Flannery & Marcus (2012) e Acemoglu & Robinson (2012) coincidem em afirmar que a origem dos governos depende mais da organização interna das próprias sociedades do que de sua demografia ou da influência de nossa carga genética. Não há nada de natural na estratificação da sociedade em pessoas superiores e pessoas inferiores nem na a distinção entre governantes por natureza e governados por natureza. Considerando que a criação dos governos representa uma ruptura com relação aos modos de organização anteriores como é possível manter essa superioridade artificial?
A resposta típica a essa pergunta é: por meio de uma alteração substancial no sistema de crenças que organiza a sociedade. Temos indícios de que as comunidades humanas praticam rituais complexos há cerca de 70.000 a 80.000 anos, quando ocorreu o que Yuval Harari (2012)denomina de Revolução Cognitiva, e que está ligada com o desenvolvimento de uma linguagem abstrata, que não diz coisas apenas sobre entidades concretas, mas também sobre entidades abstratas. Nas palavras de Harari, a característica particular de nossa linguagem é justamente a nossa capacidade de falar sobre coisas que não existem e, com isso, criar ordens ficcionais imaginadas.
Lendas, mitos, deuses e religiões apareceram pela primeira vez com a Revolução Cognitiva. Antes disso, muitas espécies animais e humanas foram capazes de dizer: “Cuidado! Um leão!”. Graças à Revolução Cognitiva, o Homo sapiens adquiriu a capacidade de dizer: “O leão é o espírito guardião da nossa tribo”. Essa capacidade de falar sobre ficções é a característica mais singular da linguagem dos sapiens. (Harari 2012)
Como é possível manter a coesão social de uma comunidade na qual a superioridade de um certo grupo? Por meio de uma crença social compartilhada que afirma essa superioridade. Supomos que os seres humanos tenham desenvolvido várias narrativas mitológicas acerca da origem do mundo, nos últimos 70.000 anos, e que esses sistemas simbólicos eram fundamentais para permitir a coordenação das várias comunidades.
A introdução dos governos não mudou a nossa dependência dessas ordens simbólicas, mas introduziu novas formas de descrição, que não apontavam simplesmente para o primado da tradição, mas precisavam justificar a ruptura representada pela cisão social entre governantes e governados.
Todas essas redes de cooperação – das cidades da antiga Mesopotâmia aos impérios Qin e Romano – foram “ordens imaginadas”. As normas sociais que as sustentavam não se baseavam em instintos arraigados nem em relações pessoais, e sim na crença em mitos partilhados. (Harari 2012)
Ocorre que a ordem imaginada das sociedades com governo precisava ser articulada com a mitologia anterior, de uma ordem natural (também imaginada) consuetudinária que sustentava os modos de vida tradicionais dos caçadores-coletores. É preciso estabelecer que a nova ordem é a verdadeira ordem, sendo que a introdução da desigualdade parece ter sido justificada em termos religiosos: os governantes são favorecidos pelos deuses e, por isso, têm autoridade para exercer seu poder.
Essa naturalidade tem raízes muito antigas, depois atravessa filosofia grega, inclusive (Aristóteles postula que é natural a submissão da mulher ao homem, do escravo ao senhor e dos indivíduos à cidade) e até hoje é usada como critério válido para julgar a possibilidade de o Estado regular assuntos moralmente controvertidos. Para muitos discursos contemporâneos, o respeito aos papéis naturais das pessoas (como homens, filhos, mulheres, pais etc.) ainda são a base fundamental da legitimação da ordem social.
Nas comunidades antigas, e em boa parte das contemporâneas, é preciso apresentar a ordem social como uma parte da ordem natural. Nas palavras de Harari:
Como você faz as pessoas acreditarem em uma ordem imaginada como o cristianismo, a democracia ou o capitalismo? Primeiro, você nunca admite que a ordem é imaginada. Você sempre insiste que a ordem que sustenta a sociedade é uma realidade objetiva criada pelos grandes deuses ou pelas leis da natureza. (Harari 2012)
Essa inscrição do social no natural é que confere autoridade aos governantes, que não são apresentados como tiranos que submetem a população a sua vontade, mas como autoridades que legitimamente servem como garantidores da tradição, do bem e da justiça.
Ocorre que a, tal como as ordens simbólicas mais antigas (que cederam lugar às ordens simbólicas que justificam a posição especial dos governantes e de certos estamentos superiores), as ordens novas estão sempre sob o risco de entrar em colapso, pois as concepções hegemônicas em uma sociedade estão em constante mudança.
Para salvaguardar uma ordem imaginada, são necessários esforços árduos e contínuos. Alguns desses esforços assumem a forma de violência e coerção. Exércitos, forças policiais, tribunais e prisões estão o tempo todo em ação, forçando as pessoas a agirem de acordo com a ordem imaginada. [...]
No entanto, uma ordem imaginada não pode se sustentar apenas por meio da violência. Requer também que algumas pessoas realmente acreditem nela. O príncipe Talleyrand, que começou sua carreira camaleônica sob Luís XVI, para posteriormente servir o regime revolucionário e o napoleônico e enfim trocar sua lealdade a tempo de terminar seus dias trabalhando para a monarquia restaurada, resumiu décadas de experiência governamental afirmando que “podemos fazer muitas coisas com baionetas, mas é muito desconfortável sentar sobre elas”.
Um único padre muitas vezes faz o trabalho de uma centena de soldados – só que é muito mais barato e eficaz. Além do mais, não importa quão eficientes sejam as baionetas, alguém precisa empunhá-las. Por que os soldados, carcereiros, juízes e policiais manteriam uma ordem imaginada em que não acreditassem? De todas as atividades humanas coletivas, a mais difícil de organizar é a violência. Dizer que uma ordem social é mantida por força militar imediatamente levanta a pergunta: o que mantém a ordem militar? É impossível organizar um exército unicamente por meio de coerção. Pelo menos alguns dos comandantes e soldados precisam acreditar realmente em alguma coisa, seja Deus, honra, pátria, coragem ou dinheiro. (Harari 2012)
O direito, a moralidade e a religião desempenham um papel muito importante na manutenção dessa ordem imaginada que não apenas nos oprime, mas que modela os nossos próprios desejos.
A maioria das pessoas não quer aceitar que a ordem que governa sua vida é imaginária, mas na verdade cada pessoa nasce em uma ordem imaginada preexistente, e seus desejos são moldados desde o nascimento pelos mitos dominantes. Nossos desejos pessoais, portanto, se tornam as defesas mais importantes da ordem imaginada. (Harari 2012)
Essas reflexões nos trazem um dos elementos constantes da filosofia do direito, ao longo dos últimos milênios: a busca de identificar, dentro da ordem social, o que é natural e o que não é.
A ordem natural é um elemento simbólico muito anterior à filosofia. Cada cultura interpreta essa ordem natural de forma diversa. Os hindus a viam como uma ordem de obrigações impostas, que todos precisariam seguir, nomeando-a como Dharma. Na tradição chinesa, muitas vezes essa ordem é entendida de forma impessoal, como um fluxo natural ao qual devemos nos adaptar: o Tao. A lei natural dos Romanos, inspirado na ordem natural dos gregos, representa também uma ordem normativa que determina os nossos papéis.
Longe de se opor à ideia de ordem natural, a herança filosófica dos gregos está ligada à garantia de um primado da natureza sobre a tradição. A ideia de ordem natural permeia as explicações tradicionais contra as quais a filosofia se voltou. De fato, a filosofia iniciou na Grécia como uma forma particular de questionar a relação direta entre tradição e natureza, mas sem contestar a existência de uma ordem natural nem questionar a autoridade objetiva dos valores naturais. Críticas mais radicais à própria ideia de ordem natural (como as que foram feitas pelos sofistas) não eram bem recebidas pelos filósofos, justamente porque a filosofia buscava fundamentos racionais na natureza, para contrapor-se à autoridade tradicional.
Essa ideia de ordem natural, de uma ordem imanente do mundo, é o pano de fundo da filosofia do direito. Ela permeia toda a filosofia de matriz grega, acompanhando o renascimento e todas as concepções da modernidade: o iluminismo, o constitucionalismo, o liberalismo. Não seria exagero entender a filosofia do direito como uma história dessa ordem natural: seu desenvolvimento nas culturas antigas, sua reinterpretação medieval, sua pseudo-racionalização na modernidade e as críticas que foram dirigidas a essa noção pelo historicismo que se construiu na passagem do século XIX para o século XX.