No pensamento político antigo, os mitos de origem desempenhavam um importante papel. São recorrentes versões pelas quais os deuses criam os homens, conferindo-lhes as características que são próprias da humanidade. Esse tipo de explicação observa as regularidades do mundo e atribui a sua origem à vontade de entes sobrenaturais, com poderes tão grandes que eles podem modelar a própria natureza. A explicação mitológica, como notou Comte, atribui todos os fatos do mundo à expressão de uma entidade intencional, que intencionalmente cria a ordem natura e a impõe aos homens.

As abordagens tradicionais mais antigas costumam ter mitos de origem, que narram a forma pelas quais os deuses constituíram nossas formas de organização social. A filosofia grega rompeu com os mitos de origem (as narrativas baseadas na intencionalidade divina) e usa a estratégia da imutabilidade: a ordem natural é imutável, ela sempre foi assim e ela sempre será. A filosofia grega não tem uma narrativa de como o mundo foi criado e de como certas pessoas foram investidas de autoridade divina. Ela substitui a narrativa pela teoria: a explicação das coisas a partir de certos princípios imutáveis: cada coisa precisa ter uma essência imutável, cada pessoa precisa ter um lugar definido na ordem social. Esse novo gênero de explicação, baseada em uma ordem natural impessoal e imanente, foi chamada por Augusto Comte de "metafísica".

As abordagens jurídicas normalmente seguem essa estrutura metafísica, afirmando que "ubi societas, ibi jus", como se a existência de sociedades fosse algo natural e, portanto, o direito fosse uma decorrência necessária da natureza humana. A teoria jurídica moderna não se pergunta sobre a necessidade de haver um governo, nem sobre as origens efetivas das relações de dominação política: a existência de governos é entendida como uma decorrência necessária da natureza humana, e o que nos cabe é apenas conformar os governos à natureza, garantindo que eles sejam legítimos.

O governo é legítimo quando segue a ordem natural, cuja existência não é sequer problematizada. Rousseau, por exemplo, é um dos maiores críticos da naturalização que Aristóteles, Hobbes e Grócio fazem do poder político, mas ele próprio afirma que "a mais antiga de todas as sociedades e a única natural é a família". A família é natural, o poder dos pais sobre os filhos é natural, a submissão da mulher é natural.

Para os gregos, não havia alternativa à sociabilidade porque os homens eram "animais políticos". Portanto, as pessoas precisam viver dentro de organizações sociais e, por isso, têm o dever de submeter-se à lei da cidade: nessa perspectiva, a relação de governo (ou seja, a existência de governantes e governados dentro de uma organização social) era entendida como natural. Tão natural quanto a autoridade dos pais sobre os filhos.

Os modernos inovaram essa equação desnaturalizando o governo. Embora a família tenha permanecido no âmbito da ordem natural, a submissão a governantes concretos somente poderia ser compreendida como resultado de uma escolha: a escolha de instituir um governo. Assim, o governo seria uma estrutura artificial, mas cuja existência era apresentada como necessária para a vida das pessoas, pois só em comunidades bem coordenadas é que as pessoas podem alcançar a paz e a segurança que elas almejam.

Para os antigos, o governo era imediatamente natural. Para os modernos, os governos eram mediatamente naturais: eles podiam ser artificiais, mas a fundação de um governo era uma necessidade natural dos seres humanos.

Mas será mesmo que os seres humanos somente podem subsistir em comunidades nas quais há uma diferença entre governantes e governados?

Desde os povos europeus conheceram os povos ameríndios, existe uma tendência a estabelecer uma ordem evolutiva, que passa de um estado de natureza (em que não existem governos, como é o caso das tribos consideradas primitivas) para um estado de sociedade (em que há um governo centralizado). Parecia razoável supor que as primeiras sociedades humanas não tinham governantes nem governados e que essa situação era incompatível com o pleno desenvolvimento humano, na medida em que as pessoas são animais políticos.

Durante muito tempo essa ausência foi lida no registro da falta: faltava aos povos primitivos um governo, e por isso mesmo eles eram primitivos. A narrativa dominante nessa época era a de que a agricultura propiciou o estabelecimento da propriedade privada e viabilizou a acumulação econômica necessária para a existência de uma classe de governantes. No Discurso sobre as origens da desigualdade, de 1753, Rousseau já afirmava que a agricultura marcou uma passagem importante dos povos primitivos para as primeiras civilizações. Se não havia governos antes da agricultura, era apenas porque as condições materiais necessárias para o surgimento de governos eram impossíveis nas sociedades de caçadores-coletores, que tinham uma economia de subsistência incapaz de gerar excedentes.

A novidade de Rousseau foi que ele não caracterizou essa passagem como um progresso, pois a propriedade instaurou sistemas de dominação do homem pelo homem e engendrou uma desigualdade moral e política que é contrária à lei da natureza, instituindo opressões e escravidão que constituem uma situação pior do que a que os homens tinham antes de se organizarem em sociedades. Essa inversão, que coloca o selvagem como igualitário e o civilizado como imerso em uma rede de desigualdades ilegítimas, teve impactos muito relevantes no modo como os europeus avaliavam a sua própria sociedade, especialmente a superioridade das formas modernas de organização social.

Esse igualitarismo das sociedades primitivas foi corroborado pela antropologia do início do século XX, que identificou uma série de sociedades remanescentes de caçadores-coletores em que não havia nenhuma forma de governo centralizado. Esses achados antropológicos estimularam a tese rousseauniana de que as primeiras sociedades humanas eram igualitárias e que, dadas certas circunstâncias históricas, a desigualdade política se impôs como regra.

Uma interpretação alternativa a essa narrativa evolutiva (ou involutiva, a partir do quanto se valoriza os direitos de igualdade e liberdade) foi formulada na década de 1970 pelo antropólogo Pierre Clastres, que estudou tribos indígenas da Amazônia. Clastres refutou a ideia de que a introdução da desigualdade decorria, naturalmente, da introdução da agricultura e dos excedentes econômicos que ela traz. A observação dos modos de vida de povos indígenas brasileiros fez com que Clastres sugerisse que os indígenas não eram sociedades a que faltava o governo (e que por isso seriam primitivas), mas eram sociedades que tinham instituições especificamente voltadas a impedir o surgimento de um governo: elas não eram sociedades sem Estado, mas sociedades contra o Estado.

Não se tratava apenas da tese, já sustentada por Rousseau, de que o governo era percebido como signo de uma degradação social decorrente da imposição de um vínculo de subordinação entre pessoas que eram naturalmente iguais. A inovação de Clastres foi sugerir que as sociedades arcaicas não eram sociedades incapazes de criar Estados (entendidos como a institucionalização da distinção entre governantes e governados), mas a de que elas tinham mecanismos especificamente voltados para impedir essa concentração de poder, que atentaria contra o equilíbrio das sociedades arcaicas, baseadas em um igualitarismo que era incompatível com a existência de um governo.

Essa é uma interpretação que renovou a nossa capacidade de interpretar a oposição clássica entre ordem natural e autoridade política. Não se trata de uma tensão que tenha surgido depois que os governos centralizados se impuseram como forma dominante de organização social. Clastres abriu espaço para que identificássemos o que se veio depois a chamar de sociedades com um igualitarismo forte (McCall e Widerquist): elas não eram meramente igualitárias, mas institucionalizavam a igualdade e criavam mecanismos capazes de suprimir a desigualdade política.

Essa é uma interpretação que nos faz perceber que distinções como Li e Fa, como Physis e Nomos, não têm origem em um desenvolvimento natural da desigualdade, mas decorrem possivelmente da ruptura de uma ordem institucional anterior. A constituição da autoridade política, colocada por Rousseau como uma decorrência indesejável mas necessária de certas modificações sociais praticamente inevitáveis (como a agricultura e a metalurgia), pode então ser lida como a ruptura de uma ordem igualitária, fundada na proteção dos valores tradicionais contra os riscos inerentes a qualquer autoridade política centralizada. Esse tipo de compreensão muda a pergunta sobre a origem do governo e do direito positivo: não se trata de entender as condições em que foi possível a constituição de um governo, mas de compreender como foi possível que certas pessoas ou grupos assumissem um papel de autoridade que lhes era vedado pelas instituições igualitárias das sociedades arcaicas.

Trechos escolhidos

O  texto mais clássico de Clastres é seu ensaio A sociedade contra o Estado (que é o capítulo inicial de um livro com o mesmo nome, publicado em 1974), do qual destacamos alguns trechos que explicitam a sua tese central.

"As sociedades primitivas são sociedades sem Estado: esse julgamento de fato, em si mesmo correto, na verdade dissimula uma opinião, um juízo de valor, que prejudica então a possibilidade de constituir uma antropologia política como ciência rigorosa. O fato que se enuncia é que as sociedades primitivas estão privadas de alguma coisa — o Estado — que lhes é, tal como a qualquer outra sociedade — a nossa, por exemplo — necessária. Essas sociedades são, portanto, incompletas. Não são exatamente verdadeiras sociedades — não são policiadas —, e subsistem na experiência talvez dolorosa de uma falta  falta do Estado — que elas tentariam, sempre em vão, suprir. [...]

Reconhece-se aqui a outra face do etnocentrismo, a convicção complementar de que a história tem um sentido único, de que toda sociedade está condenada a inscrever-se nessa história e a percorrer as suas etapas que, a partir da selvageria, conduzem à civilização “Todos os povos policiados foram selvagens”, escreve Raynal. Mas o registro de uma evolução evidente de forma alguma fundamenta uma doutrina que, relacionando arbitrariamente o estado de civilização com a civilização do Estado, designa este último como termo necessário atribuído a toda sociedade. Pode-se então indagar o que manteve os últimos povos ainda selvagens. [...]

Dois axiomas, com efeito, parecem guiar a marcha da civilização ocidental desde a sua aurora: o primeiro estabelece que a verdadeira sociedade se desenvolve sob a sombra protetora do Estado; o segundo enuncia um imperativo categórico: é necessário trabalhar. Os índios, efetivamente, só dedicavam pouco tempo àquilo a que damos o nome de trabalho. E apesar disso não morriam de fome. As crônicas da época são unânimes em descrever a bela aparência dos adultos, a boa saúde das numerosas crianças, a abundância e variedade dos recursos alimentares. Por conseguinte, a economia de subsistência das tribos indígenas não implicava de forma alguma a angustiosa busca, em tempo integral, de alimento. Uma economia de subsistência é, pois, compatível com uma considerável limitação do tempo dedicado às atividades produtivas.[...]

Estamos portanto bem longe da miserabilidade que envolve a ideia de economia de subsistência. Não só o homem das sociedades primitivas não está de forma alguma sujeito a essa existência animal que seja a busca permanente para assegurar a existência, como é ao 7 preço de um tempo de atividade notavelmente curto que ele alcança - e até ultrapassa -. esse resultado. Isso significa que as sociedades primitivas dispõem, se assim o desejarem, de todo o tempo necessário para aumentar a produção dos bens materiais.

O bom senso questiona: por que razão os homens dessas sociedades quereriam trabalhar e produzir mais, quando três ou quatro horas diárias de atividade são suficientes para garantir as necessidades do grupo? De que lhes serviria isso? Qual seria a utilidade dos excedentes assim acumulados? Qual seria o destino desses excedentes? É sempre pela força que os homens trabalham além das suas necessidades. E exatamente essa força está ausente do mundo primitivo: a ausência dessa força externa define inclusive a natureza das sociedades primitivas. [...]

Quando, na sociedade primitiva, o econômico se deixa identificar como campo autônomo e definido, quando a atividade de produção se transforma em trabalho alienado, contabilizado e imposto por aqueles que vão tirar proveito dos frutos desse trabalho, é sinal de que a sociedade não é mais primitiva, tornou-se uma sociedade dividida em dominantes e dominados, em senhores e súditos, e de que parou de exorcizar aquilo que está destinado a matá-la: o poder e o respeito ao poder. [...]

As sociedades primitivas são sociedades sem Estado porque, nelas, o Estado é impossível. E entretanto todos os povos civilizados foram primeiramente selvagens: o que fez com que o Estado deixasse de ser impossível? Por que os povos cessaram de ser selvagens? Que formidável acontecimento, que revolução permitiram o surgimento da figura do Déspota, daquele que comanda os que obedecem? De onde provém o poder político? Mistério, talvez provisório, da origem. [...]

[A] tribo não possui um rei, mas um chefe que não é chefe de Estado. O que significa isso? Simplesmente que o chefe não dispõe de nenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar urna ordem. O chefe não é um comandante, as pessoas da tribo não têm nenhum dever de obediência. O espaço da chefia não é o lugar do poder, e a figura (mal denominada) do "chefe" selvagem não prefigura em nada aquela de um futuro déspota. [...]

A propriedade essencial (quer dizer, que toca a essência) da sociedade primitiva é exercer um poder absoluto e completo sobre tudo que a compõe, é interditar a autonomia de qualquer um dos subconjuntos que a constituem, é manter todos os movimentos internos, conscientes e inconscientes, que alimentam a vida social nos limites e na direção desejados pela sociedade. A tribo manifesta, entre outras (e pela violência se for necessário), sua vontade de preservar essa ordem social primitiva, interditando a emergência de um poder político individual, central e separado. Sociedade à qual nada escapa, que nada deixa sair de si mesma, pois todas as saídas estão fechadas. Sociedade que, por conseguinte, deveria eternamente se reproduzir sem que nada de substancial a afete através do tempo. [...]

[O] que os selvagens nos mostram é o esforço permanente para impedir os chefes de serem chefes e a recusa da unificação; é o trabalho de conjuração do Um, do Estado. A história dos povos que têm um história é, diz-se, a história da luta de classes. A história dos povos sem história é, dir-se-á como ao menos tanta verdade, a história da sua luta contra o Estado."