Flannery & Marcus (2012) e Acemoglu & Robinson 2012 sustentam que os vestígios arqueológicos indicam que a transição das primeiras sociedades sem governo para as sociedades com governo não foi uma decorrência necessária das características biológicas dos seres humanos (as quais são compatíveis com outras formas de organização política) nem podem ser explicadas apenas por questões demográficas (porque a existência de governos parece ter sido um dos elementos que viabilizou a expansão demográfica das comunidades humanas). Mesmo a tese dominante de que a revolução agrícola teria gerado o acúmulo de riquezas que viabilizou a concentração de poder político parece incompatível com os achados que mostram a existência de sociedades com hierarquias estratificadas em grupos de caçadores coletores muito antigos, como os madalenianos de cerca de 20.000 a.C. (McCall e Widerquist 2015) .

McCall e Widerquist indicam que (2015) o reconhecimento de uma grande variabilidade de formas de organização dos povos arcaicos e da coexistência entre coleta e agricultura, em regiões próximas, desencadeou uma nova chave de interpretação: o igualitarismo não deveria ser pensado como uma caracterísitica necessária das sociedades de caçadores coletores, mas como uma espécie de variação cultural que era adaptada a certos contextos ecológicos e demográficos. Uma das teses que vem ganhando espaço é a de que, em ambientes com baixa disponibilidade de recursos, as redes igualitárias são uma forma de organização bem adaptada, mas que em ambientes com uma disponibilidade excepcional de recursos naturais favoreceria formas de organização política mais centralizadas.

A teoria da circunscrição de Carneiro

Uma das teses mais influentes nesse sentido foi originalmente defendida por Robert Carneiro  em um artigo com o sugestivo nome de "A theory of the origin of the State"(1970). Carneiro sustenta que a criação dos estados não decorre da natureza humana nem da transformação voluntárias das comunidades agrícolas, e sim de um processo de conquista e assimilação que é "uma resposta previsível a certas condições culturais, demográficas e ecológicas" (Carneiro 1970). Ele aponta que o surgimento de organizações políticas altamente centralizadas está ligado a certos ambientes extremamente propícios à agricultura, cercados por espaços de baixa produtividade, que ele chamou de áreas agricultáveis circunscritas, como os vales do Nilo, o crescente fértil e os vales agricultáveis dos Andes.

A tese de Carneiro é a de que os lugares nos quais foi identificado o surgimento dos primeiros reinos, há vestígios de uma atividade bélica intensa em em espaços agricultáveis circunscritos."Historical or archeological evidence of war is found in the early stages of state formation in Mesopotamia, Egypt, India, China, Japan, Greece, Rome, northern Europe, central Africa, Polynesia, Middle America, Peru, and Colombia, to name only the most prominent examples."(Carneiro 1970).  Embora a existência de guerras fosse comum a todos os contextos humanos, Carneiro indica que ela teve resultados diferentes nos espaços circunscritos, visto que a sobrevivência das populações que cultivavam essas terras somente era viável na própria região que foi dominada belicamente por outro grupo, criando assim uma nova fonte de desigualdade: a conquista. Em outros espaços degráficos, como na planície Amazônica, não existiria motivo para as populações vencidas em guerras se submeterem politicamente aos vencedores, pois elas poderiam migrar para outras áreas em que seu modo de vida seria também sustentável.

Segundo Carneiro, a submissão das populações conquistadas ao governo dos conquistadores gerou nesses contextos particulares uma transição das organizações baseadas em pequenas vilas para as grandes chefaturas (Chiefdoms), em que vários núcleos populacionais eram submetidos a um mesmo chefe. Segundo Flannery & Marcus, as chefaturas correspondem a governos com 2 graus de hierarquia  (um chefe na vila central e subchefes nas pequenas vilas periféricas), e que podem chegar a 3 graus quando as vilas são reunidas em distritos, caso em que existe uma hierarquia intermediária de chefes de distritos e o chefe central passa a ser chamado de paramount chief, por ser um chefe de chefes. Nesses casos, "tribute flowed upward from the subchief, to the district chief, to the paramount chief. Orders and policies flowed down the same chain of command" (2012).

O prestígio contínuo de um clã podia gerar internamente uma segmentação social estratificada (e o surgimento de um clã governante), mas esse processo voluntário não explica o surgimento de entidades sociais mais amplas, que não se organizavam apenas em termos de clãs, mas em termos de vilas periféricas submetidas a uma vila central.

Quando os múltiplos núcleos populacionais passaram a se condensar em chefaturas cada vez mais amplas, as guerras existentes entre chefaturas possibilitaram a submissão política de um chefe a outro, o que conduziu à formação dos primeiros reinos:  sistemas com 4 níveis de diferenciação governamental: um rei que domina a cidade central, chefes regionais que dominam províncias maiores, formadas por distritos governados por subchefes que, por sua vez, exercem autoridade sobre os chefes locais (Flannery & Marcus 2012). A existência desses 4 níveis de organização somente ocorre em unidades bastante extensas, sendo esses grandes reinos centralizados que Carneiro chamou de estados (states), formados pela gradual agregação de "villages into chiefdoms, and of chiefdoms into kingdoms"(Carneiro 1970), que não se formam pelo crescimento demográfico de uma comunidade, e sim por processos de conquista.

Carneiro indica que a segmentação de classes sociais mais altas e mais baixas decorreria desse sistema de conquista, na qual os conquistadores ocupariam um estrato superior e os vários povos conquistados ocupariam estratos sociais mais baixos. Eventualmente, essa sociedade segmentada geraria sistemas simbólicos que cristalizassem essa situação, como o sistema hindu de castas, nas quais a posição superior foi conferida aos conquistadores arianos e os estamentos mais baixos foram conferidos às populações locais dominadas.

Flannery & Marcus coincidem com a explicação de Carneiro de que somente a dominação explicaria esse trânsito para unidades tão complexas como os reinos, e que as pressões no sentido desse tipo de transformação podem ser explicadas pelos modelos do arqueólogo Charles Spencer, que fez projeções baseadas na constatação de que a curva de crescimento de uma população cresce muito rápido, até que ela consiga explorar todos os recursos naturais disponíveis em seu território. A população cresce muito e depois se estabiliza, sendo previsível que tensões variadas aflorem do fato de que os recursos disponíveis não conseguem oferecer a mesma qualidade de vida anterior à nova configuração demográfica. Nesse caso, os governantes de cada chefatura se viam na necessidade de fazer escolhas complexas que podem ser agrupadas em 3 estratégias fundamentais:

  1. Step up demand for resources from their own subjects, which may lead to revolt.
  2. Intensify production through technological improvement, which will likely increase wealth but not necessarily sociopolitical complexity.
  3. Expand the territory from which they get their resources, which will probably require the subjugation of neighbors.
When alternative 3 is chosen, and the expanded territory grows beyond the limits that a chief can administer through the usual methods, he is compelled to make changes in administration and political ideology, and a state begins to form. That change is less likely with alternatives 1 and 2.
The reason military force so often seems to be involved in the creation of the first kingdoms is because rival chiefs are unwilling to surrender their territory and independence voluntarily. In the four cases we saw in this chapter, state formation involved thousands of deaths, and thousands of other people were converted to slaves.  (Flannery & Marcus 2012)

Esse tipo de trânsito das primeiras chefaturas para os reinos implica uma multiplicação nos níveis de dominação e uma hierarquização social em níveis mais altos, que desafiava o repertório disponível de relações sociais. A submissão de grandes contingentes de pessoas a um mesmo chefe implicava a assimilação de uma diversidade cultural crescente a uma mesma unidade política, o que criava uma dificuldade especial de organizar as sociedades com base no reforço das tradições locais. A construção gradual de reinos maiores implicava a criação de novas ordens imaginadas e o fato é que não sabemos ainda muito sobre essa transição.

Was there a logical connection between a particular type of monarchy and the chiefly societies out of which it was created? Did divine monarchs result from the unification of rank societies in which religious authority was paramount? Did secular kings result from the unification of largely militaristic rank societies, where religious specialists were little more than witch doctors? Or could any type of monarchy be created by uniting rank societies of any type? We have no answer to this question, because social anthropologists and archaeologists are not working on it. But they should be. (Flannery & Marcus 2012)

De toda forma, temos indicações sólidas de que a constituição primeiros reinos (em espaços diversos como os da Mesopotâmia, Antiga China e da América Pré-Colombiana) conduziu a uma série de conflitos, visto que a lógica expansionista que conduziu os paramount chiefs a invadir as chefaturas vizinhas foi acentuada pelo sucesso militar. "Once having created the apparatus of a kingdom, they expanded against neighboring groups. Expansion was facilitated by the fact that many groups could not defend themselves against the centralized control and military strategy of a newly formed monarchy."  (Flannery & Marcus 2012)

Flannery & Marcus indicam que, uma vez construídos os primeiros reinos, um desenvolvimento que exigiu uma complexa interação de novas tecnologias, novas estruturas de governo e novas ordens simbólicas, é de se esperar uma reação em cadeia que conduziu à formação de uma multiplicidade de novos reinos, já que a única forma de se opor à força expansionistas das primeiras monarquias era a construção de unidades políticas maiores, seja pela aliança de chefes ou pela formação de novos reinos. Na história que se segue, encontramos inúmeras repetições dessas duas estratégias de gerar unidades cada vez maiores: a formação de alianças que geram unidades coordenadas ou a submissão a um reino mais forte, por conquista ou vassalagem, que gera unidades subordinadas.

Thirty years ago, Southern Mesopotamia was considered “the cradle of civilization.” Today we know that proto-states were also forming in Northern Mesopotamia and southwest Iran at about the same time. These three regions were all in contact with each other, providing us with another example of a chain reaction: the rise of multiple early states in response to the first aggressive one. The title of this chapter reflects our belief that when you have three cradles, it is a nursery. (Flannery & Marcus 2012)

Não se trada de um processo que gerou um reino que envolveu todos os outros, mas sim de uma reação em cadeia na qual a formação de reinos fez com que a resposta ao processo expansionista gerasse novas formas organizativas capazes de se opor a ele. Como disseram Flannery & Marcus, não se trata do berço de um reino apenas, mas de um berçário de reinos, que nasceram desse conflito e cuja dinâmica dominou o espaço político durante milênios.

Whatever its timing, we doubt that city life began at one community and spread like an oil slick. It likely grew out of long-term competitive interaction, not only between neighbors such as Susa and Chogha Mish but among regions such as Susiana, Southern Mesopotamia, and Northern Mesopotamia. Competitive interaction drives ambitious leaders to take unprecedented measures. In addition to transforming whole societies, of course, it produces winners and losers. We flock to the winners like paparazzi, forgetting that the competition itself was the real engine of change. (Flannery & Marcus 2012)

Uma das principais mudanças implementadas por essas novas unidades políticas é que as identidades clânicas se tornaram pouco eficientes como formas de gerar unidade política. O desafio dos reis da antiga Suméria era semelhante ao que foi descrito por Hobbes: como gerar unidade e obediência a um Estado quando sua população envolvia diversas culturas?

The creators of first-generation kingdoms had no template to follow. They did not know that they were creating a new type of society; they simply thought that they were eliminating rivals and adding subordinates. Only later did they discover that they had created a realm so large that they would need new ways to administer it. (Flannery & Marcus 2012)

Uma das respostas foi a de deslocar cada vez mais poder da tradição para os governantes, capazes de otimizar o uso dos recursos naturais e dos recursos humanos, viabilizando que uma unidade política pudesse ser vencedora na corrida expansionista que caracterizou esse ambiente inicial de múltiplos reinos. Um dos primeiros reinos que desenvolveu essa institucionalização política foi a Suméria, assim descrita por Flannery & Marcus:

Many early states had strong, highly centralized governments with a professional ruling class. Politically based social units began to replace the clans and ancestor-based descent groups of earlier societies. One can still detect clanlike units in Sumerian society, but many people in the cities were beginning to live in residential wards based on shared occupation or social class.
One of the most dramatic innovations of states is that the central government monopolizes the use of force, dispensing justice according to rules of law. Achievement-based and rank societies tended to respond to theft or assault at the level of the individual, family, clan, or village. For the Sumerians, most crimes were treated as crimes against the state. It then became the state’s responsibility to implement one of a series of punishments, which were codified in order to give the appearance of fairness. This required a system of judges and bailiffs, who were also called upon to decide disputes.
While individuals in Sumerian society were constrained from violence and revenge, the state had the right to draft soldiers and wage war. During the Early Dynastic period, commoners were rounded up to serve as foot soldiers when needed. [...]
Bureaucracies are expensive to maintain, and one Sumerian solution was to levy taxes. Every official transaction had to be witnessed and archived, and an official took his cut. [...]
Finally, the Sumerian state supported what amounted to an official religion. Each city had a patron deity whose temple was larger than that of any other. Temple activities and staff were supported by an estate on which crops were grown, livestock was raised, and artisans labored. The wealth of the largest estates was staggering. (Flannery & Marcus 2012)

Essas novas formas de organização se distanciaram cada vez mais das estruturas igualitárias que compunham a cultura da maioria dos antigos povos caçadores coletores, e as estratégias de coordenação (formando Ligas, Federações, Uniões, etc.) e de subordinação (formando os impérios) deram margem à construção de unidades políticas cada vez mais amplas. Inclusive, pode-se localizar a existência de ciclos de centralização e descentralização, em que unidades coordenadas se transformam em unidades subordinadas por processos de centralização de poder, e nos quais as unidades altamente centralizadas se tornam coordenadas na medida em que as autoridades locais ganham autonomia com relação ao governo central.

Flannery &  Marcus descrevem a ocorrência desse tipo de ciclos na Mesopotâmia, no Egito, no México e no Peru: "strong centralization, separated by political breakdown and regional autonomy" que se sucedem a partir da lógica de que "for every leader seeking greater territory and power, there are others seeking to bring him down" (Flannery & Marcus 2012).

A longa subordinação de várias populações aos mesmos reinos tinha a capacidade de gerar, com o tempo, um nível razoável de identidade cultural, cuja estabilização criava o tipo de equilíbrio que o pensamento clássico chinês descrevia com a oposição entre li e fa. Era reconhecida uma autonomia dos reis para governarem, mas era esperado um respeito às tradições, cuja modificação tendia a gerar tensões sociais capazes de desagregar as unidades políticas, tornando-as sujeitas à insurreição interna ou à conquista externa. Porém, longo equilíbrio entre reinos de dimensões e poderes similares foi rompido em vários locais, ao longo dos últimos 5.000 anos.

Primeiramente na Mesopotâmia, mas depois na China e (de forma independente) no México e no Peru, a ascensão de certos reinos especialmente poderosos e que foram  capazes de introduzir alterações nos costumes que sustentavam o equilíbrio político dos reinos, gerou uma nova forma de organização política: o Império, formado pela conquista de vários reinos.  Se os reinos já representavam um desafio organizacional de grande monta, os impérios levaram ao limite as possibilidades de submeter grandes e diversas populações ao mesmo governo central, o que radicalizou a experiência da desigualdade.

Few of the rulers who created kingdoms were content with the territories they controlled. Whenever a new state was surrounded by weaker neighbors, the temptation to expand was great. Sometimes, as in the Mexican state of Oaxaca, this expansion set off a chain reaction that created multiple fortified kingdoms. In other cases, as on the north coast of Peru, expansion created a multiethnic empire. The key to expansion lay in knowing which neighbors were vulnerable and which were best left alone.

A formação dos impérios esteve ligada a mudanças tecnológicas que permitiram uma comunicação mais rápida (como os cavalos ou as redes de estradas dos Incas) e novas estratégias governamentais, visto que o maior desafio dos impérios nã0 costuma ser externo, mas interno. Cada novo nível de hierarquia implica uma competição interna pelos pretendentes a ocupar essas posições de poder. Cada nova província aumenta a complexidade dos equilíbrios de poder, pois cada uma delas é um possível foco de insurreição.

Os impérios são mantidos por uma supremacia bélica intensa, que exige gastos muito grandes com os exércitos, que podem não ser sustentáveis em momentos de crise. A instabilidade política pode gerar a incapacidade do centro manter sua autoridade sobre províncias muito distantes. Províncias mais autônomas diminuem a necessidade de supervisão central, mas também tornam mais concretas as pretensões de autonomia. Em cada momento histórico, as vantagens de um estado maior são contrabalançadas pelas vantagens de um estado menor, cuja homogeneidade pode propiciar um uso mais eficiente dos recursos disponíveis.

Empires, in other words, are probably more than 4,300 years old. And along with empires came ethnic stereotyping, an escalation of simpler societies’ long-standing ethnocentrism. The precedent for racial, religious, and ethnic intolerance had been set. (Flannery & Marcus 2012).

Situações de crise podem dissolver rapidamente a capacidade dos impérios de integrar polos tão diversos. Além disso, impérios que se equilibram pela incorporação constante das riquezas dos reinos submetidos a eles tendem a enfrentar graves crises no momento em que ela alcança a maior expansão possível, dentro dos limites técnicos e políticos de sua época.

Esses momentos de crise são fundamentais para a filosofia política, pois eles tendem a estimular a produção de novas formas de organização, de novos discursos de legitimação e de novos modelos explicativos sobre a organização social.