1. A contestação da autoridade divina dos reis

As guerras civis de caráter religioso que se sucederam à reforma, por mais de 100 anos, estabeleceram entre os pensadores políticos um diagnóstico que vem sido repetido desde então: a fragmentação política, a falta de unidade, a multiplicidade de polos governantes, são bases muito frágeis para construir uma unidade política estável. A existência de múltiplos polos de poder, com múltiplos exércitos, acarreta um risco constante de guerra civil e, uma vez desencadeada a guerra, não há instrumentos eficazes para contê-la.

As guerras religiosas criaram uma situação política peculiar: os sistemas conceituais e as ordens simbólicas do período medieval conseguiam promover uma integração das populações contra inimigos externos, por meio da formação de alianças de nobres, constituídas pela lealdade comum a um rei. Porém, eles eram muito frágeis quando se tratava de organizar as tensões internas, visto que sua organização era baseada em uma unidade religiosa e cultural que havia sido dissolvida pela reforma.

As guerras religiosas não eram fundamentalmente guerras contra um inimigo externo (que poderiam mobilizar as redes de lealdades da nobreza), mas era contra inimigos internos, que lutaram por décadas com o objetivo de restabelecer a unidade perdida. Porém, eram guerras civis com participação intensa de potências estrangeiras, que se enfrentavam como defensoras ou opositoras da autoridade papal. Essas guerras civis colocaram um grupo de súditos insurgentes em conflito direto com os reis, um tipo de conflito social que não era de todo inusual, mas que somente poderia ser lido a partir das categorias medievais: o conflito direto com o rei somente apenas ser legitimado na medida em que ele violasse frontalmente as tradições que lhe conferia sua própria autoridade. Nesse caso, ele seria descrito como um tirano, o que poderia dar motivo para que os nobres ligados a ele se vissem livres de seu vínculo de lealdade.

Como era de se esperar, floresceram tanto entre católicos como entre protestantes teorias que justificavam a insurreição contra os reis adversários, sob o antigo argumento de que era legítima a deposição dos tiranos. No contexto chinês, essa oposição era feita por meio da afirmação de que certos leis tinham perdido o mandato celeste, pois o afastamento com relação ao li tinha como consequência inexorável o fomento do caos e a sublevação dos súditos. No contexto cristão da idade média, essa oposição era feita por meio da afirmação de que certos reis tinham rompido aos mandamentos divinos e o direito natural.

Algumas teorias chegaram a retomar uma antiga ideia: a de que havia um direito ao tiranicídio. Quando o rei se tornava um déspota, ou seja, quando ele não respeitava os direitos naturais dos súditos, seria possível depô-los ou mesmo matá-los. Alguns pensadores alinhados aos reis da época chamaram os defensores do tiranicídio de monarcômacos (mornarcomachs), ou seja, os matadores de reis (Dunning 1904). Esse não é um título muito justo, pois eles não eram contrários à monarquia em sim, mas apenas a certos abusos que tornariam possível qualificar alguns reis como tiranos.

Do lado dos reis protestantes, os nobres católicos questionavam o seu dever de lealdade perante reis que teriam rompido o direito natural, ao abandonar a fé católica e adotar uma religião protestante. Os papas excomungaram os reis protestantes e questionaram diretamente a sua legitimidade, fomentando revoltas contra os monarcas que cortaram os laços com o Vaticano.

Do lado dos reis católicos, a repressão violenta ao protestantismo gerou situações trágicas como o Massacre da Noite de São Bartolomeu, no qual o rei da França ordenou o assassinato de dezenas de líderes huguenotes (protestantes) em Paris, o que desencadeou uma série de assassinatos em outras cidades francesas e levou à morte de ao menos 5.000 protestantes em 1572.

François Dubois
Pintura de François Dubois

Esse tipo de comportamento violento contra os próprios súditos foi lido pelos protestantes como um exercício de tirania, que ultrapassava os limites da autoridade real e que, portanto, comprometia o seu dever de lealdade perante os monarcas. Assim, tanto do lado protestante quanto do lado católico, essa oposição ao monarca conduziu à formulações que questionaram a legitimidade de alguns dos reis da época.

Uma das respostas ao Massacre da Noite de São Bartolomeu foi um panfleto chamado Vindiciae, contra tyranos (Reivindicação contra os tiranos), publicado em 1579, em que se se defendia expressamente que os reis tinham direitos perante o povo, mas que o povo também tinha direitos perante o rei: travava-se de obrigações mútuas e recíprocas, estabelecidas pelo direito natural e pelo ius gentium, cuja quebra caracterizava uma tirania (Brutus 1994).

Não se tratava de uma revolta contra a monarquia, mas de uma revolta contra a tirania caracterizada pela atuação de monarcas em desacordo com as leis naturais, a qual justificava a revolta e a resistência e poderia conduzir a uma guerra civil. Inobstante, o Vindiciae contra tyrannos traz uma noção que colocava em risco toda a ordem estabelecida: a tese de que "o povo é mais poderoso do que o rei", visto que os reis foram instituídos pelo povo (Brutus 1994). Uma das metáforas construídas no texto é a de que o reino deve ser entendido como um navio: o monarca é o piloto encarregado de guiar o leme e tomar as decisões, mas seu poder decorre da instituição do dono do navio, que é o povo. Por esse motivo, o povo (ou uma assembleia por ele constituída) teria o direito de expulsar um tirano ou um rei indigno e colocar um bom rei no seu lugar.

Vindiciae contra tyrannos

2. A defesa do poder soberano dos reis

A defesa da supremacia do povo com relação ao rei, defendida na França pelos protestantes, foi contestada veementemente por Jean Bodin, que escreveu em defesa da autoridade real os seus Seis livros sobre a República.

Six livres de la République

Para Bodin, não era possível assentar a autoridade dos monarcas sobre a autoridade do povo, pois isso tornaria o monarca um mero oficial de um governo popular. O verdadeiro soberano sempre exerce o poder em nome próprio, não cabendo a seus súditos decidir por mantê-lo ou retirá-lo, independentemente de seus atos, visto que a autoridade do verdadeiro soberano é absoluta .

Segundo Bodin, em toda République (e ele considera os reinos como uma forma de Respublica), existe um poder soberano, que pode ser o monarca, um grupo de pessoas ou o próprio povo. Esse poder soberano é sempre absoluto e perpétuo (Bodin 1955).

O caráter absoluto significa que os soberanos têm o direito de impor leis a todos os seus súditos, independentemente de seu consentimento, e que não existe nenhuma autoridade humana que pode lhe impor obrigações, o que que confere o status de  legibus solutus: ele não pode ser submetido a nenhuma lei e a nenhuma autoridade. (Bodin 1955). Portanto, o príncipe soberano não pode receber seu poder do povo, do papa ou de qualquer outra autoridade, e ninguém pode decidir legitimamente sobre a sua destituição.

O caráter perpétuo está no fato de que o poder soberano não é temporário, mas é conferido ao governante para que o exerça durante toda a sua vida, o que significa que não existe a possibilidade de construir poderes soberanos temporários, escolhidos por alguma forma de eleição.

Bodin faz uma diferença entre o soberano e um mandatário, pois os soberanos exercem poder em nome próprio, enquanto mandatários exercem poder de forma delegada e limitada (sejam eles chamados de oficiais, de magistrados, de governadores ou mesmo de reis). Somente pode ser considerado soberana a autoridade que exerce poder em nome próprio e em toda República só é possível haver uma autoridade desse tipo.

Segundo Bodin, seria possível imaginar uma soberania coletiva, investida em uma classe dirigente (na oligarquia) ou em toda a população (no governo popular), mas somente as monarquias podiam estabelecer uma soberania na prática, pois nas outras formas de governo haveria uma disputa incessante para o exercício do poder.  Nesse ponto, ele se alinha aos reis católicos, contestando as teses de que deveria ser admissível um juízo popular acerca da possibilidade de destituir reis considerados tirânicos.

Inobstante, Bodin afirma que os soberanos não podem alterar as leis constitucionais do reino, visto que os princípios que regem a própria monarquia (como as regras de sucessão) são a base do seu próprio poder.  Além disso, ele ressalta que todas as pessoas, inclusive os soberanos, são sujeitos às leis da natureza e de Deus, que se impõem a todos os homens sem exceção, e que exigem o respeito à liberdade das pessoas e à fruição de suas propriedades (Bodin 1955). Portanto, mesmo o soberano deve observar certos princípios, mas a ruptura dessas obrigações não gera um direito de destituição ou tiranicídio.

3. A soberania do rei assentada na autonomia do indivíduo

Bodin ofereceu uma defesa do poder soberano do rei, indicando que a soberania era um elemento intrínseco das repúblicas e que a melhor forma de governo era a monarquia. Essa era uma resposta contra a contestação do poder real e, especialmente, à tese emergente de que o rei deveria ser entendido como uma espécie de magistrado constituído pelo povo e, portanto, que poderia ser legitimamente destituído pelo povo.

A resposta de Bodin foi bem recebida pelos defensores dos poderes dos reis, especialmente porque ela oferecia uma espécie de meio termo: o tiranicídio era ilegítimo, mas era desejável que os monarcas atuassem de maneira régia e não despótica, governando como um pai e não como um senhor de escravos e respeitando a propriedade dos seus súditos. Por mais que Bodin caracterizasse o poder dos reis como absoluto, ele exigia uma observância estrita tanto do direito natural quanto do ius gentium e dos costumes constitucionais do reino. Por mais que ele acentuasse que o poder legislativo do soberano era a marca distintiva de sua soberania, ele qualificava esse poder como o de conceder privilégios, e não o de reformar as estruturas sociais no sentido desejado pelo monarca.

Tratava-se de uma defesa jurídica do poder dos reis, estabelecida com base no discurso medieval. Um discurso já influenciado pelo renascimento da filosofia e do direito romanos, mas tratava-se de uma defesa de que o rei precisava equilibrar o li e o fa, em uma estratégia argumentativa que sistematizava uma percepção consolidada, mas que não oferecia argumentos inovadores.

Na época das guerras religiosas, a inovação argumentativa na defesa dos poderes soberanos do monarca coube a um filósofo inglês: Thomas Hobbes. Hobbes levou a sério a argumentação emergente no sentido de que a autoridade dos reis precisava ser assentada na autoridade do povo. Ele percebia que o discurso tradicional tanto de católicos como de protestantes buscava assentar o poder dos reis em uma ordem natural que impunha a existência de uma autoridade para guiar os povos. Toda família precisava ter um chefe, todo rebanho necessita de um pastor, todo povo necessita de um governante.

O problema é que as interpretações católicas e protestantes acerca de quem deveria ocupar esse papel de governo eram irremediavelmente conflitantes. Hobbes, então, desenvolveu uma forma de justificação do poder real que não passava pela tradição, mas que se assentava em um elemento que era comum a católicos e a protestantes: as características naturais de cada indivíduo, entendido como racional e como autônomo.

Esse foco no indivíduo representava um ruptura radical com as perspectivas tradicionais da antiguidade e do período medieval, em que a submissão de cada pessoa às regras sociais era uma decorrência imediata de sua posição no cosmos. Nesses contextos, não havia sentido algum em questionar acerca dos motivos que justificariam a autoridade da sociedade sobre o indivíduo. Tal pergunta seria recebida com o mesmo estranhamento com que um católico encararia uma pergunta acerca dos fundamentos da autoridade do seu deus sobre os homens: se Jeová criou o mundo, então como podemos questionar sua autoridade sobre o mundo criado?

No contexto antigo, o máximo a que se podia chegar era perguntar sobre qual era a organização correta da sociedade e formular, como fizeram Platão e tantos outros, utopias acerca da justa organização social. O que se podia colocar em xeque era uma determinada organização da sociedade, e não a própria relação entre sujeito e sociedade, pois era evidente que o homem é um animal social e que, portanto, ele era naturalmente sujeito às regras vigentes em sua sociedade.

Quando nos sentimos como parte integrante do organismo social, não questionamos a autoridade dela sociedade sobre nós. Porém, a individualização do sujeito moderno fez aflorar uma cisão entre o social e o pessoal. Na medida em que o homem foi se percebendo cada vez mais como um indivíduo, ele passou a questionar a autoridade das regras tradicionais, cuja validade não mais era sentida como natural.

Chegou um tempo em que não era mais possível dizer simplesmente: obedeça aos costumes antigos porque eles são costumes e são antigos. Mas era evidente que não se podia simplesmente abandonar as velhas tradições, pois era preciso organizar a vida social, mesmo que segundo novos padrões, mais adequados ao tipo de subjetividade que estava em formação. As sociedades que emergiam do período de guerras civis religiosas não podiam mais se estruturar em torno do mito da unidade religiosa, de um exercício da monarquia baseado na providência divina.

Uma sociedade que precisava articular súditos (especialmente nobres) de religiões diferentes não podia mais estruturar suas redes de coordenação em uma lealdade de pessoas que compartilhavam uma mesma fé. Essa mudança exigiu a criação de novos discursos de justificação do poder político e de uma nova mitologia que oferecesse aos homens uma imagem de si próprios, das sociedades em que viviam e das que pretendiam construir.

Thomas Hobbes foi um filósofo importante nesse contexto porque ele ofereceu uma das primeiras tentativas de fundar o poder político na autoridade dos indivíduos, e não na autoridade do povo ou no papel natural dos governantes. Hobbes não abandonou a noção clássica de ordem natural, mas ele a subverteu quando colocou como natural apenas a autonomia do indivíduo e não a soberania do povo nem a soberania dos reis. Essa centralidade do indivíduo como foco de autonomia e como origem do poder legítimo é a marca da filosofia política moderna.

Hobbes partiu de dois pressupostos básicos: o homem é um ser essencialmente racional e a natureza humana é basicamente egoísta. Considerava ele que cada homem atua de forma racional, buscando garantir a sua sobrevivência e, na medida do possível, o seu prazer. Por causa disso, afirmava que, antes da consolidação de um poder político organizado, os homens viviam em um estado de guerra e que, “desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é uma conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há justiça”. (Hobbes 2014).

Nessa guerra de todos contra todos, a única saída que o homem tinha para defender seus interesses pessoais era fazer um contrato com as outras pessoas, um acordo que garantisse condições mínimas de segurança. Para manter esse acordo, era necessário atribuir o poder a uma pessoa ou assembleia (ou seja, criar um Estado) que pudesse tomar decisões e impô-las aos membros de uma comunidade. Com esse raciocínio, Hobbes buscava fundamentar o poder político no fato de que atribuir o governo da sociedade a um Estado absolutista era a única forma pela qual indivíduos autônomos optariam por se organizar, se tivessem liberdade para isso.

Essa era uma estratégia que buscava superar as teses emergentes de que o rei era um mandatário do povo. Na teoria de Hobbes, a passagem do indivíduo para a sociedade (ou seja, o contrato social) criava simultaneamente o povo e o rei.  O soberano seria instituído pelo mesmo ato que daria início à sociedade e, portanto, a população não teria direito de destituir o rei.

Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembleia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante ), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembleia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outro e serem protegidos dos restantes homens.
É desta instituição do Estado que derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido.
Portanto, aqueles que estão submetidos a um monarca não podem sem licença deste renunciar à monarquia, voltando à confusão de uma multidão desunida, nem transferir sua pessoa daquele que dela é portador para outro homem, ou outra assembleia de homens. Pois são obrigados, cada homem perante cada homem, a reconhecer e a ser considerados autores de tudo quanto aquele que já é seu soberano fizer e considerar bom fazer. (Hobbes 2014)

Com isso, Hobbes desenvolveu uma narrativa em que ele conseguia acomodar as ideias de povo e de soberano, mas que negava ao povo o caráter de soberano, exceto nas democracias, que eram uma forma pouco desejável de organização política. Um dos pontos peculiares de sua teoria é a de que não não existe um pacto do soberano com os indivíduos, visto que ele é constituído por um acordo dos indivíduos entre si, o que afastaria a tese dos monarcômanos de que o povo pode destituir o monarca e que o tiranicídio poderia ser justificado em casos extremos.

[D]ado que o direito de representar a pessoa de todos é conferido ao que é tornado soberano mediante um pacto celebrado apenas entre cada um e cada um, e não entre o soberano e cada um dos outros, não pode haver quebra do pacto da parte do soberano, portanto nenhum dos súditos pode libetar-se da sujeição, sob qualquer pretexto de infração. (Hobbes 2014)

Ao sustentar o poder monárquico diretamente nos indivíduos, Hobbes buscou conferir uma fundamentação filosoficamente sólida aos poderes governo, mas ele também promoveu uma ruptura com os discursos tradicionais sobre o poder, atribuindo aos soberanos um poder legislativo que eles na prática não tinham: um poder para legislar de forma ampla, inclusive contra as tradições estabelecidas. Por mais que tenha defendido um poder amplo para os reis, as ideias de Hobbes foram veementemente rejeitadas por seus contemporâneos: ele conseguiu desagradar as pessoas que defendiam que o poder popular poderia destituir os reis, mas também desagradaram o papado (porque afirmavam a autonomia do soberano em termos religiosos).

Por mais que defendesse o poder absoluto dos monarcas, Hobbes se contrapunha à tese de que a autoridade monárquica estava inscrita na ordem natural, que era a forma pela qual os governantes e a nobreza compreendiam o poder dos reis. A tese de Hobbes se aproximava demasiadamente da concepção revolucionária dos monarcômacos, de que os reis eram instituídos pelo povo e que, por isso, poderiam ser destituídos. O deslocamento do povo para os indivíduos, por mais que estivesse ligada à rejeição do direito ao tiranicídio, significava que o poder dos reis decorria dos seus súditos, o que era uma afirmação inaceitável para os monarcas do século XVII.

Hobbes entendia que as origens da guerra estavam na fragmentação do poder e na incapacidade dos governos de gerar a unidade social necessária para garantir a paz, o que era um diagnóstico que nada tinha de inovador, convergindo inclusive com as ideias escolásticas de São Tomás. Porém, enquanto seus contemporâneos defendiam um retorno à tradição medieval e à estabilidade baseada na valorização do li, Hobbes entendia que essas tentativas de restaurar a tradição seriam vãs, visto que no contexto europeu do século XVI, a única saída viável para construir um governo sólido seria apostar no exercício do fa.

Para Hobbes, a autoridade soberana deveria ter plenos poderes para organizar a sociedade de forma a construir novos equilíbrios e a evitar a guerra civil, que era o grande fantasma de sua época, o que exigia uma reforma profunda nos costumes sociais.

[P]ertence à soberania todo o poder de prescrever as regras através das quais todo homem pode saber quais os bens de que pode gozar, e quais as ações que pode praticar, sem ser molestado por qualquer de seus concidadãos: é a isto que os homens chamam propriedade. Porque antes da constituição do poder soberano (conforme já foi mostrado) todos os homens tinham direito todas as coisas, o que necessariamente provocava a guerra. Portanto esta propriedade, dado que é necessária à paz e depende do poder soberano, é um ato desse poder, tendo em vista a paz pública. (Hobbes 2014)

Porém, o que mais chocou seus contemporâneos foi a ideia de que os soberanos deveriam ter autonomia para intervir em questões religiosas, pois somente a reunificação religiosa das sociedades seria capaz de gerar a paz. Essa visão estratégica acerca das religiões foi ligada com as ideias de Maquiavel e rendeu a Hobbes um lugar de destaque no Index Librorum Prohibitorum.

O conjunto dessas contribuições abria espaço para uma nova organização social, desvinculada das tradições, centrada no exercício do poder legislativo e mitologicamente baseada na autonomia dos indivíduos. Sua ideia de sociedade era diametralmente oposta à sensibilidade medieval, com sua ordem social composta de múltiplas hierarquias, com seu respeito às tradições e aos valores cristãos, com seus vários anteparos que impediam a concentração demasiada de poder nas mãos de um governante. Hobbes percebeu que essa sociedade não poderia ser reconstruída depois do terremoto das guerras religiosas, e ofereceu uma alternativa à descentralização medieval: um poder soberano dos governantes, que se elevava acima das tradições, que reduzia o direito natural a certos princípios que não eram cogentes e que advogava o primado da política sobre a religião e da legislação sobre os costumes.

Hobbes inventou a soberania como uma forma de superar as guerras civis em curso e como uma alternativa para as formas medievais de organização política. Filosoficamente, ele inventou uma forma peculiar de justificar a soberania dos governos na autonomia individual: o contratualismo moderno.

O contratualismo ofereceu uma nova justificação do poder político e advogou a construção da ordem centralizada que veio a se impor na Europa. Esse novo discurso não apresenta as sociedades como organizações naturais, mas como uma congregação de homens livres, que se uniam em função de uma escolha. Embora os contemporâneos de Hobbes tenham sido muito avessos a suas ideias, as ordens políticas modernas identificaram retrospectivamente em Hobbes as bases de um discurso que se tornou dominante: a de que a sociedade deveria ser pensada como uma agregação artificial de indivíduos autônomos.

Esse é um trânsito importante no imaginário ocidental, pois significa a consolidação de uma nova identidade das pessoas: o indivíduo é senhor de si mesmo e, portanto, a submissão do sujeito à sociedade somente pode ser justificada pela sua própria aceitação dos poderes sociais, mediante um contrato de delegação de poderes. Ainda estamos frente a uma ordem natural, mas somente são reconhecidas como naturais os direitos do indivíduo e, no máximo, sua organização familiar. A organização política é transferida para o campo da artificialidade.

As ideias de Hobbes estão ligadas ao surgimento da nossa subjetividade moderna, que se afirma como individual, livre e racional. Individual porque, antes de ser membro de uma comunidade, somos pessoas dotadas de liberdade e razão. Uma razão que é individual e que, portanto, não aceita nenhuma verdade que não seja comprovada objetivamente. Uma liberdade absoluta, que somente pode ser limitada pela própria vontade ou pela própria razão.

Esse é um ponto fundamental: a liberdade do sujeito somente pode ser limitada pela sua própria vontade subjetiva ou por imperativos objetivos da razão. Pela sua própria vontade, o sujeito pode tomar decisões individuais, mas essas não podem vincular outras pessoas. Mas restava o problema de justificar a possibilidade de que, no exercício da política, a vontade coletiva possa estabelecer limites para a liberdade social. Como resolver essa questão?

Chega a ser irônico o fato de que Hobbes afirma a autonomia absoluta dos indivíduos com o objetivo de, logo em seguida, indicar que a única forma racional de exercer essa autonomia é criar um governo soberano.