando diferentes características, o que produzirá mapas com escalas diferentes e com identificação de características muito diversas (população, flora, relevo, direção das correntes, etc.).

É inútil fazer um mapa completo, com todos os dados disponíveis, pois ele seria ilegível. E é absurdo supor que existe um mapa verdadeiro e vários mapas falsos, pois cada mapa serve a algumas utilidades e não a outras. Um mapa-múndi não é mais ou menos verdadeiro do que um levantamento topográfico da Praça dos Três Poderes, em Brasília.

Os modelos descritivos são tipos de mapas: o pesquisador definirá a escala, escolherá os elementos a serem descritos, formulará sistemas de cores e elaborará legendas que permitam a devida compreensão. Essas cartografias são descritivas, na medida em que elas oferecem uma perspectiva sobre o objeto, a partir de um conjunto de conceitos que são definidos pelo cartógrafo-pesquisador.

Investigações descritivas são empreendimentos complexos, pois elas precisam articular observações empíricas cuidadosas com categorias teóricas bem desenvolvidas. Francis Bacon, um dos fundadores do método científico, buscou compreender as distinções entre calor e frio, entendidos como atributos diferentes que um objeto pode ter (1620). Para diferenciar essas duas propriedades, Bacon realizou uma observação cuidadosa das características das coisas quentes e das frias, com o objetivo de compreender como essas duas naturezas interferem nos objetos: por exemplo, o frio causaria contração, enquanto o calor causaria expansão.

Quatrocentos anos atrás, não ocorreu a Bacon que poderia haver um contínuo entre esses fenômenos e que a forma mais adequada de descrevê-los era em termos de uma categoria apenas (calor), cuja quantidade poderia ser maior ou menor nos objetos. Hoje, usamos uma outra estrutura descritiva: o frio não é visto como uma propriedade diferente do calor, pois cada objeto tem uma temperatura específica, dada pela energia térmica que ele comporta.

Esse é um exemplo de que toda pesquisa descritiva deve ser percebida como teórico-descritiva: não se trata apenas de enunciar certos fenômenos, mas de propor uma forma específica de descrevê-los, a partir do uso de certas categorias teóricas.

2.2 Modelos explicativos

Uma vez que o pesquisador conte com modelos descritivos adequados, ele pode realizar o que se espera do discurso científico: identificar padrões de interação entre fenômenos. Essa identificação conduz ao desenvolvimento de modelos explicativos, que respondem a questões que indagam sobre causas, consequências e interações entre fenômenos.

A ciência produz cartografias, mas o seu objetivo não é simplesmente o de descrever os fatos mapeados. Não se espera que um astrônomo simplesmente colete observações sobre os astros e suas posições em cada momento, mas que ele seja capaz de operar um raciocínio indutivo, que produza conhecimento geral sobre os astros, a partir das informações acerca de certos corpos celestes concretamente observados.

A indução é usada para construir descrições gerais e é também usada para construir explicações gerais que conectem os fatos descritos, mostrando como certos fenômenos interferem em outros:

  1. Certos medicamentos são capazes de interferir positivamente na saúde de pessoas contaminadas pelo vírus da Covid-19?
  2. Aumentos nos salários dos magistrados geram melhorias na prestação jurisdicional?
  3. Juízas mulheres, pelo fato de serem mulheres, são mais interrompidas nas sessões de julgamento?
  4. Existe uma relação entre o nível de renda e a expectativa de vida?

2.3 Modelos normativos: a dogmática jurídica

Chamamos de "dogmática jurídica" o conjunto de saberes que organiza a atividade jurídica, modelando as percepções valorativas de uma comunidade, suas sensibilidades teóricas, suas concepções de verdade, seus topoi retóricos. A dogmática não é um sistema de conhecimentos, mas é um conjunto heterogêneo de elementos, que podem ser articulados dentro de um discurso percebido como "tecnicamente adequado":

  1. cânones interpretativos (como "leis posteriores derrogam leis anteriores" ou "é vedada a analogia em matéria penal"),
  2. repertórios conceituais ("personalidade", "princípio da proporcionalidade", "direito real", etc.),
  3. estruturas textuais (como a tripartição das sentenças em relatório, fundamentos e dispositivo) e
  4. tópicos retóricos ("ad impossibilia nemo tenetur", "nulla poena sine lege").

Esses elementos formam a estrutura básica do discurso jurídico hegemônico na cultura de um determinado momento histórico. Discursos que operacionalizam esses conceitos são vistos como "técnicos" e por isso se tornam hábeis a participar das interações sociais ligadas ao direito: fazer solicitações, dar pareceres e decidir pedidos. Esses elementos discursivos formam uma "dogmática" justamente porque eles não podem ser questionados pelos discursos técnico-jurídicos, e eles não podem ser questionados justamente porque não se trata de "afirmações verificáveis sobre fatos", mas de parâmetros consuetudinários acerca do que é um discurso jurídico adequado.

Os discursos dogmáticos tratam o direito como um conjunto de critérios de decisão que possibilitam formular soluções objetivamente corretas, o que permite descrever a atividades dos juízes como interpretativa-aplicativa e não como política-decisória. No século XX, a crítica mais ácida dos discursos dogmáticos foi feita pelas várias vertentes do positivismo, que denunciaram o caráter político da prática decisória dos juristas e denunciaram as funções mistificadoras e ideológicas de uma dogmática que apresenta seus critérios como se fossem objetivos e técnicos.

Nos termos precisos de Hans Kelsen, a dogmática é um discurso baseado na "ficção" de que as normas são objetivamente válidas. Desenvolvendo essa perspectiva crítica do positivismo, Luis Alberto Warat formulou o conceito de "senso comum teórico dos juristas", para indicar que conjunto heterogêneo de elementos que compõem a dogmática são tratados pelos juristas como se a sua atividade fosse uma ciência e não uma dogmática. A ocultação de seu caráter ideológico é o próprio modus operandi dos discursos dogmáticos.

A medida da qualidade técnica dos discursos jurídicos é feita com base nesse conjunto heterogêneo de critérios, cuja estrutura tópico-retórica tem sido evidenciada nos últimos cinquenta anos, na esteira do giro pragmático da filosofia da linguagem. Apesar de manipularem uma dogmática, os juristas muitas vezes encaram a sua atividade como se fosse "científica", no sentido de que seria possível tomar decisões corretas, mediante raciocínios dedutivos que operassem adequadamente o "sistema jurídico", tal como descrito pela dogmática do século XX.

Em sua versão contemporânea, a dogmática jurídica tende a descrever o direito como um "conjunto de normas", que podem ser interpretadas a partir de certos critérios técnicos, o que permite a formulação da tese de que existe uma "interpretação correta" a ser buscada. Não é por acaso que juristas como Ronald Dworkin e Robert Alexy tenham sido incorporados pelo discurso dogmático contemporâneo, pois eles oferecem estruturas para considerar que certas decisões valorativas, que o positivismo apresenta como políticas, podem ser compreendidas como exercício de uma atividade técnica consistente na operação de critérios adequados de argumentação.

A ciência se dedica a produzir modelos descritivos e explicativos, que são formulados a partir da observação cuidadosa dos fatos, segundo certos repertórios de categorias teóricas. O conhecimento assim construído (na medicina, na sociologia, na psicologia, etc.) pode ser apropriado por profissionais das mais diversas áreas, quando eles enfrentam o desafio de tomar decisões concretas.

Os conhecimentos gerais, produzidos pela pesquisa científica, são hábeis a instruir os raciocínios dedutivos dos técnicos especializados, dos políticos e de qualquer pessoa que pretenda tomar decisões baseadas em evidências.

Ocorre, todavia, que o estudo dos fenômenos nos diz apenas sobre como eles são, e não dizem nada acerca de como eles deveriam ser. O fato de que as aves e as plantas vivem não lhes confere direito à vida. Os direitos e as pretensões morais não decorrem dos fatos, mas são parte das percepções desenvolvidas por uma cultura, que nos oferece parâmetros de avaliação.

Esses parâmetros avaliativos são utilizados pelas pessoas para definir as finalidades legítimas das ações humanas e as formas adequadas de interação social entre as pessoas. Tais parâmetros são parte integrante de uma cultura e são construídos de forma consuetudinária, a partir das formas como certos grupos humanos narram a sua história, identificam valores de justiça e definem suas formas de organização política.

Um sociólogo observa comportamentos sociais em busca de compreender como as pessoas se comportam, e ele pode evidenciar que certos grupos agem em função da crença em determinados valores políticos, religiosos ou morais. Mas devemos ter cuidado com a palavra "crença", pois ela tem um significado dúplice: podemos falar da crença como o "ato de acreditar", mas também usamos essa palavra para falar do "conteúdo em que acreditamos".

No primeiro sentido, trata-se de um objeto empírico: o ato de crer pode ser observado, descrito e explicado. Tais crenças sociais são passíveis de uma investigação empírica, voltada a identificar "em que as pessoas creem". Inclusive, podemos identificar objetivamente "quais são os valores que elas professam". Isso significa que um cientista pode conduzir investigações voltadas a identificar os valores sociais predominantes em uma sociedade, e pode concluir que certos valores "existem", no sentido de que eles são crenças compartilhadas de forma ampla em certo grupo.

Mas esses valores podem ser considerados objetivamente válidos?

Essa não é uma pergunta que a ciência pode responder, pois a validade não é uma qualidade empírica. A validade de uma norma ou de um princípio moral, entendida como a sua possibilidade de impor deveres, não é um atributo observável, mas é o conteúdo de uma crença social. O cientista pode afirmar que uma sociedade considera válido um princípio, mas não pode afirmar que certo princípio é objetivamente válido.

Ocorre que as questões propriamente jurídicas são problemas ligados à validade de certos direitos e deveres, o que faz com que não possamos responder a essas questões a partir de uma análise empírica dos fatos. Tampouco podemos responder questões hermenêuticas a partir de uma análise empírica:

Qual é a idade de aposentadoria de uma mulher trans: a idade dos homens ou a idade das mulheres?

Investigações empíricas podem nos mostrar os impactos orçamentários dessas alternativas, podem nos revelar possíveis impactos psicológicos nas pessoas afetadas, podem nos revelar o modo como a sociedade majoritariamente avalia essa questão. Porém, as pesquisas empíricas nada têm a nos dizer sobre a forma correta de interpretar uma norma, pois essa questão exige uma tomada de posição valorativa, uma hierarquização de valores que não pode ser inferida diretamente dos fatos.

Como os juristas precisam tomar decisões acerca das interpretações corretas e dos direitos válidos, os modelos descritivos e explicativos sobre fenômenos não são guias suficientes para a sua ação. Por isso, o repertório de saberes manejados pelos juristas não é constituído apenas por modelos descritivos e explicativos (que são produzidos atualmente pela ciência), mas é integrado principalmente por um conjunto de orientações práticas acerca de como deve ser tomada uma decisão.

Esses modelos têm um caráter normativo, e não explicativo. Eles nos oferecem critérios para tomar decisões adequadas, sendo que a formulação desses critérios não é um desenvolvimento científico, mas consuetudinário: cada cultura jurídica desenvolve um conjunto de parâmetros que rege os procedimentos interpretativos e decisórios.

3. A pesquisa no direito

3.1 Dogmática e Retórica

O estudo é uma atividade acadêmica fundamental, pois é por meio dos processos de ensino-aprendizagem que podemos formar profissionais que dominem o repertório de conhecimentos considerados relevantes por uma comunidade e que, com isso, possam tomar decisões práticas com base nesse conjunto de saberes socialmente reconhecidos. O estudo é a forma de reprodução social dos conhecimentos que uma comunidade julga relevantes, e ele é a base para a aplicação dedutiva que constitui a base dos discursos técnicos.

A formação técnica de juristas se dá por meio de uma combinação de estudos (que apresentam conhecimentos) e de vivências (que modelam subjetividades capazes de operar esses conhecimentos). Essa combinação também é a forma pela qual um médico aprende sobre os desenvolvimentos indutivos das ciências que interferem em sua atividade: biologia, farmacologia, química, psicologia, etc. A ciência é desenvolvida por meio de pesquisas, mas é reproduzida por meio de estudos.

A maior parte da academia jurídica está dedicada a essa forma de reprodução dos saberes dogmáticos. E, de fato, devemos reconhecer que toda atividade que exige decisões rápidas, baseadas em informações incompletas (como a medicina, o direito e a psicanálise, por exemplo), precisa operar com base nos referenciais dogmáticos cristalizados em uma certa cultura. As pesquisas científicas podem ser parte dessa dogmática (tendo um peso retórico específico), mas elas não têm como substituir os parâmetros dogmáticos (que não tratam apenas de padrões empíricos, mas também de valores e de critérios decisórios que ultrapassam os limites do discurso empírico das ciências).

Na década de 1990, a graduação como o mestrado eram compreendidos como lugares de ensino: a pós-graduação não era voltada à pesquisa, mas à formação docente, que exigia um ensino mais avançado, com a leitura e o debate acerca dos textos teóricos fundamentais, que não eram abrangidos pelos currículos do bacharelado. Desde então, houve uma mudança gradual, decorrente do fato de que os programas de pós-graduação passaram a ser avaliados pela sua capacidade de produzir pesquisas, o que estimulou que o Direito seguisse as outras ciências sociais, que têm nos mestrados e doutorados um espaço de formação de pesquisadores e de realização de investigações científicas.

Nas ciências sociais puras (como a ciência política ou a sociologia), essa configuração se explica pelo fato de que os cientistas políticos e os antropólogos são basicamente pesquisadores: são pessoas cuja formação os capacita para gerar conhecimentos novos em seus campos de atuação. Nas ciências sociais aplicadas, como o direito, essa mudança gerou uma tensão que continua mal resolvida: a pós-graduação continua sendo o local de formação dos professores que ensinarão dogmática, mas também se apresenta como um local de pesquisa científica.

Ocorre, porém, que diferentemente da medicina ou da ciência política, o repertório de conhecimentos a ser operacionalizado pelos profissionais do direito não decorre de pesquisas científicas. Esses profissionais são treinados no exercício do discurso dogmático, e a função do magistério jurídico é basicamente a de preparar novos técnicos habilitados na operação desse tipo de discurso, que tem um interesse muito indireto nas pesquisas científicas, visto que os conhecimentos ensinados nos cursos de direito (a dogmática) são produzidos pelos mecanismos consuetudinários que conformam a cultura jurídica.

A pesquisa científica é centrada na multiplicação de observações empíricas, a partir das quais são formuladas teorias cuja solidez é testada a partir de determinados mecanismos de avaliação, que chamamos de métodos. O cientista formula hipóteses explicativas e testa a sua compatibilidade com os fatos. O jurista não faz isso: ele formula teses e desenvolve estruturas retóricas de justificação.

De fato, a prática de médicos, engenheiros e administradores é semelhante à prática dos juristas: todos eles partem de um repertório de conhecimentos socialmente reconhecidos e buscam, por via dedutiva, resolver questões concretas a partir dos modelos descritivos, explicativos e normativos que regem a sua atividade. Toda atividade prática demanda a realização de escolhas e de valorações, que são orientadas por meio de parâmetros normativos (e não meramente explicativos).

Toda atividade técnica envolve o manejo de uma estrutura retórica de justificação das próprias escolhas, que são tratadas em termos de validade, de adequação ou legitimidade. Esses são conceitos que mediam a relação entre uma decisão e um sistema normativo que regula tais atividades, o que exige uma argumentação retórica voltada a justificar a validade da decisão, com referência aos parâmetros de validade socialmente definidos.

3.2 Pesquisa dogmática e modelos normativos

As pesquisas são investigações voltadas a produzir novos conhecimentos, seja na forma de modelos descritivos, explicativos ou normativos.

O desenvolvimento (ou aprimoramento) de modelos descritivos e explicativos segue a forma da pesquisa científica, tendo em vista que se trata de uma abordagem observacional indutiva.

O desenvolvimento de modelos normativos não se relaciona com abordagens científicas, mas com os parâmetros dogmáticos presentes na cultura jurídica. Nesse caso, a pesquisa segue uma argumentação dedutiva: são fixados os pontos de partida e busca-se mostrar que certas interpretações são incompatíveis com os parâmetros da dogmática, o que sugere que elas devem ser descartadas como entendimentos técnicos plausíveis.

O conhecimento produzido dessa forma não é empírico, mas sistemático-dedutivo: parte-se do pressuposto de que existe um sistema jurídico válido (composto pelos elementos reconhecidos na teoria de fontes da dogmática jurídica: regras, conceitos, princípios, valores, etc.) e busca-se mostrar que certas interpretações são consistentes ou incompatíveis com esse sistema. O resultado típico é um parecer, uma opinião técnico-jurídica, estruturada a partir dos padrões retóricos definidos pelo discurso dogmático.

Se estivéssemos no âmbito de um curso de "metodologia científica", deveríamos negar a tais investigações o título de "pesquisa", devido a sua falta de cientificidade. A ciência traça padrões de interação entre fatos, enquanto a dogmática jurídica traça padrões de interação entre certos enunciados deônticos, elaborando as conexões sistemáticas de um sistema jurídico.

Na academia jurídica, coexistem pesquisas científicas (que produzem conhecimento científico a partir de abordagens indutivas) e pesquisas dogmáticas (que produzem enunciados dogmáticos, a partir de abordagens dedutivas). Essas formas de abordagens produzem tipos diversos de conhecimento, que desempenham funções sociais diferentes, mas que convergem no sentido de que ambas as perspectivas propiciam uma revisão constante do repertório de conhecimentos a partir dos quais os juristas podem operar os raciocínios dedutivos que estão envolvidos na redação das petições, pareceres, votos e sentenças.

4. Ciência do Direito?

Dadas as características dos saberes científicos, não é possível encaixar a dogmática jurídica nas concepções modernas de ciência. Isso não diminui a relevância social dos papéis desempenhados pelos juristas, mas aponta para o fato de que parece mais razoável reconhecer à atividade jurídica o seu status tradicional: uma habilidade prática, também descrita como uma prudência.

A tradição medieval não conferia ao direito a mesma estatura da filosofia e de outros conhecimentos voltados à tarefa de compreender a ordem metafísica do mundo. Os saberes práticos, como o direito e a arquitetura, poderiam ser muito importantes para a vida das pessoas, mas não tinham a dignidade da teologia, da astronomia ou da lógica. Os juristas precisavam saber escrever contratos e testamentos, deveriam ser capazes de defender os acusados de forma eficiente, deveriam ser capazes de atuar nas cortes.

Tal como ocorria na Idade Média, não escolhemos hoje em dia nossos advogados em função de seu conhecimento científico sobre o mundo, mas em função de sua experiência, de sua habilidade pessoal, de suas conexões políticas, da capacidade que acreditamos que esses profissionais têm de nos oferecer orientação jurídica adequada e de defender nossos interesses em juízo.

A modernidade não mudou o estatuto prático do direito. Não é por acaso que a educação dos juristas se dava pelo trivium: pelo desenvolvimento das habilidades retórico-argumentativas que possibilitavam o exercício eficiente de suas funções sociais. O conhecimento jurídico aliava as competências retóricas com o conhecimento dos direitos e deveres que eram reconhecidos às pessoas.

Essa situação seguiu relativamente inalterada até o século XIX. As faculdades de direito ofereciam uma educação voltada para desenvolver competências práticas, o que envolvia socializar os estudantes dentro da cultura partilhada pelos juristas. Porém, a revolução industrial fez com que a ciência fosse alçada a um novo patamar de importância, visto que os avanços tecnológicos envolvidos nesse processo alteraram sensivelmente os tipos de conhecimento socialmente valorizados. No século XVIII, havia ainda uma divisão entre ciências racionais e ciências empíricas, sendo que ambas gozavam de amplo prestígio.

As ciências racionais operavam segundo os antigos padrões aristotélicos, que adotavam a geometria como paradigma e se concentravam na identificação de certos axiomas (enunciados cuja veracidade seria evidente e, portanto, dispensaria uma comprovação indutiva) e em uma metodologia dedutiva (concentrada em demonstrar que certos enunciados decorriam logicamente dos axiomas). Na base dessa lógica estava a ideia que Alchourrón e Bulygin denominavam  postulado de dedução: "se determinados enunciados pertencem a uma ciência, toda consequência lógica desses enunciados deve pertencer a essa ciência" (1974).

Naquele contexto, chamava-se de ciência um conjunto de conhecimentos objetivamente verdadeiros, sendo que a veracidade de um enunciado poderia ser demonstrada por via indutiva (ou seja, pela observação de fatos) ou por via dedutiva (ou seja, pela sua coerência com o sistema de conhecimentos que compunha a ciência).  No século XIX, tornou-se claro que as ciências racionais não eram propriamente ciências, mas eram linguagens. A perda do estatuto científico da matemática teve grande repercussão nas concepções científicas, que passaram a utilizar a matemática como um instrumento (uma linguagem precisa, usada para descrever os fatos) e não como um repertório de relações necessárias entre quantidades.

A tese de que somente as abordagens empíricas deveriam ser reconhecidas como científicas se consolidou em meados do século XIX, quando o positivismo de Auguste Comte traçou uma divisão clara entre o conhecimento metafísico (sistemático e dedutivo) e o conhecimento científico (empírico e indutivo, chamado por Comte de positivo).

Se apenas o conhecimento científico é reconhecido como sólido, que tipo de conhecimento científico é possível no campo do direito? A dogmática jurídica, enquanto conhecimento do sistema jurídico, é um saber mais próximo da teologia que das ciências. Os direitos e deveres não são objetos empíricos, mas significados culturais. A busca de construir um sistema, a partir da análise de um conjunto de textos, estava ligada a uma noção antiga de ciência, incompatível com as concepções novecentistas de método científico.

Isso não significava que fosse impossível desenvolver conhecimentos científicos acerca de fenômenos jurídicos, mas apenas que esse tipo de saber estaria ligado às abordagens científicas capazes de lidar com significados culturais: as ciências sociais, que tratam as crenças socialmente compartilhadas como fatos. Tratar da religião ou do direito como um fenômeno observável possibilita o desenvolvimento de um discurso científico acerca dessas experiências, mas implica o abandono do discurso dogmático, que é comprometido com a possibilidade de que uma análise das fontes do direito permitisse a identificação das respostas jurídicas corretas para cada questão.

A atividade social dos juristas, como qualquer atividade social, pode ser estudada pela sociologia. Convém ressaltar que a sociologia pode inclusive estudar o que os juristas efetivamente dizem com seus discursos dogmáticos, visto que é possível estudar os enunciados dos juristas na qualidade de ações de enunciação, que são fatos sociais observáveis. Ocorre que o sociólogo observa o direito desde fora, tentando compreender as articulações do discurso jurídico com outros elementos sociais (como a origem dos juízes, as estruturas institucionais ou a opinião pública), sem qualquer pretensão de esclarecer quais seriam as soluções juridicamente válidas para questões dogmáticas.

Em meados do século XIX, entendia-se que a sociologia do direito deveria oferecer uma compreensão social dos fenômenos jurídicos, mas que a compreensão dos princípios jurídicos estruturantes era papel da filosofia do direito, então estudada sob o título de Direito Natural. O Decreto 7249/1879 definia que os cursos jurídicos deveriam ser formados por dez disciplinas:

  1. Direito Natural
  2. Direito Romano
  3. Direito Constitucional
  4. Direito Eclesiástico
  5. Direito civil
  6. Direito criminal
  7. Medicina legal
  8. Direito comercial e
  9. Teoria do processo criminal, civil e comercial
  10. Aula prática do processo criminal, civil e comercial

Signo da mudança dos foi o  fato de um parecer relatado por Ruy Barbosa, sobre mudanças no ensino brasileiro (1882) sugerir a exclusão das disciplinas de Direito Natural e de Direito Eclesiástico, e introduzir no primeiro ano do curso, como matérias introdutórias, Sociologia e Economia política, além de introduzir uma disciplina de História do Direito Nacional. Embora esse parecer não tenha sido incorporado na legislação vigente, ele indica a ascensão das ciências sociais como formas de compreensão das interações humanas.

A ciência sociológica nunca pode procurar a interpretação correta de um texto jurídico, pois interpretação correta não é uma categoria empírica, não é um fenômeno observável. Mas será possível construir uma verdadeira ciência do direito? Um conhecimento acerca dos direitos e deveres, que seja sólido e crítico o suficiente para podermos tratá-lo como uma forma de ciência?

Em meados do século XIX, Auguste Comte fez a sua célebre distinção de abordagens metafísicas (baseadas na existência de princípios naturais abstratos) e abordagens científicas (baseadas na observação metódica dos fatos empíricos e na construção de explicações causais). Nessa divisão, não parecia haver lugar para o direito como uma disciplina positiva: científica, moderna, livre dos fantasmas metafísicos das teorias medievais e antigas.

O positivismo do século XIX estimulou os juristas a desenvolver abordagens que pudessem se afirmar como científicas, o que implicava a necessidade de definir um objeto empírico. Nenhuma ciência pode falar dos direitos naturais, pois eles não são fenômenos observáveis. Todavia, o fenômeno moderno do direito legislado fazia com que o conhecimento jurídico ganhasse um objeto com existência empírica: o texto. A dificuldade dessa escolha é que, embora os textos sejam documentos fisicamente determinados, o significado dos textos é uma construção cultural.

Nas concepções jurídicas pré-modernas, o direito era entendido como um conjunto de relações intersubjetivas (direitos e deveres), que poderiam ter várias fontes: costumes, legislação, natureza das coisas, jurisprudência, etc. No que toca à legislação, não se entendia que os textos criavam tais relações jurídicas, mas apenas que eles veiculavam os contratos e as ordens governamentais. O texto era um veículo: o contrato era a comunhão de vontades, não devendo ser confundido com o instrumento contratual que lhe conferia uma forma escrita; a ordem do soberano era a fonte de obrigação, não devendo ser confundida com o texto legal.

Com o projeto contemporâneo de redução do direito às leis, tornou-se possível postular essa identidade entre o direito e a legislação, com o gradual trânsito de um paradigma centrado na relação jurídica (direitos e deveres) para um paradigma centrado na norma jurídica (enunciados que criam os direitos e deveres). Todavia, o velho problema continuava: a existência empírica dos textos legislativos e contratuais não servia como era base sólida para uma ciência, visto não haver consenso sobre a interpretação a ser dada aos enunciados contidos nos textos normativos.

Para que fosse possível estabelecer uma ciência voltada a compreender o significado dos textos, era preciso construir metodologias adequadas para interpretar esses enunciados e descobrir o seu significado objetivo. Desde o século XIX, a questão fundamental da teoria jurídica foi definir parâmetros que permitissem converter a atividade dos juristas em uma técnica aplicável de modo impessoal. Por mais que não fosse possível aproximar o direito da física (que se limita a observar fatos naturais), parecia viável aproximar a dogmática jurídica de disciplinas como a história: ambas lidavam com documentos e buscavam compreender o mundo a partir de um tratamento adequado de certas fontes de informação.

A cientificidade da história foi uma questão central da epistemologia do século XIX e ela conduziu ao desenvolvimento da tese que haveria, ao lado das ciências naturais (de caráter puramente descritivo-explicativo), as chamadas ciências do espírito (de caráter compreensivo). Aqui, a oposição não é entre ciência exata ou ciência humana, visto que é possível uma abordagem observacional e explicativa de fenômenos sociais. O problema fundamental é a possibilidade de reconhecer cientificidade a disciplinas de caráter interpretativo, que se voltam a compreender o significado objetivo de certos dados.

Assim com a História pode ser capaz de estudar certos textos e interpretá-los de forma a criar uma percepção científica do passado, assim como a sociologia pode fazer o mesmo com os fenômenos sociais do presente, cogitou-se que poderia haver uma ciência do direito,  capaz de explicar o sentido objetivo dos textos jurídicos vigentes.

Não se tratava apenas de educar os juristas nas velhas artes liberais do trivium, mas de educá-los como conhecedores capazes de descrever o sistema jurídico vigente, com a objetividade e a neutralidade dos cientistas. Esse foi um desafio enfrentado, inicialmente, pela Jurisprudência dos Conceitos, que se inspirou na química. Savigny e Puchta, em especial, perceberam que não adiantava muito observar o direito como um conjunto de textos, pois os textos não formam um sistema.

Eles perceberam que a unidade básica do direito não são as leis, não são os artigos, não são os incisos, não são as palavras. Para eles, a unidade básica do direito seriam os conceitos: pessoa jurídica, pessoa física, contrato, capacidade, direito real, propriedade, etc. Os textos jurídicos e suas interpretações eram entidades temporárias, modificáveis pela autoridade política do governante. Porém, eles entendiam que uma análise cuidadosa das normas jurídicas poderia mostrar que elas realizam combinações específicas de certas entidades fundamentais. Assim como a matéria é composta de átomos, o direito seria composto de conceitos que podem ser recombinados entre si, dando origem aos variados sistemas concretos.

Tal como a sociologia pode se dedicar a explicar a conformação específica dos sistemas sociais, a ciência do direito poderia se dedicar a explicar a conformação específica dos sistemas jurídicos. Essa é uma proposta que desafiou gerações de juristas: construir um sistema de conhecimentos sobre o direito que tenha rigor e confiabilidade semelhantes aos das outras ciências sociais.

Todavia, esse projeto desde sempre se mostrou paradoxal. Desejava-se o rigor da ciência, mas o objeto de uma "ciência do direito" não era composto por fatos, mas por enunciados simbólicos a serem interpretados. Não era viável aplicar à dogmática jurídica a abordagem indutiva das ciências, pois qualquer interpretação é calcada em operações dedutivas, realizada a partir de um sistema normativo cuja validade é pressuposta.

Mesmo a ideia de uma "ciência compreensiva" não era suficientemente adequada: a história consiste em propostas de explicar os processos de interação humana, feita a partir de documentos e vestígios. Embora seja documental, a história não é dogmática: ela não precisa tomar decisões, não precisa oferecer resposta a todos os problemas, não precisa gerar resultados em prazos definidos. Os argumentos no sentido de que poderia haver a construção de métodos históricos (de compreensão de fatos sociais) não implica a possibilidade de criar métodos interpretativos que permitam descobrir o significado correto dos enunciados normativos. A ciência dogmática do direito é uma ideia paradoxal, que revela um interesse político (em ter o reconhecimento social que é dado ao conhecimento científico) e não propriamente o interesse em abordar fenômenos jurídicos por uma ótica científica.

Mas isso não quer dizer que seja impossível fazer ciência sobre fenômenos jurídicos. A observação de fatos, com vistas a construir modelos explicativos, é uma atividade científica que pode ser aplicada aos fenômenos jurídicos, econômicos ou religiosos. A existência de abordagens científicas acerca de uma religião não indica que essa religião possa ser tomada como científica. Podemos observar os discursos jurídicos e as práticas judiciárias, com o objetivo de compreender o modo como esses fenômenos se conectam. O que não tem muito sentido é pretender que exista cientificidade na construção de teses jurídicas e na defesa da validade objetiva de determinadas interpretações de textos legislativos, contratuais ou judiciais.