1. Transformações na ordem natural

Ao longo de milênios, os humanos descreveram seu lugar no mundo a parir da ideia de que existe uma ordem natural (cosmos, tao, rta, ec.), ordem essa que tem uma dimensão normativa (nomos, li, dharma, jus) que deve ser estritamente observada pelas comunidades humanas. A ruptura da ordem natural conduziria fatalmente à desordem, à violência e ao caos, fosse pela intervenção divina, fosse pela inevitabilidade do destino, fosse pelo caráter inexorável do fluxo natural dos acontecimentos.

Desde a criação dos governos, essa ordem natural passou a abranger também a obediência aos governantes. A ordem natural arcaica, ligada às sociedades politicamente igualitárias e socialmente homogêneas, permitia que os valores tradicionais de uma comunidade fossem naturalizados e, nessa medida, interpretados como parte integrante da ordem sagrada do mundo, que se impunha objetivamente a todos os entes naturais.

A invenção dos governos promoveu uma revolução nessa ordem arcaica e nos conduziu à ordem natural antiga, que inseriu as hierarquias sociais hereditárias e a divisão entre governantes e governados como elementos estruturais da ordem natural. Esse é um trânsito que conduz uma tensão constante entre dois princípios da ordem natural: a obediência à tradição e a obediência ao governante.

Não deve causar espanto que essas sociedades tenham desenvolvido uma série de dispositivos voltados a garantir que os governantes observariam as tradições e, com isso, não conduziriam os cidadãos à situação trágica de Antígona: a impossibilidade de observar simultaneamente os ditames da tradição e do governo.

A teoria política radicalmente moderna de Thomas Hobbes tentou anular essa tensão, propondo um primado do governo sobre a tradição. Mas essa era uma equação na qual a relação governante/governado era retirada da ordem natural, mas que não colocava em questão a própria existência da ordem, visto que Hobbes precisava do dever natural de cumprir os contratos como base para a sua justificação contratualista da autoridade política.

Essa versão minimalista e dessacralizada da ordem natural não foi bem recebida pelos contemporâneos de Hobbes, que ainda estavam sinceramente comprometidos com a sustentação de uma ordem natural, que funcionasse pelo menos como um limite ao poder dos governantes. John Locke, por exemplo, apropriou-se da estratégia hobbesiana de justificar contratualmente os poderes do governo, mas operou também uma naturalização da tradição, ao exigir dos governantes que respeitassem os limites estabelecidos pelo direito natural.

Com o contratualismo liberal, operou-se um retorno às teses medievais de que o governo legítimo precisava submeter-se ao direito natural e ao direito comum (common law), pois não era desejável o governo soberano teorizado por Bodin e por Hobbes: o governo desejável deveria ser limitado pelo direito natural e pelas constituições do reino. Logo essa perspectiva foi complementada pela visão de Montesquieu de que era preciso segmentar os poderes das autoridades políticas, para que não existisse no governo um órgão soberano.

Se o contratualismo representou a entrada da teoria política na modernidade, o constitucionalismo representa o seu amadurecimento, equilibrando elementos modernizantes com elementos tradicionais. Na base dessa concepção, estava a ideia de um sujeito naturalmente autônomo e também a ideia de uma ordem  normativa natural, que seria a fonte dos direitos naturais e inalienáveis dos quais nos fala a declaração dos direitos do homem e do cidadão.

2. A exceção e a regra na ordem natural

O constitucionalismo liberal afirma um jusracionalismo que me parece retomar o antigo argumento dos gregos, que é expressamente defendido por Platão na República.

O argumento grego:
Premissa 1. Se não existisse uma ordem natural, o mundo seria incompreensível.
Premissa 2. O mundo é compreensível.
Conclusão: Existe uma ordem natural.

Parece-me que nosso principal legado da filosofia grega é a percepção de que esse argumento é consistente. O aspecto especialmente grego desse argumento é o foco na compreensibilidade do mundo, que não é a abordagem típica de outras culturas.

Ocorre que não é assim tão claro que o mundo seja compreensível. De fato, as culturas antigas pareciam entender que o mundo era prevalentemente compreensível, em seus ciclos incessantes e seus padrões repetitivos, mas que o mundo também era parcialmente incompreensível. Em meio a uma série de fenômenos que sabíamos interpretar e prever, podia sempre aflorar uma ruptura dos padrões reconhecíveis: uma erupção, um terremoto, um eclipse, gêmeos siameses, bezerros de 2 cabeças.

Como explicar essa ruptura? Uma possibilidade é afirmar que se trata de uma falsa ruptura: podemos redescrever as ordens, tornando-as mais complexas, de modo que os eclipses passem a ser previsíveis e que possamos inclusive antecipar que o nascimento eventual de bezerros de duas cabeças é uma raridade estatística que realiza a ordem natural, em vez de infringi-la. Essa é a saída tanto da filosofia grega e da ciência moderna: reconhecer que a ordem natural existe e tentar reconduzir todos os fenômenos naturais a expressões dessa ordem. Queremos prever os terremotos e explicar as erupções vulcânicas, e estamos dispostos a modificar nossas percepções da ordem natural para inserir nela explicações para a ocorrência eventual de supernovas, de gêmeos siameses, de pessoas intersexuais. Talvez a verdadeira ordem natural seja simplesmente mais complexa do que o modo pelo qual nós a descrevemos.

Essa tensão entre a ordem natural verdadeira e as descrições sociais limitadas está na base do desenvolvimento da filosofia grega, que partia do princípio de que o mundo é compreensível e que é bastante possível que a tradição nos ofereça explicações falsas. Na trilha dos gregos, a revolução científica da modernidade europeia marcou um momento de valorização das explicações calcadas em evidências factuais. Nessas duas perspectivas, existe um ceticismo acentuado acerca das narrativas tradicionais e uma confiança no sentido de que uma observação cuidadosa dos fatos pode nos conduzir a compreender melhor a própria ordem das coisas.

Mas existe também outra alternativa, mais antiga que a filosofia e que a ciência e que ainda persiste no mundo contemporâneo: entender que as descrições tradicionais são corretas e que eventuais rupturas podem ser explicadas por meio de referências à vontade de certos agentes intencionais: espíritos, demônios, deuses e outros seres sobrenaturais. Sabemos explicar variações inesperadas nos comportamentos humanos como frutos de uma vontade que é naturalmente volátil. Quando introduzimos seres sobrenaturais em nossas explicações sobre o mundo, podemos chegar a curiosos equilíbrios entre padrões repetitivos e fatos singulares que deixam de ser misteriosos, na medida em que eles representam a irrupção da vontade divina na ordem normal, são a manifestação do milagre ou da fúria, são o prêmio das boas ações ou a punição pelos crimes.

Uma vantagem especial dessa leitura é que ela permite que a ordem tradicional continue seu curso, já que os fatos imprevistos não são interpretados como uma falha em nossas descrições, mas como situações excepcionais que decorrem da vontade de certos entes. Quanto maior a incidência de situações imprevisíveis e calamitosas (epidemias, invasões, secas, doenças, governantes que se convertem em tiranos), maior tem de ser a importância da providência divina (ou de conceitos correlatos) em nossos modelos explicativos.

Quanto maior a relevância da providência divina, menor a nossa confiança na segunda premissa: a de que o mundo é compreensível. Mas uma cultura dotada de uma forte dimensão de intervenção divina voluntarista não perde a noção de ordem natural, apenas a enriquece no sentido de indicar que é absolutamente natural a multiplicação de intervenções divinas, que tornam o mundo pouco propício a ser compreendido por meio de uma racionalidade reconhecedora de padrões recorrentes.

De fato, o sistema gerado por essa combinação se torna muito robusto, pois toda explicação prevista entra no campo das regularidades naturais e todo fato imprevisto entra no campo das exceções intencionais, o que não deixa nenhum fato sem explicação. Inobstante, esse é um tipo de sistema que gera respostas instáveis, pois não há critérios muito claros para determinar o que é intervenção da providência e o que é a operação da ordem natural.

O argumento da patrística
Premissa 1. O mundo foi criado por um deus absolutamente perfeito, então ele é ordenado.
Premissa 2. O absoluto divino é incompreensível pelos homens
Conclusão: A ordem natural é incompreensível pelos homens.

A emergência da filosofia escolástica, com sua revalorização da razão e das regularidades racionalmente perceptíveis. No sistema de Tomás de Aquino, a emergência de um governante tirano é percebida como uma manifestação da providência divina e, por isso, os cidadãos não teriam um direito de insurgir-se contra eles. Porém, se o tirano fosse morto por um dos nobres ligados a ele, isso seria também entendido como manifestação da providência divina. Inobstante, Tomás de Aquino buscou estabelecer certos limites em que o exercício da razão poderia indicar as regras obrigatórias (o Direito Natural) das regras que somente podem ser compreendidas como decorrências da providência divina (o Direito Divino, contido nas revelações das escrituras).

Assim, ele faz uma ligeira revisão no argumento patrístico, inserindo uma participação humana na razão divina que possibilita que a racionalidade humana compreenda racionalmente uma parcela da ordem natural. Esse acréscimo nos oferece o argumento escolástico, em que a razão é equilibrada com o respeito à revelação:

O argumento escolástico:
Premissa 1. O mundo foi criado um deus absolutamente perfeito, então ele é ordenado.
Premissa 2. O homem é feito à imagem e semelhança do deus absoluto.
Premissa 3. A razão humana é uma espécie de participação humana na razão divina.
Premissa 4.  O absoluto divino é parcialmente compreensível naquela pequena parte em que os homens participam da razão divina.
Conclusão: A ordem natural é parcialmente compreensível pelos homens.

A partir do renascimento, essa esfera de cognoscibilidade da ordem natural vai crescendo e as referências à providência divina vão sendo deixadas de lado, até que retornamos a um curioso equilíbrio: a modernidade europeia não negou a existência de deus nem a operação da providência, mas buscou explicar o mundo como se deus não existisse, o que fez renascer na prática o argumento grego:

O argumento moderno:
Premissa 1. Se não existisse uma ordem natural, o mundo seria incompreensível.
Premissa 2. O mundo é compreensível, exceto no que toca à divindade.
Conclusão: Existe uma ordem natural que é compreensível, exceto nos assuntos divinos.

Esse arranjo da modernidade deixa espaço na ordem natural tanto para as regularidades físicas quanto para a racionalidade.  A observação da regularidade física nos permite falar com segurança sobre a ordem natural do mundo. Mas a observação da própria racionalidade nos permite falar de certos princípios valorativos e de certas relações sociais que, por serem racionais, também são naturais. Com isso, a modernidade reproduz a nossa velha tendência de naturalizar as relações sociais que nos parecem necessárias para uma organização racional da sociedade: a família, a propriedade, o contrato.

3. A formação do direito moderno

Houve momentos históricos em que o direito era a expressão dos costumes consolidados em sociedades que ocupavam territórios relativamente pequenos e dotados de homogeneidade cultural. No imaginário típico dessas culturas, como em toda organização tradicional, os valores tinham um caráter absoluto e inquestionável, e os modos corretos de agir eram aqueles reconhecidos pelos costumes. E o costume ninguém tinha autoridade para modificar, nem mesmo os chefes políticos, que não podem alterar os valores sobre os quais se assentam tanto o seu poder. Essas autoridades até podiam transgredir certas regras sem sofrer punições, mas não fazia parte do seu imaginário a possibilidade da mudança da norma, pois a tradição é sagrada, inclusive aos seus próprios olhos.

A sacralidade da tradição impede o seu questionamento e, nessa medida, não possibilita o surgimento de uma mentalidade reflexiva e histórica, capaz de perceber que somente existem valores criados pelo próprio homem. Isso não quer dizer que os homens criam intencionalmente os seus próprios valores, mas que eles surgem como resultado de processos culturais que ocorrem na convivência humana. Porém, em toda sociedade tradicional, os valores não são percebidos como culturais, mas como naturais, no sentido de que a sua validade independe da cultura e que, por isso, tampouco pode ser alterada por meio de decisões políticas.

Por isso mesmo, o processo de modernização do direito pode ser encarado como uma destradicionalização do direito, que é gradualmente trasladado do campo dos costumes para o campo da política, em uma passagem que modifica profundamente a percepção das relações entre o direito e o indivíduo. Como expressão coletiva, o direito consuetudinário era a expressão de uma determinada tradição cultural, cuja imposição heterônoma às pessoas que compõem a comunidade dispensava qualquer tipo de justificação, pois estava no campo da obviedade. Quer dizer, não existe, nas sociedades tradicionais, a construção de um lugar de fala a partir do qual o indivíduo poderia questionar a validade das obrigações que lhe eram impostas pelo costume. Com isso, a fixação das normas jurídicas não era um atributo da política (exceto para o direito acerca da própria administração do poder), pois não era uma questão de decisão.

Esse era o mundo do Capitão Rodrigo Cambará, que, no começo do século XIX, bateu-se em duelo de facas com o filho do Coronel Amaral, chefe político de Santa Fé, uma cidade no interior dos pampas gaúchos (Veríssimo 1997). A luta foi travada em um lugar ermo, pois o duelo era proibido pelo direito estatal, embora reconhecido pelos costumes. Ambos os participantes haviam deixado suas pistolas na cidade e prometido lutar apenas com armas brancas. Porém, ao sentir que era inevitável a derrota, Bento Amaral atirou contra o Capitão e fugiu. Essa traição não era admitida nos códigos jurídicos e morais vigentes e, por mais que ninguém tenha punido o jovem filho do Coronel, a imoralidade da traição era evidente para todos, inclusive para seu pai. Assim, a regra que veda a traição não era percebida por nenhum dos personagens deste drama como uma norma que pudesse ser alterada por meio de uma decisão política. E as regras costumeiras sobre o duelo continuavam sendo válidas, apesar de serem excluídas pelo direito estatal vigente, pois Érico Veríssimo situa esses acontecimentos numa época em que poder central não tinha a possibilidade de se impor sobre a rede de autoridades locais que governava cada região do Brasil.

O desenvolvimento do direito moderno vai mudando gradualmente essa situação, pois ele faz parte de um processo de unificação do poder, em que as normas legisladas passaram a excluir cada vez mais eficazmente os costumes locais que lhe eram contrários. Esse foi o caso da proibição do duelo, uma das primeiras atitudes dos Estados em sua tentativa de monopolizar o uso da violência social. Também foi o caso da exclusão das milícias armadas que atuavam em nome das autoridades não-estatais, como era o caso dos cangaceiros, contada com maestria no Grande Sertão: Veredas, cujo pano de fundo é a substituição do poder descentralizado dos coronéis pelo poder centralizado do Estado, que impôs uma nova ordem ao Sertão, com sua polícia e seu exército. E quem nos conta essa estória é Riobaldo, convertido de chefe de bando em um respeitável fazendeiro na nova ordem estatal e legislada (Rosa 2001).

Na Europa, porém, a passagem do direito costumeiro para o legislado, foi mais lenta, mais antiga e não se deu de maneira direta. Se o Estado brasileiro do início do século XX já impunha seu poder por meio de um direito codificado (e a codificação do direito civil antecedeu inclusive a estatização do direito em muitas regiões do país), isso foi porque ele atuava inspirado por um modelo cuja consolidação na Europa foi fruto de processo de centralização longo e gradual, em que foram moldados os Estados modernos. Esse processo remonta ao séc. XIII, marcado por uma série de transformações sociais e políticas que determinaram a decadência do feudalismo na Europa ocidental e um paulatino fortalecimento do poder do Estado, acompanhado por uma crescente centralização do poder político nas mãos dos monarcas e do poder econômico nas mãos da burguesia. Essa nova sociedade que surgia não se fundava na afirmação das autoridades locais, mas na criação de Estados compostos por territórios amplos e integrados por regiões com costumes e valores diferentes. O que dava unidade a esses estados não era a homogeneidade cultural, mas a submissão a um único soberano, o que exigia estratégias jurídicas que superassem o localismo das soluções consuetudinárias e dessem margem a uma organização mais homogênea dos Estados nascentes.

Era preciso incorporar elementos jurídicos que superassem a dimensão notadamente local dos costumes, que tipicamente estruturam a vida de sociedades culturalmente homogêneas e têm um estreito âmbito de validade territorial. Porém, quando vários ordenamentos consuetudinários passam a ser regidos pela a mesma autoridade política, o exercício do poder exige uma certa uniformidade de regulação, o que faz com que ganhem relevo elementos que têm a potencialidade de oferecer uma certa unidade jurídica a comunidades heterogêneas e a grandes territórios. Tais elementos são justamente aqueles fundados na autoridade central, e não nos costumes locais. Assim, na medida em que os reinos europeus passaram a abranger áreas de costumes jurídicos muito diversos, o que ocorreu especialmente a partir do século XIII, adquiriram relevância os elementos que poderiam servir como padrões de unificação que permitissem o exercício centralizado do poder em uma sociedade heterogênea.

Naquela época, o grande modelo que se mostrou capaz de organizar essa nova sociedade foi o direito romano, que era o direito de um império unificado e que foi utilizado como uma espécie de modelo para a orientação do desenvolvimento de um novo direito, mais adaptado à realidade política e econômica que se consolidava. Houve, então, um renascimento dos estudos romanísticos. Especialmente na recém fundada universidade de Bolonha, passou-se a estudar o Corpus iuris civilis, uma compilação de textos romanos realizada no século V por ordem do imperador Justiniano, a qual passou a ser a base da formação dos juristas e serviu como alicerce para a construção do direito europeu moderno. Assim, começou a ser formada uma classe de juristas que tinhas sua formação baseada no direito romano, o que implicou a transição de um modo de pensar enraizado no particular (pois os costumes eram fruto das concepções e valores cristalizados na sociedade medieval) para um pensamento de matriz universalizante, que buscava retirar do direito romano padrões aplicáveis de maneira universal.

Essa universalidade rompe os padrões de pensamento do direito tradicional, que não pretende ter aplicação fora do seu próprio campo de abrangência cultural. O direito romano não é válido porque está baseado nas tradições, mas porque se trata de um direito superior, cuja validade não deriva dos costumes, mas do fato de tratar-se de padrões jurídicos corretos. Essa adoção de um padrão de correção que suplanta os valores das tradições enraizadas localmente é um dos principais elementos da construção do direito moderno. Porém, não se tratou de uma ruptura com o modelo anterior, mas de uma transformação gradual, que partiu inicialmente de um certo equilíbrio entre o universal e o particular, de uma harmonização entre a tradição local (representada pelo direito costumeiro) e de uma ideia de universalidade (implícita no estudo do direito romano). Esse equilíbrio era obtido especialmente porque durante muito tempo o direito romano somente foi aplicável de maneira subsidiária, ou seja, ele somente era utilizado onde o direito costumeiro local era insuficiente para resolver os conflitos. Porém, o direito romano foi gradualmente ganhando espaço na mentalidade dos juristas, o que gerou uma perspectiva cada vez mais vinculada aos imperativos de universalidade e abstração que culminaram no jusracionalismo do século XVIII.

Inicialmente (séc. XIII e XIV), os textos romanos foram tratados praticamente como textos sagrados, com incontestável autoridade, pois traziam o conhecimento de uma época áurea do passado e eram dotados de uma sofisticação jurídica inigualável nos tempos de então. O tratamento dado a esses textos era o de um respeito cerimonioso e a primeira grande escola de juristas a estudá-los limitava-se a explicar, mediante glosas (comentários colocados às margens dos textos), o sentido de cada uma das frases e expressões usadas no Corpus iuris civilis, motivo pelos quais esses juristas são chamados de glosadores. Porém, com o tempo, foi ganhando espaço a ideia de que não bastava esclarecer o texto de forma fragmentária, pois, por maior que fosse a sabedoria jurídica romana, a aplicação do direito romano aos casos concretos ocorridos na Europa do séc. XV (período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna) exigia uma adaptação dos textos às novas situações. Assim, os juristas que enfrentaram os problemas da adaptação do direito romano à realidade da época se impuseram o desafio de superar o modo tradicional de análise fragmentária dos textos e passaram a construir um conhecimento jurídico mais sistematizado, induzindo conceitos gerais a partir das regras romanas, conceitos esses cuja generalidade e abrangência permitia sua aplicação às situações contemporâneas.

Não se tratava mais de simplesmente aplicar as regras romanas às situações atuais, mas de entender os institutos romanos, constituídos por conceitos extraídos da multiplicidade fragmentária dos textos do Corpus iuris, e não pelas próprias regras. É essa passagem do nível dos textos em si para os nível mais abstrato dos institutos que podiam ser extraídos dos textos que marca o surgimento da escola dos comentadores ou pós-glosadores (séc. XV e XVI), cujo principal trabalho foi o de proporcionar uma análise integrada das fontes romanas, criando um conhecimento jurídico cada vez mais sistematizado e abstrato (Hespanha 1997:129). Passou-se, gradualmente, de um estudo exegético constituído basicamente de comentários a textos isolados, para uma análise sistematizada do direito romano. Além disso, cada vez mais os juristas passavam da simples descrição das fontes históricas do direito romano, para um estudo do então denominado usus modernus pandectarum, ou seja prática atualizada do direito romano, que implicava uma leitura renovada das fontes romanas adaptando-o às novas necessidades sociais e relacionando-o com o direito legislado e consuetudinário (Wieacker 1993:225).

Esse esforço de sistematização prosseguiu nas escolas jurídicas até o século XVII, momento em que o passo definitivo no sentido da construção de um sistema jurídico autônomo foi dado pelos jusracionalistas, que libertaram o direito de sua vinculação estrita ao direito romano e defenderam a criação de um sistema jurídico baseado na própria razão. Tal processo de autonomização entre o sistema jurídico e o direito romano começa com Hugo Grócio no século XVII, passa por Hobbes, Leibniz, Puffendorf e culmina na obra de Christian Wolff, que, inspirado nos ideais racionalistas do iluminismo e no modo matemático de argumentar mediante deduções, elaborou em meados do século XVIII uma exposição sistemática do direito more geometrico (ao modo dos geômetras), por meio “de uma dedução exaustiva dos princípios de direito natural a partir de axiomas superiores até os mínimos detalhes”(Wieacker 1993:362).

Contudo, como bem adverte o historiador português António Hespanha, apesar de os jusracionalistas do século XVIII se oporem ao modelo romanista que os precede, eles somente puderam elaborar um sistema jurídico autônomo porque estavam calcados na progressiva construção sistemática do usus modernus. Assim, se Wolff foi capaz desenvolver um sistema dedutivo tão sofisticado, era porque naquele momento o sistema já estava praticamente perfeito, com seus axiomas elaborados: era possível, então, que o pensamento jurídico se limitasse a explicá-los de forma dedutiva.(Hespanha 1997:123)

Essa forma de sistematização inaugura o pensamento jurídico moderno: construído a partir de uma depuração dos conhecimentos tradicionais, o jusracionalismo negou precisamente o seu apego à tradição, rejeitou sua ligação com a autoridade tradicional e buscou reconstruir seus fundamentos a partir de referências meramente racionais. Na medida em que se opõem à tradição que lhe deu vida e busca afirmar-se como uma teoria universalizante fundada na razão objetiva, o jusracionalismo se afirma como radicalmente moderno.

Mas a contribuição mais perene do jusracionalismo não foram os múltiplos sistemas de direito natural (que, no fundo, repetem basicamente a tradição romanista e, portanto, não trazem grande inovação), mas o oferecimento das bases para o desenvolvimento da teoria de justificação mais relevante da modernidade, que é o contratualismo. O contratualismo é uma argumentação que assenta seus fundamentos em uma visão jurídica de mundo, pois ele acentua o fato de que os vínculos que estabelecem a base da sociedade são estabelecidos por um “contrato”, ou seja, por um instrumento jurídico derivado da vontade individual das partes envolvidas.

Dado que os homens eram entendidos como indivíduos livres e iguais, a única legislação válida seria uma espécie de auto-legislação, estabelecida por meio de uma decisão política fundada em critérios racionais. Assim, já não se trata mais da mera aceitação das verdades tradicionais, nem da justificação das autoridades constituídas, nem da afirmação de que a sociedade é uma derivação espontânea da natureza humana. Frente à crescente heterogeneidade das sociedades modernas e ao individualismo que as marca, era preciso uma teoria que religasse o homem à sociedade, e a única saída que se mostrou plausível foi a de estabelecer um vínculo jurídico, fundado no uso autônomo da razão.

Hobbes, por exemplo, que elaborou pela primeira vez um sistema contratualista sólido, articula em seu conceito de direito natural os dos dois conceitos que sustentam as teorias contratualistas, que são o interesse e a razão individuais, afirmando, no Leviatã, que “o direito da natureza, a que os autores normalmente chama de jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados para esse fim.” (Hobbes 2014) Essa razão autônoma e livre, utilizada pelos sujeitos no sentido de garantir os seus interesses individuais, é uma marca do pensamento moderno que se mostra claramente no contratualismo e no seu caráter propriamente revolucionário, que é o de recusar veementemente todas as justificações tradicionais do poder oferecidas pelas vertentes jusnaturalistas precederam o jusracionalismo. Com isso, o jusracionalismo ofereceu uma linguagem na qual foi possível formular a ideia do contrato social abstrato, vinculado à razão e ao interesse individuais, e não à tradição e à autoridade posta.

António Hespanha notou com precisão que a revolução filosófica de Hobbes foi colocar a vontade como princípio organizador dos deveres sociais (Hespanha 1997) . A perspectiva dominante na época de Hobbes conduzia a uma sacralização dos deveres tradicionais que gerava uma tradição naturalizada, percebida como um conjunto de normas eternas e objetivamente válidas.

Hobbes não denunciou explicitamente o caráter inventado da ordem natural: ele "apenas" deslocou a naturalidade do dever para o sentimento.  Sua narrativa era baseada em uma natureza humana em que o que era eterno e imutável era o desejo de segurança, o receio da violência e a capacidade racional de discernir as consequências dos próprios atos. Nesse novo esquema, "praticamente" não sobrava espaço para que houvesse deveres naturais nem papéis sociais naturais, e esses eram justamente os elementos que estruturavam as ordens naturais arcaicas e antigas.

O "praticamente não sobrava espaço" indica, porém, que sobrava um espaço restrito para um dever natural: o dever de cumprir as próprias promessas, o pacta sunt servanda. A crítica hobbesiana à ordem natural não foi completa, nem poderia ter sido completa, pois abdicar de todo princípio de dever inviabilizaria o objetivo teórico de Hobbes, que era o de justificar filosoficamente o poder de monarcas sem precisar fazer referência às ordens tradicionais.

O que Hobbes apresentou foi uma versão minimalista extrema da ordem natural composta por deveres (reduzida ao dever de cumprir os contratos celebrados). Hobbes acentuou o caráter artificial da soberania, mas acentuou também o caráter natural de uma autonomia que era a condição de possibilidade das teorias contratualistas. Não deve causar espanto que os contratualistas que se opuseram a Hobbes tenham baseado essa contraposição em uma ampliação da ordem natural, com a indicação de que a autonomia individual precisava ser equacionada com os direitos naturais.

A crítica tradicionalista às teorias contratualistas gerou a abordagem híbrida do liberalismo e do constitucionalismo que ele engendrou, com sua paradoxal teoria de uma soberania popular limitada que é próxima aos antigos equilíbrios entre a tradição naturalizada e os poderes dos governantes. O contratualismo, o  constitucionalismo, o liberalismo e o iluminismo são perspectivas modernas que propõem uma releitura da ordem natural, mas que são construídas sobre o pressuposto de que existe uma ordem natural que serve como critério para orientar os governantes no sentido da justiça e para limitar os poderes do governo.

4. Hume e a ruptura da ordem valorativa natural

Os avanços da ciência moderna nos permitiram falar com cada vez mais propriedade da ordem física. Velhos enigmas celestes foram resolvidos por uma observação cuidadosa do movimento dos astros. Ocorre que essa racionalidade empírica não era aplicável ao mundo simbólico e cultural, que era entendido como a manifestação de um logos e dos valores que pudessem ser extraídos da nossa racionalidade.

A versão continental da modernidade proporcionou várias narrativas que buscaram compatibilizar a racionalidade individual com os valores morais e as estruturas de organização social. Se a política parecia um campo de escolhas baseadas em interesses individuais, havia ainda uma tentativa de pensar a moralidade more geometrico, por meio de uma racionalidade dedutiva: deveria ser possível identificar os valores naturalmente racionais e, a partir deles, deduzir as nossas obrigações morais (inclusive os direitos naturais, que faziam parte dessa ordem de justiça).

A primeira proposta moderna que abandonou completamente essa estratégia de descobrir uma ordem valorativa racional nos foi oferecida por David Hume, um jovem filósofo escocês cujas perguntas inovadoras desencadearam uma revolução filosófica:

E se a ordem natural não existisse?

Não, ele não pergunta isso. Ele fez uma pergunta menos radical e mais compatível com a força crescente das abordagens científicas que ganhavam prestígio em sua época:

E se a ordem natural fosse somente física?

Essa pergunta conseguia acomodar a crença generalizada na existência de uma ordem natural imutável com o crescente ceticismo acerca da possibilidade de descobrir valores objetivamente válidos por serem expressões de nossa racionalidade. Renovando a dúvida platônica com relação aos valores tradicionais e radicalizando as posturas nominalistas que questionavam os limites da ordem natural, Hume formulou uma tese que  o Bem não é nada, senão um nome. Não existe um Bem em si, na ordem natural do mundo, mas apenas certas ações ou coisas que certas comunidades ou pessoas chamam de boas.

Chamamos individualmente de boas as ações que geram prazer e evitam a dor. Quando uma sociedade cristaliza em suas tradições certo conteúdo para a palavra bem, o que ela faz é somente isso: dar conteúdo moral para uma preferência sentimental. Nossos sentidos, nossas emoções, são coisas físicas, são algo que sentimos e que tem uma expressão empírica. O Bem, o Justo e o Belo são apenas nomes que designam certos estados de alma compartilhados.

Na ordem natural das coisas, os seres humanos têm fome, têm sede, têm desejos e têm sentimentos, e todas essas coisas podem ser percebidas pelos nossos sentidos. Na ordem natural das coisas, não existem valores, não existem normas, não existem deveres: esses elementos culturais são apenas construções artificiais por meio das quais institucionalizamos nossas percepções do que faz bem à nossas sociedades.

Hume identificou que as estratégias anteriores de fundamentação filosófica da moral e do direito representaram a tentativa de identificar, na própria ordem natural, alguns valores que fossem objetivamente válidos e que, por isso, servissem como base para fundamentar certas relações sociais ou certos valores. O sucesso dessa busca deveria ser garantido pelo exercício de um logos que nos capacitasse a perceber o bem em si, inscrito na ordem inteligível do mundo.

Argumentando contra esse tipo de abordagem, David Hume ponderou que a razão humana é incapaz de nos mostrar o bem em si, porque nossa racionalidade é meramente calculadora. Ela traça estratégias adequadas para a busca dos fins que escolhemos, mas é inútil para definir quais são os fins que deveríamos buscar. A compreensão desse ponto é importante porque nela está a raiz do positivismo de Kelsen e da tradição analítica no direito, que são derivações da tradição empirista britânica.

Empirismo é o nome que damos para a vertente da modernidade predominante nas ilhas britânicas, que adotava uma perspectiva aristotélica. Os empiristas desconfiavam do racionalismo continental, que tentavam descobrir valores intrínsecos à própria racionalidade, e privilegiavam a ideia de que a nossa razão trabalha sempre sobre o substrato dos dados sensitivos (ou seja, empíricos). No campo da moralidade, esse tipo de abordagem conduziu a uma de teoria dos sentimentos morais que remonta a Locke, mas que culminou na obra de David Hume.

Os sentimentos morais, diversamente dos valores morais, são empiricamente observáveis: nós sentimos culpa, indignação, vergonha e orgulho. Uma abordagem platônica observa esses sentimentos no mundo e infere que eles devem ser compreendidos como a realização de certos valores abstratos. Para que pudéssemos descrever com precisão o sentimento de culpa de Raskolnikov, seria preciso investigar previamente o que é a culpa. Para falar da coragem de Leônidas combatendo à sombra, usamos uma noção de "coragem" que precisaria ser compreendida em abstrato, para que fizesse sentido a menção a uma ocorrência concreta desse valor.

Hume, contudo, segue uma inspiração aristotélica e propõe que realizemos uma análise indutiva, que avalie esses sentimentos em suas várias ocorrências e procure compreender o significado dessas experiências concretas. Com isso ele inverte o pressuposto platônico. Em vez de pressupor a existência de ideias abstratas que dariam sentido à experiência moral, o jovem Hume (então com 28 anos) renovou a ética fazendo uma nova pergunta: se não há o arquétipo de bem, como é que chegamos a chamar alguma coisa de bom?

Reparem que a pergunta de Hume não é "como descobrimos que uma coisa é boa em si?" mas "como chegamos a chamar algo de bom?". Essa colocação indica que a própria noção de bem é uma construção cultural, cuja história pode ser traçada. Traduzida para o direito, a dúvida de Hume seria : se não existe um direito propriamente natural, como chegamos a chamar de naturais certos direitos?

Seguindo as intuições modernas, Hume responderia: por meio do uso da nossa razão. Porém, ele entendia os racionalistas haviam abusado do conceito de razão, tentando extrair valores diretamente da racionalidade. Já para o empirismo, não vazia sentido buscar valores na racionalidade, tendo em vista que a escolha valorativa seria sentimental e, nessa medida, irracional. Seria absurdo pensar que haveria uma ordem natural composta por valores racionalmente bons porque seria um absurdo completo pensar em algo racionalmente bom.

A racionalidade trata apenas de fatos e não de valores. A razão calcula probabilidades, faz deduções lógicas, mas é incapaz de fundar uma moral porque ela não estabelece fins, apenas esclarece os meios.  Embora Hume considere que a razão é ao homem, isso não significa que há normas e valores inatos. Essa é uma ideia revolucionária dentro da própria modernidade, pois colocou em xeque uma noção muito cara ao pensamento da época: que havia valores tão evidentemente morais que nenhuma pessoa racional colocaria em dúvida o seu valor objetivo.

Hume percebia que o critério cartesiano da evidência não era adaptado à moralidade, pois cada um de nós tende a afirmar a naturalidade dos próprios preconceitos. Consciente dessa limitação, ele defendeu que todos os valores humanos são convencionais, pois o seu nascimento sempre ocorre dentro da história de um povo, e a medida de sua validade é justamente o seu reconhecimento social.

A abordagem proposta por Hume tratava todos os valores morais como elementos consuetudinários, negando-lhes qualquer pretensão de objetividade e de universalidade, o que implica negar a existência de um platônico bem em si a ser descoberto em uma ordem natural eterna e imutável. Quando chegou a esse ponto, Hume poderia ter seguido a trilha do ceticismo e do relativismo, pois a negação da naturalidade parecia uma afirmação de contingência.

Para os contemporâneos de Hume, que publicou An enquiry concerning human understanding em 1748, um valor que não fosse natural não poderia ser objetivamente obrigatório. Porém, o caminho escolhido por Hume não o conduziu a um ceticismo relativista, visto que ele se esforçou para buscar uma solução alternativa, que garantisse a validade objetiva de certos valores artificialmente criados. Inspirando-se na tese do contrato social, de que a natureza humana tornava inevitáveis certas formas de organização social artificialmente geradas, Hume disse que certos valores morais artificialmente criados eram consequências necessárias das tendências humanas naturais.

Faz parte da natureza humana factual a nossa tendência de considerar devido aquilo que consideramos bom. Essa ligação necessária entre um sentimento (algo que nos agrada) com um dever (algo que consideramos obrigatório) está na base da percepção empirista do mecanismo pelo qual os sentimentos morais seriam capazes de gerar valores morais.

Embora todos os sistemas normativos sejam artificiais (no sentido de que são criados pelo homem), a existência do direito e da moralidade é inevitável porque existe nos homens uma tendência natural a construir sistemas normativos que organizam as sociedades em nome da justiça. Então, bom e justo são categorias desenvolvidas pelo homem, em sua natural busca de organizar as sociedades de modo a garantir melhor seus interesses egoísticos.

Logo, a validade objetiva e o bem em si não passam de quimeras, embora seja impossível escapar desses conceitos, cuja elaboração é fruto de uma tendência inata do homem. O conteúdo da justiça é artificial, mas a própria existência da ideia de justiça é inevitável. Existe aqui um naturalismo, mas um naturalismo indireto: não há normas válidas em si, mas apenas crenças que decorrem necessariamente da natureza humana.

Esse modo de colocar o problema foi inovador, e influenciou fortemente Kant e todo o positivismo, incluindo Kelsen. Hume deixou muito claro que, em todos os discursos jusnaturalistas de fundamentação, existe um salto lógico. O pensador começa descrevendo como mundo é, a partir disso tira uma série de conclusões acerca de nossos deveres. Esses argumentos dizem algo como: os homens vivem e têm uma tendência natural a lutar por sua sobrevivência e, portanto, eles têm um direito inato à vida.

Esse "portanto" é tudo, menos lógico, porque não se pode extrair uma consequência deôntica de um enunciado assertivo. É tão ilógico quanto afirmar que os homens morrem e que, portanto, eles têm direito de morrer (um direito que, aliás, não é reconhecido pelo nosso ordenamento). Uma tendência não cria direitos nem deveres. Apesar disso, cada jusnaturalismo seleciona alguns fatos que considera naturais e retira deles consequências normativas, num salto lógico que podemos chamar de falácia naturalista.

Tal crítica tem um poder demolidor, pois indica a impossibilidade de escapar do trilema de Münchhausen pela via do naturalismo. Uma vez que enxergamos isso, o naturalismo parece muito uma busca alquímica pela pedra filosofal, ou uma tentativa escolástica de demonstrar racionalmente a existência do deus cristão.

Inobstante, a solução proposta por Hume não parece diminuir o incômodo causado por sua pergunta, pois ele reduz a validade a uma crença na validade, derivada de tendência natural dos homens a criar certas ilusões. E assim como a teoria de Hobbes não agradou os reis absolutistas, a teoria de Hume não agradou aos jusnaturalistas, que se viram frente à dura acusação de que eram irracionais as suas tentativas de provar racionalmente a validade dos direitos naturais.

O trabalho de Hume representa um ponto de inflexão na filosofia europeia: o momento em que a filosofia moderna abandona as tentativas de identificar na ordem natural os valores objetivos que deveriam servir como parâmetros para a construção das ordem social.

As tentativas de enfrentar essas críticas exploraram duas vias que foram abertas pelo próprio Hume. A primeira delas, avançada por Kant, explora a tese de Hume no sentido de que a natureza humana torna certas percepções inevitáveis para os seres humanos. Esse é o caminho que transforma profundamente o jusnaturalismo: enquanto os jusracionalistas seguiam a trilha clássica de usar a razão como instrumento para investigar a ordem natural do mundo, Kant indica que somente podemos investigar racionalmente a própria racionalidade. Assim, a racionalidade deixa de ser apenas instrumento, e passa a ser também o objeto de análise desse novo jusracionalismo.

O segundo caminho foi o de radicalizar o ceticismo de Hume e afirmar não apenas que todas as crenças são artificiais, mas que elas também são contingentes. Essa trilha conduz a uma negação da existência do direito natural, inclusive com expressa rejeição à tese kantiana de que haveria certos valores e certas formas jurídicas racionais. Essa trilha, seguida por Bentham nas ilhas britânicas e pelos historicistas na Europa continental, abre espaço para a emergência de um positivismo comprometido com a ideia de que a moralidade e o direito devem ser pensados como uma criação cultural que emerge de processos históricos contingentes.