Este texto é baseado na primeira parte da minha tese de doutorado, defendida em 2008, com o título de Direito e Método. O presente texto foi revisto e atualizado em 2023. O conteúdo original, que estava publicado anteriormente neste endereço, está disponível no texto da tese.

Prelúdio

1. Era uma vez um homem e o seu tempo

Este trabalho é um discurso sobre as maneiras pelas quais atribuímos sentidos a nossa própria experiência. Seu propósito não é traçar uma imagem objetiva do mundo, mas apresentar de uma narrativa acerca das capacidades humanas de compreender.

Desde que eu escrevi a primeira versão deste texto, há 15 anos, noto que a palavra “narrativa” se desgastou. Naquele momento, esse termo ainda era bastante ligado à obra de Lyotard, que diagnosticou um declínio das grandes narrativas modernas com sua pretensão totalizante (Lyotard, 2009). Hoje, em um mundo marcado pela ideia de pós-verdade, parece que a palavra narrativa ganhou um sentido depreciativo, usado para marcar a distinção entre a verdadeira descrição dos fatos (que é sempre a nossa...) e as variadas narrativas que as (outras) pessoas usam para distorcer a realidade.

Sempre gostei do modo como Lyotard borrou essa divisão, ao chamar as descrições científicas modernas de narrativas (récits, no original em francês), acentuando que a impessoalidade dos discursos científicos é ilusória. O uso recorrente da terceira pessoa obscurece, mas não anula, o aspecto radicalmente subjetivo de discursos que somente pode falar do mundo a partir do ponto de vista de quem os enuncia. Como dizia o sempre inspirado Belchior, num disco chamado Era uma vez um homem e o seu tempo:

Eu sou pessoa.
A palavra pessoa hoje não soa bem, pouco me importa [...]
Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos!
Não sou da nação dos condenados!
Não sou do sertão dos ofendidos!
Você sabe bem: Conheço o meu lugar! (Belchior, 1979)

Foi com essa inspiração lyotard-belchioriana que eu decidi seguir o caminho sugerido por Descartes, no texto em que ele iniciou o discurso filosófico da modernidade: “não proponho este escrito senão como uma história, ou, se o preferirdes, como uma fábula” (1985). Por isso, decidi escrever este texto em primeira pessoa, deixando claro que eu não posso produzir discursos senão a partir da minha própria perspectiva: a de um brasileiro pardo, nascido no milênio passado, que habita a preferida do mundo e (desesperadamente) escreve em português.

Não é um lugar de fala muito glamoroso, para dizer o mínimo. Porém, eu não tenho outro, pois o narrador deste texto é o meu eu concreto, e não um sujeito abstrato pretensamente neutro, que seria capaz de proferir profere verdades impessoais.

Gostaria que este texto fosse lido como uma espécie de mitologia possível. Não se trata de um relato que pretende desenhar uma imagem minuciosa, baseada em observações empíricas rigorosas, pois não é este o papel da filosofia. Trata-se aqui de contar uma história que possa fazer o leitor refletir sobre o sentido das suas próprias experiências e convidá-lo a determinar o seu modo de estar no mundo com o auxílio de alguns dos mapas aqui traçados.

Portanto, este não é nem pretende ser um trabalho científico. Em termos gerais, podemos classificá-lo como filosófico: uma contribuição para o processo por meio do qual avaliamos nossos repertórios categoriais, na busca de desenvolver instrumentos conceituais adequados ao enfrentamento dos desafios contemporâneos (Costa, 2023a). Mais propriamente, ele poderia ser qualificado de hermenêutico: uma mirada hermenêutica sobre a hermenêutica jurídica. Mas o que significa essa frase obscura, quase esotérica? Fazer essa pergunta já nos coloca no centro do problema, pois esta é uma questão de interpretação.

2. Hermenêutica e interpretação

A interpretação é uma atividade humana voltada a atribuir sentido a algo. Esse algo pode ser muitas coisas: frases, gestos, pinturas, sons, nuvens. No fundo, tudo pode ser interpretado, pois podemos atribuir algum sentido a qualquer coisa. Em outras palavras, tudo pode ser tomado pelo intérprete como um texto, ou seja, como um objeto interpretável.

Uma mulher dos Bálcãs observa as linhas formadas pela borra do café turco, no fundo da xícara que bebeu há pouco. Essa mulher lê o seu futuro na rede desses traços.

Quem interpreta normalmente performa como se estivesse a desvendar os sentidos contidos no texto. A crença de que o significado é imanente ao objeto faz parte do exercício de quase toda atividade interpretativa. A mulher interpreta as figuras formadas na borra, acreditando que essas linhas têm um sentido. Ela não duvida de que, de algum modo, aqueles traços mostram o seu futuro. Talvez ela sinceramente duvide, mas isso não faz diferença, desde que ela atue como se as linhas tivessem um sentido a ser desvendado.

Retirar a venda que impede a percepção do sentido. Trazer à luz o que estava nas sombras. Esclarecer o mistério. Mas que certeza pode haver acerca dos enunciados da pitonisa? Por mais que as palavras do oráculo sejam fugidias e obscuras, elas não se apresentam como portadoras de um mistério, e sim como esclarecedoras de um segredo. De antemão, sabemos que o caráter inacessível dos mistérios demanda aceitação e não interpretação: os mistérios podem ser enunciados, mas não podem ser compreendidos. Já os segredos são algo que ainda não sabemos, mas que podemos vir a conhecer.

A compreensão desnatura o mistério, pois o que veio a ser compreendido nunca pode ter sido verdadeiramente misterioso. Caso se tratasse de um saber apenas oculto, ele seria um segredo, e não um mistério. Por esse motivo, o sentido real das coisas precisa permanecer no âmbito do segredo:  ainda que obscuro e fugidio, trata-se de é algo que se destina a ser descoberto.

Uma vez revelados, os segredos deixam de o ser. Porém, é claro que nem todos têm as chaves para compreender os segredos do oráculo. Se o sentido interpretado é apenas um segredo a ser desvendado, a capacidade de interpretação é sempre envolta em mistério, pois parece existir algo de mágico no processo interpretativo, que o faz ultrapassar nossa capacidade de explicação. Os grandes intérpretes são capazes de desvendar sentidos que são inacessíveis às pessoas comuns. O mistério da interpretação está justamente nesta faculdade de compreender os segredos, trazendo à luz o que estava oculto.

Não é por acaso que a interpretação sempre foi ligada às artes divinatórias. Nas narrativas fundantes de nossa cultura, estão grandes histórias de interpretação: os sonhos do faraó, as palavras do oráculo, as vísceras dos pássaros, os búzios. Em todas elas, o intérprete é uma pessoa especial: José, Tirésias e as mães-de-santo enxergam o que os outros não veem. Todos eles desempenham papéis semelhantes ao de Hermes, conectando o mundo dos deuses ao mundo dos homens.

A função “hermética” não deve ser confundida com a dos profetas, que enunciam verdades que lhe foram reveladas por alguma forma fulgurosa de iluminação. O intérprete não tem acesso direto a uma verdade revelada, mas é alguém que sabe ler textos ininteligíveis a outros olhares, que sabe entender vozes incompreensíveis a outros ouvidos.

Embaralhei as setenta e oito cartas do meu tarô com cuidado. Perguntei ao vento que soprava as folhas da minha varanda o que significa interpretar e retirei como resposta a carta da Estrela. No tarô que ganhei de minha amiga Bistra Apostolova, inspirado na mitologia grega, a Estrela é a esperança da história de Pandora (Greene e Burke, 2007). Depois de libertar os males da arca presenteada por Zeus aos homens, a jovem liberta também a esperança, que não afasta os males, mas mitiga a dor e possibilita a vida em meio às aflições humanas tais como as doenças, o trabalho e a velhice. Qual o sentido dessa resposta? Talvez aponte para o fato de que a interpretação seja apenas o reflexo de uma esperança, que não desvela os sentidos do mundo, mas nos possibilita conviver com a escuridão do mistério. Talvez a interpretação seja movida sempre por uma esperança de realizar o irrealizável. Talvez esse entendimento seja reforçado pelo fato de que a arca dos males, em algumas versões da história, foi forjada justamente por Hermes.

Talvez a carta não signifique resposta alguma e meramente por acaso tenha surgido em minhas mãos. Entretanto, o meu ato de retirar a carta tem um significado, pois esta conduta representa a proposição de uma pergunta, mesmo que ela tenha sido dirigida a um vento que não pudesse sequer compreendê-la. O ato de buscar um sentido para o fato de eu ter retirado justamente a carta da Estrela talvez seja reflexo de um velho hábito humano: o de atribuir sentido às coisas que ocorrem no mundo e crer que os significados atribuídos são descobertos, e não inventados.

O velho hábito de negar o acaso que nada explica, mediante a afirmação de uma fatalidade que explica tudo é a postura (talvez o vício...) que está na base da tradição interpretativa que até hoje domina o senso comum. Essa tendência é tão arraigada que é a partir dela que Heidegger define a própria especificidade do homem: tratar-se de um ente que confere sentido ao “ser” e, com isso, converte a mera existência em uma existência significativa. Para Heidegger, o homem é um ente que não se limita a pôr-se frente aos outros entes, mas que se caracteriza justamente por compreender o ser das coisas, especialmente o seu próprio, reconhecendo um sentido e não apenas existência às coisas (1988, p. 39).

Esse é um modo peculiar de ver o próprio Homo sapiens. Não se trata de um animal caracterizado pela sua racionalidade estratégica, pelo seu domínio do raciocínio abstrato ou pelo seu logos. O que determina a especificidade do humano é justamente o fato de que compreendemos o mundo, conferindo sentido às coisas. É justamente por isso que o homem habita um território simbólico pleno de significados, e não apenas um mundo empírico de objetos existentes. Para usar uma distinção heideggeriana, o homem não é meramente ôntico (no sentido de que ele existe como ser), mas é ontológico (no sentido de que ele compreende o próprio ser) (Heidegger, 1988). Com efeito, o objetivo da rede de discursos que compõem a Hermenêutica é justamente o de compreender os modos como o homem compreende o mundo.

3. Hermenêutica e compreensão

Compreender. Interpretamos para compreender o sentido e, portanto, a interpretação é uma atividade com uma função bem definida. Mas será que compreender o sentido é literalmente descobri-lo, retirando o véu que o oculta? Sim, diriam tanto os representantes da tradição grega, quanto os modernos, cujos esforços culminaram no projeto Iluminista. Com efeito, o iluminismo não recebe esse nome por acaso: compreender uma carta de tarô é iluminar a obscuridade que ela suscita.

Embaralhei de novo o tarô e retirei outra carta. Veio o dez de espadas, que simboliza o julgamento de Palas Atena, resolvendo a antinomia das regras divinas que mandavam Orestes simultaneamente matar a sua mãe (para vingar a morte do seu pai, por ela assassinado) e não a matar (para não derramar o próprio sangue).

Podemos entender esse fato como uma corroboração da tese da casualidade, pois a resposta à mesma pergunta é uma carta diversa. Curiosamente, essa negativa de sentido já seria uma forma de interpretação: paradoxalmente, negar significação envolveria afirmar a existência de uma aleatoriedade. Mas também podemos enxergar nessa nova carta uma complementação da primeira resposta, pois o que Atenas faz é justamente absolver Orestes do matricídio, afirmando a regra de que ninguém pode ser punido pelo cumprimento de um dever. A interpretação, que aqui aparece como propriamente jurídica, põe fim a uma tensão semântica, mediante uma decisão. Talvez isso signifique que a interpretação não pode ser desvinculada da aplicação, e que a decisão que resolve a tensão entre entendimentos contrapostos é uma parte do processo interpretativo.

Todavia, as cartas talvez não queiram dizer nada. Ainda mais considerando que a interpretação do tarô nunca é literal, pois o que as cartas possibilitam é apenas uma integração de sentidos de caráter analógico, propiciando a formulação de narrativas alegóricas. Como os vaticínios misteriosos das pitonisas gregas, as figuras do tarô sempre podem admitir sentidos variados. Assim, o fato de a carta não se repetir não significa que a segunda se opõe à primeira, pois ela pode ser vista como o simples esclarecimento de outros aspectos da questão.

Talvez essas cartas apenas sirvam como um ponto de apoio para as nossas próprias análises. Nossas tentativas de integrar a resposta das cartas ao nosso universo simbólico podem desencadear um processo reflexivo que nos faça conferir um sentido determinado à ocorrência de uma carta aleatória. Em tal caso, a força significativa do tarô estaria justamente na abertura interpretativa proporcionada por sua obscuridade semântica.

O surgimento da carta suscita uma obscuridade, não uma evidência. Nessa medida, o significado da carta se impõe como um problema a ser resolvido por meio de uma interpretação. Essa interpretação exige o conhecimento dos sentidos tradicionais das várias figuras, pois cada uma delas remete a uma rede de significações. No tarô que utilizo, tais sentidos são enriquecidos pela ligação das cartas a uma mitologia que povoa de narrativas o nosso imaginário: a grega. Prometeu, Pandora, Hermes, Atenas, Orestes, Narciso, Édipo, todos esses personagens continuam fazendo parte do repertório de mitos que organizam as nossas formas de compreender o mundo. Porém, o conhecimento mitológico não é o único saber exigido dos intérpretes, na medida em que o sentido abstrato (rede de significados ligados a uma carta ou a um conceito jurídico) é demasiadamente aberto e polifônico, diferente do sentido concreto (significado da carta para uma situação específica). Com efeito, um dos problemas fundamentais da hermenêutica é definir como se relacionam os sentidos concreto e abstrato de um texto.

Na hermenêutica moderna, essa tensão revela-se normalmente na oposição entre as noções de interpretação (apresentada como desvendamento do sentido abstrato) e de aplicação (entendida como fixação do sentido concreto). Alguns dos primeiros teóricos acentuaram essa distinção para afirmar que há uma incomensurabilidade entre interpretação e aplicação, por tratar-se de atividades com objetivos diversos. Essa, porém, não é uma saída típica dos juristas, pois tipicamente implica uma negação da cientificidade do processo aplicativo.

Normalmente, os juristas buscaram afirmar a cientificidade das duas atividades, mas estabelecendo uma prioridade lógica da interpretação, na medida em que a fixação do sentido concreto pressupõe a existência de um sentido abstrato. Essa ideia perpassa tanto as teorias subsuntivas mais simplórias quanto a abordagens mais complexas, que introduzem a metodologia como uma forma de mediação objetiva entre o sentido abstrato e o concreto.

Todas essas perspectivas pressupõem a existência de um significado a ser desvendado e implicam um certo primado do sentido abstrato, a partir do qual o sentido concreto poderia ser deduzido, por meio de um tipo de procedimento controlável. Porém, desde meados do século XX, as reflexões da hermenêutica filosófica acentuaram a existência de uma co-relação circular entre interpretação e aplicação. Essa abordagem estimula a substituição da tese da prioridade lógica da interpretação pela ideia de que existe uma complementaridade circular entre interpretação abstrata e aplicação concreta, pois essas duas atividades fazem parte de um mesmo processo compreensivo (Gadamer, 1997).

Esse ponto marca a distinção entre a linearidade dos discursos científicos e a circularidade dos discursos hermenêuticos. Tal circularidade se mostra em um jogo completo de tarô, no qual o consulente retira dez cartas, que ocupam espaços de significação determinados pela ordem em que aparecem. Por exemplo: a primeira carta define o tema geral, a terceira complementa o sentido da primeira, a sétima fala da situação atual do consulente e a nona relaciona-se com os seus medos e desejos (Greene e Burke, 2007, p. 215). A relação desses significados gera uma rede quase infinita de interações semânticas possíveis. Assim, o sentido de uma carta somente é dado na sua correlação com as demais, embora o significado do todo seja derivado das potencialidades semânticas de cada uma delas.

Vale aqui, portanto, o cânone hermenêutico fundamental: as partes de um texto devem ser compreendidas a partir das funções que elas desempenham na totalidade do texto, conjunto este que deve ser compreendido a partir da integração dos sentidos dos elementos que o compõem. Essa circularidade semântica é inafastável, o que parece tornar irresolúvel o problema do sentido: não podemos entender as partes sem compreender o todo, mas somente podemos compreender a totalidade a partir do sentido de cada elemento. Por isso, interpretar parece uma atividade digna do Barão de Munchhausen, que consegue sair da areia movediça puxando-se a si próprio pelos cabelos.

Como, apesar de tudo, interpretamos, parece que há algo de mágico na hermenêutica. Existe nela algo que não se explica cientificamente, por meio de uma sequencia finita de causas, organizadas de maneira linear. Frente a essa aporia interpretativa, Gadamer chegou a dizer que “é tarefa da hermenêutica esclarecer o milagre da compreensão” (Gadamer, 2001).

Essa particularidade marca a distinção entre o discurso científico e o hermenêutico. Visto do ponto de vista da hermenêutica, as narrativas científicas se mostram como uma forma específica de dar sentido à realidade: o cientista constrói uma imagem do mundo como uma totalidade ordenada de fatos. Ele adota um olhar externo e ordena os fenômenos observáveis mediante relações de causalidade, inscrevendo os fatos observáveis em uma ordem natural. Em contraposição, a hermenêutica rejeita a possibilidade tanto de uma externalidade (porque falamos do mundo a partir de dentro dele) e uma objetividade (porque somos fatalmente levados a falar de nós mesmos, confundido sujeito e objeto). Por esse motivo, a ciência aparece no campo hermenêutico como um discurso ingênuo ou cínico (embora útil), baseado em uma mitologia que nega a própria relatividade dos critérios de racionalidade que organizam tal saber

Por outro lado, vista a partir da ciência, a hermenêutica se apresenta como um discurso impreciso, uma espécie de mistificação. Um conjunto de narrativas cujas afirmações não se deixam avaliar adequadamente porque não se submetem a qualquer metodologia determinável. O título da principal obra de Gadamer, Verdade e Método, indica justamente que a hermenêutica não segue o enfoque metodologizador das ciências, pois não é possível estabelecer parâmetros metodológicos que sirvam para avaliar uma proposta interpretativa, em termos de uma verdadeira correspondência com os fatos.

Essa oposição deixa claro que não há na hermenêutica um lugar adequado para a verdade, pois a verdade é normalmente caracterizada por uma espécie de ultrapassagem de todos os contextos. Uma afirmação meramente adequada às expectativas de um auditório particular não é considerada uma verdade propriamente dita (Habermas, 2004a, p. 282). A verdade científica é histórica (porque faz parte de um processo evolutivo), mas a existência de um método permite uma avaliação relativamente objetiva de toda proposta de explicação científica do mundo. Uma análise rigorosa sobre a eficácia de uma vacina ou sobre a eficiência de uma bateria de lítio não deveria depender do contexto cultural em que o pesquisador está inserido. Isso acontece porque os discursos científicos propõem testes empíricos, que servem para colocar à prova as hipóteses explicativas dos cientistas.

No campo da interpretação de artefatos culturais (como leis, instituições ou valores), não existe a possibilidade de realizar testes empíricos. Como as propostas interpretativas são sempre determinadas pela cultura em que estão inscritas e pelo momento histórico de sua enunciação, o discurso hermenêutico somente poderia construir um conceito contextual de verdade. Uma categoria de “verdade hermenêutica” seria despojada do caráter incondicionado que lhe é tradicionalmente atribuído, o que reduziria esse tipo de parâmetro a uma espécie de adequação referida a um sistema cultural determinado. Uma “verdade hermenêutica” não seria indutivamente construída, como nas ciências, mas seria deduzida a partir de conjunto de critérios histórica e linguisticamente definidos.

Esse tipo de historicismo obviamente não deixa espaço para uma objetividade incondicional, mas apenas para uma objetividade relativa a uma tradição cultural específica. A hermenêutica é anti-iluminista, na medida em que o iluminismo tem a pretensão de superar as tradições, por meio da descoberta de parâmetros valorativos objetivos, que a racionalidade humana seria capaz de identificar na própria ordem natural. O iluminismo sempre fala em termos de um direito natural, de valores naturais, de critérios éticos objetivamente válidos. Existe, portanto, uma tensão fundamental entre os pensadores que se inscrevem na continuação do projeto racionalista do iluminismo (como Marx, Habermas e Alexy) e os que se opõem a ele (como Heidegger, Foucault e Rorty).

Todavia, não devemos confundir a hermenêutica com uma mera aceitação da tradição. Enquanto a modernidade ataca a tradição a partir de fora (como se fosse possível superá-la racionalmente), a hermenêutica a desafia a partir de dentro, na forma de uma autocrítica. Essa crítica interna não é normalmente vista como revolucionária, justamente porque revolução é o nome dado pelo iluminismo à pretensão de alterar a sociedade mediante a imposição de novos padrões de organização, calcados em uma verdade objetiva. O Iluminismo, bem como seus herdeiros tanto liberais como socialistas, continuam a propor utopias totalizantes de caráter racionalista, calcados na ideia de um direito natural. As utopias iluministas pugnam por uma alteração radical das estruturas sociais, legitimadas por valores objetivos que justificam tanto a derrubada dos governos tradicionais (que os desrespeitam) quanto a imposição colonialista desses parâmetros a outras culturas (que os desconhecem) (Costa, 2020).

Lyotard chama de modernos os discursos racionalistas organizados em torno de grandes narrativas, que oferecem sistemas monolíticos de atribuição de sentidos ao mundo (2009, p. 58). Na medida em que tais abordagens propõem um ideal de unidade e identidade, seu calcanhar de Aquiles costuma ser o seu modo de tratar a pluralidade e a diferença. A modernidade, em todas as suas versões, admite que a pluralidade de interesses individuais é um fato que precisa ser levado em consideração, pois nenhuma pessoa pode pretender que o seu interesse pessoal valha mais do que os de outros sujeitos.

A admissão da diferença valorativa entre as pessoas gera um abismo entre o individual e o comunitário, que tenta ser suplantado mediante alguma espécie de vontade geral ou de interesse coletivo. Todavia, as narrativas modernas nunca propõem uma efetiva abertura para a coletividade, tendo em vista que a pluralidade de interesses pessoais entrelaçados não gera uma totalidade homogênea (o que viola o princípio da unidade) e as perspectivas majoritárias na sociedade tendem a reproduzir a tradição que os iluministas buscam combater.

Os modernos optaram por falar em termos de direitos subjetivos, que legitimam uma contraposição da autonomia individual à ordem heterônoma tradicional, mas a sua busca de parâmetros objetivos exige a adoção de estratégias purificadoras, visto que a autonomia subjetiva somente é considerada legítima quando realiza um conjunto de regras objetivamente válidas. Como realizar esse milagroso acoplamento entre autonomia individual e uma ordem natural objetiva? De Hobbes a Habermas, passando por Rousseau, Kant e Rawls, a modernidade, enfrenta esse desafio mediante o estabelecimento de uma vontade geral idealizada, baseada em critérios que precisam ser impessoais.

Os discursos modernos estão calcados nesse paradoxo: eles precisam afirmar a existência interesses pessoais impessoais. É no enfrentamento desse paradoxo que a ideia de racionalidade aparece como critério fundamental: os pensadores modernos reconhecem a imensa diversidade dos interesses humanos, mas nem todos esses interesses são considerados legítimos. O exercício da autonomia desejante dos humanos somente é considerado legítimo quando as pessoas não seguem suas pulsões particulares, mas uma espécie de regra geral abstrata, decorrente da racionalidade que todas as pessoas compartilham.

A racionalidade moderna é afirmada como único elemento unificador de uma humanidade dividida por seus desejos e valores, motivo pelo qual ela é erigida como critério hábil para transcender os interesses pessoais e servir como base para a organização das sociedades. Para os pensadores modernos, a necessidade de legitimação do poder é interpretada pelos pensadores modernos como uma exigência de fundamentação, em que a validade de determinados padrões de organização social (sejam eles morais, políticos ou jurídicos) seja reconduzida aos ditames de uma ordem natural objetivamente válida e racionalmente identificável.

O discurso normativo da modernidade está inteiramente voltado à elaboração de discursos fundamentadores, construídos a partir do dogma de que tudo o que é racional é válido.  Esse é o pressuposto que a modernidade não pode tematizar sem se desnaturar em um relativismo, visto que parece incongruente que uma visão racionalista se assente sobre o paradoxo da subjetividade objetiva. Esse diagnóstico me faz considerar a melhor linha demarcatória entre a modernidade e a pós-modernidade está em sua forma de lidar com a utopia de uma legitimidade política objetiva.  E é justamente nessa fronteira que se insere a hermenêutica filosófica: uma perspectiva que, radicalizando o historicismo, rejeita a possibilidade de fundamentação racional de qualquer ordem de poder.

4. A polifonia contemporânea

Os discursos que a modernidade oferece são grandes narrativas totalizantes, que apresentam um projeto de mundo caracterizado pela imposição de um modelo de organização social que se pretende objetivamente válido. Cada uma das grandes narrativas modernas produziu um discurso hermenêutico, na medida em que todas elas propuseram um modo específico de atribuir sentido ao mundo social.

Essa multiplicidade de discursos hermenêuticos revela-se com especial força dentro do campo jurídico, em que as disputas discursivas estão diretamente relacionadas com a definição dos critérios de exercício do poder político institucionalizado. Os últimos duzentos anos foram repletos de teorias hermenêuticas contrapostas, sendo que cada uma delas se inspirava em noções diversas de legitimidade e oferecia diferentes visões acerca das funções a serem desempenhadas pelos atores políticos e jurídicos.

Cada uma dessas teorias buscava afirmar-se como objetivamente válida, de tal forma que elas sempre lutaram por hegemonia: pela conquista total dos nossos padrões de autocompreensão. Ocorre que nenhuma dessas perspectivas foi capaz de se impor como vencedora, de tal forma que o cenário atual continua sendo o de uma luta incessante por uma hegemonia que nunca se concretiza. Na hermenêutica jurídica isso não foi diferente, pois a situação contemporânea é a da permanência de uma multiplicidade de discursos. Para usar metaforicamente um termo tomado da teoria política, nenhuma das teorias hermenêuticas conquistou soberania.

O que vivemos, então, é um cenário de pluralidade de narrativas. Essa multiplicidade é normalmente apresentada pelas teorias da modernidade como um momento de transição para a época em que se fixará uma nova narrativa hegemônica, ou, para usar uma metáfora de origem epistemológica quase gasta pelo uso excessivo, um novo paradigma. A utopia moderna é a de que esse modelo hegemônico deverá adotar a forma de um sistema totalizante, que garanta nossas demandas por unidade e segurança.

Uma das teses centrais defendidas neste texto é a de que o surgimento das variadas teorias da argumentação significou justamente uma tentativa de reunificar um discurso jurídico que já não era capaz de lidar com todos os problemas que enfrentava. Tal re-sistematização precisava ser feita de modo compatível com a descrença generalizada de que as narrativas anteriores eram capazes de organizar um discurso jurídico racional. Com efeito, as teorias da argumentação me parecem a mais nova tentativa de oferecer um modelo totalizante de racionalidade crítica, cujo principal teórico atual ainda parece ser é o alemão Jürgen Habermas.

Pessoalmente, porém, não aposto minhas fichas no sucesso da reductio ad unum racionalista que marca as teorias modernas, inclusive a habermasiana. Sigo, aqui, a intuição de Miroslav Milovic: em vez enfrentar a pluralidade por meio da fixação de um critério totalizante, creio que a melhor opção é justamente a busca da construção de espaços para a coexistência das diferenças, mediante processos de autonomia e singularização (Milovic, 2004). Em vez de canalizar esforços para a construção de um meta-sistema que afirme um critério universal e objetivo de legitimidade, prefiro dedicar-me a compreender as tensões existentes entre as narrativas contemporâneas, inspirado pela ideia de que o desafio atual não é o de construir um novo paradigma unificador, mas a de traçar mecanismos de convivência de uma diversidade que não nos cabe superar, mas cultivar.

Mas como realizar uma mono-grafia que respeite a poli-fonia? Será possível uma poli-grafia acadêmica? Um sistema cuja unidade não seja construída com base na subordinação de todos os elementos a um elemento definido, mas que envolva a coordenação de perspectivas não apenas diferentes, mas contrapostas. Ou, para usar uma metáfora de Deleuze e Guattari que muito me encanta (Costa, 2005; Deleuze e Guattari, 1992a), um sistema rizomático e não radicial, como todo o pensamento totalizante da modernidade e seus grandes discursos construídos à imagem e semelhança dos sistemas axiomáticos da matemática?

Uma das possibilidades é construir sempre obras coletivas, que equilibrem várias visões simultâneas sobre um mesmo tema. Mas essa saída não é compatível com este trabalho, não só por razões burocráticas (porque uma tese de doutorado precisa ter um único autor), mas também porque cada um de nós individualmente faz uso de discursos múltiplos. Nosso nome é legião, porque são vários os discursos e devires que nos atravessam.

A subjetividade monolítica que está na base da visão moderna de mundo parece incompatível com o mundo contemporâneo, que admite a pluralidade como uma característica humana e não como um problema a ser resolvido. Em cada um dos meus discursos, equilibro várias das minhas personas: o Professor, o Advogado, o Filósofo, o Amante, o Artista. Engano é pensar que um juiz decide apenas como Juiz, que o professor fala como Professor, que a tese acadêmica é escrita pelo Cientista.

Não podemos misturar o personagem conceitual  com o sujeito real, pois o primeiro é um arquétipo e o segundo é uma pessoa, incoerente e múltipla como todos nós feliz ou infelizmente somos (vide Deleuze e Guattari, 1992a, p. 10). É claro que esses arquétipos são importantes para a estruturação e compreensão dos discursos e que a introdução de um novo personagem conceitual pode ter consequências revolucionárias (como a invenção grega do Filósofo), mas não pretendo repetir aqui o esquecimento moderno do sujeito, reduzido ao arquétipo do indivíduo racional egoísta.

Tudo bem que todo discurso tem seus esquecimentos, suas zonas de silêncio e obscuridade, que o constituem tanto quanto as suas zonas de iluminação. Não posso pretender que o meu não as tenha. Por isso mesmo me incomoda o discurso pretensamente objetivo da modernidade, construído sobre bases extremamente obscuras. Enquanto a claridade iluminista dos modernos pode ser bastante opaca, prefiro optar por uma obscuridade transparente, que admita explicitamente suas dimensões de vazio e de mistério.

No célebre conto A carta roubada, Edgar Allan Poe narra a história que um sujeito que, ao saber que sua casa ia ser revistada, escondeu a carta que havia roubado da rainha colocando-a no lugar mais evidente, e por isso mesmo menos propenso a ser identificado por quem procura elementos ocultos (Poe, 2017; Pedrosa, 2003). Na modernidade, seguindo essa mesma lógica, os valores ideológicos são escondidos no conceito mais evidente: o de razão. Esse simples procedimento torna tão difícil tal percepção, que pode passar desapercebido o fato de tanto a razão transcendental kantiana quanto a razão comunicativa habermasiana conterem um elemento moral em sua própria conformação. A igualdade, apresentada como um imperativo racional, e não como um imperativo ético, dificilmente é identificada como tal.

Essa mistura entre valores e razão não é necessariamente um problema. Nas perspectivas tradicionais, como a católica, existe inclusive a tematização de que a única razão legítima é a recta ratio, a racionalidade conduzida de acordo com os princípios da moralidade (João Paulo II, 1998). A pureza ética das faculdades intelectivas só é um problema para quem postula uma razão neutra a valores, candidata a servir como parâmetro válido para o agir de todos os seres humanos, independentemente de sua imensa variedade cultural. Essa dificuldade ocorre especialmente nas teorias que se pretendem realizar uma crítica objetiva das tradições, como é o caso das abordagens iluministas. Toda teoria crítica é fundada na afirmação de um critério de legitimidade, que não pode deixar de ser valorativo. Portanto, é da estrutura dos discursos críticos a sua não-neutralidade: o fato de estar ligada a posições valorativas que não são impessoais. De fato, parece que a alternativa à criticidade de uma teoria não existe: até mesmo a adoção de uma postura filosófica cientificista (ou seja, positivista) realiza uma espécie de sacralização da neutralidade.

Cabe ressaltar que a que a neutralidade é um valor que tanto pode ser conservador (quando conduz descrições compatíveis com a tradição dominante) quanto revolucionário (quando se contrapõe a elas, especialmente à falsa neutralidade que muitas concepções se arrogam). Assim, o caráter conservador/revolucionário do positivismo não está na própria teoria, mas na sua relação com as demais teorias. Um positivismo dominante é conservador, tanto quanto um positivismo contra-hegemônico pode ser profundamente revolucionário, por colocar em questão a legitimidade das tradições consolidadas.

Portanto, não há um lugar teórico neutro. O enfoque externo não é um enfoque imparcial e nunca faz justiça às situações analisadas. Como todo teórico engajado (ou seja, todo teórico...) concorda com algumas poucas abordagens e discorda das demais concepções, torna-se comum apresentarmos ideias que nos desagradam oferecendo uma versão enfraquecida, útil apenas para abrir espaço para crítica que vamos fazer. Construímos estereótipos para guerrear contra eles e, com isso, atacamos inimigos imaginários. Quando não é signo de simples ignorância, esse tipo de pseudovitória, tão característica das academias, revela uma espécie de covardia intelectual.

Convencidos pela modernidade de que a verdade é una, não podemos chamar senão de falso tudo o que colide com as nossas crenças. Embora o nosso viés de confirmação possa explicar a recorrência desse fenômeno, o reconhecimento dessa tendência deveria nos tornar críticos mais cuidadosos, cuidando para não distorcer demasiadamente as ideias que, por não serem as nossas, nos parecem equivocadas. Quanto mais diversa for a audiência a que nos dirigimos, mais intenso precisa ser o esforço de ser justo com as perspectivas contra as quais nos contrapomos, visto que esse tipo de abordagem pode comprometer o que uma crítica tem de mais importante: sua capacidade de seduzir.

5. Verdade e sedução

Ninguém incorpora uma teoria a seu horizonte de compreensão por causa de seu caráter verdadeiro, mas por conta de uma apreciação estética: somos seduzidos por ela! Pela sua elegância, pelos seus resultados, por ela estar na moda, pela sua beleza, pela sua justiça... em suma, por elementos valorativos que nos encantam e estimulam o nosso engajamento. Utilizando a linguagem proposta por Perelman, poderíamos afirmar que a força de uma abordagem teórica estaria na capacidade de persuadir retoricamente o auditório, e não de convencê-lo racionalmente (Perelman, 1998). Porém, minhas influências waratianas me fazem utilizar uma terminologia um pouco diferente, preferindo a categoria de sedução à de persuasão.

No provocativo A Ciência Jurídica e Seus dois Maridos, Warat reafirma a necessidade de uma “didática da sedução”, que leve a sério o fato de que somos movidos por nossos desejos e que, portanto, o aprendizado é atravessado por nossas várias espécies de prazer. A redução moderna do desejo ao interesse permite a produção de teorias que promovem uma incorporação mais controlada (e anódina) dos elementos subjetivos que determinam nossos comportamentos. Interesses são certas formas de desejos negociáveis, que podem ser articulados a partir de uma racionalidade estratégica.

Os desejos constitutivos, que definem nossa própria subjetividade, não admitem uma lógica de otimização negociada. Eles não podem ser integrados no mercado e não se articulam bem como a autoridade heterônoma. A suposição de que a racionalidade deve sobrepor-se ao desejo instaura uma política comportamental específica: o controle dos corpos justificado por uma noção abstrata de verdade, que justifica formas absolutamente concretas de imposição da autoridade.

Uma autoridade soberana, fundada na verdade objetiva, não precisa negociar sentidos com os desejos dos sujeitos que ela submete. Quando Freud trouxe ao centro do debate contemporâneo a necessidade de lidarmos com nossos desejos e frustrações, cuja estrutura não é a da racionalidade, ele rompeu os limites dos discursos modernos. As narrativas políticas da modernidade são baseadas em uma certa ficção do eu: uma persona monolítica, dotada de autonomia apenas no limite necessário para reconhecer que a sua racionalidade exige abrir mão dessa própria autonomia, em nome da construção de uma soberania capaz de proteger os indivíduos contra a ameaça constante de uma guerra civil.

No campo acadêmico, essa pretensão moderna de autoridade soberana se revelou na forma de uma verdade soberana, cujo caráter objetivo não dependesse do assentimento dos sujeitos. Quando os herdeiros de Hume assentaram a impossibilidade de uma verdade ética soberana, o resultado imediato foi a cisão positivista entre fatos e valores: toda justificação fática de um valor não passa de ideologia barata e mistificadora. Nas palavras de Kelsen, a validade normativa é sempre uma forma de ficção (Kelsen, 1986). Nas palavras de Wittgenstein, a ciência deve permanecer calada sobre todos os conflitos valorativos, pois eles nunca podem ser resolvidos tomando como referência a observação de fenômenos empíricos (Wittgenstein, 1922).

A rígida barreira que os positivistas construíram entre Política e Ciência foi interpretada por muitos como uma postura conservadora, visto que não parecia razoável que um grupo social continuasse a articular a revolução (ou mesmo a reforma), com base na autoridade absoluta de uma verdade objetiva. Nesse contexto, autores como Perelman articularam um substituto mais leve para a verdade soberana: uma quase-verdade, operada pelos argumentos quase-lógicos de uma retórica persuasiva quase-racional. Esse trânsito para as teorias da argumentação foi criticado duramente por autores como Warat, que duvidavam das potencialidades sociais dessa quase-racionalidade retórica (Warat, 1995).

As abordagens retóricas reconheciam que somente conseguimos “convencer” as pessoas que já acreditam nos nossos valores que defendemos. O convencimento não altera as bases valorativas do julgamento, mas opera apenas na extração das consequências lógicas de uma subjetividade compartilhada. Assim, o convencimento é uma operação tautológica como as demonstrações matemáticas: um procedimento útil apenas frente aos que compartilham a crença nos mesmos axiomas. No efetivo choque entre visões de mundo contrastantes, o que está em jogo é a adesão a um axioma, que nunca se dá por critérios de coerência (senão não seriam axiomas...), e sim por critérios de sedução.

A resposta retórica envolve a adoção de um comportamento estratégico: desenvolver argumentos capazes de mobilizar as subjetividades, adotando estrategicamente a visão do auditório que se pretende influenciar. Trata-se de uma adaptação estratégica a um contexto valorativo que não se busca modificar, pois as preferências do auditório são tomadas como um dado do mundo. Previsivelmente, o iluminismo aflora dentro dessas visões retóricas, por meio de uma abordagem universalista: na tentativa de persuadir um auditório tão ampliado que pode ser considerado “universal”, os únicos argumentos possíveis serão os baseados na racionalidade que unifica todos os seres humanos (Perelman, 1998).

É justamente nesse contexto que Warat, apoiado em Barthes e na psicanálise, articula uma pedagogia da sedução (Rocha, 2012), que fale diretamente aos desejos contrapostos. Na base dessa estratégia está o pressuposto de que o discurso não é capaz de convencer os desejos (ponto para Hume!), mas que a vivência em contextos que envolvem ricas interações linguísticas tem um caráter potencialmente transformador (ponto para a Freud!). O reconhecimento da radical alteridade do outro pode nos conduzir a um discurso de respeito radical, em que a mera tematização das diferenças valorativas pode romper a ordem do discurso e o tecido social.

A articulação hiper-liberal da autonomia do indivíduo pode alcançar o limite no qual cada pessoa se considere no direito de ser tratada do modo como ela própria se vê. Todavia, não parece haver muito ganho em abandonar a utopia unitária da modernidade, para construir uma utopia autonomista que anule o lugar da política. O respeito à diversidade pode esvaziar nossas possibilidades de interação, gerando subjetividades que somente são capazes de interagir dentro de suas próprias bolhas. Um ambiente político de bolhas desagregadas, sem pontos de contato efetivo, não oferece lugar adequado para que as subjetividades interajam de forma produtiva e se transformem nesse movimento.

As perspectivas de Warat se inserem justamente nessa tentativa de produzir um espaço público “carnavalizado”: uma sociedade capaz de proporcionar vivências afetivamente complexas, potencialmente geradoras de transformação individual e coletiva.

Na didática da sedução busca-se a realização coletiva de um imaginário carnavalizado, onde todos possam despertar para o saber do acasalamento da política com o prazer, da subversão com a alegria, das verdades com a poesia e finalmente da democracia com a polifonia das significações (Warat, 1985, p. 84).

O desejo contemporâneo de segurança parece estar na contramão da utopia waratiana: uma proteção demasiada das subjetividades, contra potenciais “desrespeitos” a suas crenças idiossincráticas, implica uma despolitização que esvazia o potencial transformador do ensino. A exigência ética de um respeito aos valores que uma pessoa professa (ou seja, acredita que tem...) gera uma aguda despolitização, na medida e que exige um tratamento dos conflitos sociais em termos de respeito moral.

Acho que o sinal mais sutil para caracterizar o ideológico aqui é reconhecê-lo como o processo de castração política da escrita científica. Estamos dessa forma ampliando a ideia da consciência da unidade, incorporando-lhe, como componente de peso, o fato do controle político do saber, mediante o simulacro da unidade (Warat, 1985, p. 89).

Contrapondo-se a esse esvaziamento despolitizador das relações, construído em nome de uma pretensa proteção do respeito às individualidades, Warat mobiliza o repertório conceitual que a psicanálise desenvolveu para dialogar com nossos desejos, especialmente a noção de que nossos interesses conscientes podem ser muito distantes de nossos desejos. Uma subjetividade livre não é aquela que pode realizar as demandas pré-fabricadas que a sociedade lhe estimula a formular, mas aquela que pode encontrar-se com seus próprios desejos e transformar-se de forma mais autônoma e original (Warat, 2004).

Essas inspirações waratianas me fazem pensar que o papel dos professores não é o de transmitir conhecimentos, mas o de produzir novas subjetividades. Trabalhamos produzindo vivências, nas quais existe uma tentativa constante de interferir na estrutura subjetiva dos nossos interlocutores, num processo que é melhor descrito com a categoria da sedução (que mobiliza afetos para estimular convergências) que da persuasão (que instrumentaliza as subjetividades alheias, em uma estratégia implícita ou explícita de dominação).

A capacidade sedutora de uma narrativa (ou seja, sua aptidão para mobilizar os afetos) tende a se perder em todo discurso impessoal, que tende a apelar apenas para o conhecimento (que mobiliza escolhas baseadas em afetos que não são tematizados). Por esse motivo, tenho dificuldade com o formato típico de uma história do pensamento, que apresenta as diversas teorias com um discurso totalmente externo a elas, reservando um discurso mais pessoal (e sedutor) apenas para as ideias do próprio falante.

Para superar esse limite, uma saída possível é a de formular discursos pseudo-internos, em que nos deixemos atravessar pela voz do sujeito arquetípico de uma teoria. Trata-se, evidentemente, de uma internalidade simulada, que se opõem à externalidade simulada das narrativas objetivas da ciência. Quando debatemos acerca de significações (e não de fatos), cumpre-nos interpretar as teorias que apresentamos de forma semelhante ao modo como um ator que interpreta seu papel, e não como um cientista que a descreve. Essa estratégia envolve a construção de narrativas sedutoras, que incorporem a paixão que é perdida toda vez que tentamos ser verdadeiramente imparciais.

A neutralidade mata a paixão. Uma descrição imparcial dos pontos fortes e fracos de uma teoria é um discurso importantíssimo. Mas ele faz parte de uma economia discursiva de quem sustentará apaixonadamente uma outra concepção teórica. A assimetria criada por essa intensidade afetiva seletiva não faz justiça a perspectivas teóricas que teriam um amplo potencial mobilizador, desde que articuladas com o devido investimento emocional. Uma monografia pode ser construída como o canto pessoal de uma teoria específica, mas raramente esse tipo de enfoque dará margem a boas cartografias. A construção de um atlas exige uma espécie de poligrafia, em que cada mapa possa guardar ao menos parte de seu poder de encantamento.

Por isso é que tentarei defender cada ponto como um discurso interno. Melhor dizendo, pseudo-interno, que é o máximo que podemos fazer com teorias que não são as nossas. O objetivo da cartografia aqui exposta não será apenas a elaboração de modelos teóricos, mas a elaboração de discursos internos potencialmente capazes de seduzir os leitores para a potencialidade explicativa desses modelos.

Então, não se trata aqui propriamente de uma reconstrução dos modos de interpretação do direito e da política. A realização de um projeto desse tipo exigiria um esforço diferente, pois envolveria o estudo de fontes primárias (especialmente dos discursos jurídicos de cada momento histórico), o que não é o caso, ao menos em grande medida. As referências às decisões judiciais nos servirão muito mais como exemplos heurísticos, pois o trabalho é centrado nas teorias hermenêuticas modernas e contemporâneas, e não nas práticas interpretativas desse período. Portanto, esta pesquisa é mais ligada à filosofia do direito do que às ciências sociais.

A filosofia política é justamente um discurso centrado na questão da legitimidade. No caso específico deste trabalho, a discussão será concentrada no debate acerca dos critérios de legitimidade que organizam os discursos de aplicação do direito, cujo paradigma típico é o discurso judicial. Se os legisladores normalmente tentam justificar a legitimidade dos seus atos com base em alguma espécie de representatividade popular ou de adequação aos valores sociais, os juízes contemporaneamente justificam a legitimidade das suas decisões na aplicação correta do direito legislado. Portanto, os critérios hermenêuticos funcionam, no direito, como critérios de exercício legítimo da autoridade judicial.

Assim, por mais que o discurso hermenêutico normalmente se organize em torno de critérios de verdade (na busca da interpretação correta), esses parâmetros definem simultaneamente o exercício de um poder social, que não pode ser exercido senão em nome da lei. Nessa medida, o debate acerca dos padrões hermenêuticos não pode ser visto como uma discussão nefelibata acerca de critérios abstratos de verdade, pois essa é a arena em que se definem os conceitos jurídicos que organizam a aplicação normativa do poder.

Com Platão, se inicia um grande mito ocidental: o de que há antinomia entre saber e poder. Se há o saber, é preciso que ele renuncie ao poder. Onde se encontra saber e ciência com sua verdade pura, não pode mais haver poder político. Esse grande mito precisa ser liquidado. Foi esse mito que Nietzsche começou a demolir ao mostrar, em numerosos textos já citados, que por trás de todo saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber. (Foucault, 2001, p. 51)

Com isso, fica claro que a identificação foucaultiana das inevitáveis relações entre saber e poder mostra-se com especial clareza no plano da hermenêutica jurídica, em que toda afirmação de verdade implica uma afirmação de validade, em que todo debate acerca da correção implica a afirmação de padrões de legitimidade para o exercício do poder político.

Essas relações entre legitimidade e discurso judicial suscitam várias abordagens. Uma delas, de inspiração mais sociológica, seria o de investigar a prática discursiva efetiva e desvendar os critérios de legitimidade que lhe subjazem, o que poderia trazer à luz as mitologias dominantes no imaginário dos juristas. Outra, de inspiração mais filosófica, seria investigar esse mesmo imaginário a partir das teorias hermenêuticas consolidadas, o que implica uma avaliação dos discursos teóricos sobre o direito. É justamente este o desafio do presente trabalho, cujo objeto de estudo é a hermenêutica jurídica (entendida como uma rede de discursos teóricos acerca da própria interpretação) e não a interpretação do direito propriamente dita (atividade prática de atribuição de sentido aos textos jurídicos).

Essa opção pela filosofia remete a uma análise indireta do imaginário dos juristas, mediada pelos modos de compreender que se consolidaram na forma de teoria. Todos sabem que a prática, por mais que seja inspirada em alguma teoria, não pode ser reduzida a uma simples aplicação ao mundo de uma teoria determinada. Porém, mesmo uma análise filosófica que tome por objeto as teorias hermenêuticas não pode ser realizada sem uma íntima conexão com a história e a sociologia do direito, pois o esclarecimento das implicações entre as posturas teóricas e o contexto social é indispensável para a adequada compreensão das teorias e dos imaginários que as inspiram.

Como todo modo de olhar, esta perspectiva gera campos de esclarecimento e de ocultação, e a consciência disso pode contribuir para que certas distorções sejam minimizadas. Em especial, creio que optar pelo estudo das teorias tem a desvantagem de muitas vezes sub ou superdimensionar o impacto de uma teoria no contexto social. Certas concepções, como a de Kelsen, têm uma grande repercussão no pensamento de outros autores, mas não nas práticas sociais. Outras, como a jurisprudência dos interesses, acabam por ter uma grande relevância prática, apesar de (ou justamente por) não oferecer grandes inovações teóricas.

De um modo ou de outro, o direcionamento filosófico deste trabalho implica uma certa concentração das análises nas relações das teorias entre si, especialmente nas inovações conceituais propostas por cada uma e das tensões existentes entre elas, tanto no nível dos modelos teóricos propostos como das narrativas mitológicas nela implícitas. Como em toda discussão filosófica, o aspecto sincrônico tende a predominar sobre o diacrônico, pois é no presente que se realizam as tensões contemporâneas entre os modos de interpretação. Porém, para contrabalançar um pouco esse desequilíbrio, creio que é importante oferecer uma descrição das teorias que as contextualize historicamente.

6. Estrutura do trabalho

Creio que todas essas considerações explicam porque as duas primeiras partes do trabalho são reconstruções históricas que tentam explicar o sentido contemporâneo de uma perspectiva hermenêutica, bem como uma espécie de arqueologia das teorias hermenêuticas do direito, mostrando os modos da sua formação, suas influências recíprocas e suas relações com os contextos sociais em que elas surgiram. Com esse objetivo, o primeiro livro traça uma reconstrução histórica da hermenêutica filosófica enquanto o segundo traça uma narrativa acerca da hermenêutica jurídica, desde o início do século XIX até os dias de hoje.

Com isso, creio ser possível entender como a noção de historicidade é radicalizada pela hermenêutica filosófica, que termina por se constituir como um modelo de compreensão alternativo ao científico, e avaliar em que medida essa mesma historicidade é capaz de permear as reflexões sobre a hermenêutica jurídica. Seguindo o olhar meta-hermenêutico do trabalho, este livro proporá uma avaliação dos modos como as teorias hermenêuticas contemporâneas atribuem sentido à realidade que elas apresentam, e das tensões existentes entre algumas das perspectivas teóricas relevantes no panorama atual. Especialmente porque o debate contemporâneo envolve uma indispensável autocrítica do olhar hermenêutico, considero que essa parte fecha um ciclo de leitura hermenêutica da hermenêutica jurídica, e que esse retorno possibilita a abertura de novas perspectivas para que atribuamos sentido à atividade interpretativa que constitui a prática do direito.

7. Agradecimentos

Este é um trabalho sedimentar, constituído de várias camadas, escritas ao longo de mais de 20 anos, e que constituíram a tese que apresentei para meu doutoramento na UnB, em 2008. As mais antigas são estratos que eu escrevi e reelaborei desde que me tornei professor desta matéria, em 2000. A mais recente delas é uma revisão de 2023, que promove uma atualização do texto original e modifica o sistema de notas.

O processo de escrita foi menos planejado que orgânico, pois seguiu as minhas intuições e as necessidades didáticas de cada momento. Muitos dos trechos foram reescritos várias de vezes ao longo dos anos, sofrendo alterações substanciais tanto de conteúdo quanto de estilo. Devo confessar que foi somente ao finalizar o epílogo que compreendi que este livro terminou se tornando uma narrativa da gradual historicização do pensamento hermenêutico, tanto na filosofia quanto no direito.

Durante o processo de escrita, o sentido geral permaneceu relativamente aberto, e sempre me foi difícil descrever esta pesquisa de uma maneira unitária. Apenas quando consegui olhar esta obra na perspectiva de leitor, e não apenas de autor, que pude elaborar um sentido global para ela.

Por maior que seja o esforço autorreflexivo da hermenêutica, o autor é sempre muito opaco a seus motivos inconscientes, a seus preconceitos silenciosos, às lacunas do seu horizonte de compreensão. Tal obscuridade faz com que o olhar externo enriqueça sobremaneira a interpretação das vozes alheias, de tal modo que o sentido de uma narrativa é construído no efetivo diálogo com os vários envolvidos no processo da construção desses significados.

Essa consciência me faz ser imensamente grato a todas as pessoas que me ajudaram a elaborar as reflexões contidas neste livro, que foi desenvolvido no constante diálogo com os meus alunos de hermenêutica jurídica na Universidade de Brasília, meus colegas da pós-graduação e do Grupo de Estudo em Direito e Linguagem (Gedling), posteriormente transformado no Grupo de Pesquisa em Política e Direito. Em especial, agradeço à Luciana Freire e ao Felipe Justino, a quem devo uma cuidadosa da versão original deste texto.

Também devo um especial agradecimento à banca que avaliou a tese, formada por juristas que sempre admirei e cujas ideias estão entremeadas em todos os meus trabalhos: Miroslav Milovic, Luis Alberto Warat, Inocêncio Mártires Coelho, Jairo Bisol e Alexandre Bernardino Costa.

Por fim, gostaria de dedicar este trabalho a quem me acompanhou mais de perto em sua composição, que foi o meu irmão Henrique, que leu cada camada à medida que foi sendo escrita e conversou comigo longamente sobre cada um dos pontos desta obra. Suas palavras foram o principal espelho em que eu pude compreender as minhas.

1. O misterioso sentido das  coisas

O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É que elas não têm sentido oculto nenhum.
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja o que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.
Alberto Caeiro, O guardador de Rebanhos, XXXIX.
(Pessoa, 1990)

1.1 Hermenêutica

Aprendi com Caeiro que é loucura procurar sentido nas pedras e nos rios porque as coisas que estão no mundo não têm sentido nenhum. Porém, isso não me impede de atribuir a elas as mais diversas significações. Muito antes pelo contrário: é justamente por elas não terem sentido nenhum que aceitam com indiferença qualquer significado que eu lhes dê.

Somos livres para inventar sentidos para as coisas, e fazemos isso o tempo todo, atribuindo a elas beleza, justiça e finalidades que não passam de reflexos do nosso próprio modo de vê-las. Olhamos para o mundo como quem observa nuvens buscando encontrar nelas as formas de coisas que elas não são. Quando distinguimos uma nuvem que nos lembra um belo pássaro, às vezes nos esquecemos que tanto a beleza quanto a passaridade daquela nuvem não está nela mesma, mas apenas no olhar que a observa. Esse saber que a beleza dos lírios não está nos lírios, que a passaridade das nuvens não está nas nuvens e que nada há de justo ou de injusto na natureza, tal consciência é um fruto maduro da modernidade.

Para Platão, por exemplo, a beleza dos lírios não estava no olhar que os observava, mas em uma espécie de participação do lírio na própria ideia de Beleza. Tampouco a passaridade da nuvem estaria no olhar, pois ela viria da semelhança entre a forma vista e a ideia-pássaro, que existiria independentemente dos homens. Como seria possível afirmar a injustiça de um estupro, caso não houvesse no mundo a própria ideia-Justiça? Esses questionamentos levaram Platão a diagnosticar que o sentido do mundo não estaria nas coisas. Eis a herança platônica mais indelével: o mundo empírico não se explica por si mesmo!

Mas onde se encontra o sentido? O idealismo de Platão desloca o sentido das coisas para as ideias, mas encara ambas como elementos igualmente existentes. Essa percepção o faz dividir o mundo físico (empírico) do mundo metafísico (ideal), numa abordagem que confere um sentido objetivo ao mundo, ao custo de instaurar uma série de dualismos: empírico/ideal, matéria/essência, racional/perceptual.

Contra a estratégia de procurar o sentido do mundo em um conjunto de ideias abstratas, a modernidade propôs uma inversão, que ganhou corpo nas reflexões de Kant. Immanuel Kant sabia que o sentido das coisas não podia estar nas próprias coisas, mas recusava a via platônica de afirmar a existência de um sentido objetivo no próprio mundo. Se algum significado havia nas coisas, ele somente poderia ser determinado pelo próprio olhar do homem.

Com esse passo, Kant pôde romper a dicotomia tradicional entre mundo físico e metafísico, que ele releu na forma de um conhecimento transcendental (Kant, 2001). Em sua teoria, o elemento transcendental ultrapassa a dimensão física, mas em vez de apontar para um mundo das ideias, Kant o liga a uma forma especificamente humana de perceber o mundo. A estratégia kantiana inaugura uma consciência reflexiva, que nasce de uma auto-observação do nosso próprio modo de olhar: a consciência que se mira no espelho e percebe que ela própria é que dá sentidos ao mundo (Costa, 2023a).

Essa reflexividade kantiana não conduz a uma subjetividade dos sentidos, pois a objetividade da significação resta garantida pela unicidade do modo humano de atribuir sentidos, que é partilhado por todas as pessoas. A crença em padrões objetivos de beleza e de justiça passou então a ser sustentada pela afirmação de que existe uma faculdade humana idêntica pra todos os homens: a razão.

Creio que o pensamento transcendental kantiano abre espaço para o afloramento da noção de que, sem o nosso olhar, o mundo é a natureza de Caeiro: não têm significado, existe apenas (Pessoa, 1990). Nesse ponto, Caeiro se aproxima imensamente de Heidegger, que afirma que o Dasein é a abertura para o ser, na medida em que apenas o Homem atribui sentidos ao mundo, inclusive à sua própria existência (Heidegger, 1988). É nesse sentido que devemos entender a célebre afirmação sartriana de que “a existência precede a essência”, pois somente o homem que existe no mundo, de sua maneira peculiar, atribui sentidos à realidade que ele habita (Sartre, 1987). O mundo que não é humano é desprovido de sentidos, pois é regulado por relações de causalidade e não de finalidade: fora do âmbito do humano, existem instintos e pulsões, mas não existe uma autocompreensão que confira sentido à própria atividade. Ou, como diz uma frase de Nietzsche muito bem citada por Foucault, “o caráter do mundo é o de um caos eterno; não devido à ausência de necessidade, mas devido à ausência de ordem, de beleza e de sabedoria” (Foucault, 2001, p. 18)

A existência pode ser contemplada, mas não pode ser entendida, porque nada há nela para se entender. Para Caeiro, quem não se contenta em contemplar o mundo e quer encontrar um sentido íntimo nas coisas incide em uma rejeição do fato de a natureza ser exatamente como é. Querendo que a realidade fosse diversa, tais pessoas acabam inventando muitas coisas e depois dizendo que as encontraram em algum lugar, incidindo numa prática que a tradição marxista chama de “alienação” e que Sartre relê sob o signo de uma má-fé, que conduz a uma vida inautêntica (Sartre, 2001; Castro, 2006).

Essas coisas que se inventa são a metafísica, que preenche os vazios de sentido do mundo com significados fabricados, consciente ou inconscientemente, pelo homem. Contra esses falsos descobridores de sentidos, Caeiro diz que “pensar é estar doente dos olhos e que há metafísica bastante em não pensar em nada” (Pessoa, 1990). Curiosamente, porém, mesmo Caeiro pensa. Pensa na metafísica para negá-la, pensa no mundo para despi-lo dos seus sentidos. Ele não é a criança ingênua do paraíso perdido, mas o adulto que recupera sua inocência a partir de uma aprendizagem de desaprender que o conduz a um pensamento que nega o próprio pensamento, consciente de que “a única inocência é não pensar” (Pessoa, 1990).

Apesar de tudo, pensamos. Talvez estejamos mesmo doentes dos olhos, mas continuamos atribuindo sentidos às coisas que vemos, fazemos e imaginamos. Talvez seja precisamente essa nossa doença dos olhos a marca principal da humanidade. Essa é a doença do Dasein heideggeriano, esse ente não pode pretender a inocência porque não pode se furtar de pensar ao seu próprio modo de ser no mundo, que é o de transformar o ente em ser, conferindo sentidos às coisas que têm mera existência.

Quer dizer, que têm mera existência física, pois a Realidade humana transcende o empírico. Mas onde estão esses sentidos? Nos objetos eles não estão: não somos mais gregos que acreditam num logos revelador do sentido oculto na essência das coisas mesmas. Esse modelo de interpretação ainda existe, mas não domina. No sujeito eles talvez estejam: em suas estruturas objetivas de compreensão, a serem esclarecidas por uma analítica transcendental: a análise que a consciência faz de si mesma, na busca de desvendar a estrutura do seu próprio modo de ver o mundo (Kant, 2001).

A filosofia da linguagem se constrói a partir da intuição de Frege, de que os significados não são dotados de existência autônoma (Costa, 2023a; Frege, 1960a). Os sentidos existem e fazem parte do mundo, mas de uma forma meramente linguística. Vivemos em um mundo repleto de significação e é somente a esse mundo que chamamos de realidade.

Os significados têm na linguagem o seu espaço próprio. Fora da linguagem há talvez as emoções e as sensações de Caeiro, que podem ser observadas ou sentidas sem serem pensadas. É dentro das narrativas linguísticas que as coisas deixam de ter meramente existência e passam a ter causas, beleza, finalidades, justiça, fundamentos, semelhanças, natureza, ordem, necessidades, contingências e toda uma gama de outros atributos. Com esses discursos constituímos a realidade.

A função dos discursos é dar sentido ao mundo. Não é descrevê-lo simplesmente, mas organizar nossas percepções e imaginações de uma forma tal que a realidade faça algum sentido. Assim, diferente do mundo (que tem somente existência), a realidade não existe para além do discurso e da linguagem. É essa realidade que a fenomenologia chama de mundo da Vida (Lebenswelt), o qual não é simplesmente um conjunto de fatos, mas esse lugar que o homem habita na medida em que constitui a rede de significados que o compõe. Nas palavras de Christian Beyer, o mundo da vida é o sistema de sentidos ou significados que integram a linguagem a partir da qual uma comunidade concebe o mundo e a si mesma (Beyer, 2022).

Com a nossa infindável capacidade linguística de dar sentido a signos que inventamos, construímos leis, teorias, romances, lógicas, sinfonias, teatro, matemática, história, programas de computador, sociologia, mentiras, utopias, cartas de amor e até mesmo poemas que dizem que “o único mistério é haver quem pense no mistério” (Pessoa, 1990). Vivemos, assim, em um mundo repleto de discursos que lhe conferem sentido, e a hermenêutica é justamente um discurso acerca do modo humano de lidar com essas significações que atribuímos às coisas.

1.2 O sentido dos discursos, onde habita?

Tenho à minha frente uma pilha de folhas de papel com rabiscos pretos que dizem ser a obra poética de Fernando Pessoa. O que será que dá sentido a essas palavras que me dizem que as coisas não têm sentido íntimo nenhum? O que lhes dá beleza?

Você tem a sua frente alguns rabiscos pretos e é capaz de projetar, a partir deles, uma série de significados. Será que você compreendeu o que querem dizer estas palavras? Teria você entendido o que eu quis que elas dissessem? Será que eu mesmo as entendi? Ou talvez você tenha entendido o que eu não queria que elas dissessem, mas assim mesmo elas disseram. Estas frases têm algum sentido intrínseco? Ou será que o sentido delas está no seu olhar? Mas, se for assim, como duas pessoas imaginariam sentidos parecidos, algo que sabemos que elas muitas vezes fazem? E, se não for assim, como poderiam as pessoas imaginar sentidos tão diferentes, como também sabemos que elas fazem?

Muitas são as perguntas que giram em torno dos significados de um texto. A hermenêutica se insere no campo de reflexão constituído por perguntas desse tipo, que buscam dar sentido ao nosso modo de conferir sentidos à realidade. A resposta hermenêutica a todas essas questões radica o sentido do mundo na própria linguagem com que falamos dele. Portanto, a concepção hermenêutica do mundo é uma das herdeiras do giro linguístico do começo do século XX, que colocou a linguagem como centro da reflexão filosófica.

Não há sentido fora da linguagem. Esse é um dos pressupostos constitutivos da hermenêutica. Portanto, os sentidos das coisas não devem ser buscados nas próprias coisas (o que Platão já tinha afirmado), nem no próprio mundo (o que nega o idealismo platônico), nem em uma estrutura cognitiva (o que se contrapõe ao transcendentalismo de Kant), mas nas próprias linguagens com que falamos do mundo.

O sentido do mundo está nos discursos com os quais constituímos a realidade. É justamente por isso que Gadamer afirma que tudo o que pode ser conhecido é linguagem (Gadamer, 1997). Fora da linguagem pode até existir o mundo, mas trata-se apenas do mundo dos fatos empíricos, do mundo sem sentido das coisas em si. O simples falar acerca do mundo faz com que constituamos uma imagem linguística do mundo, e é no território dessa imagem (a realidade) que poderemos encontrar os significados. Assim, quando discutimos acerca dos fatos, estamos sempre tratando das imagens que fazemos do mundo, pois a linguagem não comporta os fatos em si, mas somente os fenômenos (ou seja, modo como apreendemos os eventos em nossa mente, por meio dos nossos sentidos e das formas do nosso conhecimento).

Radicalizando a percepção kantiana, Nietzsche acentuou que, em nossa percepção do mundo, não existem fatos, mas apenas interpretações (Nietzsche, 2006). A interpretação do mundo é sempre um fenômeno linguístico, na medida em que interpretar significa atribuir sentido. Como a linguagem é o único lugar que o sentido habita, compreender a Realidade exige a compreensão da própria linguagem com que a constituímos e dos seus modos de operação. Essa percepção faz com que a hermenêutica seja necessariamente reflexiva, pois ela dirige a si mesma o seu olhar: a hermenêutica é um modo de compreender o compreender e, nessa medida, trata-se de um conhecimento que se utiliza de espelhos e não de lunetas. Justamente por isso, a hermenêutica não é uma ciência, no sentido comum desse termo.

1.3 Hermenêutica e reflexividade

Nem a tradição grega, nem a tradição medieval nem a mentalidade cientificista moderna estão vinculadas a uma mentalidade reflexiva. Elas falam sobre o mundo, sobre deus, sobre o homem, mas nunca sobre elas mesmas, sobre o seu papel de “tradição”, sobre o modo como elas condicionam as formas de ver o mundo das pessoas nelas inseridas.  Miroslav Milovic ressalta que, na tradição grega, Aristóteles chegou mesmo a sustentar que a razão humana pode compreender o mundo, mas não pode compreender a si mesma e, com isso, descartou conscientemente a própria possibilidade de um pensar reflexivo.

Já os cientistas modernos buscaram desenvolver métodos racionais para alcançar a verdade na natureza, obtendo resultados tão impressionantes que inspiraram nos demais campos do conhecimento uma mentalidade cientificizante, baseada na crença de que o método é única bússola útil na investigação da Verdade. Porém, eles não tentavam interpretar o mundo, mas apenas explicá-lo.

A modernidade filosófica chegou até a autorreflexividade com Kant, inspirado pelas críticas de Hume. Mas essa foi uma reflexividade transcendental, que apontava para a existência de estruturas subjetivas universais, invariáveis historicamente. Assim, havia uma reincidência da afirmação cartesiana de que a razão é igual em todos os homens e que, portanto, “a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de sermos uns mais racionais do que outros, mas somente do fato de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e de não levarmos em conta as mesmas coisas” (Descartes, 1985, p. 30). Assim, a razão era eterna, universal e necessária, não se encontrando sujeita às mudanças da história: pelo contrário, era justamente a permanência da razão que possibilitava a compreensão adequada objetiva da própria história.

Os autores vinculados a esse projeto acreditavam que os sentidos dos seus objetos de investigação (textos, história, sociedade) eram algo imanente ao seu objeto e que deveriam ser descobertos pelo intérprete, por meio de um exercício hermenêutico cuidadoso, que minimizasse a possibilidade do mal-entendido. Trata-se, portanto, de um momento em que a hermenêutica era vista como uma metodologia para orientar a busca do sentido objetivamente verdadeiro dos textos e das experiências humanas.

Mesmo aos teóricos que se inspiraram na hermenêutica para remodelar os métodos das ciências humanas, faltava uma consciência reflexiva acerca da própria historicidade: eles acreditavam que o pensamento científico criava a possibilidade de pensar a história de maneira objetiva e universal, ou seja, fora do contexto histórico particular do intérprete. Nessa medida, eles tratam da história e da sociedade, mas sem ter consciência de que eles próprios faziam um discurso historicamente condicionado. A parte inicial do Verdade e Método, de Hans-Georg Gadamer, traça o itinerário dessa gradual historicização do pensamento hermenêutico (Gadamer, 1997).

Foi só no início do século XX se enunciou com clareza o caráter histórico da atividade hermenêutica. Essa consciência já se prefigurava em Nietzsche (2006), mas quem estabeleceu explicitamente o aspecto histórico da atividade hermenêutica foi Martin Heidegger, que ligou a historicidade da hermenêutica com a historicidade da própria condição do homem, e sustentou que o modo hermenêutico de pensar integra a própria forma de o homem lidar com o mundo, conferindo sentido às suas experiências. Torna-se claro, então, que o mundo, em si, não tem sentido, pois quem dá sentido a ele é o próprio homem.

Radicalizando a reflexividade da hermenêutica, Gadamer mostrou que o método não é um meio de condução à verdade, o que pôs em xeque a convicção moderna nas estratégias metodológicas para alcançar uma verdade impessoal. A abordagem gadameriana nos legou a percepção de que que o método é uma máquina de atribuir sentidos e não um procedimento voltado a encontrar sentidos. Fecha-se, então, o círculo reflexivo iniciado por Nietzsche e cristaliza-se a consciência hermenêutica propriamente dita.

Para quem compartilha dessa mentalidade, parece ingênua ou ideológica qualquer postura que tenta se afirmar como detentora da verdade universal e necessária, estabelecida pela própria razão e não por uma construção histórica. Com isso, a hermenêutica contemporânea opõe-se à utopia da ciência moderna, que busca compreender o mundo a partir de um ponto de vista objetivo, construindo, assim, uma descrição neutra da realidade. Opõe-se também à fenomenologia de Husserl, que afirmava a possibilidade da filosofia como um conhecimento rigoroso das essências (Husserl, 1989). Contrapondo-se a tais esforços, as perspectivas hermenêuticas buscam estabelecer um pensamento reflexivo que apresente o esforço humano de compreensão como uma tentativa de construir sentidos provisórios, dentro de contextos históricos determinados.

Por tudo isso, a hermenêutica não deve ser percebida como um método, e sim como um estilo (Gadamer, 1997). Não busca fabricar a identidade, mas compreender a diferença. Não visa à descoberta, mas à construção. Não busca a objetividade, mas a contextualização. Por tudo isso, a hermenêutica não lida com o eterno, mas com o contingente, e dela não resulta o necessário, mas o possível.

A hermenêutica não se concentra no resultado (tomado sempre como provisório), mas adota um foco na travessia (esta sim, percebida como constante) que certamente agradaria a Riobaldo:

Digo: real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. (Rosa, 2001)

A história da hermenêutica é a do desenvolvimento desse modo de pensar histórica e reflexivamente o próprio homem, dessa mentalidade que absolutiza a relatividade e universaliza a contingência.

1.4 Hermenêutica e Ciência

A ciência é uma espécie de discurso que nunca fala de si mesmo. Repare que usei intencionalmente a palavra discurso (um fazer) e não conhecimento (um saber). Isso não significa negar que haja um conhecimento científico, mas apenas negar que a ciência possa ser confundida com os saberes que ela (re)produz. Tal como a filosofia, a ciência é uma atividade (Wittgenstein, 1922). Uma atividade discursiva, que produz um mosaico de narrativas e não um sistema de afirmações verdadeiras.

O discurso científico fala do mundo empírico, mas não se coloca como parte deste mundo, e sim como a sua imagem. Uma imagem que deve ser objetiva e que, portanto, não busca representar o mundo de forma simbólica (tal como uma aliança simboliza um casamento), mas de forma mimética (apresentando um retrato fiel da realidade).  As formas simbólicas de representação são ligadas às artes, que podem gerar obras plenas de simbolismo, mas que não se confundem com a própria realidade. No Grande Sertã: Veredas, Guimarães Rosa afirma:

Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia. (Rosa, 2001)

O que quer que essa frase queira dizer, ela não é uma tentativa de descrever o mundo. Toda afirmação literária é uma frase dita por um personagem, ou mesmo por um narrador. Tal como nos explica Fernando Pessoa, o eu-lírico do poeta é um fingimento, mesmo quando ele diz coisas sinceras.

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente. (Pessoa, 1990)

A poesia pode ser transformadora e pedagógica, mas não tem função representativa, na medida em que não pretende nos dar uma imagem dos fatos do mundo. Por mais que a ciência trabalhe com a linguagem, tal como a literatura, os retratos que ela pinta não devem ser surreais nem expressionistas. O seu estilo é o de um realismo naturalista, pois os cientistas buscam retratar o mundo de uma forma que as figuras sejam tão fiéis ao original quanto uma fotografia.

A imagem fotográfica é impessoal e objetiva, visto que a máquina fotográfica opera da mesma forma, não importando quem aperte os seus botões. Essa frase é obviamente falsa, pois a subjetividade do fotógrafo é transposta para a imagem na medida em que ele define de uma maneira idiossincrática a abertura da lente, o tempo de exposição e o foco. Corrigindo então: a imagem fotográfica somente é impessoal quando se utiliza o modo automático, e não o modo manual, de tal forma que a câmera opere seguindo o método previamente definido e que não pode ser alterado por quem a manuseia.

O que garante a impessoalidade da imagem científica é justamente a existência de um método objetivo de tirar as fotografias, o qual evita que a subjetividade do fotógrafo interfira no resultado final da imagem. O método científico, então, é o modo automático de funcionamento de uma máquina fotográfica chamada ciência. A ciência certamente não se trata de uma engenhoca mecânica, nem de um aparelho eletrônico de última geração, pois os conjuntos de narrativas que ela produz somente têm uma existência virtual. Seu método consiste em uma determinada forma de relacionar informações de modo maquínico (Deleuze e Guattari, 2000), ou seja, seguindo padrões predefinidos e impessoais. Mas impessoal não significa neutro, pois o modo automático das câmeras segue algoritmos que foram previamente definidos e sempre caracterizam uma escolha: não existe um automático necessário, mas muitos modos automáticos contingentes.

A mirada científica é sempre dirigida por um observador ao mundo e, justamente por isso, a ciência é um discurso que não tem espelhos para se observar. Ela olha o mundo, e não a si mesma, de tal forma que não existe uma ciência da ciência: os discursos acerca da ciência (como os contidos neste parágrafo) não têm natureza científica, mas filosófica. Isso não ocorre por acaso, mas na medida exata em que a mirada no espelho dissolve sempre a objetividade linear das cadeias de causa e efeito com que a ciência elabora suas imagens.

Enquanto o discurso científico é linear e causal, a mirada especular gera uma circularidade autorreferente: o olho que se mira no espelho sabe que ele é um reflexo de si próprio e que, portanto, não existe um ponto externo a partir do qual ele se possa enxergar: a visão do próprio olho nunca é eterna a si e, portanto, o homem não pode contar a sua história senão a partir de dentro dela.

Não obstante, toda a história do conhecimento, até o século XIX, representou uma tentativa de observar o mundo a partir de um ponto objetivo e, portanto, a-histórico. Esse ponto de referência precisa estar fora da história, para poder descrever a realidade de acordo categorias universais e permanentes. Todo o discurso sobre a verdade faz referência a algo que não é simplesmente uma verdade para mim, ou uma verdade para a minha cultura, pois a veracidade é uma espécie de correspondência com a própria realidade. A verdade não pode ser meramente relativa, sob pena de não merecer esse nome, pois a pretensão de verdade não é condicionada a um contexto social específico, mas caracteriza-se por ser uma pretensão incondicional de correção (Habermas, 2004a, p. 282). Justamente por isso a ciência não se coloca como um conjunto de conhecimentos historicamente determinados, mas como portadores de uma verdade objetiva.

Melhor dizendo, todo cientista atualmente sabe que o estado da arte de sua ciência é historicamente determinado, na medida em que a experiência mostra que as verdades científicas são sempre superadas por novas pesquisas, que revelam novas coisas sobre o mundo. Porém, embora o próprio saber científico seja histórico, os critérios de racionalidade que o inspiram são considerados absolutos. É justamente a aplicação conscienciosa desses esforços que garante a possibilidade de um aperfeiçoamento constante do saber científico. Por mais que se admita que o conhecimento se amplia e se aperfeiçoa, isso não significa dizer que houve uma alteração na própria verdade.

Não foi a Verdade que mudou. Foi apenas o homem que se aproximou um pouco mais dela, na medida em que se tornou capaz de traçar retratos cada vez mais precisos e completos da realidade observada. Por isso, uma das principais características da ciência é a de colocar-se sempre como discurso externo. O cientista é sempre o que observa de fora. Sua perspectiva a do estrangeiro, a do que não participa, a do que guarda distância suficiente do seu objeto para percebê-lo de modo imparcial: o cientista nunca pode ser parte do seu próprio objeto. Ele usa câmeras atreladas a lunetas e microscópios, nunca a espelhos.

Essa exterioridade é constitutiva do discurso científico. Tais narrativas, justamente por apresentarem imagens vistas de fora, cumprem uma função sempre explicativa e nunca fundadora (Kelsen, 1992, p. 74). O cientista somente pode falar daquilo que é, mas tem de abster-se completamente de falar daquilo que deveria ser. Como bem acentuava Kelsen, a utilização da ciência como uma espécie de fundamentação consiste sempre em uma apropriação ideológica do discurso científico. Portanto, mesmo que haja uma ciência acerca de discursos prescritivos (como é o caso do Direito), o discurso científico não pode ultrapassar os limites de um discurso meramente descritivo. Na base da imagem científica somente pode haver critérios de verdade, nunca de validade, porque a validade é sempre um critério interno de um discurso prescritivo.

Quer dizer, no alicerce de uma ciência radicalmente moderna, a validade não tem lugar. Porém, parte do discurso que se apresenta como “científico” não busca apenas explicar o seu objeto, mas identificar critérios objetivos de validade, que fundamentem um ordenamento normativo. Esse tipo de discurso não passa de pseudociência, pois qualquer pessoa minimamente versada em lógica sabe que é ilógico retirar conclusões prescritivas de enunciados meramente descritivos.

Esse rompimento com a prescrição é o que caracteriza a ciência moderna plenamente madura, que é a positivista. A busca de sistemas de validade universal foi a procura do Santo Graal efetuada pelas teorias éticas da modernidade, mas esse tipo de investigação parece ter esgotado suas forças no século XIX, em um movimento que foi sentido como uma espécie de crise da filosofia.

Aquilo que se chamava de filosofia, naquela época, não era uma tentativa de descrever coisas, mas de justificá-las. Não havia uma distinção entre filosofia do direito e direito natural, pois a filosofia existente era de caráter jusnaturalista. Esse tipo de perspectiva foi rejeitado profundamente pelo olhar científico positivista, que tentou substituí-la por uma mirada científica na formação dos juristas. Inobstante, creio que a principal negação da filosofia do direito não se dá por meio de um apelo cientificista, mas pelo primado de um pensamento tecnicista, que se opõe ao pensamento teorético tanto da filosofia quanto das ciências jurídicas.

“Ao direito natural, que é metafísica, nós preferimos a sociologia”, afirmou Rui Barbosa ainda em 1882, para justificar a substituição, nos currículos dos Cursos de Direito, a disciplina filosófica do Direito Natural pela disciplina científica da Sociologia (Rocha, 2003).  Parece, então, que já começava a ser aplicável a constatação de Richard Rorty de que “a maior parte dos intelectuais de nossos dias descarta as alegações de que nossas práticas sociais exigem fundações filosóficas, com a mesma impaciência que têm com alegações semelhantes impostas pela religião” (Rorty, 2005, p. 225).

Com a hegemonia dos valores e das instituições modernas, os discursos que operam a sua fundamentação filosófica deixaram de ter relevância, passando a ser vistos como uma erudição nefelibata. A revolta antifilosófica contida nesse posicionamento parece justificada, pois o discurso filosófico da modernidade havia chegado a uma aporia. Ele se construiu contra a tradição medieval, utilizando a racionalidade como único critério objetivo para a aferição da verdade. Esse tipo de racionalidade foi revolucionário, especialmente por estar na base do desenvolvimento das ciências empíricas, que se tornaram o modo de saber paradigmático da cultura ocidental.

Durante o século XIX, a filosofia ficou reduzida a uma reflexão metafísica que não tinha fôlego para se contrapor à hegemonia do cientificismo. A metafísica naturalista era um discurso enfraquecido, tanto que a ciência substituiu a filosofia como discurso de organização do poder. Nesse momento, o discurso científico passa a organizar as reflexões sobre áreas que antes eram típicas das reflexões filosóficas, como a filosofia política, o direito e a psicologia. Os reflexos dessa redução da filosofia à metafísica eram tão grande que Kelsen, em plena década de 60, sustentava que ele não fazia filosofia do direito, mas teoria do direito, pois o seu enfoque era científico e não filosófico (Kelsen, 1962).

Esse esgotamento do discurso filosófico iluminista foi revertido no final do século XIX, quando vários pensadores começaram a refletir criticamente sobre o próprio cientificismo dominante, que começava a mostrar sinais de crise. As críticas demolidoras de Nietzsche prepararam terreno para que Husserl pudesse diagnosticar, no início do século XX, uma crise nas próprias concepções de ciência (Husserl, 1989), então orientadas por um positivismo que o empirismo lógico levava às últimas consequências, já no seio da virada linguística que inspirou a maior parte das correntes filosóficas contemporâneas.

A crise do positivismo científico somente se acirrou com o decorrer do século, com os ataques de Popper (1973), Kuhn (2012), Bachelard (1967) e de tantos outros epistemólogos do século XX, que colocaram em xeque as concepções tradicionais de ciência. O fortalecimento do discurso filosófico acerca da ciência instaurou um novo equilíbrio entre saberes científicos e filosóficos, no qual a filosofia não mais buscava seguir os padrões de racionalidade definidos pelas ciências naturais, mas refletia criticamente sobre a maneira como as atividades científicas efetivamente eram realizadas.

No plano do direito e dos demais discursos normativos (como a ética), as reflexões filosóficas sobre a racionalidade gradualmente tornaram claro que era impossível justificar racionalmente um critério de validade normativa. Quando a racionalidade foi reduzida à racionalidade instrumental, tornou-se clara a impossibilidade de pretender a validade universal de sistemas normativos. A radicalização da virada linguística fortaleceu a tese de Hume que, lida a partir de uma perspectiva linguística, significa que há uma incomensurabilidade entre discursos prescritivos e descritivos (Hume, 1975), de tal forma que a tentativa tradicional de fundar normas com base em critérios de fato rompe a própria lógica do discurso racional.

A exposição mais clara dessa impossibilidade foi dada por Kelsen, quando sustentou que a validade é uma propriedade de enunciados que ocorre sempre dentro de um sistema simbólico, sendo que a própria validade do sistema não pode ser tematizada a partir de si mesmo (Kelsen, 1986). Afirmar a existência de uma validade objetiva implica sustentar a existência de um sistema universal, que é justamente o postulado básico do jusnaturalismo. Assim, a validade somente poderia ser universalizada na medida em que se considerasse que o mundo inteiro faz parte de um determinado sistema. Porém, admitir a historicidade do direito implica admitir a sua contingência, o que é incompatível com o jusnaturalismo. Foi justamente por isso que Kelsen, na busca de construir um conhecimento científico objetivo, precisou abandonar os conteúdos contingentes das ordens jurídicas, para se concentrar na forma universal dos enunciados normativos. O seu objeto de estudos não é um direito positivo, mas o direito positivo em geral, que somente existe como entidade abstrata (Kelsen, 1992).

Com isso, Kelsen reduziu a sua teoria a uma análise formal da linguagem jurídica, que no limite resultaria em uma lógica deôntica, e não em uma ciência do direito positivo. Assim, ele chamou atenção para o fato de que a verdade objetiva no direito não pode ultrapassar a fixação dos critérios da lógica da linguagem normativa. Quanto a uma ciência do direito positivo, ela poderia subsistir, mas na forma de uma sociologia do direito, e não na forma de uma dogmática jurídica, na medida em que o enfoque interno é incompatível como uma ciência positiva (Kelsen, 1992).

Essa é a mesma noção de Ehrlich, de que, se alguma ciência do direito é possível, é a sociologia do direito, e não a dogmática jurídica (Ehrlich, 1986). Foi essa opção pelo enfoque radicalmente externo que fez com que a ciência se distinguisse do discurso dogmático da tradição, em que a verdade é definida por critérios de validade, o que implica um atrelamento necessário entre verdade e autoridade. Ligar autoridade e verdade significa medir a veracidade de uma afirmativa a partir de padrões deônticos e não de padrões factuais, que organizam o discurso metodológico das ciências.

Enquanto a verdade científica é medida pela correspondência entre enunciados e fatos, a validade de uma norma nunca é uma questão empírica. A validade é uma questão deôntica e, portanto, somente pode se resolver com base em critérios de legitimidade. Existe, portanto, uma incomensurabilidade entre faticidade e validade, que somente poderia ser dissolvida caso fossem determinados os critérios deônticos naturais, ou seja, caso fossem descobertos enunciados prescritivos que pudessem ser extraídos da própria natureza das coisas.

A busca desses enunciados deônticos cuja validade fosse uma questão de fato é a pedra filosofal de toda a alquimia jusnaturalista da modernidade. Todos os jusnaturalismos modernos se dedicaram a realizar essa união entre faticidade e validade, mediante a peculiar via de tentar fundamentar a validade de algumas normas em sua necessidade racional, por considerarem que tudo o que é racional é natural, na medida em que a racionalidade é considerada parte da natureza humana.

Sob uma perspectiva hermenêutica, todas essas buscas são fadadas ao insucesso, na medida em que elas implicam uma tentativa de descobrir o sentido das coisas nas próprias coisas. Identificar na natureza um sentido deôntico significa buscar nos fatos o sentido dos próprios fatos, o que é uma tarefa inglória e somente pode chegar à peculiar inversão de captar nas coisas os sentidos que previamente atribuímos a eles. Melhor seria seguir o exemplo de Kelsen e aceitar, desde o início, que não existe autoridade racional nem autoridade natural, mas apenas autoridade historicamente constituída. Portanto, a validade do direito nunca pode ser demonstrada cientificamente, restando aos cientistas do direito apenas postular a validade do sistema que eles buscam explicar (Kelsen, 1986).

Esse rompimento radical entre faticidade e validade não está presente na ciência do século XIX, na qual ainda estava presente a esperança iluminista de encontrar critérios fáticos de validade. Foi apenas com a consolidação da mentalidade positivista, que a ciência abandonou completamente suas pretensões diretivas e passou a ter pretensões meramente explicativas. Cabe ressaltar que a epistemologia positivista nada tem a ver com o direito positivo, mas com a limitação da ciência ao conhecimento descritivo/explicativo de fatos empíricos (Comte, 1982).

A própria teoria pura do direito de Kelsen veio na tentativa de separar direito e sociologia, evitando as tentativas de transformar o jurista em um engenheiro social (social engineer) (Pound, 1954), capaz de estabelecer soluções corretas para as normas, a partir dos conhecimentos científicos. Nessa medida, o positivismo pode ser entendido como uma tentativa de radicalizar a distinção entre ciência e dogmática, no sentido de reconhecer que a construção de uma dogmática cientificista não passa de uma apropriação ideológica do discurso científico. Nessa medida, o positivismo é um herdeiro direto do relativismo valorativo que marcou a posição cartesiana perante a tradição medieval.

No Discurso sobre o Método, Descartes fez a primeira afirmação categórica do caráter histórico das tradições e da relatividade de todos os valores da sua própria tradição. Em vez de separar o mundo em um nós-civilizados e um eles-bárbaros, a consciência cartesiana voltou-se revolucionariamente contra os valores tradicionais, ao colocar em dúvida a autoridade das crenças consolidadas em sua própria cultura. Com isso, Descartes colocou em movimento um novo personagem conceitual (Deleuze e Guattari, 1992b): o Cientista.

Esse personagem, que é o autor arquetípico do impessoal discurso da ciência, é caracterizado por ser relativista quanto aos valores culturais, mas também por ter certeza quanto à possibilidade racional de explicar os fatos do mundo. Enquanto as visões tradicionais atrelam verdade e validade, o pensamento científico rompeu essa ligação, de tal forma que a verdade com relação aos fatos ficou libertada do domínio da validade com relação aos valores tradicionais. É justamente essa postura cética perante a Tradição e crente perante a Razão que constitui a marca maior da modernidade, e a fonte de sua energia revolucionária.

1.5 Ciência e dogmática

Dogmáticos são todos os discursos que falam em nome de uma tradição. Dogmático é o discurso da teologia católica, que não pode colocar em questão a autoridade da Bíblia. Dogmático é o discurso dos juízes, que não podem colocar em dúvida a própria autoridade nem a dos textos legislativos.

Apesar da ausência de reflexividade ser um ponto de convergência entre os discursos dogmáticos e científicos, há uma diferença marcante entre os dois: enquanto a ciência somente admite pressupostos de fato (o que a circunscreve aos problemas da verdade empírica), os discursos dogmáticos também pressupõem valores (o que os remete a questões de autoridade e legitimidade).

Perante uma mirada externa a si próprio, todo discurso dogmático apresenta uma espécie de simulacro de exterioridade. Por um lado, ele se apresenta como um discurso externo, na medida em que propõe uma visão verdadeira de um mundo que é observado a partir de um ponto fixo. Contudo, uma análise externa deixa claro que o discurso dogmático não se caracteriza pela sua exterioridade, mas pela sua interioridade:  seus critérios de validade pressupõem a autoridade dos valores que o atravessam. Enquanto o discurso científico se organiza em torno de uma questão de verdade baseada em fatos objetivos, baseada em testes empíricos, o discurso dogmático reflete uma questão de validade deduzida de certos em valores pretensamente objetivos.

Como a validade de um valor nunca pode ser demonstrada com base em fatos empíricos, o discurso dogmático oferece sempre uma opaca mistura de verdade e validade. Isso elimina a possibilidade de qualquer transparência, especialmente porque a validade é apresentada como verdade, um tipo de ficção (Kelsen, 1986) que somente pode ser sustentada na medida em que permanece oculta nas redes do próprio discurso. Além disso, tal atrelamento impede o livre desenvolvimento das reflexões sobre a verdade: cada vez que se descortina a falsidade de algum dos preconceitos tradicionais, a verdade é negada em nome da autoridade.

Essa conformação torna inevitável um combate renhido entre o Sábio, personagem conceitual que fala em nome da tradição, e o Cientista, que vê na manutenção dos valores tradicionais um grande empecilho para o avanço da ciência. Esse combate teve célebres batalhas: a defesa copernicana do sistema heliocêntrico, a defesa darwiniana da teoria da evolução, a afirmação de um início do tempo, com a teoria do big bang. Nenhuma dessas verdades se adequa aos preconceitos tradicionais, que as contradizem por uma questão de autoridade, revestida como uma questão de verdade.

O discurso científico da modernidade nasceu como uma narrativa contradogmática, na medida em que ele pôs em questão todos os argumentos fundados na autoridade do falante ou da tradição. Contra a descrição tradicional da realidade, os primeiros cientistas propuseram uma nova imagem para o mundo, que não mais se submetia à autoridade tradicional.

A batalha paradigmática dessa luta foi a travada entre Galileu Galilei e a Igreja Católica. Galileu não foi condenado por causa da veracidade de suas proposições sobre o mundo, mas pelo caráter subversivo da inversão epistemológica que ele propunha com relação à própria teologia. No confronto entre a interpretação científica e a interpretação teológica, Galileu propôs que as provas empíricas fossem usadas como justificativa para que a Bíblia fosse interpretada de maneira alegórica, com relação ao ponto em que um profeta mandou que o sol parasse o seu curso em torno da terra. Como os sábios bíblicos já haviam assentado que não se tratava de uma simples alegoria, a sugestão de Galileu soava herética, pois a demonstração científica não pode valer mais que a autoridade das palavras bíblicas.

E reverberações dessa luta até hoje são sentidas na oposição contemporânea dos criacionistas contra as ideias evolucionistas inspiradas em Darwin. Em ambos os casos, não se trata propriamente de um debate acerca da verdade indutiva, mas acerca da autoridade de certos pressupostos dogmáticos. Nem a ciência nem a religião parecem dispostas a abrir mão do seu espaço de discursos privilegiados sobre o mundo. De um lado ou de outro, o que se apresenta não é uma tentativa de harmonização, mas uma pretensão de hegemonia.

Essa busca de hegemonia, essa presença concreta do poder dentro do discurso do saber, aponta para uma curiosa afinidade: tanto o discurso dogmático quanto o científico, não podem falar de si mesmos, pois eles não podem tematizar os próprios pressupostos. Mas a linguagem aqui é enganadora: um olhar externo enxerga na base desses discursos uma série de pressupostos implícitos e explícitos. Porém, onde o olhar externo enxerga pressupostos, o olhar interno enxerga as verdades evidentes da ciência e valores inquestionáveis da tradição.

Mas o que é a evidência racional, senão a afirmação de uma inquestionabilidade? Essas verdades evidentes, justamente por serem evidentes, dispensam qualquer justificação. Afinal de contas, a evidência é sempre o critério último da verdade científica, aquele ponto além do qual a racionalidade não pode ir. Assim, a inquestionabilidade é o critério último de toda dogmática, assim como de toda ciência, pois ambos são discursos lineares fundados da inquestionabilidade dos pontos de partida.

Para além da convicção, somente há o silêncio: a evidência não pode ser justificada argumentativamente, apenas afirmada. Tanto a ciência como a dogmática se constituem a partir de uma notável mudez acerca de seus fundamentos, um silêncio murado pela inquestionabilidade. Tais discursos constituem olhares voltados para o mundo, mas nunca para si mesmos: eles não colocaram em questão o próprio olhar.

Hume inventou a pergunta reflexiva, mas sua resposta foi fugidia: trata-se de uma pulsão que não demanda explicação, por ser inata. Kant desenvolveu a resposta de Hume, com o objetivo de fundamentar alguma verdade absoluta: nós podemos conhecer absolutamente nossas próprias faculdades cognitivas, cuja percepção não depende dos nossos sentidos. Hegel admitiu a historicidade das respostas, mas negou a contingência, mediante a afirmação de um processo inexorável rumo ao espírito absoluto. Atualmente, creio que não podemos mais fugir da contingência histórica do nosso próprio olhar, que nunca pode ser externo a nossa própria condição. Não depois de Nietzsche, de Frege, de Heidegger, de Freud e de todos os outros pensadores que resolveram nos colocar um espelho na frente dos olhos e mostrar a inviabilidade de um olhar externo ao ser.

Melhor dizendo, nós podemos continuar fugindo da contingência e para isso é que continuamos fazendo tanto as ciências como as dogmáticas. São esses discursos sem espelhos, sem reflexividade, sem circularidade, que ocultam a contingência embaixo do tapete do universal da verdade e do valor. Discursos organizados de maneira linear e que, justamente nessa medida, são blindados contra os paradoxos e incertezas que sempre emergem da circularidade.

Heidegger, em especial, deixou bastante claro que o preço da verdade é o ocultamento de si (Heidegger, 1988). Chegando nesse ponto, a própria distinção entre ciência e dogmática fica borrada. Percebemos que a ciência é uma espécie de dogmática, e o dogma que ela não põe em questão é justamente o do valor da racionalidade. Como qualquer outra dogmática, a ciência não coloca em dúvida os seus pontos de partida e não se pretende uma perspectiva, mas a perspectiva correta, atribuindo de maneira implícita um valor à razão.

Os valores racionais, que a modernidade tanto lutou para descobrir e para afirmar. Ou melhor, para inventar e impor ao mundo.  Nesse ponto, Nietzsche é o grande revolucionário, deixando claro que a ciência e a filosofia pressupõem um valor do apolíneo e, com isso, destituem de valor o dionisíaco. Talvez o racionalismo iluminista não passe de um gosto estético pela clareza. Mais propriamente, um mau gosto.

A situação se complicou ao longo do século XIX porque, mesmo de forma tensa e contraditória, a modernidade sempre afirmou uma certa relatividade. Os modernos cindiram o campo valorativo social, admitindo que parte dele era natural e eterna, mas parte dos valores sociais era histórica e contingente. Todavia, os modernos nunca propuseram relativismo epistemológico. Os interesses individuais podiam até ser contingentes e subjetivos, mas a verdade e a validade sempre foram elementos de uma ordem natural objetiva.

O que Nietzsche trouxe foi um ceticismo radical acerca da própria noção moderna de verdade: o pressuposto de que existe uma perspectiva moral objetivamente correta somente foi colocada seriamente em questão ele diagnosticou precisamente o fato de que, pela primeira vez na história, o homem deixava de acreditar que existia uma verdade natural (D’Agostini, 2002). Até então, mesmo o ceticismo quando a nossa capacidade racional de alcançar um conhecimento verdadeiro não se caracterizava como um ceticismo acerca da própria existência de uma verdade natural.

A extrapolação dos argumentos modernos acerca da pluralidade de valores, para afirmar uma pluralidade de verdades, não teve grande repercussão no próprio tempo de vida de Nietzsche. Porém, no que Franca D’Agostini chama de um renascimento nietzscheano, ocorrido no segundo pós-guerra, houve uma radicalização da percepção de que as verdades são sempre interpretações parciais, limitadas e contingentes. (D’Agostini, 2002).

Lyotard caracterizou a pós-modernidade como o tempo em que não acreditamos mais nas grandes narrativas, que conferiam unidade à experiência do homem: “o grande relato [récit] perdeu sua credibilidade, seja qual for o modo de unificação que lhe é conferido” (Lyotard, 2009, p. 69).Essa fragmentação do grande relato em narrativas particulares e fragmentadas gera um novo contexto, em que as questões da legitimidade e da verdade adquirem uma nova feição. É a radicalização do relativismo ao ponto de negar conscientemente a possibilidade de um discurso omniabrangente que caracteriza o pensamento pós-moderno.

Nesse contexto, que nos resta fazer? Uma saída seria nos encher de angústia e realizar a necrópsia de um modo de pensamento que não mais se sustenta, mostrando as razões da sua morte: uma espécie de necropsia do deus cuja morte Zaratustra anunciou. Essa foi a angústia dos existencialistas do começo do século, ainda pasmos pela descoberta do vazio e do nada, lá onde se esperava encontrar o fundamento.

Esse pessimismo também inundou a epistemologia e a filosofia, que se reduziu gradualmente à análise dos pequenos terrenos onde a certeza ainda era possível: a linguística logicista do primeiro Wittgenstein, a teoria pura do direito de Kelsen. Resíduos de certeza, protegidos com altas barreiras contra o irracional do mundo. Fora dos limites estreitos de uma racionalidade formal, era o inefável dos valores, dos quais nada se poderia falar nada de objetivamente correto (Wittgenstein, 1922). Fora dos limites da ciência do direito, era tudo pura política e decisionismo (Kelsen, 1992).

No início do século XX, os limites da razão moderna foram traçados com muita precisão, justamente por aqueles que tentavam defendê-la nos últimos redutos. A angústia perante o vazio que estava para além da razão foi a tônica do período entreguerras, que tem no desespero surdo dos personagens de Kafka uma de suas expressões mais dilacerantes (Kafka, 2002). Um sentimento de náusea (Sartre, 1983) que é luto pela perda do sentido do mundo, pelo reconhecimento inevitável do desencantamento do real.

Já na década de 70, Lyotard diagnosticou que “este trabalho de luto foi consumado e que a própria nostalgia do grande relato desapareceu da maioria das pessoas” (Lyotard, 2009, p. 74). Porém, creio que ele foi demasiadamente otimista, pois ainda sinto na maior parte das pessoas uma espécie de nostalgia, como a que envolve a tentativa de Apel e de Habermas de construir um novo grande relato, adaptado aos tempos atuais. De toda forma, prefiro não me alinhar aos que tentam reconstruir a unidade do relato, mas aos que seguem o caminho da fragmentação.

Em vez da unidade, o equilíbrio das diferenças polifônicas. Essa é a senda trilhada pelos herdeiros do pensamento de Nietzsche, especialmente pela via da hermenêutica (como Heidegger, Gadamer e Ricoeur) e do pós-estruturalismo francês (como Foucault, Deleuze, Guatarri e Derrida). Creio que esses são, ainda hoje, os maestros da polifonia.

Seguindo esse caminho, o conhecimento não pode mais ser considerado a elaboração do discurso rigoroso sobre o mundo (enfoque tanto do neopositivismo lógico como da fenomenologia), pois ele adquire uma feição cada vez mais narrativa (em vez de teórica), arqueológica (em vez de histórica) e cartográfica (em vez de fotográfica). Coordenando esses elementos, creio que a ideia de hermenêutica funciona como o principal conceito agregador.

2. Hermenêutica e subjetividade

Nisto, avistaram trinta ou quarenta moinhos de vento dos que há naqueles campos, e assim como D. Quixote os viu, disse ao seu escudeiro:
  • A ventura vai guiando as nossas coisas melhor do que pudéramos desejar; pois vê lá, amigo Sancho Pança, aqueles trinta ou pouco mais desaforados gigantes, com os quais penso travar batalha e tirar de todos a vida, com cujos despojos começaremos a enriquecer, pois esta é boa guerra, e é grande serviço de Deus varrer tão má semente da face da terra.
  • Que gigantes? - disse Sancho Pança.
  • Aqueles que ali vês - respondeu seu amo -, de longos braços, que alguns chegam a tê-los de quase duas léguas.
  • Veja vossa mercê - respondeu Sancho - que aqueles que ali aparecem não são gigantes, e sim moinhos de vento, e o que neles parecem braços são as asas, que, empurradas pelo vento, fazem rodar a pedra do moinho.
  • Logo se vê - respondeu D. Quixote - que não és versado em coisas de aventuras: são gigantes, sim; e se tens medo aparta-te daqui, e põe-te a rezar no espaço em que vou com eles me bater em fera e desigual batalha.
Miguel de Cervantes, Dom Quixote
(Cervantes, 2002, cap. 8)

2.1 Arqueologia do sentido

Dom Quixote é uma figura conhecida por todos, pois saiu da obra de Cervantes e ingressou no imaginário das pessoas, quase sempre capazes de identificar sua triste figura na imagem infinitamente repetida do cavaleiro alto e magro, inevitavelmente acompanhado de sua lança, de seu cavalo e de Sancho.

Em nosso repertório imagético, tal figura é normalmente um símbolo da condição humana, que nos inspira sentimentos profundos e convida à reflexão sobre o sentido da vida. Ele encarna uma nova espécie de herói, que, tendo na fraqueza perseverante a sua nobreza e nos insucessos as suas vitórias, encarna a própria negação do herói grego e dos cavaleiros medievais. Condenado por seus sonhos de justiça a bater-se contra forças maiores que a sua, ele carrega a maldição de todo idealista e, como esse grande peso torna o cavaleiro da triste figura trágico e melancólico, seus anti-feitos devem provocar o espanto e a tristeza, nunca o riso. A leveza do riso parece incompatível com a seriedade com que o engenhoso fidalgo desempenha o seu papel.

Quanta distância entre esse símbolo trágico e a figura cômica que D. Quixote representou para os seus primeiros leitores, que viam nele uma paródia dos cavaleiros andantes que povoavam as histórias e os livros da época! Longe das tintas cinzentas com que pintamos o grande anti-herói trágico, Cervantes descreve o Quixote como um fidalgo ocioso que tanto “se engolfou nas suas leituras que lendo passava as noites de claro em claro e os dias de sol a sol; e, assim, do pouco dormir e muito ler se lhes secaram os miolos, de modo que veio a perder o juízo” (Cervantes, 2002).

Este desenho de um louco varrido, e não de um sonhador idealista, é colorido pela maneira como Cervantes diz que ele “veio a dar com o mais estranho pensamento com que jamais deu algum louco neste mundo, e foi que lhe pareceu conveniente e necessário, tanto para o aumento de sua honra quanto para o serviço de sua república, fazer-se cavaleiro andante e sair pelo mundo com suas armas e seu cavalo em busca de aventuras” (Cervantes, 2002). Daí em diante, Miguel Cervantes Saavedra passa a contar as desventuras do seu corajoso e desatinado protagonista.

A ironia cáustica que atravessa toda a obra enfatiza o ridículo das novelas de cavalaria, com sua linguagem pomposa e seus cavaleiros tão invencíveis e inverossímeis quanto os super-heróis das atuais revistas em quadrinhos. Assim, o quixote contemporâneo não poderia ser o jovem Che revoltando-se (com ou sem razão) contra o capitalismo, pois no moderno mito de Guevara ecoa a própria figura ancestral do cavaleiro andante, e não a sua paródia quixotesca. Com mais acerto, pintaríamos um Quixote moderno como um senhor de cinquenta anos, inveterado espectador de filmes de aventura, que decidisse vestir um uniforme esdrúxulo e sair pelas ruas em busca de combater os vilões, “desfazendo todo gênero de agravos e pondo-se em transes e perigos que, vencidos, lhe rendessem eterno nome e fama” (Cervantes, 2002).

Como pôde esse louco transformar-se em herói, pelas mãos dos românticos do século XIX? Se o livro que eles leram foi o mesmo que provocou o riso durante os duzentos anos anteriores, como foi possível elaborar uma interpretação tão distanciada do sentido original aparentemente pretendido pelo autor? A resposta obviamente não está na mudança do texto, mas na modificação da perspectiva dos leitores, que passaram a atribuir sentidos alegóricos a situações que foram escritas com uma intenção deliberadamente cômica.

Assim, a mentalidade romântica oitocentista, em sua busca de acentuar o sentido trágico do mundo, apropriou-se do D. Quixote a partir de uma negação de sua demência, substituindo a figura do louco pela do idealista. Até hoje, essa interpretação tem grande força entre os leitores de Cervantes, que normalmente se dividem entre os que negam a loucura quixotesca (ou a santificam, promovendo uma negação às avessas) e os que buscam recuperar o sentido cômico do livro. Para uma rápida introdução a essa polêmica, indico a leitura da introdução de Maria Augusta da Costa Vieira ao primeiro livro do Dom Quixote (Cervantes, 2002), bem como dos comentários de Harold Bloom, que, na esteira de Unamuno, afirma terminantemente que o cavaleiro da triste figura nada tem de louco (Bloom, 2001).

Essa substituição da paródia pela alegoria somente pôde ser conquistada a partir de uma completa reinterpretação do livro, enxergando na descrição dos disparates quixotescos uma metáfora de verdades profundas sobre a condição humana. Logo após a aventura dos moinhos de vento, por exemplo, D. Quixote afirmou contra Sancho “que eu penso, e assim é verdade, que aquele sábio Frestão que me roubou o aposento e os livros tornou esses gigantes em moinhos, para me roubar a glória do seu vencimento, tal e tanta é a inimizade que me tem” (Cervantes, 2002).

Introduzindo a magia do sábio Frestão, D. Quixote consegue inverter hermeneuticamente o jogo das transformações, incorporando a evidência das dores que sentia a uma interpretação que desconsiderava sua loucura e mantinha a integridade de sua percepção original. Assim como a loucura cavalarística de D. Quixote lhe mostrava gigantes no lugar de moinhos, a mentalidade romântica via tragédia no lugar da comicidade, e para converter o Quixote em um herói romântico, precisou substituir a paródia original por uma alegoria do destino dos reformadores do mundo.

A interpretação romântica da obra de Cervantes, até hoje por muitos defendida, certamente enriqueceu o nosso universo simbólico, elevando o Quixote a uma espécie de santo, na medida em que o nosso imaginário não liga à loucura e ao ridículo sua dedicação a causas impossíveis, mas sim à nobreza de caráter e ao sagrado. Entretanto, apesar da riqueza que essa interpretação pode proporcionar, ela oblitera o sentido original do texto, especialmente porque essa moderna construção normalmente se apresenta como a interpretação correta do D. Quixote.

É como se as variadas interpretações dos últimos duzentos anos deitassem sobre a obra cervantina uma grande camada de poeira e detritos e, no mesmo lugar, construíssem um novo edifício, com o mesmo nome do que ocupava anteriormente aquele espaço. Essa nova construção pode ser muito bela, talvez mais interessante e rica que a anterior, inspiradora de sentimentos mais profundos e nobres. Seria incorreto, porém, confundi-la com a original.

Para compreender o sentido original do Quixote, é preciso escavar sob o edifício formado pela sobreposição das várias interpretações propostas nos quatrocentos anos que nos separam do momento em que ele foi escrito. Para entender o significado do texto, é preciso conhecer as referências culturais de Cervantes, tais como o estilo pomposo que ele parodia no falar do engenhoso fidalgo, os vários heróis e vilões das novelas de cavalaria, o modo como a sociedade da época encarava a loucura e o humor.

Entre Cervantes e nós interpõe-se um grande abismo, formado por várias distâncias diferentes. Há uma distância no tempo, que nos impede de conversar com ele e de compartilhar das experiências que o moldaram. Há uma distância cultural, há uma distância social, há uma grande diferença nas utopias vigentes, nos universos de metáforas disponíveis. Todos esses distanciamentos dificultam imensamente a tarefa de trazer à luz o sentido original do texto.

Sem atentar para esses elementos, leremos o Quixote como quem lê um autor atual e, projetando nele os preconceitos dos nossos contemporâneos, teremos uma visão da obra muito distanciada daquela que tinham os seus primeiros leitores. Assim, para identificar na obra o seu sentido original, é preciso superar a imensa distância que nos separa de Cervantes e de seu tempo, trazendo à luz o significado oculto pela poeira do tempo e pelos detritos das interpretações distorcidas.

A consciência da imensa distância temporal e cultural entre o autor e o leitor é fundamental para o desenvolvimento da hermenêutica, que buscava desenterrar o sentido original dos textos, que estava certamente coberto por uma espessa camada de entendimentos errôneos, desvirtuamentos preconceituosos, interpretações absurdas consolidadas na tradição. Essa consciência de que as tradições interpretativas obscurecem o sentido original dos textos consolidou-se especialmente a partir do renascimento, que marcou o início da ruptura com os modelos culturais medievais e o desenvolvimento de uma visão de mundo que está na base da modernidade.

2.2 Classicismo e dogmatismo

Durante a Idade Moderna, a arte da interpretação de textos escritos desenvolveu-se por três caminhos principais: o teológico, com o estudo da Bíblia, o filológico, com o estudo dos textos clássicos da antiguidade greco-romana, e o jurídico, especialmente com o estudo do Corpus Iuris Civilis (Grondin, 2000, p. 47).

De acordo com Grondin, se o desenvolvimento inicial da hermenêutica estava praticamente limitado à esfera teológica, era porque a tradição medieval entendia que tudo o que se deveria saber estava contido nas Escrituras. Assim, apenas com o advento da modernidade houve uma ampliação significativa das obras que tinham valor de leitura, especialmente com a retomada do estudo dos textos clássicos, durante a Renascença (Grondin, 2000, p. 47). Paralelamente, os estudos jurídicos na modernidade voltaram-se da exegese fragmentária dos textos romanos, desenvolvida pela escola dos glosadores, para uma elaboração mais sistemática do direito contido no Corpus Iuris Civilis.

Essa inacessibilidade, contudo, não era fruto da ignorância dos próprios textos, pois tanto a Bíblia como a literatura clássica eram constante e repetidamente lidas pelos estudiosos da época. Como afirmou Gadamer, “a literatura clássica, embora constantemente presente como material para a educação humanística, havia sido completamente incorporada pelo mundo cristão. Similarmente, a bíblia era o livro sagrado da Igreja e como tal era constantemente lida, mas a compreensão era determinada e, — como insistiam os reformistas — obscurecido pela tradição dogmática da Igreja” (Gadamer, 1997, p. 274). Assim, o inacessível não era o próprio texto, mas o seu significado original, o que era derivado de os estudos acerca dessas obras serem sempre mediados por uma tradição cristã, que, ao interpretá-los a partir do modo cristão de ver o mundo, vedava o acesso ao seu original significado.

O renascimento, normalmente descrito como uma espécie de retorno aos ideais clássicos, ocorreu em um momento de crise, no qual o fato de o repertório cultural medieval começar a ser percebido como obsoleto gerava a necessidade de inventar novos caminhos. Entre os séculos XII e XV, mudanças muito relevantes estavam ocorrendo (como os processos de urbanização, de revitalização do comércio e de centralização do poder) e era preciso organizar essa sociedade que emergia, elegendo parâmetros que conferissem ordem e sentido às novas experiências na política, na filosofia, nas artes e nas ciências.

Como é relativamente comum acontecer em momentos de crise, buscou-se no passado distante a inspiração para construir um presente que rompesse com os limites do passado imediato. É muito importante salientar esse ponto: para o renascimento, o passado não era apenas um objeto de estudos, mas uma fonte de inspiração. Contra a tradição medieval, buscaram-se armas na tradição da Antiguidade greco-romana. Portanto, diferentemente do historiador contemporâneo, que procura meramente conhecer o passado, os pensadores do renascimento buscaram na Antiguidade um modelo alternativo, a partir do qual fosse possível construir uma nova sociedade. Nesse momento de transição, a Antiguidade impôs-se como uma grande fonte de inspiração, o que gerou uma revitalização dos estudos clássicos.

Porém, a existência de um renascimento não significa que os autores clássicos tenham sido esquecidos no período medieval. O problema dos pensadores medievais não era propriamente a ignorância em relação aos textos clássicos da Antiguidade, muitos dos quais eram efetivamente conhecidos, mas a sua apropriação pelo pensamento medieval não possibilitava que eles fossem compreendidos em toda a sua diferença, como partes de uma outra tradição. Por isso, contra a leitura medieval dos clássicos, os renascentistas buscaram restituir a eles seu sentido original, escondidos sob os escombros de séculos de reinterpretações marcadas pelo primado da tradição medieval. Esse é o esforço que está na origem de um dos ramos tradicionais da hermenêutica, que é a hermenêutica filológica, ou seja, a teoria da interpretação dos textos literários.

Mas não se tratava simplesmente de recuperar o sentido histórico dos textos literários, mas de buscar na antiguidade os modelos da arte literária. A influência dos modelos clássicos não deve ser subestimada, pois se o pensamento mimético do classicismo via na arte uma representação do mundo, uma obra-prima era uma via de acesso ao real. Assim, o mais importante não era a obra em si, mas o que ela mostra do mundo, a verdade que ela carrega, o seu caráter de exemplo a ser seguido. Portanto, o texto interpretado não era apenas um objeto a ser compreendido, mas a fonte dos cânones. A interpretação não era apenas a busca do sentido, mas a busca do modelo.

Então, entender o texto de Homero não é compreender apenas o sentido do texto, mas esclarecer a verdade portada por um texto. Havia, então, uma leitura canônica dos textos, que buscava evidenciar o seu caráter modelar. É muito diferente estudar um texto com o objetivo de compreendê-lo ou de inspirar-se nele, e estudá-lo como forma de compreender as leis de sua formação, porque as leis dos clássicos devem ser seguidas. A reflexão acerca das obras clássicas terminava sendo voltada a revelar os procedimentos artísticos nela envolvidos, os quais deveriam ser percebidos e sistematizados na forma de regras de estilo, para orientar a produção contemporânea (Brandão, 1997).

Um fenômeno semelhante ocorria, talvez ainda com mais razão, nas outras duas grandes linhas hermenêuticas da época: a bíblica e a jurídica. Nenhuma dessas disciplinas hermenêuticas se limitava a buscar no texto um sentido, pois todas elas estavam interessadas em descobrir a verdade encerrada nos textos clássicos, jurídicos e bíblicos. Nesse ponto, o pensamento moderno não havia rompido com as concepções gregas e medievais de que o texto é sempre uma representação do mundo e que, portanto, o objetivo de sua leitura não é compreender o seu significado, mas de compreender o mundo a partir das verdades contidas no texto.

Tal como lemos livros de física para compreender o mundo, e não para entender o próprio livro, os intérpretes modernos buscavam extrair a parcela de verdade contida em um texto. Interpretar a Bíblia não era simplesmente entender seu sentido, mas descobrir com base nela verdades sobre o mundo e sobre o deus católico. Assim, quem lê um texto bíblico não está em busca simplesmente de compreender o próprio texto, mas de entender o mundo através do texto. Da mesma forma, interpretar o direito não é simplesmente entender o significado das normas, mas compreender os direitos e os deveres que as pessoas têm, para com base neles decidir os casos controversos. Mesmo a interpretação das obras literárias não era uma busca apenas do seu sentido artístico, pois elas eram vistas como cânones a serem observados.

Por tudo isso, costuma-se afirmar que a hermenêutica constituía um saber dogmático, na medida em que encarava seus textos como dogmas dotados de autoridade, e não apenas como obras portadoras de uma significação a ser decifrada (Schleiermacher, 2009). Essa postura dogmática da interpretação era perfeitamente adequada à persistência na modernidade de uma postura contemplativa herdada dos gregos: o homem era visto como um observador do mundo e a razão era entendida como o instrumento humano para perceber as coisas tal como elas são em seu íntimo, separando a ilusão da verdade.

Nessa medida, a busca pelo sentido original dos textos era uma busca pelo seu sentido verdadeiro, pela real significação de textos cuja verdade se havia perdido em séculos de interpretações distorcidas. E, nesse processo de “purificação”, à medida que libertavam os clássicos das redes da tradição medieval, os renascentistas também se distanciavam dessa tradição. Não se tratava de reviver a Antiguidade, mas de criar um novo modo de enxergá-la, de refletir sobre ela, de comparar-se a ela e de nela se inspirar: esse novo olhar não era o olhar antigo, mas o precursor do olhar moderno.

2.3 A hermenêutica jurídica

No campo literário, o Renascimento implicou uma renovação do olhar sobre os textos clássicos, numa busca de encontrar o seu sentido original, para além das distorções medievais. No campo jurídico, o que havia não era um cenário em que a apropriação medieval da tradição clássica havia distorcido o sentido original, mas um cenário em que o próprio direito clássico estava esquecido há mais de seiscentos anos. Portanto, o desafio não era propriamente o de renovar os estudos clássicos, mas praticamente o de instaurá-los, buscando na Antiguidade os modelos para uma organização social adaptada às demandas de uma sociedade europeia que se distanciava cada vez mais dos padrões medievais, tornando-se cada vez mais urbana, comercial e centralizada.

Assim, dentro do movimento do renascimento cultural, é comum que se fale em um renascimento do direito romano, cujos estudos foram revitalizados nas universidades fundadas a partir do século XIII (Costa, 2023b; Hespanha, 1997). O direito romano não era considerado apenas o direito de um império do passado, mas era visto como o sistema jurídico mais avançado e sofisticado que se conhecia, mais apto a servir como parâmetro para ordenar a sociedade da época do que o direito consuetudinário da época.

Aos poucos, esse direito foi sendo conhecido pelas classes mais altas da Europa, especialmente porque a educação dos juristas nas universidades (que acabaram de ser inventadas) era feita a partir do ensino do direito romano e não do estudo das normas costumeiras vigentes na região. Tal como nós estudamos nas universidades brasileiras a cultura e a história ocidentais, como se ela tivesse um valor universal, as primeiras universidades europeias privilegiavam o estudo do sofisticado direito romano, em vez de se dedicarem à análise casuística de costumes medievais (Costa, 2023b).

Isso não significa que o direito romano tenha eleito o único padrão jurídico, pois continuavam a valer as ordens jurídicas reais, municipais, nobiliárquicas, corporativas. Porém, ele adquiriu papel tão preponderante na mentalidade dos juristas que ele passou a valer “não apenas como direito subsidiário, mas também como direito modelo, baseado nos valores mais permanentes e gerais da razão humana, dotado por isso de uma força expansiva que o tornava aplicável a todas as situações não previstas nos direitos particulares e, ao mesmo tempo, o tornava um critério para julgar a razoabilidade das soluções jurídicas nestes contidos” (Hespanha, 1997, p. 80).

De toda forma, devemos ter em mente que a própria expressão “direito romano” estimula uma percepção equivocada, pois o que se estudava naquela época (e ainda hoje se costuma estudar) sob essa rubrica é uma determinada compilação realizada no começo do século VI, por Justiniano, o primeiro imperador do Império Bizantino, e que se tornou conhecida como Corpus Iuris Civilis. Não se trata, portanto, do direito existente em Roma, mas de um determinado conjunto de textos que não tem uma unidade lógica, temática nem temporal: trata-se de uma compilação de textos entendidos como relevantes por uma comissão de dez membros nomeados por Justiniano quando ele chefiava o Império Romano do Oriente, sediado em Constantinopla.

O texto envolve tanto uma recolha de leis imperiais (o Codex Justiniani e as Novelas), uma compilação de extratos de mais de 1500 livros escritos por jurisconsultos da época clássica (o Digesto, ou Pandectas) e um manual destinado ao ensino do direito (chamado de Instituições). Entre esses textos existe, como seria de se esperar, uma série de sobreposições, contradições, diferenças de posicionamento e de enfoque (Gilissen, 1995, p. 92). Porém, os estudiosos do direito romano partiam do pressuposto que de esse conjunto formava um corpo de conhecimentos homogêneo, o que os levou a estabelecer uma série de critérios para harmonizar o entendimento das várias partes, construindo gradualmente um sistema de conhecimentos, a partir de textos razoavelmente desconexos.

Mas por que partir do pressuposto de que, por trás de textos tão diversos, há um significado único? Porque o objetivo dos juristas não era conhecer o texto em si, mas a verdade que o texto carrega, a sabedoria desenvolvida nos tempos áureos do Império Romano, que se perdeu durante a Idade Média, mas que era preciso recuperar, para moldar o direito europeu em padrões organizados e racionais. Não se tratava, portanto, de uma pesquisa histórica, inclusive porque uma tentativa de reconstruir historicamente o direito romano conduziria à conclusão de que não existiu um direito romano, pois as instituições jurídicas tiveram as configurações mais diversas no decorrer dos vários séculos que assistiram à ascensão e à queda do poder de Roma.

É justamente nessa negação da história que os estudos romanistas ganham sua densidade hermenêutica, pois não se tratava o direito romano como um objeto histórico determinado, mas como um sistema de conceitos e regras que poderia ser descoberto a partir do estudo minucioso de um conjunto fechado de textos. Assim, a peculiaridade da hermenêutica jurídica dessa época é tratar o direito romano como uma totalidade de significado a ser decifrada e não como uma realidade histórica a ser compreendida. Isso tem sua razão no fato de que o interesse do jurista era o de extrair dos textos romanos a verdade que ele porta, para aplicá-la a fatos ocorridos quase mil anos depois.

Não se tratava de recuperar o espírito romano como o de uma civilização distante, mas as verdades atemporais que ele teria sido capaz de perceber e enunciar. O desafio da hermenêutica jurídica, diversamente da filológica, era o de fazer falar textos esquecidos, na esperança de que, a partir deles, talvez se pudesse descobrir a verdade atemporal que foi completamente esquecida durante a idade média, em vez de uma verdade deturpada pela tradição medieval.

Nesse processo, o dogma fundamental é o de que, por trás da multiplicidade de textos, existe uma unidade de significação, que pode ser descoberta a partir de uma análise minuciosa do Corpus Juris Civilis. Tal processo de sistematização ocupou várias gerações de juristas, iniciando-se do século XIII e completando suas últimas etapas apenas nos séculos XVIII e XIX. Assim, o que movia o estudioso do direito não era uma perspectiva histórica diacrônica, mas uma visão sincrônica que buscava unificar o sentido de um texto fragmentário, o que implicou uma visão hermenêutica centrada no próprio texto.

Trata-se de um desafio muito semelhante ao que desde sempre foi enfrentado pelos intérpretes bíblicos, que partem do pressuposto de que a verdade de Deus é uma só e precisam reconduzir a imensa disparidade dos textos bíblicos a um sentido único e coerente. Nesses esforços de desvendar um sentido unificado para textos múltiplos, na busca de descobrir a verdade que eles portam, estão as origens dos dois outros ramos tradicionais da hermenêutica: a jurídica e a teológica.

Em ambos esses ramos, as influências da modernidade conduziram a uma espécie de primado do texto sobre a tradição, que não se explica apenas pelo fato de o desafio hermenêutico ligar-se à sistematização semântica de textos fragmentários, mas principalmente porque a modernidade estimulou uma relação imediata entre intérprete e texto, deixando de lado a mediação institucional que está no centro da mentalidade medieval, na qual a interpretação dos textos é uma atividade exercida pela autoridade, que revela o sentido dos textos. Tanto o saber jurídico e o saber canônico eram (e ainda são) ligados ao exercício do próprio poder e, nessa medida, tais conhecimentos estão integrados nas ordens institucionais dos poderes político e eclesiástico, de tal forma que a manutenção do seu esoterismo contribuía para a conservação das estruturas de poder ligadas a esses saberes.

Assim, o rompimento dessa mediação institucional teve um caráter revolucionário, cuja primeira grande afirmação deu-se no início da modernidade filosófica e científica (que ligam a verdade à observação individual do mundo e à reflexão individual), especialmente de seus reflexos sobre a teologia, com a reforma protestante que defendeu a interpretação direta dos textos bíblicos, como forma de suplantar a tradição católica medieval. Em todos esses âmbitos, percebe-se claramente uma modificação radical dos modos de autopercepção dos próprios homens, que podem ser descritas como partes do processo de formação da subjetividade moderna. A hermenêutica moderna será justamente a forma como essa nova subjetividade confere sentido a si mesma e a sua relação com o mundo.

2.4 Hermenêutica e subjetividade moderna

A mentalidade moderna forjada no processo de superação da sociedade medieval, por mais que tenha envolvido uma revalorização dos ideais clássicos, não realizou um simples retorno à mentalidade antiga. O novo homem tornou-se consciente de que as verdades medievais não passavam de crenças ligadas a uma tradição determinada. Contudo, o caminho de um mero retorno à antiguidade lhes foi fechado pelo fato de que as verdades clássicas também só faziam sentido dentro de uma tradição que não mais vigia.

O desafio a ser enfrentado não era simplesmente o de superar a tradição medieval, mas o de superar a própria ideia de tradição, na busca da própria verdade: uma verdade absoluta e atemporal, fundamentada em argumentos racionais. Não se buscava construir uma tradição alternativa, mas elaborar um conhecimento para além da tradição, ancorado na própria realidade das coisas e, por isso, universal e absoluto.

Essa posição contrapõe-se claramente à mentalidade medieval, que era cética quanto à razão. Parecia-lhe demasiadamente pretensioso que a pequena razão humana fosse capaz de desvendar os mistérios do mundo, e o principal mistério era justamente a própria figura de Deus, que transcende qualquer compreensão meramente racional. Maldito aquele que confia no homem, dizia Agostinho (2000) para uma sociedade fundada na fé, no temor e na adoração de um deus, na aceitação da autoridade e na crença de que o verdadeiro mundo se encontra além desta vida. Se o acesso ao divino não se dá pela razão e se a salvação da alma é o objetivo mais importante, então a razão não podia se afirmar como a principal bússola a orientar a vida dos homens.

A busca de redescobrir a verdadeira antiguidade implicou o projeto de revalorizar a razão, o que resultou em uma imensa revitalização da filosofia aristotélica. Ganhou nova atualidade o projeto de conhecer o mundo a partir de suas causas, desvendando a verdade oculta das coisas mediante uma cuidadosa observação da realidade.

Mas quem duvidava da tradição e pedia explicações racionais para tudo aquilo em que se acreditava por fé ou por hábito? Não é uma nova tradição que faz essa pergunta: são os muitos indivíduos que não se contentavam com as respostas tradicionais. Essas pessoas, por colocarem em dúvida os saberes hegemônicos, não poderiam aceitar nenhuma resposta fundada apenas na autoridade, inclusive na de Aristóteles ou de qualquer outro filósofo.

A autoridade do sábio é sempre a porta-voz de uma tradição. Portanto, a simples retomada do aristotelismo não era suficiente para a modernidade nascente. Além disso, o pensamento aristotélico era vinculado a uma tradição fundada no primado do coletivo sobre o individual, o que dificultava o estabelecimento de uma crítica aos valores dominantes. O centro de gravidade do pensamento grego não era o indivíduo, mas a polis, e os valores da pólis são os valores constituídos pela tradição. Embora a racionalidade grega viabilizasse uma contraposição com certos elementos tradicionais, os valores objetivos que o logos aristotélico desvendava não deixavam de ser construídos com base em concepções de mundo demasiadamente gregas. Como sempre acentua Miroslav Milovic, a phronesis (sabedoria) grega, especialmente na versão aristotélica, era um saber adequar-se ao mundo, o que implicava uma aceitação das concepções tradicionais de bem, de justo e de belo. Nessa medida, as conclusões aristotélicas, especialmente na ética e na política, eram uma afirmação da concepção grega de mundo, com as suas tendências aristocráticas e conservadoras.

Assim, se a valorização da racionalidade conduzia a uma proximidade com os gregos, a necessidade de contrapor-se à própria tradição exigia um ponto de apoio que superasse os tradicionalismos tanto medievais como clássicos. Para além da tradição era preciso desvendar a verdade universal e essa verdade precisava ser acessível para a própria razão dos indivíduos que questionavam as respostas tradicionais. Era preciso ser mais radicalmente aristotélico que Aristóteles, para poder superar os resquícios tradicionais de sua filosofia.

O mundo moderno começa com esse questionamento da tradição, que engendra uma pergunta original: por que “eu” devo admitir a autoridade da tradição? Trata-se de uma questão radicalmente nova, na medida em que ela não faz o menor sentido na mentalidade clássica nem na medieval, pois essas perspectivas percebem o homem como um elemento de uma comunidade (seja da polis, da república, da Igreja ou de um Estado), o que obviamente o torna naturalmente sujeito aos valores dessa comunidade e à autoridade constituída. É justamente o homem que se recusa a ser mero elemento e que tenta se afirmar como sujeito autônomo que se torna capaz de perguntar: por que eu devo me submeter?

A afirmação dessa pergunta implica a consolidação de uma nova mentalidade, que valoriza o sujeito ao ponto de torná-lo capaz de se colocar contra a própria comunidade e contra a tradição em que foi criado. Quem faz efetivamente e conscientemente essa pergunta já não é mais o sujeito renascentista, mas é justamente o sujeito moderno, que se coloca como centro e como critério último de toda verdade. Ele não volta ao relativismo de Protágoras (Platão, 1996), mas recoloca a dúvida socrática acerca dos padrões objetivos de verdade e justiça, ensaiando uma nova resposta: a autoridade fundamental não está na cidade, mas no indivíduo.

É claro que essa mudança foi realizada por pessoas que não eram plenamente conscientes da revolução que estavam operando, embora soubessem que grandes modificações estavam sendo gestadas. Primeiro o homem inventou a nova pergunta e fundou um novo valor: a individualidade, cujo processo de consolidação teve início com o renascimento dos séculos XIV a XVI. Mas foi somente com Descartes, no início do século XVII, que o homem se tornou plenamente consciente do passo que havia sido dado e buscou descrever e fundamentar o valor que esse tempo criou, motivo pelo qual se costuma designar Descartes como o primeiro pensador efetivamente moderno (Milovic, 2004).

Consolidou-se, assim, o cerne do pensamento moderno, que é a afirmação de um novo critério de veracidade: somente se admite como verdadeira uma afirmação que é evidente para a razão do indivíduo que observa o mundo. A evidência racional busca afirmar-se como um critério objetivo de verdade, desvinculado de qualquer tradição, pois fundada na própria racionalidade do ser humano. A verdade não é revelada pela tradição nem se encontra nas crenças estabelecidas, mas deve ser descoberta pela observação cuidadosa, o que a torna individualmente acessível a cada um dos homens, e não apenas a alguns poucos iluminados, sejam eles os reis, os doutores, os sábios ou os santos.

2.5 A reforma protestante

Esse primado da subjetividade teve reflexos profundos na hermenêutica, especialmente em sua vertente teológica. Na teologia católica tradicional a verdade era revelada pela própria Igreja, que detinha o monopólio da interpretação bíblica, o que era perfeitamente justificável perante a maneira tradicional de justificar a autoridade, mas que não se afigurava razoável perante o ceticismo dos modernos, que perguntavam “por que eu devo aceitar as verdades tradicionais?” e recebiam como resposta o insatisfatório “porque elas são a Verdade”.

O problema da interpretação não mais podia ser resolvido em uma instância coletiva, como é o caso da fixação tradicional das interpretações. No mundo medieval, havia uma espécie de definição institucional da verdade, de tal forma que a interpretação dos textos era mediada por uma instituição. A Igreja definia o sentido dos textos bíblicos. O sentido dos textos jurídicos é sempre definido por uma autoridade, que atua no processo de sua concretização. A opinião individual precisa ser fundada com apoio em fontes autorizadas: os sábios da Igreja, as glosas de Bartolo e Acúrsio, as decisões judiciais.

O contato com o texto precisava ser mediado pelo saber tradicional, que é uma instância de poder coletivo. Essa forma de lidar com o texto foi questionada frontalmente na reforma protestante, que postulou uma ligação direta entre o intérprete e o sentido. Não se colocava em dúvida que havia um sentido correto para as passagens da Bíblia, mas era revolucionária a tese luterana de que a verdade do texto se mostrava diretamente ao leitor. A revolução não era simplesmente a fixação de um novo sentido, mas a possibilidade de argumentos formulados individualmente se contraporem à verdade definida pela instituição. Essa modificação altera a ordem de poder, pois o poder da verdade não era mais um monopólio da autoridade tradicional: (re)criou-se a possibilidade de que o sujeito se contrapusesse à tradição.

A consciência dos limites da tradição medieval, especialmente do quanto ela era fundada em crenças injustificadas ou injustificáveis, fez com que os teólogos influenciados pela nascente mentalidade moderna se questionassem sobre a validade das interpretações tradicionais dos textos bíblicos: seriam elas corretas ou será que a tradição católica medieval obscureceu o sentido dos textos bíblicos? Nesse ponto, os questionamentos teológicos se aproximaram dos filológicos, convergindo na busca do sentido original por trás de séculos de distorções, pois ambos estão envolvidos na “redescoberta de algo que não era absolutamente desconhecido, mas cujo significado tinha-se tornado estranho e inacessível” (Gadamer, 1997, p. 174). Em ambos os casos, o inacessível não era o próprio texto, mas o seu significado original, dado que os estudos medievais acerca dessas obras eram sempre mediados por uma tradição que, ao interpretá-los a partir do modo medieval de ver o mundo, vedava o acesso ao seu original significado.

Porém, a hermenêutica teológica não se pode perceber como uma recuperação do sentido historicamente original, pois não lhe interessa compreender os profetas e evangelistas como homens de seu tempo, mas desvendar as verdades divinas que se encontram em seus ensinamentos. Assim, a tentativa de superar a tradição teológica medieval não conduzia os teólogos modernos a um retorno às origens históricas do texto, mas a uma tentativa de compreender direta e imediatamente as verdades contidas dentro do próprio texto, pois o pressuposto básico da hermenêutica teológica é o de que a Bíblia tem um sentido único e atemporal, ainda que ele talvez não possa ser desvendado pela pobre razão humana. Essa compreensão da teologia como um conhecimento de verdades atemporais aproxima a hermenêutica teológica da jurídica, no seu desafio de desvelar verdades por meio de uma interpretação que se limita a uma análise minuciosa do próprio texto interpretado.

Esse modo de encarar os textos bíblicos tem a sua primeira grande expressão na reforma protestante, em que se afirmou a necessidade de um acesso direto aos textos bíblicos, que somente então foram traduzidos do latim para as línguas modernas. Sob a influência da reforma luterana, vários teólogos vinculados à reforma protestante passaram a afirmar que a tradição não era necessária para uma interpretação adequada da Bíblia, pois, “se Deus nos concedeu a Escritura para a nossa salvação, seria uma blasfêmia contra a filantropia divina afirmar que ela seria obscura e insuficiente para a salvação dos cristãos” (Flacius, citado por Grondin, 2000, p. 85).

Adotou-se, então, o princípio da sola scriptura, que determinava que a compreensão deveria limitar-se à exegese do texto bíblico, pois a Bíblia ofereceria ao intérprete as chaves para a sua própria compreensão (Grondin, 2000, p. 82), sendo desnecessário apelar para contextualizações históricas, para a tradição católica e para argumentos de autoridade. Essa saída não envolve, portanto, uma afirmação de historicidade diacrônica que aponta pragmaticamente para fora do texto, mas o primado de uma sistematicidade sincrônica que se limita às conexôes semânticas internas. Esse princípio, contudo, não foi inventado na reforma, pois, como aponta Grondin, o princípio da sola scriptura não foi uma invenção luterana, mas uma retomada de princípios da patrística que haviam sido obliterados pela teologia escolástica dominante na época medieval, marcada por uma acentuada valorização do argumento de autoridade e pela construção de teorias cada vez mais afastadas do sentido literal dos próprios textos bíblicos (Grondin, 2000, p. 82).

A revalorização protestante do estudo do texto foi acompanhada pela tradução das Escrituras para as línguas modernas e pela extensão da interpretação da bíblia a todos seus leitores. Com isso, a interpretação dos textos bíblicos que, na tradição católica, era limitada aos doutores da Igreja, passou a ser uma atividade a ser exercida por cada um dos cristãos, que deveriam ser capazes de extrair das palavras da bíblica as próprias verdades da fé. Essa tentativa de estabelecer uma via de acesso direto ente o intérprete e os sentidos da Bíblica é uma revolução que cria uma série de problemas novos para a hermenêutica teológica, não exatamente ligados à diversidade dos intérpretes (já que os padres da Igreja sempre defenderam ideias muito variadas), mas ao fato de eles estarem desligados de uma estrutura que poderia conferir autoridade à interpretação dominante entre os doutos.

A teologia medieval não negava a pluralidade, mas contava com elementos institucionais capazes de reduzir essa multiplicidade a uma única voz, fixada pela autoridade interpretativa da própria Igreja. Ademais, em uma ordem fortemente estabelecida, a diferença não precisa ser percebida como subversiva porque a entropia polifônica não coloca em risco a rede de relações sociais. Porém, em um sistema enfraquecido, as dissonâncias tendem a ser combatidas com vigor, pois elas ameaçam (ou ao menos parecem ameaçar) a própria sobrevivência das estruturas sociais dominantes. Creio que a admissão da polifonia não é signo da fraqueza de um sistema, mas manifestação da sua própria força.

Por outro lado, a negação “fundamentalista” da diferença parece ser mais comum em tempos de crise, tanto que os mecanismos unificadores foram reforçados na medida em que a Igreja se enfraqueceu, tanto com a reforma quanto com a sucessão de heresias polifônicas contra as quais a voz monocórdia da Inquisição se tentou fazer ouvir, buscando um retorno impossível à tradição ferida.

Tal como outras heresias, a reforma não propunha um abandono dos textos bíblicos, mas uma releitura. Porém, o seu aspecto hermenêutico mais revolucionário não foi o da eventual inovação nas interpretações propostas, e sim o da instauração de uma ligação direta entre o intérprete e o texto. Nisso, ela se aproximava da filosofia cartesiana, que não era uma mera tentativa de substituir uma tradição por outra, mas a de superar o próprio papel mediador das tradições: a tentativa de constituir um pensamento pós-tradicional. No plano teológico, essa libertação foi feita justamente por meio do princípio da sola scriptura, que tentava imunizar o sentido objetivo do texto contra as distorções de qualquer tradição hermenêutica.

Essa revalorização do texto, aliada à ampliação do espectro de intérpretes, que passava a abranger não apenas a comunidade dos teólogos, conduziu a teologia protestante a um desenvolvimento hermenêutico acentuado, pois era necessário desenvolver instrumentos conceituais que pudessem fazer falar as próprias Escrituras. Todavia, devemos ter atenção para a advertência de Jean Grondin, no sentido de que a tradição protestante por vezes exagera o aspecto revolucionário do desenvolvimento da hermenêutica pelos teólogos reformistas. Segundo Grondin, a renovação ocorrida não foi tão radical como indicam especialmente os influentes textos de Dilthey e de Gadamer, dado que os tratados hermenêuticos produzidos pela reforma estavam bem mais próximos da tradição católica do que esses autores indicaram (Grondin, 2000, p. 50).

Na busca de métodos que possibilitassem uma compreensão autossuficiente do texto bíblico, ganhou especial relevância na teoria protestante o princípio hermenêutico de que o significado das passagens individuais deve ser apreendido a partir do significado do todo e que o todo somente pode ser alcançado a partir do entendimento cumulativo das várias passagens individuais.

Essa ideia de que o sentido das partes deve ser compreendido a partir do significado geral do todo tampouco é inovadora, pois a combinação de análise (divisão do todo em suas partes constituintes) e síntese (reconstituição do todo a partir das partes obtidas na análise) permeia a filosofia desde a Antiguidade. Porém, era renovada a relevância dada à questão hermenêutica, pois o domínio das técnicas de interpretação passou a ser entendido como a chave para a compreensão adequada da verdade revelada pelos textos bíblicos.

2.6 Da hermenêutica dogmática à autonomia do sentido

A postura contemplativa imanente à hermenêutica dogmática não resistiu ao processo de radicalização da subjetividade moderna, conduzido especialmente por Hume e Kant, pensadores que colocaram em xeque a objetividade das nossas representações do mundo, recusando a tese cartesiana de que a evidência seria um critério válido de veracidade (Descartes, 1973). Questionando a ideia de causalidade, o Hume demonstrou que a certeza científica sobre fatos empíricos estava assentada sobre crenças e que, portanto, a evidência racional cartesiana não poderia ser nada além do resultado de uma arraigada fé em suas próprias ilusões. Com isso, o que Hume questionou não foi a verdade das tradições medievais, mas a objetividade das teorias construídas pela modernidade (Hume, 1975).

Tentando salvar a verdade absoluta da matemática e da física frente às dúvidas levantadas pelo jovem Hume, o velho Kant teve que construir a revolucionária ideia de que o nosso conhecimento não é uma representação objetiva e direta do mundo, mas um fruto do modo humano de olhar o mundo (Kant, 2001). Depois desses pensadores, a triunfante modernidade teve que mudar de foco: da postulação inicial de objetividade frente às coisas, chegamos à objetividade frente aos homens. De uma racionalidade vista como o modo correto de perceber coisas objetivas, partiu-se para uma racionalidade que seria o modo objetivo como os homens percebem as coisas. A razão humana, portanto, não é meramente contemplativa, mas ela é constitutiva, pois o que chamamos de realidade não passa de uma construção humana.

Apesar da grande mudança no sentido, a palavra permaneceu a mesma: a racionalidade. Contra Descartes, mas com Descartes: o ser humano continuou sendo concebido como um ser que pensa (Descartes, 1973), mais do que como um ser que deseja, sonha ou atua. O foco da racionalidade já não era o mundo, mas o próprio homem. Novamente, essa abordagem radicaliza uma percepção cartesiana: a de que é mais fácil conhecer o espírito do que o corpo (Descartes, 1973, p. 99). Em Kant, o espírito não era somente mais acessível ao pensamento, mas era o único objeto que poderíamos conhecer de forma absolutamente segura.  O ensinamento duradouro de Kant foi o de que, se alguma verdade objetiva era possível, não era um conhecimento acerca do mundo empírico, mas acerca do modo humano de perceber o a realidade.

Esse giro modificou profundamente a forma de perceber os papéis da filosofia e da hermenêutica. A revolução copernicana promovida por Kant, que radicalizou a subjetividade moderna ao colocar o homem como centro da reflexão filosófica e acentuar o aspecto constitutivo da razão, teve reflexos profundos na hermenêutica. Já não era mais possível para a hermenêutica filológica postular que a função do intérprete era descobrir cânones nos textos clássicos, pois eles não mais eram vistos como portadores de uma verdade estética. Os textos precisavam ser vistos como uma produção humana, como resultados de uma atividade criativa promovida por determinados sujeitos. Ao negar aos clássicos a aura semi-sagrada de veículos que portavam antigas verdades, a hermenêutica filológica acentuou o papel do autor. Com isso, ela passou a ser vista fundamentalmente como o desvelamento do sentido que a pessoa pretendia dar aos textos que produzia.

A distância hermenêutica a ser superada não é a que nos separa do texto como um portador de verdades, mas do texto enquanto expressão de uma subjetividade. Assim, a hermenêutica passa a ser vista como o elemento que possibilita lidar com o abismo existente entre duas (ou mais) subjetividades, cuja única via de comunicação é a do próprio texto. Essa concepção propicia que o primado do texto seja substituído por um primado do autor, que se revela na preponderância da intenção sobre a literalidade ou o sistema. Nas abordagens clássicas, os textos que valia a pena interpretar (a Bíblia, o Corpus Juris Civilis, a poesia clássica) não eram percebidos primordialmente como expressões de seus autores, mas como portadores de uma verdade. Portanto, estabelecer como foco interpretativo a busca da intenção dos autores não é um princípio universal do pensamento hermenêutico, mas um reflexo da centralidade moderna dos sujeitos.

Esse primado da intencionalidade implica um abandono da posição dogmática da hermenêutica literária, que passa a lidar com o esclarecimento de subjetividades localizadas em um tempo e em um espaço. A desdogmatização da hermenêutica acompanha um certo fortalecimento do historicismo, pois não se trata mais de trazer à luz um cânone intemporal esquecido, mas um sentido subjetivamente determinado dentro da história.

Esse historicismo latente não podia ser trasladado sem mais para as hermenêuticas jurídica e teológica, pois nelas a questão da intencionalidade do autor não tinha a mesma relevância. Por mais que a centralização política do absolutismo tenha viabilizado a cristalização de uma hermenêutica jurídica intencionalista (na qual o sentido normativo se confundisse com o sentido intencionado), os juristas modernos sempre se colocaram como objetivo o estabelecimento de um sistema.

A intenção dos governantes era um elemento interpretativo importante, mas que sempre precisava ser cotejado com outros fatores (costumes, princípios, direito romano, etc.), para que a solução dos casos concretos pudesse ser percebida como a aplicação de uma ordem normativa coesa. A expansão do constitucionalismo, ao longo do século XIX, criou uma dificuldade particular para as teorias que buscavam apresentar o direito por uma abordagem intencionalista (focando na intenção do legislador ou do povo), tendo em vista que o caráter coletivo dos parlamentos dificulta a produção de uma vontade única idealizada.

No final do século XIX, a acumulação de diferenças em termos de objetos, perspectivas e finalidades faziam com que as diversas abordagens hermenêuticas não se pudessem unificar sob uma mesma disciplina, pois a compreensão da Bíblia ou do Digesto parecia exigir uma aproximação muito diversa da interpretação da Ilíada ou do Quixote. Contudo, uma tal fragmentação não parecia aceitável para as tendências monistas de uma modernidade que insistia na produção de um conhecimento unificado e sistematizado.

Previsivelmente, os pensadores modernos se esforçaram para unificar os discursos dos vários ramos da hermenêutica, considerados como aplicações particulares de um mesmo processo de compreensão. O grande idealizador dessa unificação foi o alemão Friedrich Schleiermacher, cuja obra é um marco no pensamento hermenêutico. Seu livro Hermenêutica (Schleiermacher, 2009) foi o primeiro a oferecer um sistema interpretativo coerente com a subjetividade moderna e os princípios epistemológicos de matriz kantiana. Ele defendia que a hermenêutica deveria ser uma disciplina universal, aplicável a todos os objetos de interpretação: textos orais e escritos, bíblicos e literários, escritos em qualquer linguagem, deveriam ser enfrentados segundo a mesma abordagem (Forster, 2022). Tratava-se de conceber a hermenêutica não apenas como uma atividade baseada em certos cânones consolidados, aplicáveis a domínios específicos, mas como uma atividade humana universal, orientada por uma abordagem metodológica definida.

3. Hermenêutica e método

3.1 Modernidade e método

Antes da consolidação do paradigma moderno, os principais critérios de verdade eram a tradição e a autoridade, que representam duas faces da mesma moeda. Esse binômio tradição/autoridade foi contestado duramente pelos pensadores modernos, que desenvolveram um novo critério de verdade, fundando o conhecimento verdadeiro na evidência racional perante o sujeito.

Essa alteração desempenhou um papel revolucionário, pois inverteu a relação entre os indivíduos e as instituições. Para as perspectivas tradicionais, os indivíduos eram subordinados à autoridade política e intelectual das instituições sociais, autoridade essa que era fundada dogmaticamente em Deus ou na natureza das coisas. Contrapondo-se a tais fundamentações naturalísticas e teológicas, os pensadores modernos somente aceitavam a autoridade da própria razão, o que os levou a contestar as verdades consagradas pela tradição e, muitas vezes, sofrerem represálias por conta dessa subversão.

Os conflitos assim gerados inscreveram em nosso imaginário tanto seus heróis (pensadores como Kepler, Descartes e Galileu), quanto seus vilões (normalmente os inquisidores, que representavam a força das instituições). Esses “profetas” da modernidade ousaram pensar por si mesmos, recusando a autoridade da tradição e contestando os saberes consolidados. Esse tipo de posicionamento conduziu a um primado da subjetividade, consolidando-se aos poucos a ideia de que nenhum sujeito precisa aceitar como verdadeira uma afirmação que não possa ser demonstrada de maneira racional e objetiva. Para os modernos, a única autoridade aceitável é a da própria razão, que se impõe por meio de demonstrações argumentativas (lógicas ou empíricas) e não por demonstrações de poder (observando que a palavra “demonstração” tem sentidos bastante diversos nessas duas construções...).

Esse primado da subjetividade, ao minar a autoridade das instituições, compromete também a estabilidade dos saberes, que deixa de ser salvaguardada pela autoridade das instituições tradicionais. Houve um gradual enfraquecimento da tese agostiniana de que a racionalidade humana tinha alcance muito limitado e que, portanto, deveríamos nos guiar pelas orientações institucionalmente definidas, e não por nossas intuições pessoais (Agostinho, 2000). Mas como é possível articular a necessidade humana de agir coletivamente com uma estrutura social na qual cada indivíduo se julga capaz de identificar a própria verdade? Uma das formas de enfrentar essa multiplicidade seria adotar um amplo relativismo valorativo, cético à possibilidade de que os seres humanos identifiquem valores morais objetivos. Todavia, esse relativismo não é típico das abordagens modernas, nas quais a valorização da subjetividade individual não era acompanhada por tendências relativistas.

Pelo contrário: a modernidade continuou ligada à afirmação de que existe uma única verdade, inscrita na ordem natural. A valorização da subjetividade moderna não significa a admissão de que a verdade é individual ou múltipla: os pensadores modernos afirmam a existência de uma única Verdade, que cabe à razão humana descobrir. Existe uma forma racional de pensar, de organizar a sociedade, de estruturar as famílias. A verdade moderna é objetiva, existe independente dos sujeitos. Todavia, ela deve ser perceptível por cada homem, na medida em que ela deve ser demonstrável racionalmente.

A evidência racional não se pretende um critério subjetivo de verdade, mas um critério objetivo: o conhecimento verdadeiro deve ser evidente para a razão que todos os seres humanos compartilham, e não para as preferências individuais de cada sujeito. A modernidade reconhece que, variadas são as opiniões que os homens têm acerca do mundo. Isso coloca aos modernos uma grave dificuldade: se o critério de veracidade é a evidência racional, como deveríamos proceder quando duas pessoas consideram evidentes coisas diversas? Em outras palavras, como é possível sair do nível da doxa e ingressar no nível da episteme?

Em um primeiro momento, essa dificuldade parece insuperável, pois, sendo a evidência uma experiência subjetiva, ela dificilmente poderia servir como base para a construção de uma verdade objetiva. A modernidade equaciona esse problema de uma maneira bastante original: apesar de a evidência ser uma experiência subjetiva (cada pessoa sente algumas coisas como evidentes), a evidência racional deve ter um caráter objetivo, na medida em que a racionalidade é a mesma para todos os homens.

A definição de parâmetros objetivos de racionalidade permite que tudo aquilo que puder ser demonstrado cabalmente para um indivíduo, deve ser acatado também por todos os outros seres humanos e culturas. Desde que um indivíduo comprove racionalmente uma ideia, ele terá certeza absoluta de ter descoberto uma verdade, mesmo que ela contrarie a crença da maioria das outras pessoas. Nesse contexto, os critérios de evidência racional passaram a ser a pedra de toque de todo o sistema de conhecimento, pois são eles que servem como elo entre a subjetividade da evidência e a objetividade da verdade.

Tudo estaria bem se não fosse um problema de fato: apesar da crença de que existe apenas uma verdade, as pessoas continuaram tendo opiniões diferentes sobre o mundo, e cada uma delas dizia estar baseada em uma evidência racional. Dada a existência fática desses desacordos, que critério objetivo poderia ser usado para diferenciar a ideia justificada de uma vã opinião? Traduzindo essa preocupação para o campo hermenêutico: que critério objetivo pode ser utilizado para diferenciar uma interpretação verdadeira de uma interpretação falsa?

Esse critério objetivo deveria ser um critério puramente racional. Mas, se a evidência racional fosse tão evidente assim, não deveríamos estar sempre de acordo? Será que essa diversidade de nossas opiniões não deve ser vista como um signo de que a razão não é a mesma para todos os homens e de que, portanto, a evidência racional não passa de uma ilusão? A modernidade, pela boca de Descartes, responde negativamente a essa pergunta:

[A] diversidade de nossas opiniões não provém do fato de sermos uns mais racionais do que outros, mas somente do fato de conduzirmos nossos pensamentos por vias diferentes e de não levarmos em conta as mesmas coisas. Pois não é suficiente possuir um espírito bom; o mais importante é aplicá-lo bem. (Descartes, 1985, p. 31)

Mas o que diferencia o uso correto do uso errado da razão? A resposta cartesiana, que ecoa em toda a modernidade, é: a escolha do método. Descartes percebeu que o mundo é demasiadamente complexo para deixar-se apreender imediatamente pela razão humana. Dada essa complexidade inapreensível das coisas, ele defende que a única abordagem que nos resta é desenvolver métodos racionais para orientar nossas reflexões. Caso contrário, nós nos perderíamos em nossas próprias ilusões e preconceitos.

A verdade existe, mas ela não se desvela senão por meio de um uso controlado e metódico da razão. Portanto, a construção de um conhecimento verdadeiro envolve um esforço prévio: o desenvolvimento de abordagens adequadas, métodos que possam guiar as nossas reflexões, de tal modo que elas nos conduzam à verdade e não à ilusão da verdade.

Se fôssemos oniscientes, não dependeríamos desses métodos, pois nossa razão poderia apreender, simultaneamente, todas as informações relevantes para resolver um determinado problema. A condição humana limita nossa capacidade de raciocínio a lidar com informações muito mais restritas, o que nos obriga a reduzir nossas observações a modelos conceituais simplificados. Um número elevado demais de variáveis torna os problemas tão complexos que eles acabam escapando de nossa capacidade de raciocinar sobre eles. Por isso, uma vez fixada que a primeira regra do pensamento racional é a de somente aceitar como verdade o que for evidente para a razão, Descartes propõe uma segunda regra: reduzir os problemas a unidades menores, dividindo cada uma das dificuldades “em tantas partes quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las”(Descartes, 1985, p. 44).

Esse processo de redução, por mais necessário que seja, precisa ser feito com imenso cuidado, para evitar resultados equivocados. Francis Bacon, por exemplo, caiu no erro de tentar separar o calor do frio, como se essas fossem dois atributos diferentes e não gradações da mesma qualidade (Francis, 2000). O processo de reconstrução do conhecimento, a partir das soluções das pequenas dificuldades, parece ainda mais delicado, pois é bastante comum que as pessoas realizem nessa fase uma série de inferências que não podem ser racionalmente justificadas.

Por tudo isso, apesar de os homens serem igualmente racionais, o conhecimento é uma empresa tão desafiadora que eles precisam criar instrumentos adequados de orientação, que são justamente os métodos de investigação. Esses artefatos são compostos por conjuntos de regras que organizam a atividade cognitiva, definindo estratégias adequadas ao uso das faculdades racionais, de forma a possibilitar que nós percebamos a verdade no mundo. Em termos contemporâneos, podemos dizer que eles representam estratégias voltadas para evitar que nossos vieses cognitivos nos conduzam a fazer inferências equivocadas.

A ênfase na evidência subjetiva como critério de verdade poderia conduzir ao risco da fragmentação do conhecimento em uma multiplicidade de elementos desconexos, baseados nas ilusões e preconceitos de cada pessoa. Frente a essa potencial dissolução, a modernidade precisava estabelecer critérios objetivos, harmonizando o exercício da subjetividade com o ideal de uma verdade única. O elemento que possibilitou a unidade da razão, dentro da multiplicidade dos sujeitos, foi justamente o estabelecimento de uma matriz metodológica unificada, que se visse como parâmetro objetivo para aferir a veracidade ou a falsidade de uma teoria.

3.2 Hermenêutica e método

Tradicionalmente, entende-se que o objeto básico da hermenêutica é a interpretação, pois interpretar tem a ver com decifrar sentidos, com buscar compreendê-los. E, como os sentidos das coisas podem ser pensados de vários modos diferentes, há muitas diversas maneiras de pensar a atividade interpretativa.

Há, por exemplo, quem ache que será capaz de decifrar os sentidos do mundo a partir de uma postura contemplativa, pois a contemplação do belo conduziria à percepção da beleza e a contemplação da natureza conduziria ao conhecimento das coisas naturais. Essa é uma postura inspirada na crença grega de que o mundo se mostra ao homem sábio, que é capaz de desvendar, por meio da contemplação filosófica, os verdadeiros sentidos das coisas. Para essas pessoas, o sentido das coisas se desvela perante o logos, ou seja, por meio da razão.

As pessoas que são capazes de observar o mundo devem ser também capazes de refleti-lo em suas obras, que devem ser uma descrição fiel do mundo. Nesse contexto, a função das obras artísticas e filosóficas é a semelhante, pois ambas devem representar fielmente a natureza. A função do texto não é propriamente a de criar um novo mundo, mas a de refletir a beleza, a verdade ou a justiça. Portanto, o sentido das obras de artes ou das obras filosóficas não está nelas mesmas, mas na verdade ou na beleza que elas refletem e que podem ser apreendidas por um observador com formação adequada. Gadamer designa como dogmática essa abordagem, uma vez que ela não busca identificar o sentido das obras, mas a verdade que elas portam (1997).

Há também quem ache que será capaz de decifrar os sentidos do mundo a partir da construção de métodos precisos. Para os que creem nisso, o mundo existe e funciona de acordo com leis fixas, mas a simples contemplação da natureza não conduz diretamente à descoberta dessas regras porque a observação humana é falível, na medida em que uma série de fatores subjetivos interfere na nossa apreensão do mundo, o que faz com que as percepções individuais sejam sempre passíveis de distorção. Como cada um de nós tende a acreditar que as suas próprias representações subjetivas correspondem à realidade objetiva, é necessário estabelecer procedimentos objetivos de observação, capazes de evitar (ou ao menos de minimizar) as distorções derivadas da subjetividade do observador.

Portanto, não basta observar passivamente o mundo, mas é preciso investigá-lo de um modo correto, pois a identificação das leis que regem o mundo exige que a nossa observação do mundo seja racional, e a garantia dessa racionalidade é feita mediante a definição de métodos racionais de observação, que devem ser aplicados pelo intérprete. Sem esses métodos, o observador até pode chegar à verdade, mas ele não terá certeza de que chegou lá, pois seguir as próprias intuições nunca é garantia do acesso à Verdade. Assim, por mais que seja possível alcançar a Verdade por intuição, somente é possível ter certeza objetiva acerca da verdade mediante uma demonstração racional, o que exige a aplicação de uma metodologia racional.

Nessa medida, por mais que haja uma forte carga intuitiva/irracional no processo de criação de novas hipóteses de interpretação, a comprovação ou refutação dessas hipóteses somente pode ser feita mediante a aplicação de metodologias objetivas, racionalmente definidas. Em linhas gerais, essa é a estratégia da concepção da ciência moderna, que tende a confiar somente em conhecimentos que possam ser comprovados mediante a aplicação de métodos determinados. Os cientistas abandonaram o ideal grego da filosofia contemplativa, ao entenderem que as verdades do mundo não são descobertas por uma observação cuidadosa, mas por uma investigação metódica, que envolve a formulação criativa de explicações empíricas e a realização de testes que avaliem sua correspondência com os fatos.

A mentalidade científica moderna compartilha o pressuposto grego de que existe uma verdade a ser descoberta, mas inova ao defender que o modo de alcançar a certeza da verdade é a aplicação de um método correto. Essa visão metodologizante nasceu na filosofia e nas ciências e, aos poucos, tomou conta do pensamento ocidental, inclusive da hermenêutica. Os resultados da aplicação do método científico foram tão robustos (pense-se, por exemplo, na física newtoniana) que ele se tornou o paradigma fundamental do pensamento moderno. Com isso, a solidez dos vários ramos do conhecimento passou gradualmente a ser medida em razão da sua proximidade (ou distância) com relação às ciências naturais matematizadas.

O método não nasce pronto da cabeça dos filósofos, cientistas, teólogos, juristas ou quaisquer outros intelectuais: a construção de uma metodologia hermenêutica unificada e sistemática foi um processo lento, como costuma ser toda empreitada desse tipo. A noção de que deveria haver um método correto de interpretar é apenas um primeiro passo para que as pessoas se dediquem à elaboração de uma metodologia robusta e amplamente aceita. Por mais que Descartes tenha delineado um esboço geral do método de pensamento moderno (Descartes, 1985), era preciso que cada área do conhecimento definisse metodologias adequadas aos seus objetos específicos.

Inicialmente, esse processo de metodologização consistia em uma espécie de mapeamento dos cânones interpretativos tradicionalmente utilizados. Tal movimento gerou compêndios de regras interpretativas tradicionalmente utilizadas nas atividades dos juristas, dos teólogos e dos filólogos, regras essas que normalmente contém em si muito bom senso, mas que não formam um todo coerente.

No direito, são especialmente conhecidos repertórios de cânones de Francesco Ferrara (1987) e de Carlos Maximiliano (2000). Por mais que esses conjuntos de orientações metodológicas pudessem servir para estruturar uma prática adequada, eles nunca chegaram constituir um conjunto unificado e sistematizado de regras. Tratava-se da compilação das estratégias tipicamente usadas pela dogmática jurídica, e não do desenvolvimento de um sistema moldado pelas exigências modernas de unicidade, racionalidade e coerência.

Em todos esses esforços iniciais não havia ainda um pensamento hermenêutico propriamente dito, pois os teóricos da interpretação simplesmente pretendiam extrair da prática filológica, teológica e jurídica os cânones adequados para orientar o intérprete no processo de extração dos sentidos corretos dos textos. Não se procedeu propriamente a uma reflexão acerca dos métodos interpretativos, mas a uma coleção das regras que deveriam ser utilizadas para a realização de uma prática interpretativa adequada aos padrões dogmáticos vigentes.

Após esse esforço de mapeamento, costuma vir uma época de sistematização, na qual os especialistas gradualmente harmonizam os cânones tradicionais, percebem os pontos em que eles se contradizem e se completam e inventam estratégias para contornar essas contradições. Com isso, os conhecimentos dispersos gradualmente adquirem unidade e os conjuntos de regras justapostas se transformam em um sistema organizado de maneira racional e sistematizada. Esse tipo de reconstrução sistematizada se mantém na cultura europeia sobe a designação de “metodologia jurídica”, em textos como os de e Emilio Betti (Pessoa, 2002), Karl Larenz (Larenz, 1993) e de Jean-Louis Bergel (Bergel, 2001).

A reconstrução histórica desse processo de sistematização pode ser bastante enganadora, pois, em um dado momento, costuma surgir um teórico que estabelece um modelo sistemático e unificado, pretensamente fruto de uma construção puramente racional. Bergel, por exemplo, sustenta que sua abordagem metodológica está ancorada em uma capacidade fenomenológica de esclarecer as estruturas essenciais da ordem jurídica, que são capazes de estabelecer uma teoria geral do direito (Bergel, 2012).

Esse tipo de abordagem gera a ilusão de que essas consolidações operam uma ruptura com as coleções de cânones, na medida em que os esforços anteriores podem ser compreendidos como passos iniciais para a construção um sistema abstrato, baseado em princípios evidentes para a razão. Por trás dessa inovação aparentemente revolucionária, esconde-se um longo período de maturação, em que se consolidam indutiva e praticamente, os conceitos que permitem sair de um pensamento indutivo e tópico, passando por sistematizações parciais, para, enfim, chegar a um modelo sistemático universalizante, que é sempre o objetivo final da racionalidade moderna (Viehweg, 1979).

Quando o sistema está pronto, muitas vezes esquecemos de suas raízes históricas e o descrevemos como uma construção meramente racional e abstrata, descoberta pelo gênio de algum grande pensador. Creio que isso ocorre porque a justificação de um sistema não é feita com base nas contingências de sua história, mas com base na lógica interna de sua própria construção e no modo como ele se assenta em premissas consideradas evidentes para a razão.

O furor sistematizador do racionalismo iluminista resulta no domínio do discurso normativo, que se impõe inclusive ao discurso científico, fundado da descoberta de leis naturais. Se há alguma atividade humana, devemos ser capazes de identificar as regras que devem orientar o proceder correto, que são justamente as regras derivadas da própria razão. A noção de que toda atividade deve ser regulada por um conjunto relativamente simples de regras gerais, abstratas e claras parece envolver todo o conhecimento, especialmente por ser esse o modo de construção do saber científico paradigmático: a física. Essa tendência para a construção de sistemas abstratos e unificadores mostra-se inclusive nas áreas que hoje nos parecem menos normatizáveis, como é o caso da criação artística, sobre a qual Paul Valéry afirma:

Mas, pouco a pouco, e em nome da autoridade de grandes homens, a ideia de uma espécie de legalidade foi introduzida e substituiu as recomendações iniciais de origem empírica. Raciocinou-se e o rigor da regra se fez. Ela exprimiu-se em fórmulas precisas; a crítica armou-se; e então seguiu-se esta consequência paradoxal: uma disciplina das artes, que opunha aos impulsos do poeta dificuldades racionais, conheceu um grande e durável prestígio devido à extrema facilidade que ela dava para julgar e classificar as obras, a partir da simples referência a um código ou a um cânon bem definido. (Valéry, citado por Brandão, 1997)

Apesar de ser o nome de Newton que entrou para a história como o grande sistematizador da física, não podemos deixar de perceber o seu trabalho como o ponto final de uma série quase infinita de esforços anteriores ao seu — e o mesmo vale para grandes sistematizadores de outras áreas do conhecimento, como os enciclopedistas franceses; como Kant e Hegel na filosofia; Wolff e Windscheid no direito; Darwin na biologia; Smith e Mill na economia; Mendeleev na química. Na hermenêutica, esse grande sistematizador é justamente Schleiermacher.

3.3 A teoria hermenêutica de Schleiermacher

Friedrich Schleiermacher, teórico que produziu suas principais reflexões no início do século XIX, é normalmente apontado como o fundador do modo contemporâneo de pensar hermenêutica. Obviamente, ele não foi o primeiro a ocupar-se da interpretação, dado que os debates acerca desse tema remontam aos gregos e perpassam toda a cultura ocidental. Todavia, foi a partir de suas reflexões que a hermenêutica se tornou uma disciplina autônoma e adquiriu seus contornos atuais.

Schleiermacher considerava que a hermenêutica de seu tempo ainda não passava de uma técnica auxiliar da teologia ou da filologia, sendo composta meramente por “coleções de regras particulares reunidas por meio das observações dos mestres, algumas vezes claramente definidas, outras beirando a indefinição, arranjadas ora confusamente ora comodamente” (2009, p. 26). Essas coleções fragmentárias de regras não compunham uma metodologia propriamente dita, pois não eram capazes de expor, “sob uma forma adequada e científica, toda a extensão e as razões de ser do processo [de compreensão]”(2009, p. 26). Para superar essa limitação, ele propôs a substituição desses conjuntos de orientações parciais por uma organização sistemática e completa do processo interpretativo, oferecendo tanto uma descrição correta do modo como a compreensão ocorre quanto uma orientação adequada sobre como os intérpretes se devem conduzir.

Friedrich Schleiermacher também combateu a fragmentação da hermenêutica em uma série de disciplinas particulares. Ainda em 1819, ele reconheceu que “a hermenêutica como arte da compreensão não existe como uma área geral, apenas existe como uma pluralidade de hermenêuticas especializadas” (2009, p. 26).  As variadas disciplinas hermenêuticas que como técnicas de interpretação aplicáveis aos seus campos determinados, especialmente a teologia, a filologia e o direito. Para Schleiermacher, que era a um só tempo teólogo, filólogo e filósofo, essa fragmentação era injustificada, não fazendo qualquer sentido desenvolver uma teoria para a interpretação da Bíblia, outra para a interpretação dos clássicos, outra para a interpretação da literatura moderna, outra para a interpretação da literatura oriental e assim por diante (2009, p. 29). Por mais que cada um desses campos pudesse ter algumas especificidades, tratava-se de várias aplicações do mesmo processo de compreensão, o que o fez idealizar o projeto de desenvolver uma hermenêutica geral, que abrangesse a interpretação de todos os textos, fossem eles escritos ou orais, antigos ou modernos, sacros ou profanos. Com isso, ele converteu a hermenêutica, de uma técnica auxiliar da teologia ou da filologia, em uma descrição unificada dos processos de compreensão.

Cabe ressaltar que ele excluiu expressamente a hermenêutica jurídica de seu esboço de hermenêutica geral. Embora reconhecesse a existência de uma disciplina hermenêutica no campo do direito, sustentava que ela tinha um objetivo diverso das hermenêuticas filológica e teleológica, pois ela não lidava com a identificação do sentido correto de um texto, mas com “a determinação da extensão da lei, isto é, com a relação dos princípios gerais com o que neles não foi concebido claramente” (Schleiermacher, 2009, p. 29).

Enquanto o problema que interessava Schleiermacher era o de compreender textos com sentidos definidos, embora muitas vezes obscuros, ele entendia que o problema enfrentado pela hermenêutica jurídica era o de oferecer soluções concretas com base em normas que tinham caráter irremediavelmente genérico. Uma tal ligação do direito com a questão da aplicação exige uma postura que não se coaduna perfeitamente com a metodologia que ele ofereceu para a hermenêutica, ligada à compreensão abstrata do sentido de um discurso e não à determinação prática das consequências de sua aplicação. Nessa medida, ele considerava que apesar de a hermenêutica jurídica ter um papel semelhante ao da teleológico-filológica, ela não era “completamente a mesma coisa”, o que o fez excluí-la do seu projeto de desenvolvimento de uma hermenêutica unificada.

Uma chave interessante para compreender essa recusa da hermenêutica jurídica é dada por Gadamer quando ele afirma que Schleiermacher opôs-se à hermenêutica tradicional de sua época porque passou a concentrar-se na compreensão do texto enquanto portador de significado e não no estudo dogmático do texto como um veículo que poderia conduzir à verdade (Gadamer, 1997). Esse estudo dogmático até hoje domina a teoria do direito, pois os textos jurídicos não são estudados para que sejam compreendidos, mas para que se possa extrair deles uma solução correta. Nessa medida, a análise do texto não é autônoma, mas subordinada a uma busca pela solução correta que o texto deve revelar.

A perspectiva dogmática era também dominante tanto na hermenêutica teológica como na filológica. No caso da Bíblia, isso ocorria porque os estudos não tinham como objetivo a compreensão do sentido do próprio texto, mas a apreensão da verdade que poderia ser revelada pela sua análise. No caso dos clássicos, o seu estudo não visava simplesmente à compreensão do sentido dos textos, pois eles eram entendidos não apenas como obras-primas de uma civilização passada, mas como textos canônicos que fixavam as regras adequadas da produção literária. O que se buscava neles não era simplesmente a sua compreensão, mas a identificação dos parâmetros que deveriam ser seguidos por qualquer literatura. Em nenhum desses casos, portanto, a finalidade do intérprete era entender o sentido do texto em si, mas compreender o mundo a partir do próprio texto, mediante o desvelamento da verdade que ele encerrava.

Voltando-se contra esse tipo de interpretação dogmática, Schleiermacher defendeu a autonomia do sentido do texto. O objetivo do intérprete não deveria ser o de revelar a verdade oculta no texto, mas compreender o sentido que lhe é próprio, independentemente da veracidade ou não dos seus conteúdos. Somente ao dar esse passo é que Schleiermacher se tornou capaz unificar o estudo de textos sagrados e profanos, clássicos e modernos, submetendo a compreensão de todos eles à mesma metodologia. Seu objetivo declarado não era compreender a verdade revelada no texto, mas entender o sentido do texto como expressão de um indivíduo cuja atividade criadora encerrou em um texto um sentido determinado. É por isso que Gadamer diz que, na teoria de Schleiermacher, “a compreensão e interpretação tanto da Bíblia como da Antiguidade clássica foram liberados do interesse dogmático”(Gadamer, 1997, p. 306).

Essa finalidade compreensiva parecia inadequada a uma hermenêutica jurídica, pois a interpretação do direito teve sempre um caráter fortemente dogmático. Os juristas tendem a pressupor que as normas vigentes oferecem solução para o caso concreto que eles analisam e que sua atividade tem por objetivo último a tomada de decisões, e não o conhecimento do sentido dos textos. O caráter inafastavelmente dogmático da hermenêutica jurídica impediu que Schleiermacher a inserisse no seu projeto de uma hermenêutica geral, que deveria abandonar a postura dogmática tradicional, para concentrar-se em na compreensão do texto.

Creio que isso não implica que Schleiermacher negava a possibilidade de aplicar as regras hermenêuticas gerais ao estudo do direito, mas simplesmente que ele reconhecia que o resultado dessa aplicação não seria suficiente para o campo jurídico, dado que, diversamente do teólogo e do filólogo, os juristas práticos precisavam aplicar a ordem jurídica como se ela tivesse uma significação própria, que não pode ser identificada com a intencionalidde dos autores dos textos interpretados.

3.4 A universalização do mal entendido

Como sempre ocorre com as grandes sistematizações, podemos identificar vários antecedentes para as ideias de Schleiermacher, inclusive para o seu projeto unificador. Quase duzentos anos antes, ainda no início do século XVII, o teólogo germânico Dannhauer concebeu a ideia de que era possível desenvolver uma hermenêutica geral, que abrangesse todos os processos de interpretação de textos escritos. Tal como a lógica oferecia as regras para argumentar corretamente em todas as áreas do conhecimento, a hermenêutica deveria oferecer a todas as ciências as regras para interpretar corretamente. Cabe ressaltar que foi o próprio Dannhauer que inaugurou o uso da palavra “hermenêutica” para designar especificamente a teoria da interpretação (Grondin, 2000, p. 94).

Dannhauer considerava que somente deveria existir uma hermenêutica, uma teoria da interpretação que abrangeria todos os processos de interpretação utilizados pelas ciências interpretativas particulares, especialmente o direito e a teologia. Tal abordagem deveria somar-se à lógica, como uma disciplina auxiliar e propedêutica, que se aplicasse a cada uma das ciências interpretativas. Entretanto, Dannhauer publicou apenas um livro de hermenêutica teológica, não chegando a elaborar a hermenêutica geral que havia projetado e que permaneceu apenas um esboço, que não teve influência concreta no desenvolvimento de uma teoria geral da argumentação (Grondin, 2000, p. 94).

Gadamer indica que o século XVIII conteve outras tentativas de elaborar teorias interpretativas gerais, como as de Chlaudenius (1742) e Meier (1757), mas elas ainda eram inspiradas por uma concepção dogmática e acessória da hermenêutica e não desenvolviam metodologias interpretativas suficientemente estruturadas para atender aos anseios metodológicos de uma cultura que tinha na física newtoniana o paradigma de sistematicidade. O desafio de Schleiermacher, ao contrário dos seus antecessores, era o de elaborar uma hermenêutica tão próxima quanto possível dos padrões de cientificidade. Sendo ele principalmente um teólogo, podemos identificar em seu projeto a busca de elaborar uma teologia científica, por meio da elaboração de uma metodologia adequada de interpretação dos textos bíblicos (Gadamer, 1997, p. 118).

Os antecedentes imediatos das teorias de Schleiermacher foram as concepções de dois autores germânicos do final do século XVIII: Friedrich Ast e Friedrich Wolf. Do primeiro, ele tomou emprestada a ideia de que “a hermenêutica é a arte de descobrir os pensamentos de um autor”, e do segundo a noção de que interpretar é compreender algo que nos causa estranheza (Schleiermacher, 2009, p. 31). Se tivesse chegado apenas até esse ponto, ele teria feito pouco mais que reforçar a noção tradicional de que a atividade interpretativa tem como objeto apenas textos obscuros e como finalidade descobrir a intenção do autor. Porém, Schleiermacher foi efetivamente além dos seus predecessores, afirmando contra Ast que todo texto precisa ser interpretado (na medida em que o entendimento carrega inevitavelmente em si a possibilidade do mal-entendido), bem como superando Wolf na análise minuciosa das dificuldades envolvidas na reconstrução do pensamento do autor.

Diversamente de Ast, que limitava a hermenêutica ao estudo da literatura clássica da Antiguidade, Schleiermacher estendeu o problema hermenêutico à compreensão de todos os textos, fossem eles escritos ou orais, literários ou não, sustentando que, “em todo lugar onde houver qualquer coisa de estranho, na expressão do pensamento pelo discurso, para um ouvinte, há ali um problema que apenas pode se resolver com a ajuda de nossa teoria” (2009, p. 31). Além disso, ele se contrapôs à ideia tradicional de que a interpretação somente incidia sobre trechos especialmente obscuros, nos quais fosse impossível uma compreensão imediata. Na medida em que tomava cada texto como fruto da atividade de um indivíduo, ele considerava que os intérpretes deveriam compreender o sentido de um texto a partir da “reconstrução completa da evolução interior da atividade compositora do escritor”  (2009, p. 39). Por isso, ele foi levado a concluir que a análise de todo e qualquer texto envolvia o desafio de reconstruir o pensamento de um outro sujeito. Como a necessidade de lidar com a individualidade da pessoa cuja obra é interpretada torna inevitavelmente estranho para o intérprete o objeto da compreensão, Schleiermacher passou a defender que todo texto precisaria ser interpretado, ideia claramente incompatível com a máxima jurídica in claris cessat interpretatio (Gadamer, 1997, p. 281).

Segundo Gadamer, essa universalização da possibilidade do mal entendido era profundamente inovadora, na medida em que a dificuldade de compreensão já não era mais entendida como uma exceção que acometia apenas textos particularmente obscuros (1997, p. 281). O caráter radicalmente inovador dessa abordagem pode ser temperado pelo reconhecimento de que pensadores anteriores já tinham feito afirmações semelhantes, em livros bastante conhecidos. Hobbes, por exemplo, ainda no século XVII, defendeu explicitamente no Leviathan que “todas as leis, escritas não, precisam ser interpretadas” (Hobbes, 2014). Esse tipo de constatação, porém, não retira de Schleiermacher o mérito de se ter contraposto de forma explícita à ideia de que os textos claros podem ser aplicados diretamente, sem a necessidade de uma problematização do seu sentido.

Mesmo na interpretação dos nossos próprios textos somos levados a enfrentar essa estranheza, dado que muitos dos nossos motivos não são conscientes. Para Schleiermacher, a função do intérprete é entender todo o processo interno dos artistas do discurso, na busca de “compreender um autor melhor do que ele de si mesmo pode se dar conta” (Schleiermacher, 2009, p. 43).

Contrariamente a Wolf, que considerava a hermenêutica como uma disciplina introdutória da filologia e limitou-se a uma pesquisa fragmentária das regras do bom interpretar consagradas pela prática, Schleiermacher buscou desenvolver uma disciplina hermenêutica autônoma que oferecesse não apenas regras fragmentárias, mas uma metodologia sistemática (Palmer, 2006, p. 88). Empenhou-se, então, em redescrever o processo de compreensão, a partir da combinação de elementos gramaticais e técnicos, e ofereceu uma orientação geral à aplicação pratica desses elementos de compreensão.

O objetivo básico de Schleiermacher era compreender o sentido do texto, entendido este como a expressão da individualidade do seu autor. Por conta disso, ele viu-se na necessidade de tratar hermeneuticamente tanto a compreensão do texto em si, quanto a compreensão do sujeito que o criou (Schleiermacher, 2009, p. 68). Essa intuição fundamental fez com que ele afirmasse que a interpretação ocorre a partir da união de duas perspectivas: a compreensão gramatical, centrada no texto, e a compreensão psicológica (que ele também chamava de técnica), centrada no autor.

Até esse ponto, Schleiermacher se aproxima bastante das concepções tradicionais de sua época, pois praticamente retomava a dicotomia gramatical/lógica, que estava presente na teoria jusracionalista e foi retomada pela Escola da Exegese (Costa, 2023c). Porém, ao afirmar que essas duas perspectivas não eram tipos diversos de interpretação, mas partes distintas de um mesmo processo interpretativo, ele deu um passo além da teoria tradicional. Sustentando que os aspectos gramatical e psicológico eram necessariamente complementares e que nenhum deles bastava a uma compreensão adequada, Schleiermacher contrapôs-se à tendência dominante de classificar a interpretação em diferentes espécies (literal, alegórica, espiritual, etc.), entre as quais o intérprete deveria escolher a mais adequada ao caso analisado (2009).

Para ele, a compreensão teria início com uma análise gramatical, que se foca na linguagem e desconsidera a individualidade do autor. Embora essa perspectiva seja a mais objetiva, por ter como base as regras impessoais da gramática, ela também é muito limitada, por ser incapaz de evidenciar toda a carga significativa do texto. Contudo, sem a interpretação gramatical, seria impossível realizar a interpretação psicológica, que busca reconstruir o ato criativo do autor, pois a única via aberta para a compreensão do homem é o seu próprio discurso. Não se trata, contudo, de uma simples prioridade lógica (menos ainda cronológica) da interpretação gramatical perante a técnica, pois nenhuma delas é possível sem a outra. Essa circularidade é uma das características marcantes do pensamento de Schleiermacher, cujo impacto na hermenêutica contemporânea dificilmente pode ser subdimensionada.

Outra dicotomia relevante em sua abordagem é a distinção entre os elementos comparativos e divinatórios que fazem parte tanto da perspectiva gramatical quanto da psicológica. Para Schleiermacher, a compreensão tem como um de seus principais elementos um procedimento comparativo que evidencia em que pontos a obra de um escritor se aproxima ou se afasta dos outros escritores do mesmo período (ou de períodos anteriores), mostrando, entre outros elementos, em que medida ele se utiliza ou não das regras típicas da gramática, que tipos de métrica, ritmo ou rimas ele usa (2009, p. 43).

A comparação pode capaz de diferenciar os pontos em que um autor mostra sua individualidade daqueles em que ele segue os padrões gerais, mas ela é incapaz de explicar o sentido de tudo o que é original em um texto. Notando isso, Schleiermacher perguntou “o que faríamos nós a cada vez que caíssemos em uma passagem onde um autor genial pela primeira vez trouxe à luz uma locução, uma composição na língua?” (2009, p. 43). Como somos capazes de compreender uma metáfora original, um neologismo, uma ironia? A simples comparação com as obras anteriores pode até indicar possibilidades interpretativas, mas não é suficiente para desvendar o sentido de uma inovação linguística fulgurante. Por isso, Schleiermacher respondeu à pergunta acima afirmando que é preciso agir de modo divinatório, buscando entender o sentido correto da frase a partir de uma espécie de congenialidade.

Segundo Schleiermacher, a compreensão somente é possível quando há algo em comum entre o intérprete e o autor  pois, ausente essa identificação, mesmo alguém que conheça a teoria hermenêutica não será capaz de compreender o discurso (2009, p. 31). Somente quando existe essa congenialidade (no sentido de que o intérprete identifica no gênio do escritor algo de si), derivada do compartilhamento de modos de ver e sentir o mundo, podemos identificar divinatoriamente a intenção de um autor. Assim  “o fundamento último de toda compreensão terá que ser sempre um ato divinatório da congenialidade, cuja possibilidade repousa sobre uma vinculação prévia de todas as individualidades” (Gadamer, 1997, p. 295).

Essa congenialidade é o elemento que permite a superação dos limites da gramática e possibilita a compreensão adequada do texto. Como o entendimento de uma obra somente é possível a partir da reconstrução divinatória do ato criador, terminamos remetidos sempre a uma interpretação psicológica. Por sua vez, a interpretação psicológica também não prescinde de um procedimento comparativo, que busque compreender a sua individualidade a partir da avaliação das semelhanças e diferenças entre seus próprios textos, bem como de suas obras em relação a outras. Enquanto a comparação sem divinação tende a ser superficial e incompleta, a divinação sem comparação tende a carecer de toda segurança, motivo pelo qual esses elementos devem andar sempre lado a lado (Schleiermacher, 2009, p. 43).

Tal análise levou Schleiermacher a concluir que tanto a interpretação gramatical como a psicológica envolvem elementos comparativos e divinatórios, embora haja uma certa tendência a que os fatores divinatórios predominem na compreensão técnica e que os fatores comparativos prevaleçam na gramatical. De toda forma, a compreensão adequada somente ocorre quando os elementos divinatórios e comparativos se coadunam e quando as compreensões gramatical e psicológica se complementam de maneira perfeita.

Essa harmonização de todos os elementos hermenêuticos, que leva à compreensão adequada do sentido de um texto, não se mostra à primeira vista para o intérprete. Segundo Schleiermacher (2009, p. 47), ela não resulta de uma intuição imediata, mas de um labor interpretativo que se prolonga no tempo, o que o levou a promover uma descrição dinâmica (e não mais estática) do processo de compreensão que, posteriormente, recebeu a denominação de “círculo hermenêutico” (Gadamer, 1997; Heidegger, 1988).

Na descrição de Schleiermacher, toda compreensão inicia com um pressentimento do todo a partir das poucas partes que dele se conhece. A formulação desse pressentimento é um exercício de interpretação divinatória que depende do conhecimento dos demais textos do autor, das obras que lhe influenciam e de outros elementos comparativos. Mesmo nos casos de um conhecimento contextual amplo, o pressentimento inicial é sempre incompleto e provisório, embora indispensável para que se comece a perceber adequadamente as articulações e complementaridades entre os diversos elementos da obra. A cada passo, é preciso integrar os novos elementos que o intérprete vai conhecendo na projeção geral de sentido, o que provoca uma revisão constantemente do significado atribuído tanto ao texto em geral, como a cada uma de suas partes.

Compreender envolve uma constante realização de projeções de sentidos para o todo e as partes de um texto, projeções estas que podem ser confirmadas ou não pelo aprofundamento do processo interpretativo. Segundo Gadamer, que retomou no século XX as ideias de Schleiermacher sobre este tema:

[...] quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete projeta um sentido para o texto como um todo. O sentido inicial só se manifesta porque ele está lendo o texto com certas expectativas em relação ao seu sentido. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente no desenvolvimento dessa projeção, a qual tem que ir sendo constantemente revisada, com base nos sentidos que emergem à medida que se vai penetrando no significado do texto. (Gadamer, 1997, p. 402)

Esse é um processo circular infindável, na medida em que não é possível conhecer todos os elementos comparativos que podem estimular novas projeções divinatórias. Por isso, Schleiermacher afirmou que:

[...] mesmo após essa repetida apreensão, toda compreensão sob esta visada superior, permanece somente provisória, e cada coisa nos aparecerá sob uma luz inteiramente distinta quando nós retornamos à obra particular após ter percorrido todo o domínio de composição que lhe é aparentado, após ter conhecido outras obras do autor, mesmo de gênero diferente, e, na medida do possível, a sua vida inteira. (Schleiermacher, 2009, p. 54)

Apesar de sempre ser possível dar um passo além no processo, chega-se a um ponto em que a interpretação conferida a cada parte do texto corresponde ao sentido total da obra e este significado global pode ser construído adequadamente a partir do sentido de cada parte. Nesse ponto de saturação, é possível afirmar que o intérprete chegou a uma compreensão adequada, embora seja forçoso admitir que essa solução não é absoluta, mas é possível apenas por aproximação.

Para entender essa teoria, é útil apelarmos para o exemplo de um filme. Quantas vezes entendemos o significado de uma cena que acontece no início do filme apenas quando chegamos ao final da história? Quantas vezes saímos do cinema relembrando os episódios iniciais e revendo o modo como eles deveriam ser interpretados? Isso acontece porque cada cena particular somente pode ser entendida dentro do contexto da obra completa. Todavia, a obra completa é formada pela sequência dos episódios particulares.

Logo que começamos a assistir um filme, formamos uma série de expectativas com relação ao significado de cada cena que nos é apresentada. Essas projeções de sentido, esses projetos de interpretação, resultam da avaliação do roteiro a partir das noções prévias que utilizamos como elementos de comparação. Todavia, a cada nova informação recebida, essas projeções de sentido vão sendo alteradas, o que implica uma modificação gradual no sentido que atribuímos ao filme. Além disso, cada vez que se modifica a nossa projeção de sentido sobre o filme, mudam também os significados que atribuímos às cenas anteriores.

Como observou Gadamer, “esse constante processo de reprojetar constitui o movimento do compreender e do interpretar” (Gadamer, 1997, p. 402). Nesse processo de vai-e-vem, a nossa compreensão sobre a obra vai sendo alterada, pois temos necessidade de integrar as novas cenas em um contexto coerente. Além disso, a nossa compreensão de cada cena particular vai sendo modificada, à medida que muda nosso entendimento sobre o filme como um todo. Dessa forma, tal como cada cena não pode ser compreendida fora do conjunto da obra, o filme não pode ser entendido senão a partir da compreensão de cada cena particular e das relações entre elas. Uma das contribuições mais decisivas de Schleiermacher foi esclarecer que essa conexão circular entre o entendimento do todo e o das partes é tão aplicável ao cinema quanto à literatura ou a qualquer outro texto que se busca compreender.

3.5 Os limites do método

A construção de uma metodologia hermenêutica unificada e sistemática foi um processo lento, como costuma ser todo processo desse tipo. Frente à diversidade das interpretações, os teólogos e juristas perceberam que era preciso definir um método correto para interpretar a Bíblia e o Direito, e se dedicaram, no decorrer de séculos, à elaboração de tal metodologia. Aos poucos, esses métodos foram sendo desenvolvidos, passando por várias fases. Numa primeira etapa, foram identificados os cânones interpretativos vigentes, mas a compilação desses cânones não gerava uma metodologia, mas apenas catálogos formados pelas diretrizes interpretativas tradicionalmente utilizadas nas atividades dos juristas, dos teólogos e dos filólogos.
A princípio, a passagem do esforço de catalogação para o esforço de sistematização ocorreu dentro das hermenêuticas especializadas (jurídica, teológica e filológica) e não era acompanhada por uma reflexão aprofundada sobre os próprios limites e objetivos dessas metodologias, que foram desenvolvidas a partir de um amadurecimento dos cânones identificados indutivamente na própria prática interpretativa.
Aos poucos, essas coleções de cânones foram sendo transformadas em metodologias cada vez mais sistematizadas, até chegar ao ponto, no século XIX, em que se puderam unificar os esforços particulares de cada disciplina, em um projeto geral de hermenêutica, o que ocorreu inicialmente na obra seminal do teólogo germânico Friedrich Schleiermacher, que elaborou o primeiro esboço de uma teoria geral da interpretação. (Silbert, 2222)

A narrativa acima me parece bastante muito útil para fins didáticos, mas também demasiadamente desconectada de uma compreensão histórica. Trata-se muito mais de uma reconstrução lógica, que enquadra a evolução do pensamento hermenêutico em uma narrativa padrão de historiografia retrospectiva, que dá um sentido evolutivo para a história, sob o grande custo de transformar o passado em uma mera preparação do presente (Hespanha, 1993). Essa redução da história a uma escatologia abre espaço a uma mitologia evolutiva, tal como a envolvida na narrativa que conta que os homens se reuniram em famílias, que se uniram em clãs, que se uniram em tribos, que se uniram em cidades, que se uniram em reinos, que se transformaram nos Estados contemporâneos, como se essa sequência lógica tivesse algo a ver com o desenvolvimento histórico das sociedades. Como o historiador português António Hespanha disse dessa divisão, ela é tão lógica e simples que não faz sentido supor que ela tenha ocorrido assim (Hespanha, 1997).

Essas narrativas pseudo-históricas têm uma função simbólica muito forte, servindo como parte da mitologia de justificação das estruturas do presente, mas elas fazem parte do discurso filosófico, muito mais do que do discurso histórico. Para torná-las um pouco mais plausíveis, deveríamos em primeiro lugar ter em mente que os compiladores de cânones não eram os primeiros sistematizadores, mas compiladores de cânones. Eles não desenvolviam seu trabalho em um projeto de metodologização, inclusive porque a subordinação da verdade a um método não faria qualquer sentido antes de Descartes. Mesmo Descartes, no discurso sobre o método, ao menos diz que não está definindo um método objetivamente válido, mas apenas mostrando a metodologia que ele elegeu para si, como um exemplo que poderia ou não ser seguido (Descartes, 1985).

O Discurso do Método não marca o momento em que essa metodologização se tornou dominante, pois se trata do lançamento de um projeto que somente bastante tempo depois veio a ganhar hegemonia no pensamento ocidental. Essa verve metodologizante somente se espalhou para o pensamento em geral apenas depois dos grandes sucessos da física e da química, especialmente depois que a revolução industrial deixou clara a importância política do conhecimento técnico e científico.

A subordinação da verdade ao método não é uma exigência da razão, mas uma construção histórica. É possível construir outras economias da verdade, com outros princípios de regulação acerca do que se considera verdadeiro ou falso. Há várias formas de gerir os vieses cognitivos, especialmente o viés de confirmação, que nos faz ser pouco exigentes na demanda de argumentos que corroborem nossas intuições. A afirmação de um acesso individual à verdade pode ter efeitos sociais deletérios, como os que temos observado nos efeitos políticos das redes sociais contemporâneas (Morozov, 2022).

A polarização política atual revela uma antiga dificuldade para construir sociedades em que existe uma ampla multiplicidade valorativa. Portanto, não deve causar espécie o fato de que, no período medieval, a verdade fosse apresentada como fruto da autoridade e da tradição: a definição do que se considerava verdadeiro não pressupunha a aplicação objetiva de critérios objetivos, nem a opinião particular dos indivíduos, mas a mediação de instituições que estabeleciam critérios pelos quais um pensamento poderia ser considerado verdadeiro.

Essa relação entre a verdade e as crenças dominantes em um campo, lidas por instituições determinadas, ocorre até hoje no campo do direito. O conceito de lide de Calamandrei e a definição de princípio da igualdade de Rui Barbosa são definições jurídicas canônicas: sua força não vem da demonstração metódica de sua veracidade (que diabos é método nas ciências jurídicas?), mas de um reconhecimento tradicional e constante de sua adequação. Um estudioso do direito processual, quando elabora um tratado, não faz outra coisa senão compilar os conceitos dominantes e organizá-los de uma maneira que facilite a compreensão. Para além disso, ele pode descrever os debates contemporâneos e tomar posição em relação a eles. Porém, não há um método objetivo que alguém possa utilizar para dizer eu demonstro a verdade, mesmo que todos creiam no contrário. Nesse sentido, pode ser muito válida a observação de Descartes sobre seu grande trabalho:

Assim, o meu propósito não é ensinar aqui o método que se deve seguir para conduzir bem a razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei para conduzir a minha. Os que se arvoram em ditar regras devem acreditar-se mais hábeis do que aqueles a quem as ditam e, se falham no mínimo detalhe, são por isso censuráveis. Mas, como não proponho este escrito senão como uma história, ou, se o preferirdes, como uma fábula – na qual, entre exemplos que se podem imitar, talvez haja muitos que se tem razão em não seguir – espero que ele seja útil a alguns, sem ser nocivo a ninguém, e que todos me sejam gratos por minha franqueza. (Descartes, 1985, p. 32)

Os compiladores de cânones ou os descritores de tradições raramente acreditam que eles estão ditando as regras do bom proceder. Não têm eles aquela empáfia adolescente dos iluministas, que acreditavam firmemente que a sua verdade era a verdade universal pelo simples fato de que eles a consideravam evidente. A função dos compiladores tem muito mais a ver com a manutenção da tradição do que com a sua transformação, pelo qual eles devem ser vistos como participantes de um processo de sistematização, mas não de metodologização, pois eles nunca trabalharam pela autonomização do método.

Voltando ao direito, soam muito estranhas as afirmações do racionalismo extremado, como a afirmação de Alexy no sentido de que haviam várias justificações históricas para o princípio da razoabilidade, mas que a configuração que ele pessoalmente explanava era racionalmente necessária (Alexy, 1993). Esse tipo de desconsideração da tradição e de confiança na universalidade das próprias verdades é de um iluminismo “adolescente” pouco afeito com a mentalidade conservadora dos juristas “maduros”, mais dispostos a reconhecer a sabedoria da tradição do que a desconsiderá-la em nome de um racionalismo puro. Não foi à toa que Savigny (o historicista conservador arquetípico) venceu a célebre polêmica contra Thibaut (o revolucionário iluminista).

De todo modo, não devemos desconsiderar a imensa importância do processo de sistematização pelo qual os saberes jurídicos passaram desde o momento em que o Corpus Iuris Civilis se tornou a base da educação jurídica e uma espécie de direito comum europeu, ainda que aplicado quase sempre de forma subsidiária. Muito pelo contrário, essa sistematização foi imensamente importante, tanto que culminou com uma autonomização do sistema em relação à tradição, e esse é o ponto mais relevante.

Quando Wolff propôs, no final do século XVIII, um Sistema de Direito Natural, ele acreditava falar em nome da própria racionalidade. Porém, o que ele fez foi autonomizar o direito natural em relação ao direito romano, considerando que os conceitos resultantes da depuração sistemática das caóticas fontes romanas eram resultados da própria razão. Mas isso era do espírito do tempo: uma confiança demasiada na razão e na universalidade dos discursos que se pretendiam frutos de uma reflexão racional. Não estava em ação aqui o espírito científico indutivista (que veio a ser dominante no século XIX), mas uma radicalização do racionalismo cartesiano, levado ao ponto de confundir suas regras com as regras da própria razão (coisa que o próprio Descartes podia ser suficientemente humilde para não fazer).

Esse período que vai de meados do século XVIII a meados do século XIX é repleto de grandes sistematizadores, que ofereceram sistemas considerados racionais, e que buscavam explicações totalizantes. os pensadores germânicos foram os grandes construtores desses grandes modelos totalizantes que buscam unificar os ramos do conhecimento em um único e grande relato. Wolf, Kant, Hegel, Savigny e Windscheid são representantes desse espírito de unidade que é a radicalização do espírito moderno.

Essa sobreposição de nomes pode gerar uma ilusão de ruptura, fazendo crer que os teóricos anteriores eram indutivistas sem sofisticação suficiente para construir um sistema abstrato, baseado nos princípios evidentes da razão. Mas isso seria falsificar demasiadamente a realidade, em nome de uma valorização desmesurada dos sistemas abstratos, tão cara até hoje à cultura germânica, especialmente no campo do direito. não é à toa que os grandes representantes do pensamento sistemático (sistemágico?) unificador e abstrato continuam sendo os alemães, especialmente Habermas, Apel, Alexy e Luhmann.

Alguns autores pintam na presença de Schleiermacher uma verdadeira revolução, e Gadamer é o primeiro nome da lista. Na tentativa de oferecer uma narrativa histórica mais realista, Grondin (2000) buscou caracterizar minuciosamente as raízes das reflexões hermenêuticas, mostrando que, por trás da aparente ruptura de Schleiermacher, parece esconder-se um longo período de maturação, em que se consolidam gradativamente, em uma obra coletiva e longa, os conceitos que permitem sair de um pensamento tópico e fragmentário (como a catalogação de cânones), passando por sistematizações parciais, para, enfim, chegar a um método sistemático universalizante, que não é a suprema concretização da racionalidade moderna: o sistema abstrato, universal e necessário, descolado das próprias raízes históricas e posto sobre as pernas da sua própria racionalidade (Costa, 2023a).

Para que a hermenêutica saísse do pensamento tópico (catálogo de cânones dotados de autoridade) e ingressasse no pensamento metódico (convertendo-se em um sistema abstrato de regras), foi preciso que a própria metodologia se tornasse objeto de reflexões específicas. Esse amadurecimento da discussão metodológica somente veio a ocorrer no século XIX, quando os teóricos da interpretação se voltaram sobre sua própria atividade e perguntaram-se seriamente acerca do significado dos métodos que eles próprios definiam. O desenvolvimento dessa reflexão metodológica levou a hermenêutica a voltar-se a si mesma e a desenvolver um questionamento sobre a própria metodologia do interpretar, dando aqui o salto final de todas as expressões da racionalidade moderna: o momento da autorreflexividade.

Normalmente ligamos esse passo com a figura de Schleiermacher, que foi o primeiro teórico a tematizar exaustivamente a própria interpretação e a se propor desvendar os modos como interpretamos. Com ele, a hermenêutica deixou de ser uma disciplina auxiliar da teologia, do direito ou da filologia, e passou a ser um campo autônomo de pensamento. Assim, já não se tratava apenas de enunciar as regras canônicas da interpretação jurídica tradicional, ou os hábitos que deve ter um bom leitor da Bíblia, nem de aconselhar os leitores dos clássicos no sentido de evitar compreensões distorcidas. O que Schleiermacher buscou foi elaborar foi um método hermenêutico que evitasse a arbitrariedade e o mal-entendido.

Esse projeto conduziu Schleiermacher a perceber tanto as potencialidades quanto os limites de uma metodologia da interpretação. Em especial, ele percebeu que qualquer metodologia interpretativa não poderia ser reduzida, tal como nas ciências naturais, a um sistema de regras que pudessem ser definidas a priori e aplicadas por qualquer pessoa. Isso ocorre especialmente porque, enquanto o objeto das ciências físicas é a natureza exterior ao homem, o objeto da hermenêutica são significados que existem apenas na interioridade de um autor que pensou aquela significação. Assim, a hermenêutica não tem apenas que estabelecer regras para a compreensão de uma realidade homogênea e acessível aos sentidos, mas tem de estabelecer um método de trabalho para lidar com realidades internas e diversificadas.

Essa consciência de que havia grandes diferenças entre as pessoas, conduziu Schleiermacher a sustentar que, para compreender as intenções de um autor, era preciso uma certa capacidade divinatória que somente era possível com autores perante os quais se tinha alguma espécie de identificação. Portanto, não se trata apenas de buscar o pensamento original de um autor distante no tempo e vinculado a outras culturas, mas de buscar o pensamento interior de um autor que difere do intérprete em muitos aspectos, ainda que seja um seu contemporâneo. Assim, apesar de suas pretensões metodológicas expressas, Schleiermacher não tinha ilusões sobre a possibilidade de reduzir a hermenêutica a um conjunto definido de regras de interpretação, especialmente no tocante ao elemento divinatório (2009, p. 26). Ele chegou mesmo a afirmar que “regras gerais, para a determinação correta da significabilidade, deixam-se fornecer parcamente. Os contextos indicam o acento e o tom do conjunto” (2009, p. 85). Nesse ponto, ele mostrou uma consciência metodológica atípica para o cientificismo de sua época, pois, “quase como nenhum outro, possuía ele um senso agudo sobre o limite do metodizável e sobre a necessidade de uma adivinhação empática no reino da interpretação” (Grondin, 2000, p. 130).

Por tudo isso, causa certo estranhamento que Schleiermacher tenha afirmado expressamente que era preciso elaborar um conjunto coeso de regras desenvolvidas “a partir da natureza da linguagem e das condições fundamentais da relação entre o falante e o ouvinte” (2009, p. 64). Frente a essa aparente contradição, Grondin chegou a afirmar, utilizando uma interpretação claramente divinatória, que “ele deve, de certa forma, ter-se ‘equivocado’ consigo mesmo, quando ele situou a sua própria concepção hermenêutica sob o programa de uma teoria regulamentada” e sugerir que talvez tenha sido “por essa razão que ele teria renunciado a uma edição de sua hermenêutica, na forma de uma teoria artificiosa” (Grondin, 2000, p. 130). Porém, talvez haja outras respostas para essa questão.

Parece certo que Schleiermacher reconhecia a incipiência da hermenêutica de sua época, “o estado ainda caótico desta disciplina” (2009, p. 64), e também que ele entendia ser necessário desenvolver abordagens metodológicas adequadas. Porém, inferir daí que ele considerava possível reduzir a hermenêutica a um conjunto de regras seria ignorar todas as suas advertências em contrário. Tampouco seria razoável inferir que a sua consciência das limitações do método deveria ter implicado uma absoluta recusa do método, pois isso seria contrário à finalidade a que ele se propôs: a orientar “uma juventude ávida de saber”, oferecendo-lhe uma instrução que, “como metodologia propriamente dita”, exponha “sob uma forma adequada e científica toda a extensão e as razões de ser do processo” (2009, p. 26).

Seu objetivo expresso era não apenas descrever a interpretação, mas orientar os intérpretes (especialmente os seus próprios alunos) no sentido de torná-los mais capazes de compreender adequadamente os textos. Assim, pode-se entender que Schleiermacher buscava um método hermenêutico que evitasse a arbitrariedade e o mal-entendido, muito embora fosse consciente de que essa metodologia não poderia ser reduzida a um sistema de regras que pudessem ser definidas a priori e aplicadas de modo impessoal. Especialmente por incorporar em sua teoria o modo divinatório e a ideia de congenialidade, Schleiermacher não abria margem a uma compreensão adequada que se processasse de forma completamente alheia à subjetividade do intérprete. Em seus escritos ele efetivamente elabora uma série de diretrizes para a interpretação, propõe a harmonização entre elementos comparativos e divinatórios, entre elementos gramaticais e psicológicos, e discute largamente o desenvolvimento circular e dinâmico do processo de compreensão. Nessa medida, ele oferece uma metodologia, entendida esta como um sistema de conceitos e de padrões hermenêuticos que sirvam para orientar a atividade prática dos intérpretes.

Esse método, porém, não é um conjunto de regras que, se seguidas à risca, levariam o intérprete a uma compreensão verdadeira. Tal metodologia é impossível na compreensão de uma obra de arte e Schleiermacher sabia disso. Porém, se alguém decidisse seguir o método por ele proposto, embora nada garantisse que esse intérprete chegaria à compreensão adequada, ele teria uma orientação mínima para conduzir-se, seria mais consciente do significado de cada passo seu e, no mínimo, evitaria uma série de incompreensões e interpretações arbitrárias.

Tudo isso não seria pouco, mas de forma alguma o pensamento de Schleiermacher pode ser reduzido a uma elaboração hermenêutica que tentasse estabelecer uma metodologia matematizante e impessoal como a das ciências exatas. Ainda assim, tratava-se de uma espécie de metodologia, no sentido da descrição dos procedimentos adequados. Porém, não havia em Schleiermacher uma redução da verdade ao método, pois a verdade não era fruto da aplicação de um método composto por regras objetivas, mas esse método era apenas uma descrição geral dos procedimentos. Assim, uma de suas maiores influências foi justamente a de abrir o espaço para um pensamento metodológico adaptado às disciplinas humanísticas. Em segundo lugar, até o século XIX a atividade interpretativa é entendia como acessória, pois ninguém se dedica propriamente à hermenêutica. O que existe são juristas, teólogos e filólogos cuja função é conhecer uma verdade e que se utilizam da interpretação como um elemento na busca de descobrir essa verdade. Portanto, a hermenêutica é sempre uma disciplina acessória, que faz parte da formação de alguns especialistas, mas que não se constitui propriamente como um campo autônomo de pesquisas: não se pensa o próprio ato de interpretar, mas apenas se reflete sobre o modo como algumas profissões deve encarar os seus textos.Essa acessoriedade é reforçada pelo fato de que a interpretação era entendida sempre como uma atividade eventual, pois a noção dominante era a de que o sentido verdadeiro do texto normalmente se mostra ao leitor e que a interpretação somente é necessária quando a obscuridade do texto exige um esforço especial de compreensão. Valia, então, a regra de que in claris cessat interpretatio, ou seja, que não há interpretação quando o sentido é claro,

Além disso, em nenhuma delas havia uma reflexão aprofundada sobre os próprios limites e objetivos dessas metodologias, que eram criadas e aperfeiçoadas de modo indutivo, a partir de um amadurecimento dos cânones tradicionais. Somente quando essa sistematização indutiva alcançou um alto grau é que foi possível formular um sistema unificado, organizado de maneira dedutiva, ou seja, organizado em torno de alguns princípios básicos, dos quais o restante do sistema poderia ser extraído por inferências racionais.

4. Hermenêutica e historicidade

A cidade e os símbolos IV
De todas as mudanças de língua que o viajante deve enfrentar em terras longínquas, nenhuma se compara à que o espera na cidade de Ipásia, porque não se refere às palavras, mas às coisas. Uma manhã cheguei à Ipásia. Um jardim de magnólias refletia-se nas lagoas azuis. Caminhava em meio às sebes certo de encontrar belas e jovens damas ao banho: mas, no fundo da água, caranguejos mordiam os olhos dos suicidas com uma pedra amarrada no pescoço e os cabelos verdes de algas.
Senti-me defraudado e fui pedir justiça ao sultão. Subi as escadas de pórfido do palácio que tinha as cúpulas mais altas, atravessei seis pátios de maiólica com chafarizes. A sala central era protegida por barras de ferro: os presidiários com correntes negras nos pés içavam rochas de basalto de uma mina no sub-solo.
Só me restava interrogar os filósofos. Entrei na grande biblioteca, perdi-me entre as estantes que despencavam sob o peso de pergaminhos encadernados, segui a ordem alfabética de alfabetos extintos, para cima e para baixo pelos corredores, escadas e pontes. Na mais remota sala de papiros, numa nuvem de fumaça, percebi os olhos imbecilizados de um adolescente deitado numa esteira, que não tirava os lábios de um cachimbo de ópio.
— Onde está o sábio? — O fumador apontou para o lado de fora da janela. Era um jardim com brinquedos para crianças: os pinos, a gangorra, o pião. O filósofo estava sentado na grama. Disse:
— Os símbolos formam uma língua, mas não aquela que você imagina conhecer.
Compreendi que devia me libertar das imagens que até ali haviam anunciado as coisas que procurava: só então seria capaz de entender a linguagem de Ipásia. (Calvino, 1990)

4.1 Hermenêutica e história

Qual é o ofício do historiador? Ele não presencia os fatos que narra, mas estuda relatos acerca de eventos ocorridos em outros tempos. Nisso, o seu trabalho se aproxima muito daquele realizado pelos filólogos, pois ambos enfrentam cotidianamente o desafio de interpretar textos cujas distâncias (temporal, cultural, linguística, etc.) oferecem uma série de dificuldades hermenêuticas. Nos dois casos, é preciso superar o abismo que se interpõe entre duas culturas diversas, para que o sentido dos fatos passados não seja ocultado pelos valores presentes. Nos dois casos, é preciso construir um sentido global a partir do estudo de fatos particulares, o que torna útil o cânone hermenêutico que exige o ajuste recíproco entre o sentido das partes e o sentido do todo.

A provável diferença é a de que um trabalha como eventos imaginários e outro com eventos reais. Todavia, por maior que possa ser a distância entre realidade e ficção, parece não haver uma radical distinção entre reconstruir o sentido de um texto histórico e de um texto literário: é a própria textualidade que aproxima essas atividades, pois exige o exercício de um modo de compreensão que, se não é o mesmo, é ao menos muito semelhante. Nisso tanto o historiador como o filólogo enfrentam uma dificuldade semelhante à do viajante que aporta em Ipásia: como compreender uma realidade em que os símbolos têm significados tão diferentes daqueles com os quais estamos acostumados?

Quantas vezes o historiador interpreta o passado com a mesma ingenuidade com a qual o viajante foi buscar o sultão no palácio? E quantas vezes as vozes do passado nos parecem ininteligíveis justamente porque o miramos com os olhos do presente, como se ele fosse escrito em uma língua que imaginamos conhecer? Porém, como é possível compreender Ipásia, quando os seus símbolos formam uma língua que nos é tão estranha. Como é possível superar o abismo que se interpõe entre culturas diversas, para podermos compreendê-las?

Compreensão é a palavra-chave nessa aproximação de disciplinas, inclusive porque indica que o ofício do historiador se aproxima mais da interpretação literária que do trabalho desenvolvido pelos cientistas naturais. As ciências ditas modernas trabalham com o método indutivo, que constrói verdades gerais a partir da observação da regularidade da ocorrência de fatos particulares. o método científico é basicamente uma metodologia de verificação da veracidade de hipóteses explicativas acerca da efetiva existência de relações causais entre fenômenos empíricos.

Porém, a história humana não é apenas uma sucessão de fatos regida por relações de causa e efeito que podem ser descritas matematicamente como relações constantes entre certos elementos. Essa descrição da história perde de vista um elemento fundamental: o sentido. Enquanto um físico e um químico se limitam a tecer teorias explicativas que apontam as relações causais entre fenômenos, aos historiadores interessa também compreender o sentido da história. Por sua vez, as ciências humanas não buscam entender o homem como elemento natural, mas como um ser histórico que se diferencia dos outros objetos justamente pelo fato de que as suas ações são dotadas de sentido.

O preço a ser pago pela cientifização positivista do conhecimento humanístico seria o do abandono do sentido. Uma perspectiva radicalmente científica é a darwinista, que não explica o mundo por meio de funções, finalidades, objetivos, mas por meio de um processo de seleção natural que reduz tudo a explicações meramente causais. Com Darwin, mesmo a biologia se livrou da teleologia, pois mesmo a vida e a evolução das espécies podem ser explicadas sem a necessidade de fazer referência a um princípio transcendental. Fazer ciência, nos limites da modernidade, significa descrever o mundo de maneira mecânica, estabelecendo explicações sistemáticas sincrônicas e gerais. Como identifica Habermas, esse tipo de visão teórica tem uma inspiração grega e revela uma metafísica ontológica, pois parte da questão do ser: Conhecer é revelar o ser do mundo, a partir da utilização do logos. Com isso, “o verdadeiro conhecimento tem a ver com aquilo que é pura e simplesmente geral, imutável e necessário” (Habermas, 2004b, p. 22).

A história humana, porém, não é a realização no mundo de leis universais prefixadas, ela não se deixa captar por uma redução abstrata em teorias matematizantes. O saber histórico trata das recorrências assim como do irredutível, do irrepetível, do único. A história é um objeto que não se deixa estudar nos laboratórios científicos, não se deixa apreender adequadamente por leis da indução, revela-se em fenômenos particulares e complexos que não podem ser vistos apenas como a repetição de fatos segundo leis constantes e predeterminadas. a captação dessas individualidades dotadas de significação não é um papel que possa ser adequadamente desempenhado pelo discurso científico positivista porque, em sua reconstrução abstrata do universal, a ciência moderna precisa deixar de lado tudo o que é particular, acessório, contingente, ou seja, tudo que é propriamente histórico.

A percepção dessas dificuldades conduziu alguns pensadores do século XX a negar a cientificidade do próprio saber histórico. Para utilizar uma categoria de Lyotard, a história é um saber narrativo e não um saber científico, e por isso mesmo ele tem outros critérios de construção (Lyotard, 2009). Os saberes tradicionais têm uma estrutura narrativa, pois se constituem em relatos significativos sobre o mundo e não em sistemas abstratos de explicação. A ciência é uma espécie de saber desencantado, construído indutivamente sobre observações empíricas. os saberes narrativos são encantados, pois eles oferecem critérios de legitimidade, padrões de avaliação, sentidos para o agir, modelos de identidades, e tudo o mais que a ciência recusou da tradição por considerar que nada disso é objetiva e racionalmente demonstrável.

Quando o homem fala de si, ele não se descreve, mas se interpreta. o que possibilita essa interpretação não é uma explicação causal, mas uma compreensão dos sentidos dos atos individuais e coletivos, que ocorre por meio da construção de uma narrativa. É claro que o homem também constrói discursos explicativos sobre si mesmo, mas o limite desses discursos é justamente o fato que eles não oferecem uma abertura para a sua autocompreensão. o homem se autocompreende como sentido.

O pensar científico é justamente aquele que observa o mundo como uma rede de relações causais, nas quais o sentido somente pode aparecer como um fenômeno psicológico: faz parte do discurso científico a afirmação de que os homens de certa comunidade percebem um ato como significativo, mas nunca pode fazer parte do discurso científico a afirmação de que um ato tem um determinado sentido. O modelo mecanicista não dá conta da história humana, que pede uma compreensão e não apenas uma explicação. a ciência moderna não dá conta da compreensão, pois ela somente é capaz de lidar com a realidade dos fatos e não com a sua significação. Assim, um saber histórico que pretenda elaborar a história humana como uma narrativa dotada de sentido precisava ultrapassar o limite das explicações empíricas, o que significava romper as fronteiras de uma racionalidade inspirada nas ciências empíricas.

No quadro teórico oferecido por Lyotard, o saber histórico é narrativo e não científico. Utilizando as categorias delineadas neste trabalho, podemos afirmar que o saber histórico é hermenêutico, e não científico. Contudo, em pleno século XIX, por mais que fosse clara a deficiência dos métodos científicos para a compreensão histórica, não havia espaço para a afirmação de um saber racional que não fosse científico. O discurso filosófico estava em crise e as triunfantes ciências naturais eram o modelo incontrastável de racionalidade: positivo é só um outro nome para científico (Comte, 1982). Se ainda hoje essa concepção perdura no senso comum (em que a ciência continua sendo o único saber objetivamente confiável e a filosofia é vista como um exercício nefelibata de abstração), esse era um sentimento ainda mais forte no final do século XIX, quando o conceito de ciência havia sofrido as duras críticas epistemológicas que lhe foram dirigidas ao longo do século XX.

O século XIX foi o ápice do processo de cientificização do conhecimento, no qual o discurso científico firmou-se como o único discurso válido acerca da verdade. Toda disciplina oitocentista almejava ser ciência, inclusive a história e a hermenêutica. Como o desencantado discurso científico era tão mais puro quanto mais próximo de uma descrição causal de fenômenos empíricos, de tal forma que uma ciência da história propriamente dita não poderia encarar a história universal como uma totalidade dotada de significado. A redução da história a explicações causais teria como resultado a perda da própria ideia de sentido da história, que passaria a ser vista como um processo que tem explicação mecânica, mas não teleológica, o que se afigurava inadmissível para quem acreditava hegelianamente que o processo histórico era a realização de uma intencionalidade.

Não deve causar espanto que, frente à incompatibilidade entre os saberes históricos e os modelos matematizantes das ciências naturais, os pensadores novecentistas buscassem constituir modelos alternativos de cientificidade, capazes de assegurar o status de ciência ao seu ramo do conhecimento. A hermenêutica de Schleiermacher, com seu método de compreensão dos sentidos, oferecia um paradigma alternativo que pareceu interessante a alguns pensadores da época. Embora ele próprio não pretendesse que a sua metodologia tivesse aplicação fora da hermenêutica filológica e teológica, seu trabalho inspirou alguns teóricos que buscavam um método científico capaz de lidar com aquilo que não é matematizável, mas histórico. Assim, seu trabalho acabou inspirando (contra suas próprias convicções...) a ideia de que a ciência é método, mas o método científico utilizado pelas ciências do homem pode adotar um modelo que fosse diverso daquele oferecido pelas ciências naturais, mas não menos metódico nem menos científico.

4.2 Da filosofia à ciência

Foi nesse sentido que se desenvolveram os esforços de William Dilthey que, no final do século XIX, propôs a diferença entre as Ciências da Natureza (que são voltadas à explicação causal e matematizante) e as Geisteswissenschaften, ou seja, as ciências do espírito (que são voltadas à compreensão do homem). Como afirma Palmer, Dilthey sustentava que compreensão “era a palavra chave para os estudos humanísticos”, pois enquanto as ciências exatas explicam a natureza, “os estudos humanísticos compreendem as manifestações da vida” (2006, p. 112). Para Dilthey, “explicamos a natureza; há que compreender o homem” (Palmer, 2006, p. 120), pois “a dinâmica da vida interior de um homem era um conjunto complexo de cognição, sentimento e vontade, e que esses fatores não podiam sujeitar-se às normas da causalidade e à rigidez de um pensamento mecanicista e quantitativo” (Palmer, 2006, p. 109).

A aplicação da metodologia positivista às ciências do homem não poderia conduzir à elaboração de um saber adequado, pois a compreensão dos fenômenos humanos exige um outro tipo de abordagem. Porém, as ciências do espírito tampouco podem ser confundidas com a filosofia idealista do iluminismo, na medida em que esse tipo de abordagem filosófica era uma metafísica e não uma ciência. Não interessavam a Dilthey as concepções fenomenológicas de Husserl, que buscavam afirmar que a filosofia era um conhecimento rigoroso como a ciência, mas com objetos diversos: a essência imanente, a própria estrutura metafísica da realidade (Husserl, 1989). O desafio de Dilthey era livrar as ciências do espírito tanto de sua vinculação metafísica (sem o que elas não se constituiriam como ciência) quanto de uma redução positivista (sem o que elas não poderiam compreender seu objeto). Esse não era um desafio pequeno.

A primeira parte dele tem a ver com a superação dos pressupostos idealistas do hegelianismo que dominava as teorias da história. Como afirma Milovic, Hegel teve um importantíssimo papel na valorização filosófica da historicidade, pois ele foi o primeiro grande filósofo moderno a pensar o homem como um ser histórico. Com isso, ele rompeu um padrão que se estendia desde o pensamento grego, que insistia em uma ontologia baseada no esclarecimento nas essências imutáveis e universais do homem e da natureza.

Mesmo Kant, que foi o filósofo mais importante da geração anterior à de Hegel, não pensava o mundo de maneira histórica, pois buscava ancorar seu pensamento nos pontos fixos da subjetividade, que são juízos apriorísticos cuja validade é racional e necessária. Com isso, ele reiterava as posições clássicas e medievais, que buscam a explicação correta no esclarecimento de uma certa ordem natural das coisas (embora, em Kant, a ordem cósmica seja substituída por uma ordem cognitiva individual presente em cada um dos homens).

Essa introdução hegeliana da historicidade na filosofia foi uma inovação relevante, mas que conduziu a um discurso histórico predominantemente filosófico, e não científico. Em vez de uma ciência que se limitasse a descrever o seu objeto, o processo histórico era visto a partir de modelos metafísicos de compreensão, o que resultava em uma narração da história que partia de padrões não-históricos. E, como afirma Gadamer “há muitas formas de pensar a história a partir de um padrão situado fora dela própria” (1997, p. 311). Von Humbold, por exemplo, pensa a história como um processo de decadência da perfeição dos modos gregos de vida; a teologia histórica gnóstica pensa o futuro como a restauração da perfeição dos tempos originais, Hegel pensa a história como a realização do espírito absoluto  (Gadamer, 1997, p. 311). Em todos esses discursos, a história é pensada de uma forma a-histórica, pois o discurso histórico é organizado nas bases de uma filosofia idealista que não se coaduna com um estudo científico das fontes.

Contra esse discurso filosófico da história, buscou-se construir um discurso propriamente científico. Nessa medida, Dilthey converteu um problema ontológico e metafísico (qual o sentido da história?) em um problema epistemológico, ou seja, relativo ao método científico (como compreender o homem em sua historicidade?). Porém, esse novo cientificismo não negava um sentido ao processo histórico, mas afirmava que “a história tem um sentido em si mesma” (Gadamer, 1997, p. 312). Então, em vez de fixar um sentido metafísico necessário para a história, pensadores como Ranke e Droysen se opuseram ao hegelianismo dominante e tentaram identificar uma teleologia que não fosse transcendente (ou seja, não estivesse fora dos processos históricos), mas que fosse imanente (ou seja, que pudesse ser percebida a partir de uma investigação da própria história). Segundo Gadamer, esses teóricos apresentam a história como uma “soma em curso, com o fim de renunciar a qualquer pretensão de se construir aprioristicamente a história do mundo, e com isso acham que estão absolutamente no terreno da experiência” (1997, p. 320).

Essa substituição da transcendência pela imanência é típica de uma perspectiva de cientifização, pois a identificação do sentido imanente deve ser derivada da própria observação dos fatos. Assim, a imanentização do sentido busca manter a possibilidade de tratar a história como um objeto dotado de sentido, mas sem recair no claro anti-historicismo implicado pela definição metafísica de um sentido necessário e apriorístico para o processo histórico. Era preciso radicalizar a afirmação de Dilthey de que “chegamos ao conhecimento de nós próprios não através da introspecção, mas sim através da história” (Palmer, 2006, p. 107). Ficava, então, estabelecido o desafio de um historicismo que se pretendesse científico: definir um sentido histórico (e não a-histórico) para a própria história.

Uma tentativa nesse mesmo sentido foi realizada, no Brasil, por Roberto Lyra Filho, que buscava superar o jusnaturalismo por meio de uma historicização do sentido da justiça (que por sua vez, servia como sentido para o direito). Tendo claro que a estratégia básica dos jusnaturalismos é a fixação de um sentido transcendente, Lyra Filho tomou emprestado do teólogo Tilich a ideia de uma autotranscendência, que ele apresenta como uma espécie de imanência, afirmando que o Ser não está fora da totalidade dos fenômenos, e sim dentro dela (vide Lyra Filho, 1989). Essa transcendência interna não seria uma mera releitura da transcendência externa, que identifica o sentido na história no seu exterior, e não no seu interior. Não se trataria de um renovado platonismo, visto que Lyra continuava negando a existência de um mundo das ideias jurídico, no qual estivessem contidos os valores universais e imutáveis do direito e da justiça. Porém, Lyra faleceu antes de produzir uma narrativa robusta das formas como ele poderia fazer uma descrição objetiva de parâmetros simbólicos objetivamente válidos (Costa e Coelho, 2017).

4.3 Hermenêutica, dialética e método

Que tipo de abordagem seria capaz de identificar, tal como Lyra Filho propunha, um sentido imanente no interior da própria história? Certamente não poderia ser a das ciências empíricas, pois o discurso externo e explicativo não se coaduna com o objeto histórico, na medida em que “a própria história não é, portanto, somente um objeto do saber, mas está determinada em seu ser pelo saber-se. O saber sobre ela é ela própria.” (Gadamer, 1997, p. 323) Essa circularidade autorreferente inviabiliza a utilização do discurso explicativo das ciências, com sua produção de discursos externos que adotam a forma de sistemas sincrônicos.

Potencialmente, o reconhecimento dessa incompatibilidade poderia ter conduzido à negação da cientificidade do histórico, que poderia ter buscado se firmar como um saber alternativo à própria ciência. Porém, essa saída não era admissível no ambiente do final do século XIX, quando reinava um cientificismo que negava qualquer autoridade a um conhecimento que não se qualificasse como científico. Então, tentou-se infundir cientificidade ao saber histórico, convertendo a filosofia da história em uma efetiva ciência histórica.

Esse processo começou com Droysen e Ranke, que propuseram ler a história como um texto, identificando o seu sentido como quem localiza o sentido interno de uma produção literária. Eles se inspiraram nas concepções metodologizantes da hermenêutica e formularam a tese de que era adequado ler a história como um quem lê um texto. Assim, o que caberia à história não seria uma simples descrição dos fatos, mas uma compreensão do processo histórico. Porém, essa perspectiva não era ainda um método, e foi justamente um aluno de Ranke que se inspirou na obra de Schleiermacher para elevar a hermenêutica, de uma metodologia de identificação dos sentidos imanentes dos textos, a uma metodologia de identificação dos sentidos imanentes dos processos históricos. Esse foi justamente William Dilthey, que radicalizou essa posição e tentou fixar a hermenêutica como uma metodologia para as ciências do espírito  (Gadamer, 1997, p. 335).

Foi na obra de Dilthey que se consolidou a “transferência da hermenêutica para a historiografia”, firmando-se a ideia de que “não somente as fontes históricas chegam até nós como textos, mas também a realidade histórica é em si um texto que deve ser compreendido” (Gadamer, 1997, p. 308). Uma saída próxima foi a sugerida por Lyra Filho, que propôs a utilização da dialética, como forma de desvelar o ser do ser em movimento que é a própria história. A dialética de Lyra, tal como a hermenêutica de Dilthey, são apresentadas como métodos para a fixação objetiva do sentido imanente da história, o que implica uma oposição ao sentido transcendente implicado pelo idealismo presente na dialética hegeliana propriamente dita. Em ambos os casos pode-se identificar a presença de um pensamento metodológico inspirado pelo cientificismo do século XIX, sendo que essa influência chega a Lyra Filho mediante a sua explícita inspiração no pensamento marxista.

O discurso das ciências modernas é o discurso do método, pois a metodologia oferece justamente o padrão de verdade utilizado pela ciência. Portanto, a questão de Dilthey, assim como a de Lyra, tinha um forte viés epistemológico: que método é capaz de conduzir a uma verdadeira compreensão? Que tipo de aproximação esclareceria o sentido imanente à própria história e, com isso, serviria como base para uma compreensão histórica do próprio homem?

Essas preocupações metodológicas conduziram tanto Dilthey quanto Lyra ao enfrentamento das aporias de um historicismo metodológico, que terminava sempre ficando espremido entre dois mundos, “a meio caminho entre a filosofia e a experiência” (Gadamer, 1997, p. 336). Hegel introduziu o historicismo, mas sob a égide de um idealismo que garantia um sentido transcendente para a história. Dilthey e Lyra pretendiam uma superação dessa metafísica fixista, mas tomando imenso cuidado para não recair no relativismo absoluto que não enxerga na história um sentido. Portanto, era preciso estabelecer uma forma de identificar de maneira objetiva o sentido imanente da história.

Essa imanentização do sentido da história termina por torná-lo histórico, no sentido de que ele se altera com o curso do processo. Assim, existe uma radicalização do historicismo hegeliano, que pressupunha a existência de um espírito absoluto que funcionava como orientação da própria história. Ambos os autores abandonam a ideia de sentidos absolutos e imutáveis para a história, mas ambos pretendem a possibilidade de um conhecimento objetivo do sentido definido dentro do próprio processo histórico.

Ambos sabiam que a relativização historicista conduzia de contingência a contingência, mas nenhum deles estava disposto a absolutizar o processo e, com isso, dissolver a própria ideia de que a história pode ser compreendida como um todo dotado de significação. Porém, na falta do absoluto metafísico, era preciso erigir alguma outra espécie de absoluto, que servisse como ponto de referência para a afirmação de uma verdade objetiva. Mas como negar o idealismo hegeliano e, ao mesmo tempo, afirmar a presença do sentido objetivo da história? Em ambos os autores, essa tensão não resulta bem resolvida, especialmente porque nenhum deles radicaliza as consequências do historicismo que está na sua base.

De um lado ou de outro, a historicização do homem é acompanhada pela afirmação de que as ações humanas devem ser percebidas como dotadas de uma significação, que pode ser identificada objetivamente, por meio de um método. Para Dilthey, esse método é a hermenêutica. Para Lyra, é a dialética. De um lado e de outro, a validade objetiva do método é baseada em uma espécie de correspondência ontológica necessária (e não contingente, como tudo o que ocorre na história).

Dilthey aponta que “somente conhecemos historicamente pelo fato de sermos históricos”, de tal forma que a consciência histórica é uma forma de autoconhecimento. Com isso, a nossa própria historicidade abre espaço para uma compreensão objetiva da história, inspirada na ideia de Schleiermacher de uma congenialidade na relação entre intérprete e autor, sem a qual não se pode efetuar o salto de uma opinião subjetiva para uma verdade histórica objetiva. Isso faz com que ele estabeleça, como afirma Gadamer, um nexo imediato entre vida e saber, de tal forma que a experiência histórica vivida possibilita um saber histórico que não precisa de uma justificação discursiva (Gadamer, 1997, p. 360).

Essa conexão, porém, não é apresentada como um dado histórico contingente, mas como parte de uma ontologia que liga conhecimento e vida e que dispensa a justificação discursiva do autoconhecimento histórico. É por isso que Dilthey se dedica a fundamentar uma razão histórica, em moldes semelhantes à fundamentação da razão pura que Kant empreendeu. Assim, em vez de apresentar a historicidade do sujeito como uma fonte de limitações para a objetividade do conhecimento histórico, Dilthey considera que “a consciência histórica tem de realizar em si mesma uma tal superação da própria relatividade, que, com isso, torne possível a objetividade do conhecimento espiritual-científico” (Gadamer, 1997, p. 357).

Porém, essa objetividade somente se torna viável na medida em que a razão histórica permita um conhecimento imediato do sentido da história, por meio da própria vivência. Voltamos, então, aos critérios cartesianos de certeza, em que a verdade é dada por meio de uma evidência racional. retomamos o padrão kantiano, que busca na certeza imediata do sujeito em relação a si um fundamento adequado para a investigação das formas da sensibilidade e das categorias do conhecimento. Portanto, em nome de uma metodologização do conhecimento histórico, voltamos com Dilthey a uma ontologização idealista das relações entre sujeito e objeto, que é muito bem identificada e exposta por Gadamer no ponto em que ele fala do “enredamento de Dilthey nas aporias do historicismo” (1997, p. 335).

E as aporias do historicismo em que Dilthey se enreda derivam justamente de ele não aceitar radicalmente as consequências da historicidade do conhecimento. Ele afirmou contra Hegel a necessidade de termos consciência da nossa finitude, mas buscou construir uma verdade objetiva baseada na contingência, pois ele não se podia desligar da pretensão idealista de uma verdade incondicionada. Porém, o que Dilthey propunha era o ideal inalcançável de um discurso interno à historicidade, mas cuja veracidade não fosse historicamente condicionada.

Ele tentou historicizar o sentido história, mas sem historicizar a razão histórica, que deveria permanecer como um ponto de vista a-histórico a partir do qual se pudesse desvendar objetivamente o sentido do processo histórico. Com isso, o método hermenêutico que ele apresenta para a leitura da história não é apresentado como histórico, mas como uma decorrência da própria correspondência ontológica necessária entre o saber do homem e sua vivência histórica.

Lyra Filho opera uma semelhante identificação, pois ele afirma que a dialética descreve a própria dinâmica do processo histórico, o qual somente pode ser percebido dialeticamente porque é dialeticamente que ele se realiza. Assim, há uma dialética tanto nas coisas quanto nas ideias (Lyra Filho, 1989, p. 18) e faz parte da questão ontológica a análise da simetria existente entre o pensamento dialético e a dialética das coisas (Lyra Filho, 1989, p. 13). Assim, é uma relação ontológica entre o pensar e o ser que permite o esclarecimento objetivo da realidade por meio da dialética.

Em ambos os casos, a radicalização de uma historicidade é limitada pela permanência do idealismo transcendental, ainda que convertido em uma espécie de imanência. É o fato de a história seguir um curso dialético inevitável que permite que Lyra apresente a metodologia dialética como instrumento para identificar um sentido objetivamente existente na história e percebido como um vetor de caráter evolucionário (Costa e Coelho, 2017). É o fato de o homem ter uma percepção imediata da sua historicidade que permite que Dilthey afirme a objetividade do conhecimento histórico. De um lado e de outro, a objetividade do conhecimento acerca da história é garantida pela permanência de certas estruturas ontológicas cujo caráter não é histórico e contingente, mas essencial e necessário. Portanto, essas concepções reciclam de maneira velada o idealismo que elas próprias dizem combater.

Por fim, as metodologias propostas, que deveriam dar margem à identificação de um conhecimento histórico objetivo, não se prestam a uma aplicação objetiva. A metodologia de Schleiermacher, na medida em que se utiliza largamente das noções de congenialidade e de interpretação divinatória, não se presta a ser um critério objetivo de validação de hipóteses, pois ele somente opera como uma série de critérios que organizam uma investigação em grande medida subjetiva. Por isso, Gadamer afirma que a experiência histórica, tal como entendida por Dilthey, “não é um procedimento e não possui a anonimidade de um método” (1997, p. 367).

Da mesma forma, a dialética não tem um método definido com o mesmo grau de objetividade das ciências empíricas. Com isso não quero afirmar que eles são equivocados porque não seguem as formas definidas nas ciências empíricas, mas apenas acompanhar Gadamer na constatação de que, se eles conduzem a alguma objetividade, é num sentido muito diferente daquela produzida pela metodologia das ciências naturais (1997, p. 368). Assim, mais do que métodos rigorosos e anônimos de verificação, eles funcionam como padrões de organização de um discurso argumentativo acerca de sentidos, valores e finalidades sociais.

Para usar uma categoria de Perelman, eles fornecem critérios de persuasão e não de prova (Perelman, 1998). Eles organizam discursos argumentativos, e não discursos dedutivos. Eles lidam com questões qualitativas, e não quantitativas. Eles oferecem topoi argumentativos, e não um sistema de verificação. Então, radicalizando a posição de Dilthey acerca das especificidades da autocompreensão histórica do homem como um ser dotado de sentido, as consequências do pensamento metodológico parecem apontar para uma metodologia de argumentação e não para uma metodologia de verificação.

Uma tal construção não tinha espaço no início do século XX, tanto porque não havia sido realizado o giro linguístico que possibilitaria a formulação da ideia de uma verdade pragmática e a consequente abertura para que à argumentação fosse reconhecido um papel epistemológico. Nesse momento, a verdade ainda era uma verdade entendida apenas por critérios semânticos de correspondência com um mundo objetivo, a linguagem era vista apenas como um instrumento para a comunicação de pensamentos e o discurso científico era o único que se compreendia como portador de uma verdade racional.

Nesse contexto, a hermenêutica continuava tendo um viés predominantemente metodológico (ainda que os resultados dessa metodologização da hermenêutica fossem extremamente limitados, como já reconhecia Schleiermacher), entendida como uma forma de pensamento que poderia organizar uma fundamentação científica para o conhecimento das ciências humanas. Porém, uma radicalização do historicismo colocou em xeque essas pretensões metodológicas da hermenêutica e inaugurou o debate contemporâneo acerca da relatividade radical do conhecimento humano. essa radicalização conjunta do caráter linguístico e histórico do homem é por muitos chamada de virada hermenêutica, que consolidou a reflexividade como uma característica fundamental do saber.

4.4 A reflexividade transcendental

A modernidade, seguindo a utopia cartesiana, dividiu a verdade em várias partes supondo que o conjunto de todas elas formaria a imagem do mundo, como as peças encaixadas de um quebra-cabeça. Porém, as várias verdades que tentamos juntar têm perfis que não coincidem. Não temos senão meias verdades, pois nenhuma delas corresponde ao real. Mas a soma de duas meias verdades nunca forma uma verdade inteira, pois elas se aproximam em tensão, sem reduzir-se a uma unidade.

Um dos primeiros filósofos a desconfiar seriamente dessa busca incessante de unidade foi Nietzsche, que chegou a dizer que desconfiava de todos os sistematizadores e os evitava, pois a vontade de sistema é uma falta de retidão (2006, p. 13). Ele não desconfiou só do Sistema, mas de vários outros ídolos da modernidade: Razão, Verdade, Moral, ele anunciou o crepúsculo de todos esses ídolos quando afirmou a morte de Deus (Nietzsche, 2011).

No que toca à hermenêutica, a principal crítica que Nietzsche formulou foi contra a razão moderna e a sua falta de historicidade. Ele percebeu que os filósofos modernos compartilhavam com os antigos uma completa falta de sentido histórico, pois todos eles “acreditam fazer uma honra a uma coisa quando a des-historicizam [...], quando fazem dela uma múmia. Tudo o que os filósofos manejaram, por milênios, foram conceitos-múmias; nada realmente vivo saiu de suas mãos” (Nietzsche, 2006, p. 25).

A filosofia sempre foi acusada de muitos vícios, mas essa investida era nova e radical, pois atacava um dos núcleos do labor filosófico: a busca de esclarecer a verdade das coisas por meio da identificação de elementos universais e imutáveis. Aquilo que não tem história é justamente o que interessa mais à maioria dos filósofos, pois é com base no que é permanente que podemos explicar o mundo e sua pluralidade de acontecimentos contingentes e particulares. O necessário, o universal, a essência, esses pontos fixos sempre foram os lugares em que os filósofos apoiaram as alavancas do seu conhecimento. Na modernidade, esses lugares foram reduzidos a um único ponto: a razão. E, somando-se razão e empiria, temos o conhecimento fundamental da modernidade: a ciência.

A ciência é justamente a negação da história, por meio da redução do mundo a um sistema sincrônico. O conhecimento científico não é reflexivo, pois ele se coloca como uma mirada externa sobre o seu objeto. Ele não fala de si, ele não opera por espelhos. A verdade científica dá-se por uma combinação de evidência e método, pois o conhecimento dos fatos é dado por critérios de evidência empírica, o conhecimento da lógica é dado por uma espécie de evidência racional e o conhecimento das leis naturais é dado por meio da aplicação do método. Assim, no núcleo da verdade buscada pelos cientistas encontra-se a epistemologia cartesiana, que elabora uma metodologia específica de conversão de certezas subjetivas em verdades objetivas. (Costa, 2023c)

Mas o que garante a validade dessa metodologia? A racionalidade da qual ela se reveste. essa racionalidade não se pretende fruto da tradição e de seus preconceitos, mas é compreendida como uma capacidade imanente a todos os homens. Esse tipo de visão não é dotado de reflexividade, na medida em que o homem se coloca como um observador do mundo e tem a sua razão como instrumento para conhecê-lo. Foi essa perspectiva que articulou a revolução moderna contra a tradição medieval, que destituiu o saber hegemônico com as armas da objetividade científica.

O que esse saber científico buscava era sobrepor-se a qualquer tradição. Porém, na medida em que os novos cânones de conhecimento se firmaram, estruturou-se na forma de uma nova tradição: uma tradição racionalista, que se via como portadora de uma verdade universal e necessária, e não como representante de uma tradição cultural historicamente determinada. Quando Hume estabeleceu sua poderosa crítica ao método indutivo, as bases dessa tradição foram minadas, pois ficou claro que a verdade científica talvez não passasse de uma crença coletiva; no máximo, uma crença universal.

Se as relações de causalidade entre os fenômenos não podem ser captadas pelos sentidos (que somente capta os fenômenos) a percepção de regularidades na natureza não passa de fruto de um hábito (por mais que ele seja inescapável), então o conhecimento não poderia ser tão seguro quanto parecia. É nesse contexto que Kant realizou uma revolução filosófica dentro da própria modernidade, buscando levar a sério o fato de que a evidência empírica não é um critério suficiente para assegurar uma verdade científica. Ele fez isso estabelecendo uma crítica do conhecimento tradicional, no qual concluiu que nossos sentidos não nos mostram a coisa em si, pois nossas percepções sobre o mundo são determinadas pelos modos humanos de perceber o mundo.

Com isso, foi dado o passo fundamental para a fixação de uma filosofia da consciência: frente ao fechamento da ligação imediata entre o homem e o mundo e perante a consolidação da ideia de que nossos modos de conhecer definem o nosso próprio conhecimento, tornou-se premente investigar as estruturas pelas quais o homem constrói seu próprio conhecimento. uma das grandes inovações de Kant foi oferecer uma nova descrição de como funciona a nossa razão e de como o homem elabora aquilo que ele chama de realidade.

Nesse novo ambiente, ganhou espaço uma espécie de introspecção, em que a análise dos modos de entender o mundo colocou o homem frente a si mesmo e à necessidade de compreender sua própria consciência. Esse foi um primeiro passo reflexivo, no qual a avaliação racional dos modos humanos de conhecer tornou-se a base das construções de conhecimento. Antes de Kant e Hume, não havia dúvida de que uma observação cuidadosa da realidade conduziria a um conhecimento objetivo porque correspondente à coisa em si. Kant mudou a noção de objetividade, pois o que ele considera objetivo não é o objetivo em si, mas o objetivo para nós.

Esse para nós já é reflexivo, pois envolve uma percepção de que o modo de conhecer influencia o próprio conhecimento. Porém, essa é uma reflexividade transcendental, no sentido kantiano, pois ela busca ancorar a objetividade do conhecimento em uma espécie de ontologia construída pela autocompreensão do homem. O mundo externo não é perceptível diretamente, mas o mundo interno sim, de tal forma que ainda é possível utilizar a evidência como critério de certeza, mas apenas para o conhecimento da estrutura interna da consciência humana.

De certa maneira, voltamos ao socrático conhece-te a ti mesmo, mas sob o pressuposto transcendental de que todos os homens veem o mundo da mesma maneira. A filosofia kantiana é fundada em um princípio de universalização do particular, pois aquilo que é racionalmente válido para um homem deve ser objetivamente válido para todos. Partindo desse axioma, chegamos ao ponto em que o conhecimento do modo como eu vejo o mundo me possibilita saber o modo como todos veem o mundo.

Nessa visão, o modo humano de conhecer (ou seja, a consciência) condiciona nossos saberes, mas ele próprio independe da história, pois corresponde à constituição ontológica do homem. Com isso, a reflexividade transcendental coloca a autocompreensão do homem no centro do processo de conhecimento, mas não historiciza o homem, cuja natureza ainda é vista como um dado a priori. Isso conduz à percepção de que o homem vive dentro do processo histórico, mas que o ser do homem não é definido pela história, mas por sua própria ontologia. É justamente o fato dessa ontologia ser universal, necessária e constante que permite a construção de um conhecimento objetivo do mundo.

Para Kant, a estrutura da consciência humana determinava os limites e a forma do seu conhecimento. Hegel, ao historicizar o homem, já introduziu o problema de que, sendo o homem um produto da história, sua razão individual introspectiva não é capaz de explicar a si mesmo. Ele deixa claro que não basta universalizar o individual. Então, a razão que ele coloca já não é derivada simplesmente da consciência individual, o que o leva a postular a existência de um novo sujeito para a história, que é o próprio Espírito Absoluto.

Assim, o idealismo alemão historicizou a vivência do homem, mas não a sua própria ontologia. É justamente uma certa ontologia da história que permite a compreensão do processo histórico como uma dialética dotada de um sentido definido, pois ele é visto como uma espécie de realização no mundo do espírito absoluto. Assim, por mais que cada indivíduo fosse finito e contingente, a razão humana abria espaço para o entendimento do absoluto que confere ao mundo um sentido, uma ordem, uma unidade. Com isso, a racionalidade, por seu caráter universal, possibilitava a passagem do conhecimento subjetivo para o objetivo: e este era o núcleo da proposta filosófica do iluminismo.

Seguindo a trilha crítica inaugurada por Descartes, os pensadores iluministas se perguntaram sobre a origem das suas certezas, até compreenderem com Kant que o homem é a fonte da sua própria certeza e que não há verdade para além do nosso modo de ver o mundo. Nesse ponto, somente a crença na universalidade da razão poderia nos salvar de um relativismo absoluto, pois a razão era o único ponto fixo que ainda tínhamos para ancorar nosso conhecimento do imutável.

4.5 A historicização da reflexividade

É justamente contra essa constante busca do objetivo no universal que se ergue a consciência histórica, que reconhece a ausência de certezas imutáveis e de verdades naturais. Com isso, o historicismo é o primeiro grande passo para além do projeto iluminista e sua busca racionalista pelos valores e verdades universais e necessárias.

Dilthey já reconhecia que tudo o que existe de objetivo repousa no trabalho da vida: todos os valores de uma sociedade, mesmo aqueles que ela própria considera naturais, são resultados do processo histórico (Gadamer, 2001). Porém, Dilthey não era um relativista, pois se vinculava à tradição historicista alemã que aceitava a autoridade produtora da história, de tal forma que o resultado do processo histórico era entendido como legítimo. Assim, o valor objetivo de uma determinada instituição social não exigia mais a sua universalidade racional, mas apenas sua ligação com o processo que lhe deu origem.

Essa era a mesma postura que, no direito, adotava a escola histórica germânica, representada especialmente por Wilhelm von Savigny. Contra o racionalismo iluminista defendido por autores como Thibaut, o historicismo alemão defendeu o primado das tradições consolidadas, por considerar que o fundamento do direito não está em uma pretensa razão universal, mas no processo histórico mediante o qual se revela o espírito do povo (Volksgeist). Portanto, o historicismo germânico opunha-se ao universalismo, mas de forma algum defendia um relativismo valorativo, na medida em que defendia a legitimidade dos construtos sociais derivados do espírito do povo. Assim, por mais que os valores sociais fossem contingentes (no sentido de que a história poderia ter seguido outros caminhos), a sua validade era entendida como objetiva (na medida em que eles derivam da do processo histórico).

O historicismo predominante no século XIX, de Savigny a Dilthey, não colocou em questão a validade objetiva das instituições historicamente constituídas nem a possibilidade de um conhecimento objetivo da história. Assim, por mais que o homem e a sociedade tenham passado a ser vistos como frutos de um processo histórico, a racionalidade humana ainda era entendida dentro da metafísica iluminista de inspiração kantiana, pois ela era o ponto fixo que possibilitaria uma percepção objetiva da própria história.

Porém, a radicalização desse processo de historicização levou os pensadores do século XX a questionar a própria historicidade da razão. Depois de contestar a universalidade dos valores, os pensadores da historicidade passaram a questionar a universalidade da razão. Será que os critérios de racionalidade são universais ou também são eles uma construção histórica e cultural? Até que ponto é possível sustentar a imediatez do autoconhecimento postulado por Kant e Dilthey? Até que ponto as nossas estruturas cognitivas resultam do processo histórico que nos moldou?

Questionamentos desse tipo parecem levar a uma aporia: se toda compreensão é uma autocompreensão, então a autocompreensão é tanto um pressuposto e resultado do processo de conhecimento. Sendo assim, não há um ponto fixo, objetivo, neutro, a partir do qual seja possível elaborar um discurso científico sobre o homem, ou seja, um discurso externo. Não pode um homem falar dos homens em geral sem falar de si mesmo. Não há um ponto externo ao homem a partir do qual ele possa se compreender de maneira objetiva.

A peculiaridade das ciências do espírito é que elas sempre oferecem uma forma de autocompreensão que se choca com a externalidade do discurso das ciências naturais. É essa inescapabilidade do ponto de vista interno que levou Dilthey a enveredar-se pelos caminhos tortuosos de justificar a objetividade de uma autocompreensão histórica. Assim é que ele se aproximou da hermenêutica, que, distanciando-se do discurso linear das ciências, apresenta-se explicitamente como um discurso circular, que pretende levar às últimas consequências a percepção de que compreender é compreender-se. É justamente essa circularidade que deu relevância à hermenêutica e sua tentativa de compreender o todo pelas partes e as partes pelo todo, numa relação circular que pode conduzir a uma interpretação adequada do significado dos textos.

O cientificismo de Dilthey procurou na hermenêutica uma metodologia de compreensão, acreditando que o método conduziria ao sentido correto do texto. Em especial, o método conduziria ao verdadeiro sentido da história, extraído dos próprios fatos e não aposto aos fatos. Porém, esse historicismo não historicizou o olhar do cientista: o sentido da história deveria existir como um fato histórico a ser desvendado. Para Dilthey, assim como para os seus antecessores, a história humana tinha um sentido objetivo que era necessário desvelar. Nele ainda pulsava a busca positivista por construir o local do observador, o ponto neutro de onde se pode observar o mundo para compreendê-lo de forma adequada. essa meta somente poderia ser atingida por uma perspectiva objetiva, determinada, perene: um olhar científico sobre a história.

Contrapondo-se a essa negação da historicidade, Nietzsche elaborou seu pensamento fragmentário, aforístico e cáustico. Ele abriu portas, destruiu ídolos, apontou novos caminhos. Porém, foi Heidegger quem tomou o espelho e disse com todas as letras: há uma relação circular entre o olho e a imagem. Foi ele que nos colocou inevitavelmente face às ideias de que “o que reconhecemos historicamente, no fundo, somos nós mesmos” e que “o conhecimento próprio das ciências do espírito tem em si sempre um quê de autoconhecimento” (Gadamer, 1997, p. 52).

Heidegger fez isso no contexto de uma revisão da ontologia moderna, na qual ele envidou esforços homéricos na busca de levar a sério a pergunta sobre o ser. Ele deixou claro que havia uma certa inconsistência nas perguntas sobre o ser do homem, especialmente na busca da definição da natureza humana. Essa natureza era vista como um conjunto de características e valores que compõem a essência da humanidade e que, por isso, não são contingentes, mas necessárias. Então, o homem deveria descobrir sua própria natureza por meio de uma observação de si próprio.

Heidegger, porém, deixa claro que os sentidos não estão no mundo, mas são frutos da própria atividade humana, que tende a compreender o mundo mediante a atribuição de um sentido ao ser. O homem não apenas afirma a existência das coisas, mas confere sentido à sua própria existência, atribuindo-lhe uma significação. Portanto, a interpretação do mundo não é uma atividade que envolva a descoberta, mas a atribuição de sentidos. Com isso, a hermenêutica assume uma tarefa diferente do que tinha até Dilthey, pois já não se trata mais de uma metodologia para compreender um autor. Na medida em que a interpretação é vista como uma forma de atribuir sentidos, a hermenêutica se torna o estudo dos modos humanos de compreensão, mediante a elaboração de sentidos para um mundo que, em si, é dotado de existência e não de significação.

Heidegger deixa de tratar a hermenêutica como uma espécie de teoria da interpretação de textos e passa a afirmar que a compreensão é parte da própria condição humana, determinando o nosso modo de atribuir significados à realidade. Portanto, nenhum desses significados é natural, imutável nem perene: todos eles são frutos da própria atividade hermenêutica, que, como tal, tem um caráter circular. Além disso, Heidegger dá um passo relevante na renovação da antiga ideia de que, dentro de um texto, somente é possível compreender o singular a partir do sentido do todo e o todo a partir dos sentidos dos elementos que o compõem. Essa relação circular está presente toda vez que tentamos compreender um texto a partir dele mesmo, o que é um princípio fundamental da atividade interpretativa. Tal circularidade, porém, era vista como viciosa, pois esses movimentos concêntricos nunca levam a uma verdade, pois esta precisa ser baseada em um ponto fixo que lhe assegure objetividade. Então, todo conhecimento ligado a essa estrutura circular não podia pretender o estatuto de ciência porque o saber científico se constitui como um discurso linear e sistemático.

Foi justamente Heidegger quem rompeu essa ideia. Por isso, Gadamer afirma com razão que o ponto culminante da reflexão hermenêutica de Heidegger não foi a identificação da existência de uma circularidade, mas a afirmação de que esse círculo possui um sentido ontológico positivo: não se trata de um círculo vicioso que impede a compreensão objetiva, mas “uma curiosa retrospecção ou prospecção do questionado (o ser) sobre o próprio questionar” (Heidegger, 1988, p. 43). Assim, não pode ser caracterizado como vício o fato de que o ser que reflete sobre si mesmo anda sempre em círculos, pois o resultado da reflexão altera o olhar e constitui o próprio ser que se investiga. Não é possível a autocompreensão senão dentro desse processo circular, dado que fora dele não existe a compreensão do próprio ser e que, portanto, o processo hermenêutico dá-se como um círculo virtuoso que possibilita a existência da própria compreensão (Gadamer, 2001, p. 74).

A preocupação heideggeriana não era esclarecer como compreendermos os textos, e sim como compreendemos o nosso próprio ser. Tratava-se, assim, de uma hermenêutica da faticidade, que continha uma crítica severa aos conceitos de consciência, de essência e de valor, mas que não ultrapassava os limites de uma reflexão sobre a faticidade do ser(Gadamer, 1997, p. 499). Porém, não tardou muito para que fossem feitos esforços para aplicar à interpretação de textos os conceitos hermenêuticos desenvolvidos por Heidegger em sua preocupação ontológica com a finitude do ser e sua autocompreensão. esses esforços foram, ao menos em grande medida, uma decorrência do giro linguístico ocorrido na filosofia na primeira metade do século XX.

5. Hermenêutica e linguagem

Kublai Khan: — Fale-me de outra cidade, insistia.
Marco Polo: — ...O viajante põe-se a caminho e cavalga por três jornadas entre o vento nordeste e o noroeste... — prosseguia Marco, e relatava nomes e costumes e comércios de um grande número de terras. Podia-se dizer que o seu repertório era inexaurível, mas desta vez foi ele quem se rendeu. Ao amanhecer, disse: — Sire, já falei de todas as cidades que conheço.
— Resta uma que você jamais menciona.
Marco Polo abaixou a cabeça.
— Veneza — disse o Khan.
Marco sorriu.
— E de que outra cidade imagina que eu estou falando?
O imperador não se afetou.
— No entanto, você nunca citou o seu nome.
E Polo:
— Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza.
— Quando pergunto das outras cidades, quero que você me fale a respeito delas. de Veneza quando pergunto a respeito de Veneza.
— Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza.
Ítalo Calvino, As cidades Invisíveis, 6  (Calvino, 1990)

5.1 O giro linguístico

No começo, ninguém ligava muito para o verbo. Ou melhor, o verbo era uma questão de retórica e de estética, não de conhecimento. A palavra era vista apenas como a portadora do seu significado e o que interessava aos filósofos era o conceito, e não a linguagem em que ele estava vertido. É claro que todo formulador de textos sempre buscou a palavra precisa, a definição perfeita, o termo adequado, mas isso era normalmente visto como a procura da forma adequada para transmitir os pensamentos.

O apuro linguístico não deixava de ser uma preocupação, mas o problema fundamental da filosofia e da ciência nunca foi entendido como o de elaborar textos elegantes e sedutores, mas textos verdadeiros. Se a busca da perfeição formal é nuclear para os artistas e os retóricos, essa não era uma questão central para os cientistas e filósofos, que concentram suas atenções no conteúdo dos discursos, e não em sua forma. Por isso, apesar de muitos dos filósofos terem sido grandes escritores, o estilo é tipicamente entendido como um simples tempero de discursos cuja função transmitir é ideias verdadeiras sobre o mundo.

Assim seguiu a filosofia da Grécia antiga até o final do século XIX. Aristóteles falava do mundo; Agostinho falava de Deus; Kant falava das formas do conhecimento... a linguagem continuava sendo vista apenas como a forma exterior dos pensamentos gestados na mente humana. sobre as palavras pesava ainda a velha suspeita de que elas raramente dizem o que queremos dizer com elas. A obscuridade dos textos, os sentidos múltiplos e alegóricos, a explosão semântica das metáforas, a criatividade e a confusão dos poetas, as figuras de retórica: a inafastável presença desses elementos fazia com que a linguagem, fosse tratada com certa desconfiança pelos homens do saber, mesmo que ela fosse um instrumento necessário para a reflexão e para a comunicação.

Esse tipo de desconfiança linguística inspirou os pensadores modernos a radicalizar a oposição entre o sentido verdadeiro e sentido textual, levando os hermeneutas do século XIX a postular um primado da significação intencionada sobre o sentido literal. Afinal de contas, o verdadeiro sentido de um texto é aquele que o seu autor desejou transmitir, ainda que escolhendo equivocadamente as palavras. Assim, se há um choque entre o que alguém disse e o que ele queria dizer (e isso ocorre repetidas vezes pelas limitações intrínsecas à linguagem), a interpretação deve esclarecer o sentido intencionado pelo seu autor, em vez de prender-se a uma literalidade enganadora.

No campo do direito, esse primado revelou-se em uma valorização da vontade do legislador. Isso não quer dizer que o sentido literal tenha perdido a sua força, pois o jurista moderno pressupõe que normalmente o legislador consegue dizer em suas leis aquilo que desejava. Porém, toda expressão linguística tem seus limites de transparência, e o processo de aplicação de leis gerais a casos concretos oferece dificuldades que já eram traçadas com clareza desde a Antiguidade (Aristóteles, 1984, livro V). Assim, por maior que seja a capacidade e o esforço do legislador em busca de clareza, a prática jurídica exige uma constante atividade de esclarecimento do sentido e da abrangência das palavras da lei.

O artigo 907 do Código Civil de 2002, por exemplo, estabelece que uma pessoa é obrigada a reparar danos causados, independentemente de culpa, quando “a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. É claro que, em certa medida, o exercício de qualquer atividade gera risco para os direitos das outras pessoas. Afinal, como dizia e redizia Riobaldo, viver é muito perigoso (Rosa, 2001). Mas que nível de risco uma atividade deve causar para que o seu exercício sujeite uma pessoa ao regime da responsabilidade objetiva? Essa é uma pergunta cuja resposta não está na letra da lei e cuja definição precisa ser dada pelo intérprete.

Porém, não é só com a relativa indeterminação da linguagem que os juristas precisam lidar. O art. 5º da Constituição da República de 1988 garante expressamente os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade “aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito”. como fica a situação dos estrangeiros não-residentes? Ou devemos entender que, apesar da limitação sugerida pela interpretação gramatical, seria descabido negar aos turistas estrangeiros os direitos individuais garantidos pela Constituição?

Assim, tanto pela necessidade de haver critérios para suplantar a indefinição da linguagem quanto pela necessidade de recusar a interpretação literal das normas, os juristas do século XIX tipicamente adotaram a postura de que, sempre que houvesse um afastamento entre a palavra dita e o comando intencionado, era esta que deveria prevalecer. Portanto, a norma jurídica não era confundida com a letra da lei, de tal forma que não se deveria permitir que defeitos de forma prejudicassem a validade do conteúdo. Como o conteúdo da norma correspondia à intenção do legislador, e não ao sentido gramatical das palavras que ele escreveu, era preciso elaborar métodos hermenêuticos que garantissem a aplicação efetiva do conteúdo normativo. Assim, o método é o instrumento que tenta garantir a objetividade do acesso ao conteúdo dos discursos (ou seja, ao seu significado), apesar das distorções e limitações que o uso da linguagem impõe a sua forma.

A distância entre forma e conteúdo começou a ser mitigada no final do século XIX, especialmente a partir do momento em que o trabalho de pensadores como Gottlob Frege evidenciou o fato de que o limite dos nossos pensamentos é o limite da nossa linguagem (Costa, 2023a; Frege, 1960b). Um texto não é simplesmente a explicitação de um pensamento pré-linguístico, pois as ideias ocorrem desde sempre dentro de uma linguagem. Talvez os sentimentos não sejam linguagem, mas apenas sensações. Mas todos os pensamentos são expressões linguísticas e, portanto, a linguagem não é a forma exterior, mas a matéria da qual eles se constituem. O pensamento não é traduzido em linguagem, mas é modelado em linguagem: e o limite do escultor é o limite do material com que ele trabalha.

A linguagem, como qualquer outro meio, tem as suas limitações. Um artista precisa conhecer muito bem os limites da argila, para poder modelar esculturas que explorem a potencialidade desse material. A habilidade técnica e a utilização de métodos criativos podem levá-lo a inovar bastante na exploração dos limites da sua matéria, mas não permite que esses limites sejam ultrapassados. talvez a pretensão de garantir a objetividade dos discursos da filosofia e da hermenêutica mediante a elaboração de métodos seja demasiadamente pretensiosa (ou ingênua) (ou ambos). Não porque os métodos sejam desnecessários, mas porque a sua elaboração não é objetiva e a sua aplicação não pode garantir a prometida objetividade, especialmente nas ciências sociais e na filosofia.

Numa época em que a ciência penetra sempre mais decisivamente na práxis social, esta mesma ciência só poderá exercer adequadamente sua função social quando não ocultar seus próprios limites e as condições de seu espaço de liberdade. É justamente isso que a filosofia deve esclarecer a uma geração que acredita na ciência até os extremos da idolatria. É justamente nisso que a tensão entre Verdade e método possui uma atualidade inalienável. (Gadamer, 2001, p. 509)

Autores como Schleiermacher e Dilthey acreditaram que a metodologização do conhecimento hermenêutico e histórico poderia garantir a sua cientificidade. Porém, não se pode exigir de um método que permita ultrapassar os limites da própria matéria trabalhada. Assim, a objetividade do conhecimento científico e da aplicação do direito não pode ser garantida por meio da elaboração de um método adequado para lidar com a linguagem. Então, antes de mais nada, é preciso esclarecer os limites da própria linguagem, esclarecendo devidamente a sua estrutura, suas características, bem como a origem das indeterminações e obscuridades que sempre acompanham o seu uso. Somente assim poderemos saber até onde um pensamento metodológico poderá nos conduzir.

Intuições desse tipo inspiraram uma série de pensadores a pesquisar a relação existente entre os problemas filosóficos e os problemas linguísticos. Em especial, filósofos como Bertrand Russell e os integrantes do Círculo de Viena tentaram identificar na linguagem as deficiências capazes de limitar ou impedir o desenvolvimento do conhecimento humano. Quantos problemas filosóficos não são meros mal-entendidos de natureza lógico-linguística? Por exemplo, a nossa linguagem permite que façamos perguntas tais como “qual a cor do invisível?” e “qual a forma do quadrado redondo?”. Essas questões são irrespondíveis, mas não porque elas sejam difíceis, mas apenas porque elas são mal feitas. É óbvio que o invisível não é algo que tenha uma cor e quadrados não podem ser redondos, e que o simples fato de podermos formular essas perguntas não significa que elas possam (nem mereçam) ser respondidas. talvez as perguntas sobre “os direitos intrínsecos do homem”, sobre “a existência da alma” ou sobre o “significado da vida” sejam tão destituídas de sentido quanto os exemplos anteriores.

Tais expressões linguísticas podem ser poéticas, e a poesia, a arte e a religião são atividades humanas que não apenas merecem todo o respeito, mas talvez sejam o que de mais significativo e importante o homem tenha produzido. Todavia, a filosofia e a ciência não são artes, mas formas de conhecimento que não podem perder-se nas indefinições de uma linguagem que precisa servir tanto para a elaboração de poemas românticos quanto para a realização de negócios e para a formulação das leis da física. Portanto, a melhor forma de imunizar a ciência e a filosofia contra as imprecisões das línguas efetivamente faladas por um povo (as chamadas linguagens naturais) é a formulação de uma linguagem formalizada em que seja possível expressar pensamentos com clareza e rigor.

Portanto, não se trata de apenas estabelecer um método adequado para construir discursos objetivamente verdadeiros, mas de modificar a própria linguagem, pois não há método capaz de tornar a linguagem natural uma coisa diferente daquilo que ela é. Então, para que as ciências possam alcançar o grau de objetividade que elas precisam, é necessário que elas contem com uma linguagem especial, capaz de suplantar as deficiências típicas das linguagens naturais.

As ciências naturais conquistaram esse prodígio quando suas teorias passaram a ser vertidas em linguagem matemática, que é uma linguagem isenta das ambiguidades do português, do espanhol e do esperanto. Especialmente devido à multiplicação dos sistemas matemáticos ocorridos no final do século XIX, passou-se a entender que a matemática não é um conhecimento do modo como o mundo é, mas que as matemáticas são linguagens que utilizamos para descrever o mundo de maneira precisa. Assim, boa parte do sucesso da ciência moderna é devido ao fato de que ela descreve o mundo usando linguagens matemáticas que possibilitaram um novo grau de rigor e que, com isso, nos capacitaram a prever os comportamentos da natureza de maneira muito mais precisa.

Há mais nas ciências do que se pode falar por meio da matemática. Existem os conceitos de tempo, de gene, de substância, de causa, de valor, e nenhum deles pode traduzido em uma fórmula matemática. Porém, eles devem ser estabelecidos de uma maneira tão precisa quanto possível, para evitar que confusões meramente linguísticas afetem nosso conhecimento sobre o mundo. Para os pensadores que assim percebiam o seu papel, a ciência passava a ser uma espécie de discurso: um discurso explicativo pautado por critérios de precisão e sistematicidade.

Fazer ciência é elaborar um discurso, mas o discurso científico não pode ser confundido com o religioso, o mítico nem o poético. Então, era preciso definir os critérios de cientificidade como critérios linguísticos: fazer ciência era descrever o mundo em uma linguagem precisa. Assim, o trabalho prévio necessário a toda ciência era o desenvolvimento de uma linguagem científica adequada, papel esse que era atribuído à filosofia, especialmente porque tal linguagem deveria pautar-se pelas regras da Lógica, que é uma disciplina filosófica.

Essa postura teórica ingressou na história com o nome de empirismo lógico ou neopositivismo. Positivismo porque estava ligada ao objetivo cientificista de ligar o conhecimento do mundo à observação empírica. Neo porque se tratava de uma nova espécie de positivismo, que incorporava expressamente a temática da linguagem. Lógico porque a lógica matemática era o padrão que se buscava impor às linguagens que pretendessem ser científicas. Os pensadores ligados a essa corrente inicialmente buscaram estudar o que eles viam como defeitos das linguagens: ambiguidades, vaguezas, indefinições as mais variadas, paradoxos, antinomias. Identificadas essas deficiências, era possível tentar extirpá-las do discurso filosófico e científico, garantindo a sua integridade e logicidade.

Na filosofia, o nome mais importante dessa corrente é Wittgenstein, que escreveu o Tractatus logico-philosophicus, com o objetivo de circunscrever aquilo que poderia ser tratado racionalmente pela linguagem filosófica. Assim, Wittgenstein reconheceu a existência do inefável, ou seja, de toda a ordem de coisas que escapa de um uso correto e lógico da linguagem: deus, alma, valores universais, direitos naturais, nada disso cabe na linguagem científica e filosófica e, portanto, eles não são conceitos que podem ser articulados em um discurso racional. É claro que eles podem, e devem, ser mantidos nos discursos poéticos e místicos e que é inegável a sua relevância para a humanidade. Porém, sobre eles é impossível qualquer pretensão de verdade, pois eles escapam da linguagem filosófica e, portanto, no tocante a eles devemos permanecer calados. Assim, a ciência e a filosofia não precisam negar o mistério das coisas, mas seria demasiada pretensão imaginar que seria possível traduzir em linguagem lógica tudo aquilo que escapa da racionalidade científica. Sobre esses temas, devemos continuar fazendo poesia e música, e não filosofia e ciência.

Essa postura contrapunha-se claramente à filosofia anterior, com sua tentativa infindável de desvendar os mistérios do mundo. Além disso, ela adotava uma postura claramente cientificista, que reduzia a filosofia à epistemologia, limitando-a a ser uma espécie de reflexão sobre as condições de possibilidade do conhecimento científico. Esse cientificismo não deve causar espanto, pois ele era a tônica dos discursos na época antifilosófica da virada do século XIX para o XX, quando se pregava um abandono da própria filosofia (taxada de metafísica), ou ao menos se considerava que o progresso filosófico consistia na filosofia tornar-se mais científica (Pinto, 1998, p. 25).

Já vimos essa tentativa de cientifização no pensamento de Dilthey, que buscava desenvolver bases epistemológicas para as ciências do espírito. Semelhante postura tinha a fenomenologia de Edmund Husserl, que não criticava a ciência tradicional por sua perspectiva objetivante, mas por adotar um empirismo ingênuo, que deveria ser superado. De toda forma, Husserl tentava caracterizar a filosofia como uma ciência rigorosa, capaz de enunciar verdades objetivas. intento similar tinha o neopositivista Círculo de Viena, que buscava elaborar uma filosofia científica que, como afirma Franca D’Agostini, tinha um duplo sentido: “uma filosofia como ciência, ou seja, como análise lógica da linguagem; e como serva da ciência, exercício rigoroso da clarificação dos conceitos dos quais se serve o labor científico” (2002).

Houve, assim, um giro linguístico, em que as questões relativas à linguagem assumiram uma função preponderante na preocupação dos filósofos. Porém, esse giro não tinha um caráter historicista, pois o que se buscava era a construção de uma linguagem adequada aos parâmetros universais da lógica, e voltada à construção de sistemas de enunciados verdadeiros. Assim, as construções propostas pelos teóricos influenciados por essas escolas eram ligadas à elucidação das estruturas formais que regulam os discursos em geral, e não a busca da compreensão histórica de suas origens nem de seus modos de funcionamento. Além disso, essa tendência era marcadamente inspirada por uma negação da filosofia.

No direito, o principal representante dessa perspectiva linguística logicizante foi Hans Kelsen, cuja teoria pura do direito era uma tentativa de estabelecer uma teoria do direito que não tivesse caráter filosófico (entenda-se metafísico), mas científico (no sentido neopositivista). Uma teoria completamente avessa à história, pois todos os seus conceitos eram ou deviam ser puramente formais: uma tentativa de estabelecer uma linguagem capaz de abarcar toda a experiência jurídica, independentemente dos conteúdos específicos das normas vigentes. Aqui continuam vivas as inspirações gregas, renovadas pelo racionalismo moderno, de identificar as estruturas permanentes por trás dos movimentos do mundo. o papel da ciência e da filosofia é entendido justamente como o de esclarecer essas leis, essas constantes, todos esses elementos invisíveis que formam a base do mundo que vemos.

5.2 Historicidade e linguagem

Contrapondo-se à negação da história representada pelo cientificismo positivista e neopositivista, existe uma linha de filósofos que parte de Nietzsche e passa por Heidegger e pelos existencialistas, afirmando a historicidade do homem e do seu conhecimento. Essa postura anticientífica e historicista é tipicamente qualificada como a filosofia continental, em oposição à filosofia analítica de matriz tipicamente anglo-saxã (D’Agostini, 2002). Porém, por mais que essa divisão persista até os dias de hoje, sendo caracterizáveis diferenças fundamentais na formação típica dos filósofos e dos estilos de discurso envolvidos no labor filosófico (Pinto, 1998, p. 26), as linhas de força que inspiram esses grandes modelos passaram a se encontrar com bastante frequência, especialmente no período que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial.

Um dos maiores responsáveis por essa convergência foi Wittgenstein, que é um dos filósofos da linguagem mais lidos pela tradição continental, especialmente porque ele propôs em suas obras póstumas conceitos linguísticos que se contrapunham à filosofia analítica tradicional e que abriram espaço para uma espécie de historicização da linguagem. Em vez de se preocupar apenas com a formalização da linguagem e da garantia de rigor e precisão necessários para uma linguagem científica, Wittgenstein foi o grande responsável pelo nascimento de uma filosofia da linguagem ordinária, em que a busca não era a de estabelecer uma linguagem purificada, mas de compreender o modo como as linguagens naturais efetivamente funcionam.

O principal conceito que ele desenvolveu foi o de jogo de linguagem (Wittgenstein, 1995), rompendo com a noção cientificista de que a perfeição linguística estava no rigor e na precisão, e afirmando existência de uma pluralidade de jogos linguísticos, cada qual com suas regras e elementos. Segundo Warat (Warat, 1995, p. 63), contrapondo-se à ideia de que a linguagem natural era inadequada ao conhecimento, Wittgenstein passou a defender que faltava ao neopositivismo lógico uma compreensão filosófica adequada dos mecanismos que regem as linguagens ordinárias: enquanto estes estudos se limitavam aos planos sintáticos e semânticos, uma compreensão das linguagens ordinárias dependia de uma análise pragmática.

Essa virada pragmática gera uma abertura para além do cientificismo e da lógica, mas ainda não é uma abertura historicista, pois “a análise pragmática da filosofia da linguagem ordinária não se estendeu aos fatores sócio-políticos” (Warat, 1995, p. 64), ignorando a necessária inserção histórica da linguagem. Porém, a generalização do conceito de jogo construiu uma ponte entre a filosofia da linguagem e a o historicismo continental, na medida em que ela possibilita a percepção das relações sociais como interações linguísticas, mas sem recair no cientificismo logicista do neopositivismo.

A partir desse giro pragmático, a filosofia da linguagem passou a desenvolver instrumentos para uma compreensão linguística de problemas históricos, que gradualmente passaram a integrar o instrumental teórico dos filósofos continentais. Por exemplo, a reflexão sobre o nível pragmático da linguagem permitiu uma conexão das preocupações linguísticas com a crítica da ideologia da Escola de Frankfurt, cujos desenvolvimentos de matriz linguístico estão na base da influente teoria da ação comunicativa de Habermas. Habermas, por sua vez, deve bastante às investigações de Apel, cuja obra tenta articular uma combinação entre a filosofia analítica e a hermenêutica (Apel, 1995; Habermas, 1990).

Inspiração pragmática também tem a arqueologia proposta por Foucault, indo além do estruturalismo (que tinha influências da teoria da linguagem, mas mantinha-se em um nível predominantemente semântico) para investigar na origem dos discursos as relações entre o saber e o poder. O desconstrutivismo de Derrida também ressalta o papel da linguagem, pois somente pode ser desconstruído aquilo que foi construído histórica e linguisticamente (Derrida, 1994). Mesmo a teoria dos sistemas de Luhmann, na qual ainda há uma presença maior de um cientificismo, define as relações sociais como interações linguísticas.

Nas décadas de 50 e 60, ocorre no campo de domínio da filosofia continental uma espécie de universalização do fenômeno linguístico, com um uso cada vez mais ampliado de conceitos ligados à filosofia da linguagem. Essa mesma tendência se opera também no campo do direito, em que a teoria da argumentação de Perelman tenta restaurar a dignidade da retórica, que havia sido posta de lado no ambiente cientificista da modernidade. Na mesma época, Viehweg chamava atenção para o caráter tópico do pensamento jurídico, que não se deixa descrever nos quadros de um sistema de conceitos semanticamente definidos. Posteriormente, outras vertentes linguísticas ganharam força, como a teoria da argumentação de Alexy e as teorias hermenêuticas de Dworkin.

No campo da hermenêutica, o maior protagonista nessa aproximação entre historicidade e linguagem foi Hans-Georg Gadamer, que operou uma espécie de releitura linguística dos conceitos hermenêuticos propostos por Heidegger no campo da ontologia. Assim, mesmo que se tenha inspirado explicitamente na hermenêutica da faticidade heideggeriana, foi de Gadamer o grande esforço no sentido de levar essa renovada preocupação hermenêutica ao campo da interpretação dos objetos culturais, dedicando-se ele especialmente a investigar o modo como interpretamos as obras de arte.

Mas por que a arte, e não os textos jurídicos ou bíblicos, que também fazem parte da preocupação de Gadamer? Em primeiro lugar, porque tanto faz, na medida em que Gadamer propôs uma universalização do fenômeno hermenêutico que permitiria estudar a sua ocorrência em qualquer dos seus âmbitos, pois “a compreensão deve ser entendida como parte da ocorrência de sentido, em que se formula e se realiza o sentido de todo enunciado, tanto dos da arte como dos de qualquer outro gênero de tradição” (Gadamer, 1997, p. 253). Então, tratava-se de uma nova universalidade: depois da universalidade da razão, a universalidade da interpretação, inspirada tanto por Heidegger quanto pelo giro linguístico.

Em segundo lugar, por um motivo estratégico: parece mais aceitável reconhecer o relativismo na interpretação das obras de arte que em outras áreas hermenêuticas, pois estamos já condicionados a não exigir da estética a definição dos cânones objetivos que normalmente se exige das disciplinas dogmáticas como o direito e a teologia. Então, se a interpretação das obras de arte não pode ser submetida a uma metodologia predeterminada (como Gadamer intui e tenta mostrar), por que esse método seria possível em outras áreas? Afinal, de contas, como pode uma pessoa defender consistentemente a subjetividade da interpretação artística e a objetividade da interpretação jurídica?

Explorar o sentido da interpretação dentro de uma área em que o relativismo já era consolidado possibilitava a construção de um discurso que não precisaria bater-se contra as sólidas paredes dos nossos preconceitos dogmáticos. depois de elaborada uma concepção hermenêutica nesse âmbito em que o pensamento é mais livre, parece mais fácil extrapolar o campo artístico mediante a aplicação a outros espaços dos conceitos ali construídos. Gadamer inicia sua obra principal analisando a compreensão da verdade na obra de arte, passa pela avaliação das peculiaridades da literatura (o que o traz para mais próximo dos textos verbais), para somente depois estender essa análise à compreensão nas ciências do espírito.

Como Gadamer descreve a compreensão de uma obra de arte? Em primeiro lugar, ele retoma a ideia de que, quando recebemos uma informação nova, avaliamos esse dado com base nas nossas pré-compreensões. Toda atribuição de sentido teria como base as percepções valorativas dos indivíduos, e essas percepções são uma mistura de algumas crenças individuais com muitas crenças socialmente compartilhadas, que formam o pano de fundo de toda interpretação. Com base nessas compreensões, projetamos um sentido para todo o texto ou situação analisada, projeção esta que pode ser confirmada ou não pelo aprofundamento do processo de compreensão. Segundo Gadamer:

Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete projeta um sentido para o texto como um todo. O sentido inicial só se manifesta porque ele está lendo o texto com certas expectativas em relação ao seu sentido. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente no desenvolvimento dessa projeção, a qual tem que ir sendo constantemente revisada, com base nos sentidos que emergem à medida que se vai penetrando no significado do texto. (Gadamer, 1997, p. 402)

O entendimento do texto envolve, portanto, um constante projetar de sentidos, com base nas pré-compreensões do intérprete. Entretanto, ao mesmo tempo em que uma ideia somente pode ser compreendida por meio das pré-compreensões que uma pessoa já possui, toda informação recebida contribui para a mudança do conjunto das pré-compreensões. Assim, embora sirvam como base necessária para o entendimento, as pré-compreensões vão-se transformando a cada passo.

Para entender essa teoria, é útil apelarmos para o exemplo de um filme que tenha um bom roteiro. Ficam excluídos, desde logo, os filmes em que já se sabe o final antes de começar a sessão, mas não porque este projetar do final do filme nos leve para longe da hermenêutica (pelo contrário, trata-se de um exercício hermenêutico baseado nas nossas pré-compreensões sobre o cinema comercial e seus produtos), e sim porque o exemplo se torna mais esclarecedor ao lidar com exercícios hermenêuticos mais complexos.

Quantas vezes entendemos o significado de uma cena que acontece no início do filme apenas quando chegamos ao final da história? Quantas vezes saímos do cinema relembrando os episódios iniciais e revendo o modo como eles deveriam ser interpretados? Isso acontece porque cada cena particular somente pode ser entendida dentro do contexto da obra completa. Todavia, a obra completa é formada pela sequência dos episódios particulares.

Logo que começamos a assistir um filme, formamos uma série de expectativas com relação ao significado de cada cena que nos é apresentada. Essas projeções de sentido, esses projetos de interpretação, resultam da avaliação do roteiro a partir de nossas pré-compreensões. Todavia, a cada nova informação recebida, essas projeções de sentido vão sendo alteradas, o que implica uma modificação gradual no sentido que atribuímos ao filme. Além disso, cada vez que se modifica a nossa projeção de sentido sobre o filme, mudam também os significados que atribuímos às cenas anteriores.

Como observou Gadamer, “esse constante processo de reprojetar constitui o movimento do compreender e do interpretar” (Gadamer, 1997, p. 402). Nesse processo de vai-e-vem, a nossa compreensão sobre a obra vai sendo alterada, pois temos necessidade de integrar as novas cenas em um contexto coerente; além disso, a nossa compreensão de cada cena particular vai sendo modificada à medida que muda nossa compreensão sobre o filme como um todo. Dessa forma, tal como cada cena não pode ser compreendida fora do conjunto da obra, o filme não pode ser entendido senão a partir da compreensão de cada cena particular e das relações entre elas.

Essa conexão circular entre o entendimento do todo e o das partes é tão aplicável ao cinema quanto ao direito ou a qualquer outro objeto de conhecimento. Na medida em que tentamos harmonizar as informações que recebemos com as que já tínhamos, as nossas visões sobre o mundo são enriquecidas e as nossas pré-compreensões tornadas mais complexas e refinadas. Entretanto, como o conjunto das nossas pré-compreensões forma a base na qual podemos ancorar os novos conhecimentos, a nossa capacidade de compreender é limitada pela extensão e profundidade das nossas pré-compreensões. Em outras palavras, nós temos um horizonte de compreensão, que envolve todos os nossos conhecimentos e funciona como um limite para a nossa capacidade de compreender coisas novas. À medida que nossas pré-compreensões são enriquecidas, esse horizonte é ampliado e nos tornamos capazes de compreender novos tipos de informações.

No momento em que recebemos uma informação nova (p. ex: a cena inicial de um filme) não somos capazes de perceber todas as suas implicações. Um estudante que descobre a existência na Constituição de uma norma jurídica que exige o tratamento igualitário das pessoas que se encontrem em situações idênticas entra em contato com uma informação nova, que aumenta o seu conjunto de conhecimentos. Entretanto, o significado dessa informação se amplia na medida em que o estudante percebe as implicações morais dessa norma, as dificuldades para a sua aplicação na prática, a sua presença no direito internacional e a sua especial constância em decisões judiciais.

“Percebe” é uma palavra ruim, pois indica uma espécie de passividade cognitiva, como se as relações entre a norma e os seus variados contextos fossem simplesmente apreendidas por meio de uma observação inerte. Porém, tais relações precisam ser ativamente traçadas, para que a pessoa se torne consciente das variadas implicações de uma informação dentro do seu horizonte de conhecimentos. E, na medida em que relacionamos essas informações com aquelas que já tínhamos, passamos a conhecer melhor todas elas.

O resultado desse processo, contudo, é sempre provisório, pois os significados do todo e das partes são continuamente modificados sempre que lidamos com uma nova informação. Dessa forma, passamos do particular para o contexto e do contexto para o particular de uma forma cíclica e contínua, motivo pelo qual o processo merece o nome círculo hermenêutico. Assim, uma metáfora mais adequada para descrever a compreensão seria a imagem da espiral, pois, a cada volta, em vez de retornarmos ao mesmo lugar, avançamos para níveis maiores de complexidade. Trata-se, pois, de um processo infinito, sendo impossível afirmar que, em um dado momento, teremos chegado à conclusão definitiva.

A figura da espiral também é enganadora, pois ela sugere que a interpretação evolui na medida em que ela se torna mais profunda (se a espiral desce) ou melhor (se a espiral sobe), o que sugere um movimento rumo a um sentido determinado de perfeição. Porém, isso nos afastaria das críticas com que Nietzsche atacou a ideia de que o conhecimento é melhor tanto quanto mais profundo, crença essa que é arraigada na modernidade. Por isso mesmo, a metáfora usada por Gadamer é a dos círculos, afirmando ele que “a tarefa é ampliar, em círculos concêntricos, a unidade do sentido compreendido” (Gadamer, 2001, p. 72). Então, o processo não é infinito porque ele se movimenta rumo a uma verdade inalcançável em sua perfeição, mas porque as conexões de sentido se tornam mais amplas e densas, e não mais profundas. Para usar uma metáfora botânica de Deleuze e Guattari, esse processo dá-se de uma forma rizomática (que apela para metáforas de ampliação, interconexão e redes), e não axial (que utiliza metáforas de profundidade e proximidade maior com o verdadeiro) (Deleuze e Guattari, 2000).

É quase certo que a interpretação que fazemos das partes iniciais de um livro será modificada várias vezes até que cheguemos ao final da história. Não porque nos acercamos de uma verdade imanente ao texto, mas porque elaboramos uma densa concordância das partes singulares com o todo, que é o único critério hermeneuticamente válido para constatar a justeza da compreensão (Gadamer, 2001, p. 72). Além disso, a cada vez que relemos um livro, novos aspectos abrem-se à nossa compreensão e a ideia que formamos na segunda leitura será sempre diversa da primeira interpretação. Dessa forma, assim como as nossas interpretações sobre as partes vão sendo modificadas à medida que muda a nossa compreensão do todo, num processo infinito e reflexivo.

Colocada a questão nesses termos, Gadamer permite uma radicalização do projeto de uma hermenêutica unitária. Schleiermacher tentou unificar as hermenêuticas teológica e literária, mas excluiu de suas preocupações a jurídica, por esta ser fundamentalmente determinada pelo problema dogmático da aplicação (Costa, 2023c). Essa aplicação, que não exigia uma re-produção do pensamento do autor, mas uma espécie de extrapolação desse sentido, não encontrava lugar na busca de uma hermenêutica científica. Seguindo uma inspiração semelhante, Emilio Betti buscou diferenciar a interpretação em três tipos (cognitiva, re-produtiva e normativa), mas com o objetivo de estabelecer os métodos adequados para a interpretação normativa, típica de disciplinas dogmáticas como o direito e a teologia (Gadamer, 1997, p. 462).

Assim, enquanto Shleiermacher tentou aproximar a hermenêutica bíblica da literária para garantir o seu caráter cognitivo, Betti tentou definir critérios para uma aplicação adequada das normas, que não poderia ser identificada com uma interpretação voltada apenas à cognição do sentido do texto. Gadamer, por sua vez, opõe-se a ambas essas perspectivas, pois ele tenta mostrar que o processo de compreensão não admite uma tal diferenciação entre interpretação e aplicação, pois essas são faces de um mesmo processo unitário, na medida em que o processo circular da compreensão dá-se de forma que elementos ligados à aplicação concreta e à definição abstrata do sentido infuenciam-se reciprocamente (1997, p. 463).

Uma das riquezas da teoria de Gadamer é justamente a de integrar num mesmo processo todos os elementos relevantes para a produção do sentido, o que ressalta a impossibilidade de cindir preocupações cognitivas (ligadas ao sentido verdadeiro) de preocupações dogmáticas (ligadas à aplicação correta). Assim, a inspiração gadameriana nos leva a evitar tanto a negação do aspecto cognitivo da hermenêutica jurídica quanto as tentativas de mantê-la isolada das outras disciplinas interpretativas. Com isso, abre-se um novo espaço para a articulação entre interpretação jurídica e verdade.

5.3 Hermenêutica e verdade

Verdade e método é o nome do principal livro de Gadamer, no qual ele lançou as bases da sua teoria hermenêutica. Para um leitor desavisado, o título pode sugerir que a obra esclarecerá os métodos capazes de conduzir ao conhecimento verdadeiro. Porém, o objetivo de Gadamer é justamente o oposto, mostrar como o processo de compreensão não pode ser reduzido à aplicação de métodos predeterminados. Para ele, a hermenêutica não é nem envolve um método dogmático de interpretação, mas um estilo que organiza o modo humano de atribuir sentidos para o mundo.

Gadamer segue na trilha de Heidegger, reafirmando a ruptura com a tradição hermenêutica que liga verdade e método, cuja expressão maior foi o historicismo de Dilthey, que apresentou a hermenêutica como um método que possibilitaria a superação da distância histórica e temporal, para a leitura da história como um texto. Nesse tipo de historicismo, Gadamer identifica uma ingenuidade que consiste em que, evitando esse refletir sobre seus próprios pressupostos e confiando em sua metodologia, o pensador “acaba por esquecer sua própria historicidade” (2001, p. 81). Assim, a base da teoria gadameriana é a tese de que “um pensar verdadeiramente histórico deve pensar também sua própria historicidade” (Gadamer, 2001, p. 81).

Portanto, o objetivo de Gadamer não era o de oferecer um método interpretativo capaz de revelar o significado do objeto, mas esclarecer o modo como os homens conferem sentidos a sua própria atividade. Por isso mesmo é que ele afirma que o sentido da obra de arte é produzido em uma espécie de jogo que coloca em relação o intérprete e a obra. apenas nesse jogo é que os textos ganham sentido, pois “somente na sua compreensão se produz a retransformação do rastro de sentido morto em sentido vivo” (Gadamer, 1997, p. 262). Então, não há um significado escondido a ser descoberto, descoberto, mas um sentido a ser produzido em um jogo hermenêutico que coloca o intérprete frente à obra interpretada. Nem mesmo o sentido originalmente intencionado pelo autor deve ser entendido como o sentido verdadeiro a ser buscado, pois a interpretação não deve ser entendida, como propunha Schleiermacher, apenas como uma re-produção da produção original de sentido pelo artista (Gadamer, 1997, p. 266).

Se o milagre da compreensão é possível, não é porque existe um sentido imanente à obra, mas pelo fato de que a produção de sentidos pelo intérprete não é uma atividade arbitrária, pois não se pode atribuir aos textos um sentido qualquer. Por isso mesmo é que a ideia de jogo ganha espaço, na medida em que ela indica uma certa ordem (porque todo jogo tem as suas regras), mas uma ordem que não é método unificado, porque todo jogo é uma abertura para as diversas formas de jogar.

Por mais que seja necessário haver critérios de produção de sentido, eles não podem ser reduzidos a um método interpretativo, como deixa clara a radical experiência da interpretação das obras de arte: o sentido de uma escultura não é unívoco nem imutável, o que não quer dizer que seja inexistente. Contudo, ele somente existe como resultado da interação entre o intérprete e uma obra que não fala por si mesma. O significado de uma obra de arte não é simplesmente atribuído (como se ele derivasse apenas da subjetividade do intérprete) nem descoberto (como se ele derivasse apenas da objetividade da obra), mas produzido pelo contato do homem com a obra.

O contato com essa obra nos coloca frente à radical distância ontológica que temos frente ao Outro. Assim, em vez de acentuar o papel hermenêutico de reduzir as distâncias históricas, Gadamer acentuou o fato de que a distância está em toda comunicação, pois ela também se mostra na simultaneidade, pois está ligada ao momento hermenêutico em que nos encontramos com o Outro. O problema da hermenêutica é justamente a compreensão desse Outro, que “rompe a centralidade do meu eu, à medida que me dá a entender algo” (Gadamer, 2001, p. 11). É justamente nessa abertura para o outro que ele identifica o problema fundamental da hermenêutica.

E como é possível compreender o Outro contido na obra de arte? É na resposta a essa pergunta que a hermenêutica gadameriana se define, pois ele afirma que “a tarefa da hermenêutica é esclarecer o milagre da compreensão, que não é uma comunicação misteriosa entre as almas, mas participação num sentido comum” (Gadamer, 2001, p. 73). Se é possível falar que as obras têm um significado, isso não pode ser feito senão em um sentido figurado, pois o sentido não está nas próprias obras, mas é produzido no processo de sua interpretação, inclusive pelo seu próprio autor.

Esse deslocamento do lugar do sentido fez com que a teoria de Gadamer fosse percebida por alguns autores como a defesa de uma espécie de niilismo, que negava a possibilidade da relação entre interpretação e verdade. Porém, essa é uma percepção equivocada, pois o que ele faz não é anular a pretensão de veracidade das interpretações, mas torná-la relativa a uma determinada tradição. Gadamer acentua que o iluminismo pretendeu ancorar a objetividade do conhecimento em uma racionalidade universal, capaz de esclarecer a verdade. A aplicação dessa mentalidade à hermenêutica conduziu à tendência cientificizante, que via no método a garantia da correspondência objetiva entre o sentido imanente ao texto e o resultado da interpretação. Porém, Gadamer rejeita essa universalidade na medida em que ela é baseada em um esquecimento da própria historicidade.

Por meio da afirmação radical de uma autocompreensão histórica, Gadamer redescreve a trajetória do Iluminismo, conferindo-lhe um novo significado. A mentalidade moderna articulou um ataque à tradição medieval, afirmando uma racionalidade individual cujo caráter universal lhe confere uma validade para além de todas as tradições. O que marca a reforma protestante é que ela não propôs uma tradição alternativa de interpretação da Bíblia, mas a negação da própria necessidade de uma tradição hermenêutica. Radicalizando essa posição, os pensadores Iluministas, como Kant, Rousseau ou Hobbes, não se viam como portadores dos valores de sua cultura, mas como esclarecedores dos valores universalmente válidos porque racionais. Nesse contexto, a primazia do método era a garantia de uma verdade fundada na racionalidade e não em uma tradição.

Após séculos de tentativas de criar um lugar para além da tradição, percebe-se que o que se criou foi justamente uma nova tradição: uma nova autocompreensão, uma nova forma hegemônica de conferir significado à própria existência e ação humanas. É claro que toda tradição se coloca como detentora da verdade universal, e não se espera que uma religião deixe de afirmar que os seus dogmas, e somente eles, são objetiva e universalmente válidos. A tradição, seja ela religiosa, cultural ou epistemológica, nunca se posta como tal, pois ela não tem um caráter reflexivo com relação à própria historicidade. E, nesse ponto, a tradição iluminista não se diferencia da católica nem da islâmica nem da medieval.

Essa autoconsciência de que a modernidade é uma nova tradição, conduz a um pensamento renovado sobre o sentido da hermenêutica e sobre o papel da tradição na produção de conhecimento. Se mesmo nós, que vivemos dentro da tradição moderna, não podemos sair de dentro da nossa própria cultura, então as pretensões de veracidade não podem ser planteadas em nível universal, mas apenas em nível cultural. Por isso mesmo, o pertencimento a uma tradição é a condição necessária para uma compreensão que nunca pode se pretender universal sem passar os seus próprios limites.

Toda verdade é contextual, toda interpretação é contextual, toda compreensão é contextual. Todo discurso é interno e, nessa medida, ele pode ter uma validade objetiva na medida em que ele se coaduna com os critérios de veracidade da tradição que define o jogo interpretativo que o intérprete joga. joga sem decidir jogar, pois ninguém escolhe pertencer à tradição em que está inserido, na medida em que nossa subjetividade é constituída especialmente dentro da sociedade em que somos educados — e ninguém escolhe ser educado em uma determinada tradição.

Gadamer não se contrapõe à objetividade da interpretação, mas apenas a sua universalidade. A verdade universal e imutável não encontra espaço no pensamento hermenêutico, embora a verdade seja um conceito operativo dentro de toda tradição interpretativa, pois é com base nela que avaliamos a validade objetiva de uma determinada interpretação. daí vem a ênfase de Gadamer na afirmação de que “a compreensão é menos um método através do qual a consciência histórica se aproximaria do objeto eleito para alcançar seu conhecimento objetivo do que um processo que tem como pressuposição estar dentro de um acontecer tradicional” (1997, p. 462). Portanto, é possível falar em uma interpretação verdadeira, mas apenas no sentido de que ela é adequada aos cânones de uma determinada tradição cultural.

Uma parte relevante dessas tradições hermenêuticas é justamente o conjunto das regras de interpretação vigentes, estejam elas reunidas ou não de modo sistemático. Com isso, torna-se claro que o que Gadamer nega não é a necessidade do método, pois “nenhum pesquisador produtivo pode duvidar de que a pureza metodológica é indispensável à ciência” (2001, p. 509). O discurso metodológico linear pode até ser o modo específico de a ciência falar sobre o mundo, mas esse discurso é mudo sobre o processo de invenção dos novos métodos. Assim, o cientista não reflete sobre a legitimidade dos métodos que ele próprio usa nem os modos de sua constituição, e é nesse ponto que a hermenêutica tem o que dizer, pois ela coloca a autocompreensão (inclusive do cientista) no centro das atenções.

Portanto, a questão da hermenêutica não é negar a validade dos métodos interpretativos, mas compreendê-los historicamente como expressões de uma tradição. Não se trata, pois, de oferecer uma metodologia interpretativa que supere as existentes, mas de compreender adequadamente como essas metodologias operam no processo de compreensão, contribuindo para que o intérprete não se aliene de sua própria subjetividade e historicidade.

5.4 Hermenêutica e linguagem

A filosofia tradicional sempre foi consciente de que a linguagem nos prega peças e buscou a verdade fora da linguagem. Gadamer, porém, sob clara influência da filosofia da linguagem, tenta definir a compreensão como um processo linguístico, pois “a linguagem é o meio em que se realiza o acordo dos interlocutores e o entendimento sobre a coisa” (1997, p. 560). Não existe, portanto, a possibilidade de uma compreensão imediata das coisas, pois toda compreensão é mediada pela linguagem.

Nesse ponto, o pensamento gadameriano se aproxima da ontologia de Heidegger, que determina que o homem é sempre um ser-no-mundo. Não existe o homem em si, a essência humana atemporal, mas apenas uma humanidade que se dá dentro do mundo. Mas esse mundo em que o homem vive, justamente por sua compreensão autoreflexiva, não é composto apenas por um conjunto de objetos empíricos, mas por uma rede de significados: e os significados somente têm lugar dentro da linguagem. Então, “não somente o mundo é mundo apenas na medida em que vem à linguagem, mas a linguagem só tem sua verdadeira existência no fato de que nela se representa o mundo” (Gadamer, 1997, p. 643).

Não é certo que a linguagem represente a realidade (no sentido de ela oferecer uma descrição linguistica de fatos extra-linguísticos), mas nós representamos o real em linguagem (ou seja, moldamos um mundo para nós, que não é composto de fatos, mas de interpretações). Portanto, a realidade humana e uma realidade fundamentalmente linguística, pois nós habitamos a interpretação de mundo que chamamos de Realidade. Assim, a linguagem “é a interpretação prévia pluriabrangente do mundo, e por isso insubstituível. Antes de todo pensar crítico, filosófico-interverntivo, o mundo já sempre se nos apresenta numa interpretação feita pela linguagem” (Gadamer, 2001, p. 97).

Nessa medida, a hermenêutica é incompatível com a crença científica fundamental de que a verdade dá-se por uma espécie de correspondência entre uma frase e o próprio ser do mundo, correspondência essa que pode ser medida objetivamente na medida em que estabelecemos um espaço de observação neutra da realidade. Então, a verdade de um enunciado não se mede por uma espécie de adequação entre o dito e o fato (cuja correspondência o método tenta garantir), mas pela conexão de sentido entre os nossos enunciados e a tradição cultural de onde falamos.

Não há, portanto, um lugar neutro da fala. Nesse sentido, Gadamer afirma que, mesmo quando conseguimos superar os preconceitos e barreiras de nossa experiência e nos introduzimos em mundos linguísticos diferentes, nunca abandomanos nosso próprio mundo. “Como viajantes, sempre voltamos para casa com novas experiências. Como perambulantes, que jamais irão voltar para casa, também não podemos esquecer totalmente” (Gadamer, 1997, p. 560). Então, somos como o Marco Polo de Calvino, que diz algo de Veneza sempre que descreve alguma cidade a Kublai Khan.

Saber desse condicionamento não nos liberta dele. Um certo marxismo propôs a ideia de que o homem, consciente de que seu pensamento é ideologicamente condicionado pela história, poderia livrar-se dessa ideologia e conquistar uma verdade objetiva. Porém, nunca podemos deixar o mundo que habitamos, pois a nossa condição é justamente a de habitar o mundo simbólico em que vivemos. Se a consciência do condicionamento não o cancela, ela pode ter uma função terapêutica. Ao menos parece ser essa a intuição de Freud, que inaugura a psicanálise como um discurso autocompreensivo e circular, que nos ajuda a compreender nosso próprios condicionamentos e a conviver com eles. Nesse ponto, psicanálise e hermenêutica se encontram: a produção de sentidos, derivada de uma autocompreensão, não nos liberta do círculo de condicionamentos que molda nossa subjetividade, mas possibilita uma relação mais transparente com eles.

5.5 Mitologia hermenêutica

Como o mundo verdadeiro se tornou finalmente fábula
  1. O mundo verdadeiro, alcançável para o sábio, o devoto, o virtuoso — ele vive nele, ele é ele. [...]
  1. O verdadeiro mundo, inalcançável no momento, mas prometido para o sábio, o devoto, o virtuoso (“para o pecador que faz penitência”). [...]
  1. O mundo verdadeiro, inalcançável, indemonstrável, impossível de ser prometido, mas, já enquanto pensamento, um consolo, uma operação, um imperativo. [...]
  1. O mundo verdadeiro — alcançável? De todo modo, inalcançado. E, enquanto não alcançado, também desconhecido. Logo, tampouco salvador, consolador, obrigatório: a que poderia nos obrigar algo desconhecido?... [...]
  1. O “mundo verdadeiro” — uma ideia que para nada mais serve, não mais obriga a nada — ideia tornada inútil, logo refutada: vamos eliminá-la. [...]
  1. Abolimos o mundo verdadeiro: o que restou? o aparente, talvez?... Não! Com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente!
Friedrich Nietzsche, O crepúsculo dos ídolos, IV  (Nietzsche, 2006)

A tradição é linguagem e a sua percepção é dada por meio do compartilhamento de narrativas comuns. Nesse sentido, podemos dizer que as tradições contemporâneas têm um caráter mitológico, ou seja, que o seu discurso têm o mesmo caráter fundante das narrativas mitológicas, com as quais os antigos explicavam a si mesmos o seu mundo. Por meio dessas histórias que contavam as aventuras de deuses e mortais, as sociedades transmitiam valores morais (como a dignidade da coragem e o desvalor da vaidade), esclareciam as origens das regularidades naturais (como o ciclo das estações e o movimento do sol). Nesse sentido, a explicação mitológica fornecia uma autocompreensão, na medida em que por meio delas os homens elaboravam sentidos para si mesmos e para a natureza circundante.

Com o tempo, muito da explicação mitológica foi sendo transformada em doutrina, convertendo-se gradualmente de relato em metáfora. A mitologia não se mantinha pela crença efetiva da ocorrência dos fatos narrados, mas pela carga simbólica que os mitos portam: os símbolos de Hércules e de Narciso conferiam sentido ao mundo dos homens pelo seu caráter exemplar e pedagógico, e não pela sua existência histórica, que, afinal de contas, era irrelevante para o cumprimento da sua função simbólica.

Com Platão, que escrevia sempre na forma de diálogos, a explicação se assumiu definitivamente como metáfora: os debates que ele narra e os mitos que ele inventa não pretendem contar as origens do mundo, mas oferecer um relato pleno de significação filosófica. Porém, essa forma literária de fazer filosofia logo perdeu espaço para um novo tipo de discurso: a teoria, que explica a realidade de modo abstrato e conceitual.

No discurso teórico, a explicação do mundo deixou de ser narrativa e passou a ser descritiva: a teoria limita-se a descrever a realidade, esclarecendo a essência de tudo o que existe no mundo físico (astros, corpos, animais) e no mundo metafísico (justiça, verdade, beleza), bem como as relações entre esses elementos. Purificando o mundo dos personagens mitológicos, a teoria buscava esclarecer a própria estrutura da realidade, que era percebida como uma ordem orgânica: o cosmos era visto como um grande organismo, cujo funcionamento adequado dependia de que cada coisa realizasse devidamente as suas funções.

Na tradição medieval, essa ordem passou a ser também normativa, pois as finalidades do homem e das coisas eram estabelecidas pelas leis naturais fixadas pelo Deus cristão. Então, a realidade já não mais era guiada pela volátil vontade de deuses antropomórficos, mas era regida por um conjunto de regras imutáveis e eternas, cabendo ao teórico desvelar as leis naturais que definem o modo de ser do mundo. Porém, permanecia na tradição católica a tensão entre teoria e narrativa, pois é justamente o fato de a Bíblia conter (contar) uma série de narrativas que levou ao problema hermenêutico fundamental da idade média, que era diferenciar a narrativa histórica da alegoria.

Não obstante, o discurso teórico continuava tendo primazia sobre o narrativo, pois era no âmbito da teoria que eram definidos os sentidos corretos para as narrativas bíblicas. Os filósofos e os teólogos não se viam como participantes de um grande diálogo, de uma grande narrativa por meio da qual damos sentidos à nossa própria vida. Eles se viam como participantes de um processo de esclarecimento da verdade, de aproximação de uma realidade transcendente que se pressupunha objetiva e externa às contingências humanas.

A filosofia e a ciência deveriam ser um espelho da natureza, deveriam ser uma imagem precisa daquilo que realmente é (Rorty, 1995). aquilo que realmente é, a essência própria das coisas, não está na história e suas mutabilidades, mas naquilo que permanece constante apesar dos movimentos do mundo. Então era preciso esclarecer as regras imutáveis que organizam o constante movimento do mundo, pois era necessário supor que, por trás da variedade das coisas perceptíveis, havia uma estrutura que dava ordem ao cosmos.

A filosofia e a ciência, portanto, deveriam explicar o mundo por meio de um discurso teórico. Cabia, então, aos filósofos identificação da estrutura transcendente (os fins, os valores, a moralidade e toda espécie de necessidade axiológica ou deontológica), de tal modo que a filosofia continuou enredada nos problemas da metafísica e da eterna busca do em si que fundamenta o real. Já os cientistas abandonaram gradualmente as explicações finalísticas e passaram a adotar uma explicação meramente causal, sob o influxo da noção cartesiana de que a ciência se resume a uma explicação mecânica do mundo.

A construção desse discurso está na origem de um processo de cientifização do conhecimento, que foi do século XVII ao XIX, que nos ensinou a não mais perceber a realidade como uma ordem normativa, mas apenas como uma ordem meramente causal, a ser explicada com uma precisão e um rigor que só a matemática é capaz de conferir. Esse tipo de perspectiva nos legou a física, a química, a genética, disciplinas cujo conhecimento ampliaram imensamente as possibilidades de o homem modificar a si mesmo e de intervir no ambiente que o cerca.

Tudo o que não era conversível em números foi sendo relegado ao campo da poesia, e a racionalidade foi sendo gradualmente reduzida à capacidade de manipulação lógica de fatos empíricos e conceitos abstratos. Essa nova sensibilidade não reconhecia como fontes de conhecimentos válidos a literatura, a arte, a retórica e tudo o mais que não fosse um discurso metodologicamente controlado sobre fatos empíricos. Para a ciência moderna, apenas poderia haver uma verdade, uma racionalidade, um método, um único conhecimento científico, ainda que disperso em várias disciplinas igualmente racionais.

No século XIX, a radicalização desse processo conduziu a uma cientificização de todo o conhecimento, de tal modo que a própria filosofia foi severamente atacada por não ser científica. A filosofia oitocentista continuava oferecendo explicações prescritivas, com base em princípios transcendentes e ordens normativas pretensamente naturais. Se até então a ciência se constituiu como um discurso próprio, diferente da filosofia, o que vimos foi um embate entre ciência e filosofia pelo domínio do discurso verdadeiro sobre o mundo.

Afinal, dentro da grande tendência moderna de reductio ad unum, não poderia haver uma verdade científica e outra filosófica. esse embate foi claramente ganho pelo discurso científico, que relegou a metafísica filosófica ao plano de um idealismo vão, que não podia pretender à verdade. A justificação filosófica da ciência, que Descartes ofereceu no discurso sobre o método, já não era mais necessária. O que se pedia, então, era o contrário: uma justificação científica da filosofia e de todos os outros saberes.

Foi nesse contexto que Schleiermacher pretendeu elaborar uma teologia científica, que os teóricos germânicos formularam a ideia de uma Ciência do Direito, que Dilthey pretendeu justificar o caráter científico peculiar das ciências do espírito. a radicalização desse processo deu-se justamente na primeira virada linguística, com as pretensões neopositivistas de elaborar um discurso filosófico adequado aos padrões de cientificidade. Porém, essa hegemonia do discurso científico foi sendo severamente questionada desde as críticas de Nietzsche à modernidade. Em vez de fazer uma teoria unificada, ele realizou uma série de reflexões tão fragmentárias como as narrativas mitológicas. Em vez de priorizar a razão, ele priorizou a estética, a ação e o desejo, como constituintes do que há de humano no mundo. E, em vez de procurar na ciência os conceitos com base nos quais poderia compreender o homem, foi buscá-los na mitologia e na literatura gregas, recuperando as figuras dos deuses Apolo e Dionísio.

Também a psicanálise, na busca de compreender o inconsciente, encontrou na mitologia arquétipos como os de Édipo e Narciso, que nos servem como poderosas ferramentas para a autocompreensão do imaginário fundante dos indivíduos modernos e das sociedades que eles compõem. o discurso psicanalítico, assumidamente não-científico, nos ajuda a formular narrativas nas quais sejamos capazes de elaborar nossa própria subjetividade.

O imaginário inconsciente fala por meio de símbolos, e é sobre este pano de fundo que conferimos sentido às nossas ações e pensamentos. Por isso, os modos de composição dos nossos mundos simbólicos se aproximam das narrativas mitológicas e literárias. Assim, embora a formação de um universo simbólico até possa admitir uma explicação causal, que mostre as suas origens históricas, o comportamento das pessoas dentro desse universo não se explica mediante relações de causa e efeito, pois os homens se comportam como se fossem reais os sentidos que eles atribuem ao mundo. Essa dimensão simbólica, que o positivismo cientificista é incapaz de desvelar adequadamente, pode abrir-se aos nossos olhos por meio da arte.

É esse universo simbólico social que instaura o imaginário jurídico, em que são definidos os argumentos dogmaticamente relevantes, a função da lei, o papel dos juízes, a finalidade do direito: explicá-lo exige reencantar o mundo com os fantasmas contemporâneos, tais como o contrato social, o poder constituinte originário, os direitos humanos e outros deuses e heróis das nossas modernas mitologias.

A arte diz muito pouco do mundo objetivo, pois ela é assumidamente uma perspectiva criativa e arbitrária sobre o mundo. Mas que resta da objetividade, quando o relativismo historicista nos roubou a Verdade e, ensinando-nos a olhar reflexivamente nossa própria atividade cognitiva, legou-nos a noção de que todo discurso sobre o mundo da vida é uma espécie de narrativa mitológica? Resta-nos, pois, reconhecer o caráter mitológico da objetividade científica e buscar compreender simbolicamente o imaginário social, o que nos inspira a ler a realidade humana como um conjunto de narrativas fragmentárias e simbólicas, e não como um sistema de fatos causalmente entrelaçados.

Com isso, abre-se o caminho de ler o direito como uma narrativa, como um discurso que não apenas esclarece fatos e estabelece normas, mas como um relato mitológico que simultaneamente reflete imaginários e os funda, que cria e consolida os arquétipos com os quais constituímos o nosso universo simbólico, que é a realidade na qual vivemos.

É claro que há também um discurso teórico sobre o direito, e não pretendo negar a sua existência e relevância. Pelo contrário, o meu objeto de estudo é justamente o discurso teórico sobre o direito, mais especificamente o discurso teórico acerca da interpretação jurídica. Porém, parto do pressuposto que esses discursos teóricos são baseados em discursos pré-teóricos de caráter mitológico-narrativo, que definem os valores relevantes a serem defendidos, as funções arquetípicas dos vários atores envolvidos, os critérios de legitimidade.

O imaginário dos juristas, que é uma parte do imaginário social, se organiza em torno de símbolos e não de conceitos, e a mitologia é uma forma de organização do simbólico, pois uma mitologia é uma ordenação de símbolos. a minha intuição é a de que há muito mais teorias do que mitologias, pois várias são as concepções teóricas que tentam realizar, em cada contexto histórico, certas figuras arquetípicas do imaginário jurídico.

Epílogo: hermenêutica e verdade

Verdade
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram a um lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade, Corpo.

A filosofia grega buscou substituir o discurso mitológico pelo discurso filosófico. A modernidade novamente opôs o discurso filosófico à tradição medieval, porém os padrões de racionalidade que ela criou possibilitaram uma posterior negação da própria filosofia, por meio da afirmação da cientificidade. Em todos esses processos, existe um reconhecimento do caráter tradicional e contingente do conhecimento hegemônico, acompanhado pela afirmação de um saber não-tradicional e não-contingente.

A hermenêutica heideggeriana nos chamou atenção para o fato de que não há um conhecimento neutro do ser, de tal forma que toda compreensão é autocompreensão. O reconhecimento dessa circularidade pôs em xeque a metafísica tradicional, fundada em um primado das estruturas essenciais do ser. Porém, a peculiaridade desse movimento foi o de que a negação da tradição anterior não foi feita em nome de uma verdade nova, mas por meio de uma radicalização do perspectivismo: não há verdade que não seja um enfoque, não há ponto fixo para firmar a alavanca metafísica do conhecimento do ser.

Mas é claro que essa concepção heideggeriana não deixa de ser também uma metafísica, pois ela propõe uma certa compreensão do ser, apresentando a hermenêutica como parte da própria constituição ontológica do ser-aí. Como afirma Apel, essa pré-estrutura existencial da compreensão é composta por pressupostos semitranscendentais, no sentido de que eles são baseados em uma autorreflexão do ser sobre o ser (Apel, 2000, p. 29). Essa carga metafísica foi repetida na teoria de Gadamer, que disse expressamente que “a analítica temporal do ser-aí humano proposta por Heidegger, em minha opinião, demonstrou de maneira convincente que o compreender não se limita a ser uma entre as várias maneiras de se comportar do sujeito, mas é sim a maneira de ser do próprio ser-aí” (Apel, 2000, p. 40)

Portanto, a historicidade do ser aí não é uma descoberta, mas uma invenção, para usar aqui a distinção proposta por Foucault, a partir de uma releitura de Nietzsche (Foucault, 2001). A hermenêutica, na medida em que afirma a relatividade de todos os discursos, afirma também a própria relatividade, e precisa oferecer sua descrição do modo humano de compreender como apenas uma das descrições possíveis. Uma das narrativas possíveis, dentro das possibilidades infinitas do compreender.

Como invenção, a hermenêutica é uma das mitologias possíveis. Ela não se fundamenta nem pretende ser fundamentada, pois a fundamentação é justamente a forma moderna de escapar da historicidade, pela afirmação de uma verdade racional a-histórica. Não obstante, ela se apresenta como mais uma narrativa especialmente interessante porque está aberta para a historicidade do homem e para a circularidade de toda autocompreensão. esses pontos, no desenvolvimento da corrente autocrítica da modernidade (ou abertura para uma pós-modernidade, como se preferir), me parecem especialmente importantes.

Assim, não creio que a hermenêutica feche as portas para a metafísica (como era a pretensão da ciência e do neopositivismo lógico), mas ela própria é fundada em uma descrição do processo de conhecimento baseada em uma autorreflexão e não em uma observação externa. Porém, creio que o discurso hermenêutico é bastante sedutor, especialmente no direito, na medida em que esse modo de compreender o compreender possibilita um desenvolvimento dos sentidos normativos que não se prende à busca de uma significação dada a priori (como pregam as teorias iluministas) nem a uma negação da possibilidade do sentido (a que chega o neopositivismo lógico aplicado ao direito).

A partir de uma perspectiva hermenêutica, não há verdade a ser descoberta, mas verdade a ser produzida por meio de uma interpretação historicamente condicionada. Portanto, o que devemos buscar não é um método que nos leve ao real, mas um estilo de reflexão que contribua para a produção de uma realidade adequada (e adequado é um conceito ligado à capacidade de persuasão contingente e não de uma demonstração necessária).

E é justamente na medida em que abre espaço para uma reflexão produtiva sobre os sentidos produzidos nos processos de interpretação que considero que o pensamento hermenêutico é adequado ao enfrentamento das questões contemporâneas acerca do direito, especialmente da interpretação dos textos jurídicos.

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