Os labirintos da linguagem

1. Cartografias linguísticas

1.1 Objetos e conjuntos

Teoria, filosofia, empiria. Física e metafísica. Ética e política. Estas antigas palavras gregas designam conceitos desenvolvidos em nosso esforço de compreender a complexidade do ambiente que nos envolve, conhecendo o universo e seus habitantes. Lidar com tal complexidade é um desafio que enfrentamos diariamente, pois dele depende a nossa sobrevivência, tanto como indivíduos quanto como espécie.

Nossas percepções nos apresentam uma multiplicidade de seres radicalmente individuais: cada pedra tem uma forma particular, cada pessoa é única, cada planta é diversa de todas as outras que já existiram. A tarefa de conhecer cada um dos inumeráveis seres existentes ultrapassa largamente nossas capacidades cognitivas e nossa curta vida. O conhecimento completo de cada objeto particular é uma tarefa impossível para os seres humanos. Se uma pessoa pode conhecer um mundo de possibilidades infinitas, ela precisa ter a onipotência e a imortalidade dos deuses.

Tentamos contornar a limitação das capacidades cognitivas humanas por meio de estratégias de classificação: em vez de acumular conhecimentos sobre cada um dos inumeráveis objetos que existem, nós os agrupamos em classes. A combinação de vários objetos em um mesmo conjunto permite que produzamos conhecimentos gerais sobre cada um desses grupos, e não apenas sobre cada elemento individual.

Um dos primeiros passos para compreender o funcionamento de nossa linguagem é perceber que os nomes comuns (casa, peixe, ponte, etc.) não designam objetos específicos, mas conjuntos. A formulação de uma frase tão simples como “eu vi uma casa” implica o exercício de uma capacidade abstrata de classificação, pois esse enunciado indica: eu vi um objeto no mundo, que identifico como sendo uma casa. Falar de uma casa implica tratar um objeto concreto (a minha residência, por exemplo) como parte de um conjunto abstrato (composto por todas as casas do mundo).

Essa operação classificatória subjacente aos enunciados mais simples faz com que estrelas e árvores, por exemplo, não figuram em nosso conhecimento apenas como seres singulares (cada árvore ou cada estrela particular), mas também como ocorrências particulares de um gênero, ou seja, de uma “categoria” de objetos.

Atividade 1. Identifique três nomes que usamos para designar categorias de objetos, tal como: “contrato”, “pessoa” ou “direito fundamental”. Neste momento, convém utilizar preferencialmente um nome no singular, o que facilita a compreensão de que, por exemplo, a categoria “contrato” faz referência ao “conjunto dos contratos”.

O processo de categorização permite fazer afirmações abstratas como: “árvores precisam de água”, “contratos podem ser bilaterais ou unilaterais” ou “reinos são organizações sociais com ao menos três níveis hierárquicos”. Esses enunciados não tratam de características de objetos concretos, mas das propriedades de categorias abstratas.

Cada uma dessas frases relaciona uma categoria (como árvore, contrato e reino) a outras (como água, bilateralidade, hierarquia). Assim, a devida compreensão dos enunciados linguísticos exige o domínio da rede de significações que são estabelecidas por essas referências mútuas. Com efeito, as categorias linguísticas não existem isoladamente: elas existem na forma de uma rede integrada de significações, que integram o código linguístico em que elas são expressadas.

Atividade 2. Faça duas afirmações sobre uma das categorias que você escolheu no Exercício 1. Identifique, nos seus enunciados, as categorias que você precisa conhecer, para poder compreender esses enunciados. Você notará que algumas palavras implicam uma categorização (substantivos comuns, adjetivos, verbos) e outras atuam apenas na integração desses conceitos (como as preposições e os artigos). Tanto faz se uma categoria tem um nome simples (como “contrato”) ou composto (como “contrato de adesão” ou “ato administrativo”): o que a define uma categoria não é o seu nome, mas a existência de critérios classificatórios claros, que permitam aos falantes identificar os objetos que integram o conjunto designado.

Quando nos deparamos com objetos desconhecidos (um novo peixe, um novo terremoto, uma nova árvore), a percepção de que eles se assemelham a objetos já conhecidos permite abordá-los a partir do nosso repertório de saberes. Tratar objetos parecidos como integrantes de uma mesma classe nos permite utilizar os conhecimentos de que dispomos para abordar eventos que nunca enfrentamos antes.

É evidente que essas extrapolações envolvem o risco de produzirmos inferências falsas, que nos levem a comer cogumelos venenosos, acariciar cachorros bravos, ou nos preparamos para chuvas que não caem, apesar das nuvens carregadas. Na vida social, os exemplos de enganos se multiplicam exponencialmente, em vista das dificuldades que temos em prever os comportamentos humanos. Aplicamos estratégias pedagógicas desenvolvidas com nosso primeiro filho a seu irmão mais novo, mas os resultados são diversos, pois cada criança é singular. Pior ainda: repetimos com a mesma criança as estratégias que deram certo no passado, mas as pessoas mudam com o tempo, tornando inúteis abordagens que já foram eficazes para fazer uma criança se acalmar ou dormir.

Por maiores que sejam os perigos envolvidos nessas extrapolações, os benefícios são compensadores. Cada ser humano é particular, mas também apresenta muitos comuns com as outras pessoas. Quando observamos os comportamentos de vários indivíduos, podemos identificar certos elementos que são muito variáveis (como a preferência por certas comidas), mas outros atributos nos parecem compartilhados, como o metabolismo celular e os vieses cognitivos. Essas zonas de convergência fazem com que seja possível generalizar certas experiências, por meio de um raciocínio indutivo: a formulação de enunciados gerais, construídos a partir da acumulação de observações de fenômenos singulares.

A indução é uma das ferramentas cognitivas mais importantes para a nossa sobrevivência individual e coletiva. Ela nos permite produzir conhecimentos acerca de uma classe de objetos, a partir da expectativa de que os fatos novos sigam os mesmos padrões das situações que já conhecemos. Com base nesse procedimento, podemos formular e aperfeiçoar estratégias para tratar doenças, educar crianças ou cultivar alimentos.

Estratégias eficientes tendem a ser repetidas e ensinadas para as próximas gerações, em um processo que podemos designar como um processo de “acumulação cultural”: a manutenção de certos padrões de comportamento, por meio de um sistema de reprodução de conhecimentos e sensibilidades. Essa capacidade parece estar ligada à estrutura de nossas linguagens, cujos processos de categorização nos permitem construir os enunciados abstratos que utilizamos para dialogar e para ensinar (Dean et al., 2012).

1.2 Categorias errantes

O estabelecimento de interações linguísticas constantes nos faz desenvolver um repertório compartilhado de referências, a partir dos quais podemos agir de forma coordenada e acumular o conhecimento obtido com as experiências do passado. Todavia, as categorias linguísticas que fazem parte de nossa cultura nem sempre nos oferecem as classificações mais adequadas para enfrentar os desafios que nos são impostos pela constante transformação dos ambientes sociais e naturais em que vivemos. Por esse motivo, uma sociedade deve ser capaz tanto de acumular cultura quanto de rever constantemente os repertórios categorias que fazem parte de sua tradição.

Tomemos, por exemplo, as categorias que foram desenvolvidas ao longo do tempo para falar dos pontos luminosos que enxergamos no céu. Houve um tempo em que todos esses pontos luminosos pareciam integrar três categorias, que eram suficientes para tratarmos dos objetos celestes: sol, lua e estrelas. O objeto “estrela” parece suficientemente diferente do objeto “lua” e do objeto “sol”, de modo que se justificava dar nomes diferentes a cada um deles.

Tínhamos 3 categorias para falar de objetos celestes e este sistema parecia suficiente. Mesmo quando observamos que algumas das estrelas tinham um comportamento diferente, podíamos estabilizar nossas descrições a partir do reconhecimento de dois subgrupos: as estrelas estacionárias, cuja posição parecia fixa com relação aos demais corpos celestes, e um pequeno conjunto de estrelas errantes (asteres planetai, em grego, de onde vem o nome planeta). Assim como as pessoas podem ser tímidas ou corajosas, é possível descrever as estrelas como fixas ou errantes, sem que isso exija o estabelecimento de um novo gênero.

Observações mais cuidadosas indicavam que essas estrelas errantes tinham também algumas particularidades, como o fato de terem uma luz constante, em vez de piscarem como as demais estrelas. Todavia, o número de atributos compartilhados (tamanho, brilho, estar no céu) parecia justificar o seu agrupamento dentro de um mesmo gênero, tornando pouco prática a criação de uma nova categoria.

Estrelas fixas e asteres planetai pareciam girar em torno da Terra, seguindo padrões recorrentes, o que possibilitou que a sua observação fosse relevante para uma série de atividades complexas. De fato, parecia haver mais utilidade na observação das estrelas fixas, que serviam como pontos de referência para a identificação do período do ano em que se estava (a partir das constelações visíveis) ou para que os antigos navegadores pudessem atravessar os mares sem perder a direção.

A existência de algumas estrelas anômalas não comprometia a utilidade prática da observação astronômica. De fato, no tempo de Copérnico, poderia parecer razoável classificar a lua e o sol como astros errantes, diversos dos atros fixos, mesmo que as suas particularidades em termos de tamanho e brilho justificassem que eles fossem chamados pelos seus nomes próprios. Lua e Sol não eram categorias, mas palavras que designavam objetos concretos, como a própria Terra.

Porém, a combinação das observações possibilitadas por novas tecnologias (como telescópios mais potentes) e a acumulação de observações minuciosas sobre a trajetória dos planetas permitiram a formulação de uma teoria heliocêntrica, que reinterpretou radicalmente o significado da errância dos asteres planetai e propiciou um trânsito categorial imenso: os planetas passaram a ser vistos como objetos que giravam em torno do sol, o que fazia com que a sua semelhança com as estrelas fosse percebida como algo apenas superficial.

Porém, a mudança mais radical foi a de considerar a terra como um planeta. Ela não era mais simplesmente o objeto singular que habitamos, mas um integrante de uma categoria pela qual designávamos os astros que víamos como errantes somente pela combinação particular dos movimentos de suas órbitas com a própria órbita terrestre. A ideia de que vivemos em um planeta, como vários outros, era radicalmente nova.

Também foi radicalmente nova a redescrição que considerou o “sol” como um objeto do tipo “estrela”, bem como o reconhecimento de que as estrelas fixas estariam a distâncias muito diferentes de nós. Elas não eram mais pontos em um firmamento esférico, mas objetos massivos, distribuídos em um espaço tridimensional gigantesco, cujo caráter estacionário também era ilusório.

Esse pequeno exemplo do modo como se alteraram as categorias “planeta” e “estrela” nos sugerem que todos os nossos repertórios conceituais podem ser reformulados, a partir de observações que desafiam os mapas que usamos para compreender os céus, nossa cognição ou nossa sexualidade. Toda grande revolução categorial envolve discussões imensas, nas quais os defensores de novos conceitos debateram com os defensores das categorias hegemônicas, que podiam ter motivos razoáveis para rejeitar as inovações propostas. Apesar de Copérnico partir de intuições que se mostraram corretas, o sistema que ele propôs precisou ser longamente maturado e desenvolvido, antes que fosse capaz de representar uma alternativa viável ao sistema geocêntrico. As intuições copernicanas precisaram ser rigorosamente testadas, para que pudéssemos adotá-las como partes de nosso conhecimento comum sobre a realidade.

1.3 Cognição e categorização

A ciência moderna pode ser compreendida como um grande processo de testagem das inferências indutivas que formulamos intuitivamente. A formulação de hipóteses explicativas não é feita apenas pelos cientistas, mas também por astrólogos, religiosos e artistas. A marca específica da ciência está na forma rigorosa com a qual os cientistas testam as suas intuições, para tentar medir a sua efetiva correspondência com os fatos.

A pesquisa científica consiste em formular claramente uma generalização e submetê-la a testes empíricos, para selecionar as hipóteses que nos oferecem os modelos explicativos mais robustos. Os cientistas formulam hipóteses sobre as relações causais entre os fatos (como, por exemplo, sobre os efeitos de um fármaco ou de uma vacina) e desenvolvem estratégias voltadas para avaliar se essas explicações são compatíveis com os fenômenos que podemos observar.

O cientista não é alguém que sabe, mas alguém que pesquisa. A atividade científica depende de uma improvável mistura de inquietação intuitiva (para formular explicações inovadoras) e rigor analítico (para ser muito exigente com relação ao resultado das intuições). Essas duas habilidades raramente se concentram na mesma pessoa e, mesmo quando isso ocorre, todo ser humano é um mau juiz sobre suas próprias intuições. Por isso, somente há boa ciência quando existe uma comunidade científica que produz e dialoga intensamente, de tal forma que a intuição criativa de cada um seja contrabalançada pelo rigor com que analisamos as hipóteses explicativas que nossos colegas apresentam (e não as nossas próprias ideias, sempre “geniais”).

A ciência envolve uma abordagem muito rigorosa, mas também muito cara e demorada, o que a torna pouco adaptada para a maior parte dos nossos problemas cotidianos. Normalmente, utilizamos abordagens menos confiáveis, mas também mais rápidas e acessíveis. Nossa capacidade linguística de categorizar os eventos nos oferece uma maneira simples de fazer raciocínios indutivos, na medida em que nossas formas de falar das coisas que observamos envolve uma classificação em cascata: enunciar a frase “eu vi um papagaio” implica em tratar um certo objeto como pertencente ao grupo das aves, que são tipos de animais, que são tipos de seres vivos.

Nossas culturas dispõem de uma pletora de conhecimentos sobre seres vivos, sobre animais e sobre aves, que nos permitem inferir várias coisas sobre um objeto que nos é apresentado como pertencente a essas categorias. Esses saberes não foram desenvolvidos por uma pessoa singular, mas decorrem de um longo processo de seleção e desenvolvimento, no qual se torna evidente uma habilidade que torna a espécie humana singular: a acumulação cultural.

Os primatas têm uma inteligência e uma criatividade muito altas, que lhes possibilita aprender coisas novas, a partir da observação do mundo. A linguagem abstrata dos humanos amplifica essa dinâmica porque nós aprendemos imensamente uns com os outros, na medida em que podemos falar do mundo por meio de uma linguagem abstrata. A capacidade classificatória que a língua nos oferece é especialmente importante porque, ao tratar de categorias abstratas, nós nos tornamos uma espécie dotada de uma alta capacidade não apenas de aprender, mas de ensinar.

Com isso, não aprendemos somente com nossas experiências, mas também com as experiências de outras pessoas. Inclusive, aprendemos com pessoas que já morreram, já que a linguagem possibilita uma longa cadeia de transmissão, em que os saberes se propagam muito além do contexto temporal e espacial em que eles foram desenvolvidos. Cada vez que um conhecimento é aplicado (sobre partos, sobre agricultura, sobre retórica, etc.), as consequências dessa aplicação representam uma forma de teste. Somente saberes que se mostram muito robustos são capazes de permanecer no repertório comum de conhecimentos: o senso comum.

Os conhecimentos que se mostram especialmente aptos a promover a nossa sobrevivência e o nosso bem-estar tendem a se manter estáveis no conjunto de narrativas que atravessam cada sociedade: eles passam a integrar uma tradição, que é ensinada e aprendida por todos os membros de uma comunidade. Essa dinâmica social de transmissão de saberes permite um processo rigoroso de seleção, pois um mesmo conhecimento (sobre caçar, cozinhar ou tratar doenças) pode ser testado em múltiplos contextos de uso.

Não deve causar espanto que as sociedades contem com sistemas de proteção desses repertórios, cuja contestação é muitas vezes proibida: formas de organização são consideradas sagradas, interdições adquirem força divina, modos de vida são considerados como imposições de uma ordem natural. A principal dessas proteções é justamente a nossa imensa capacidade de não as perceber como categorias: nossa linguagem trata essas classificações como objetos tão reais como as coisas do mundo, o que nos faz considerá-las como parte de uma ordem natural da qual não podemos escapar.

Tendemos a perceber nossas funções sociais como decorrências diretas da natureza, e não como classificações sociais que nos classificam como mulheres, escravos, nobres, estrangeiros ou professores. Cada um desses papéis conforma nossa experiência e nossa sensibilidade, mas as abordagens tradicionais raramente os tomam como meras classificações. Por esse motivo, o primeiro esforço da filosofia é justamente desnaturalizar as categorias cristalizadas em uma determinada cultura, revelando o que existe de arbitrário e contingente nas classificações que tomamos como naturais, eternas e inescapáveis.

A estratégia categorizadora não parece ter sido invenção de uma cultura humana particular, pois ela parece integrada na forma como os nossos cérebros processam a linguagem. Nosso córtex cerebral não processa informações sensoriais de forma autônoma, para depois agrupá-las em classes, tratando diferentemente as coisas observadas e os critérios de categorização. A identificação de padrões é feita simultaneamente ao processamento dos dados produzidos por nosso sistema sensorial, de modo que as nossas próprias percepções acoplam conteúdos empíricos e categorias de análise: gritos de medo, cheiro de comida, sabores de infância.

Os sensores de nosso sistema nervoso interagem fisicamente com o ambiente: o sistema visual captando radiações eletromagnéticas, o sistema olfativo capta moléculas, o sistema auditivo capta ondas sonoras que se espalham pelo ar. As informações que eles nos trazem sobre o mundo são processadas em nosso cérebro, que organiza as percepções por meio do estabelecimento de relações variadas entre elas: similaridade, diferenças, proximidade, regularidade, etc. Assim, o funcionamento do nosso sistema nervoso envolve a identificação de padrões (Mattson, 2014; Sparkes, 1969), que não estão nos fatos, mas nas relações que nossos processos cognitivos estabelecem entre as percepções, nossas memórias e nossos conhecimentos. Nossas operações cognitivas não percebem fatos individuais e os conectam em modelos: elas já percebem os fenômenos como modelos.

Um dos exemplos mais claros desse tipo de processamento é a percepção de movimento que temos quando assistimos a um filme: sabemos que o projetor exibe vários quadros parados por segundo, mas esse conjunto é percebido inevitavelmente pelo cérebro como se se tratasse de um movimento. Um gosto que nos remete à infância desencadeia memórias esquecidas. Um grito de dor nos causa medo e ansiedade. Em suma, o cérebro reage a novos influxos produzindo uma série de interações com suas propriedades atuais, de tal forma que o resultado desse tratamento nunca é uma pura observação de fatos isolados.

O funcionamento do nosso córtex cerebral dificulta uma formulação clara da diferença entre objetos empíricos e modelos de compreensão. Uma pessoa que observa um filme com cuidado, refletindo especificamente sobre os seus modos de percepção, não se torna capaz de diferenciar movimento real de movimentos ilusórios, pois ambos são percebidos exatamente do mesmo modo (Engelmann, 2002). Diferenciamos com tanta naturalidade as pedras dos peixes que somos facilmente levados a pensar que nossa mente, de alguma forma, sabe distinguir essas duas categorias de forma automática e inata. Inclusive, vivemos nossos próprios processos cognitivos de tal modo que não os percebemos como uma atividade corpórea (como suar ou digerir), mas como o funcionamento de uma parte intangível de nós mesmos: a mente.

Cada vez que observamos uma árvore, parece que nossa mente percebe, ao mesmo tempo, um objeto singular e uma ocorrência de um gênero mais amplo. Tal como enxergamos movimento em uma sucessão muito rápida de eventos, enxergamos pertinência a uma categoria no modo automático como classificamos um tubarão como um peixe. A integração entre perceptos e modelos é tão estreita que tipicamente nos parece razoável descrever nossos próprios modelos classificatórios (movimento, peixe, pedra) como se fossem objetos observáveis: nós vemos um ato justo como uma expressão da própria justiça; vemos o céu azul da Provença como uma realização do “azul”.

Com efeito, parece que essa é a forma pela qual nosso cérebro nos apresenta esses elementos, na medida em que reagimos de forma semelhante a qualquer dos objetos que são percebidos como integrantes da mesma classe. Essa indistinção se transfere também para o plano das nossas linguagens, pois utilizamos substantivos que operam de forma idêntica tanto para nomear seres individuais (a estrela da manhã, o ipê-amarelo do meu jardim) quanto classes de seres. Nossas línguas tratam da justiça ou da beleza como se fossem entidades autônomas, e não como se fossem critérios de categorização.

A distinção entre o elemento e a classe não decorre de nossa percepção direta nem de nossas categorias linguísticas. Ela exige uma operação analítica, que examina os nossos modos de conhecer e de construir discursos. Esse tipo de análise pode nos conduzir à compreensão de que palavras como “peixe” ou “azul” não são nomes próprios de um ente particular, mas rótulos que nos permitem fazer referência a determinados conjuntos de seres. Chamaremos de “categorias” as classes criadas por meio de um processo de categorização (divisão em classes) que nos permite tratar globalmente de um determinado conjunto objetos. O nome da classe pode variar de acordo com o código linguístico utilizado (azul, bleu, 蓝色的), mas não devemos confundir a categoria (definida por certos critérios classificatórios) com as palavras que usamos para nos referirmos a ela.

Atividade 3. O cruzamento entre definições e objetos foi sublinhado artisticamente pela instalação “uma e três cadeiras”, de Joseph Kosuth (Kosuth, 1965). Compare a instalação de Kosuth com a pintura “A traição das imagens”, de Rene Magritte (Magritte, 1929), com a qual a obra de Kosuth evidentemente dialoga. Reflita sobre o que elas nos dizem sobre objetos, representações e categorias.

1.4 O arco e as pedras

A elaboração de categorias faz com que possamos interagir com o mundo sem depender de um conhecimento exaustivo dos seres individuais. Segundo Taylor, “categorization serves to reduce the complexity of the environment” (Taylor, 2002), permitindo que as nossas interações com os diversos fenômenos complexos sejam mediadas pela forma como descrevemos os fenômenos.

Quando inventamos a categoria “pássaro”, podemos falar de todos eles ao mesmo tempo. Na categoria “comestível”, podemos agrupar nela seres tão diversos como a maioria dos peixes e certos cogumelos. A categoria “perigo” nos permite tratar de forma unificada situações muito diversas, mas que precisam ser enfrentadas com especial cuidado. A categoria “proibido” permite indicar que condutas que nada tem em comum são igualmente vedadas em uma cultura.

Necessitamos de mapas que simplifiquem a realidade por meio de classes, definidas por certos atributos, para podermos traçar um mapa manejável por nossas capacidades cognitivas finitas. A linguagem nos oferece a possibilidade de multiplicar nossos mapas: sabemos muitas coisas específicas sobre a casa em que moramos, mas também sabemos várias coisas sobre casas em geral. Assim, a casalogia, a astrologia, a arvorelogia e qualquer outro conhecimento não é um saber sobre entidades específicas, mas sobre classes de objetos.

Dependemos fortemente dessas generalizações para podermos interagir com o mundo de modo significativo e eficaz, mas não devemos confundir as coisas: cada árvore tem existência empírica, mas a classe árvore somente tem existência linguística. O escritor Italo Calvino descreveu essa relação com muita precisão em um diálogo de Marco Polo com Kublai Kahn.

Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. –
Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? —pergunta Kublai Khan.
– A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra — responde Marco —, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo.
Depois acrescenta:
– Por que falar em pedras?
Só o arco me interessa. Polo responde:
– Sem pedras, o arco não existe. (Calvino, 1990)

O arco não existe. Entretanto, sem a ideia de arco, não podemos falar de como é possível fazer uma ponte de pedras que permaneça estável. Embora as pedras sejam o único elemento material de uma ponte, um conjunto de pedras somente constitui uma ponte quando elas estão dispostas de uma maneira singular.

Atividade 4. Se as pontes são pedras organizadas de uma forma específica, podemos dizer que essa forma existe?

A resposta de Marco Polo ao exercício acima seria negativa, pois ele argumenta que, “sem pedras, o arco não existe”. Essa afirmação indica que, para ele, a palavra “ponte” não passa de uma classificação que utilizamos para nos referirmos a objetos que têm uma forma específica de organização. Os filósofos que se alinham com o pensamento de Marco Polo são chamados de nominalistas: para eles, “ponte” é apenas um nome designa um conjunto de objetos que têm certas propriedades comuns. Para eles, a “ponticidade” das pontes não é uma dimensão peculiar do modo de ser desses objetos, mas apenas um critério linguístico, que define o sentido da palavra “ponte” nos discursos que formulamos para nos comunicarmos uns com os outros.

2. Os paradoxos da significação

2.1 O aprendizado impossível

Para Marco Polo, não faz sentido falar do verdadeiro conceito de ponte, pois o signo tem uma função pragmática: classificar os objetos. Dizer que “peixes têm guelras” parece ser uma forma simplificada de afirmar que todos os elementos do conjunto “peixes” possuem guelras. Mas não é só isso. Quando dizemos que “o tubarão é um peixe”, não afirmamos apenas que cada tubarão é um elemento do conjunto que chamamos arbitrariamente de “peixe”. Com essa frase, buscamos dizer que cada tubarão concreto tem os atributos que qualificam certos objetos como peixes.

Isso ocorre porque, diferente de outros conjuntos, as categorias não são formadas pela simples indicação dos membros que a integram: seus limites são fixados pela definição de um critério objetivo de pertinência.

Atividade 5. “O Castelo”, de Kafka, faz parte do conjunto dos livros que eu pretendo ler este ano?

Essa é uma pergunta que imagino que você não saberá responder, pois nem eu mesmo sei quais objetos fazem parte desse conjunto. Mesmo se eu tivesse feito uma lista dos 10 livros que pretendo ler nos próximos meses, ela dependeria de critérios totalmente subjetivos, como o meu desejo, o meu conhecimento (que nada sabe de muitos livros fantásticos) e a minha memória (que esqueceria de colocar na lista algumas das obras mais interessantes que eu conheço).

Atividade 6. A obra “O Castelo”, de Kafka, é um livro?

Essa pergunta é totalmente diferente porque a categoria “livro” faz parte da nossa linguagem e, nessa medida, permite que você aplique os critérios de pertinência que objetivamente estão vinculados a esse nome. Por isso, a construção de categorias não constitui um processo qualquer de elaboração de listas de objetos: trata-se de uma classificação realizada com base em critérios objetivos, que possam ser conhecidos e aplicados por qualquer pessoa. Este caráter objetivo e comunicável dos critérios de pertinência sempre causou problema aos filósofos, pois ele conduz a paradoxos.

Já dissemos antes que o significado de uma categoria é definido a partir de outras categorias, o que faz com que as linguagens operem como uma forma de rede de significação. Esse entrelaçamento faz com que a linguagem adquira a forma de um sistema fechado, em que os significados fazem referências uns aos outros. Platão percebeu que essa descrição gerava uma incongruência: o aprendizado de uma linguagem parece depender do domínio de categorias da própria linguagem; todavia esse aprendizado somente parece possível quando já conhecemos as categorias que deveríamos aprender. Inobstante, nós sabemos que é possível o aprendizado das linguagens, pois nós mesmos somos falantes hábeis. Como explicar, então, essa capacidade paradoxal?

Atividade 7. Como é possível aprender uma linguagem, se tal aprendizado parece supor que as pessoas já têm conhecimentos linguísticos prévios?

Uma das principais respostas contemporâneas a esta questão envolve a tese de que nosso processamento cerebral é capaz de reconhecer padrões, inclusive os padrões linguísticos envolvidos na comunicação verbal. Essa via permite explicar o aprendizado linguístico sem a existência de um conhecimento prévio, mas precisa supor a existência de uma capacidade prévia de reconhecimento de padrões, que nos leva de volta ao ponto de partida. Como é possível reconhecer padrões, sem que contemos inicialmente com alguns padrões de reconhecimento? As respostas modernas, tal como as respostas antigas, terminam por postular a existência de uma capacidade inata de reconhecimento.

O fato de que os discursos científicos contemporâneos ligam essas capacidades com modos de operação cerebral concreta, e não com modos de funcionamento de uma mente intangível, não altera o fato de que ambos os discursos tentam descrever um modo específico de cognição, que seria próprio aos seres humanos. Inclusive, uma das explicações contemporâneas mais influentes acerca dessa questão postula que os cérebros humanos contam com certas estruturas inatas que permitem o aprendizado de uma língua a partir da observação de uma quantidade relativamente restrita de interações linguísticas.

Trata-se da hipótese da “gramática gerativa” de Noam Chomsky, que parte da observação de que as crianças aprendem uma língua por meio da vivência de interações linguísticas que não são suficientemente complexas para que seus cérebros sejam capazes de identificar os padrões linguísticos que estão sendo utilizados pelos falantes hábeis da linguagem. Essa incongruência entre a complexidade das observações e a complexidade do padrão compreendido levou Chomsky a propor a existência de uma capacidade cerebral especialmente desenvolvida para identificar e reproduzir padrões linguísticos (Cowie, 2017).

Como os antigos gregos não contavam com as descrições modernas do funcionamento cerebral, parece razoável que eles tratassem da cognição de um modo mais abstrato, correspondente à maneira intangível com a qual observamos nossos próprios pensamentos. Para eles, o pensamento era uma propriedade de nossas faculdades intelectuais: nossa racionalidade.

A descrição explícita desse paradoxo remonta às reflexões de Platão, que formulou uma teoria do conhecimento e da linguagem voltada a superar tal incongruência. Parecia-lhe absurda a tese de que seria impossível aprender a linguagem, tendo em vista que mesmo as pessoas sem qualquer conhecimento especializado eram falantes hábeis da língua em que foram socializados. A resposta que ele formulou envolveu a negação de um enunciado que o presente texto apresentou como trivial: o caráter classificatório das categorias linguísticas.

Contrapondo-se ao nominalismo de Marco Polo, Platão poderia reconhecer que as palavras “ponte” e “bridge” podem ser apenas um nome, mas esses nomes não apontam diretamente para um conjunto heterogêneo de objetos, mas para uma “essência”: um conjunto de propriedades que seriam compartilhadas por todos os elementos que podem ser corretamente qualificados como pontes.

2.2 Conceitos

Dentro de uma abordagem essencialista, as palavras “pont” e “橋” seriam signos diferentes, que compartilhariam o mesmo significado. Tais palavras não se referem diretamente ao conjunto das pontes, mas para o modo de ser específico compartilhado por aqueles objetos que nossa cultura nomeia como “ponte”. A linguagem, portanto, não teria uma função meramente classificatória: os signos linguísticos não devem decorrer de um processo de categorização dos objetos do mundo, mas devem apontar para a essência que é própria dos objetos designados. Esse tipo de perspectiva indica que termos como “peixe”, “azul” e “justiça” não são categorias que uma cultura pode redefinir da forma que ela desejar, tendo em vista que os termos que usamos devem corresponder aos verdadeiros conceitos de um objeto.

De forma alinhada com as visões de mundo de sua época, Platão constrói a sua teoria fazendo uma oposição entre pensamento e linguagem. O conceito seria uma forma de representação mental das essências, operada pelas nossas faculdades racionais. A linguagem pode nomear o conceito de “ponte”, mas esse próprio conceito é um objeto de nosso pensamento e não de nossa linguagem. Para os gregos, como para boa parte das pessoas de hoje, o pensamento é entendido como um campo muito particular. Por um lado, a sua existência no mundo parece evidente, porque pensamos (Descartes, 2001). Por outro lado, a atividade intelectual não é empiricamente observável, o que faz com que ela seja interpretada como exercício de uma racionalidade que transcende nossa corporeidade.

As pessoas pensam concretamente, mas o próprio pensamento parece ser algo intangível, o que é uma combinação desconcertante. Tal estranhamento, contudo, se desfaz por meio da clássica percepção de que o pensamento é uma atividade da nossa alma (psique), que seria nossa parte intangível. Com isso, o binômio pensamento/alma possibilita uma mediação entre o mundo sensível que nossos corpos habitam e o mundo inteligível composto pela própria ordem do mundo, que é visível para as capacidades racionais envolvidas em nossa própria cognição. Dentro dessa perspectiva, o pensamento deve espelhar sempre a própria natureza, pois a racionalidade humana é justamente a capacidade de perceber as coisas como elas são. Não se trata apenas de perceber sensivelmente os fenômenos observáveis, mas de perceber os vários elementos que compõem a ordem natural subjacente.

Uma vez que a racionalidade nos permite captar diretamente os modos de ser das coisas, nós nos tornamos capazes de fazer uma representação mental dessas essências, que chamamos de conceitos, formas ou arquétipos. Essa representação integra nosso pensamento, que é ao mesmo tempo real e abstrato. A existência real dos modos de ser que nossa racionalidade percebe no mundo termina por dissolver o caráter paradoxal do aprendizado da linguagem: as categorias linguísticas não seriam definidas em termos de outras categorias (o que levaria a uma circularidade paradoxal), mas em termos de sua correspondência a algo que transcenderia a linguagem: a essência das coisas, que seria um objeto do mundo.

Quando olhamos as variadas pontes de pedra, nós enxergamos em todas elas um arco e supomos que esse arco exista. O arco nos parece tão real quanto as pedras, embora ele somente se mostre à nossa racionalidade. A crença na existência das categorias promove uma transição do campo linguístico (dos significados) para o campo ontológico (dos modos de ser), que é uma das marcas compartilhadas pela filosofia grega, por vários sistemas religiosos e pelo senso comum. Essa é uma operação tão comum que os filósofos deram um nome específico para ela: hipostasiar, ou seja, tratar coisas abstratas como se fossem concretas.

Atividade 8. Identifique conceitos que são hipostasiados nos discursos contemporâneos.

Nossas culturas nos educam para hipostasiar os esquemas usados para descrever as coisas, tratando como existentes as categorias abstratas que integram nossas linguagens: justiça, validade, direito. Indivíduos contemporâneos muitas vezes tratam a existência de uma invisível força da gravidade com a mesma irreflexividade que os gregos falavam das almas. Essa mesma acriticidade costuma atravessar vários dos discursos atuais que falam dos direitos humanos universais, da soberania do povo e da interpretação correta da constituição. Isso quando não fazem uma oposição entre atividades psíquicas e corpóreas que atualizam a distinção grega entre alma (psique) e corpo ou mesmo referência direta aos espíritos e demônios que habitavam os discursos mitológicos que eram criticados pelos filósofos de 2.000 anos atrás. Aparentemente, nossa tendência a hipostasiar categorias descritivas não parece ter diminuído sensivelmente ao longo dos últimos milênios.

2.3 Pensamento e linguagem

Uma vez que estamos convencidos da existência do arco subjacente, chegamos ao ponto de observar uma ponte reta de concreto e a entender que o “arco” da ponte reta está ali presente: trata-se de um segmento de um círculo de raio infinito. Uma vez que estejamos convencidos de que a realidade opera segundo equações matemáticas predefinidas, podemos dedicar nossa vida a encontrar um sistema simples e elegante de equações, com as quais possamos explicar todos os fenômenos observáveis, seja na escala astronômica ou microfísica. Não é por acaso que os antigos pitagóricos não viam o estudo da matemática como uma linguagem para falar de quantidades, e sim como uma investigação sobre a própria natureza das coisas.

No mundo antigo, Pitágoras não era conhecido pelas suas descobertas matemáticas mas porque ele “presented a cosmos that was structured according to moral principles and significant numerical relationships” (Huffman, 2018). A identificação de proporções matemáticas nos fenômenos observados não era vista apenas uma descrição correta do mundo, mas uma evidência do caráter perfeitamente ordenado do universo. Um ponto relevante das narrativas antigas sobre a natureza das coisas, que atravessava tanto a noção grega de cosmos quanto os conceitos orientais de tao e dharma, era o fato de que a ordem natural era compreendida como simultaneamente física e moral.

Atividade 9. Você considera que a proibição da escravidão é uma regra natural, universalmente válida?

A mesma ordem definia tanto o movimento dos astros como as obrigações familiares, pois todas elas faziam parte da mesma natureza. Esse cruzamento entre regularidades empíricas e valores morais engendra a noção tradicional de que a natureza é sagrada: ordem das coisas não deve ser apenas conhecida, mas também adorada e obedecida, devido ao fato de que ela foi estabelecida pela autoridade fundante dos deuses. Mitos de culturas variadas nos revelam que toda tentativa de romper a ordem natural/divina das coisas conduz à tragédia, à punição, à catástrofe. A crença nessa ordem imanente atravessava os modelos antigos de pensamento e, portanto, não devemos nos surpreender com o fato de que os primeiros filósofos se conceberam como pessoas dedicadas à compreensão direta da ordem natural das coisas.

Voltado às cidades invisíveis de Calvino, a ordem natural é o arco que sustenta a ponte da realidade, e as culturas antigas julgavam que esse arco não apenas existia, mas que ele era a realidade última de um universo. Para essas culturas, existe uma precedência do arco sobre a ponte: como as pontes concretas são uma espécie de realização transitória de arcos que são eternos. Por isso, o conhecimento mais fundamental e mais respeitável é aquele que tem por objeto os próprios arcos (a ordem natural), e não a multiplicidade de pontes individuais.

Uma vez que os pensadores antigos (filósofos, religiosos, artistas, etc.) observavam o mundo na busca de compreender a ordem subjacente às coisas, é previsível que eles não considerassem que as variadas culturas poderiam classificar os fenômenos observados da maneira como melhor lhes aprouvesse. O pressuposto dessa visão de mundo é que o caráter organizado da realidade envolvia o fato de que cada elemento do universo (pessoas, pássaros, cidades, etc.) tinha um “modo de ser” que lhe era próprio e que definia o seu lugar na grande ordem. Nesse tipo de perspectiva, a essência é um “modo de ser” que é próprio a cada objeto.

Esse “modo de ser” não integra o próprio objeto empírico. Por um lado, a essência não é uma propriedade concreta e, portanto, não pode ser parte de objetos concretos. Por outro, a essência é um elemento compartilhado por todos os objetos de um mesmo gênero, o que faz parecer absurdo que ela seja entendida como um atributo de cada elemento particular. Não é que cada ponte tenha uma essência particular: a essência é justamente aquilo que todas as pontes partilham, o que faz com que ela nunca possa estar em qualquer das pontes concretas.

Atividade 10. Quais são as propriedades que definem a essência ligada ao conceito de gato?

Esse é um tipo de abordagem que faz com que os conceitos não sejam parte das próprias linguagens. Os objetos existem no mundo e a sua ontologia é determinada por um conjunto de atributos essenciais, que lhes são conferidos pela própria ordem natural. A racionalidade humana deve ser capaz de observar a complexidade do mundo e desvelar, para além da radical multiplicidade dos seres individuais, as essências que correspondem a cada classe de seres: peixes, pontes e arcos.

A concepção que opõe linguagem e pensamento supõe que o conhecimento do mundo é uma função de nossa racionalidade, enquanto a linguagem tem função meramente instrumental: trata-se de um instrumento para transmitir pensamentos. O fato de as linguagens usarem termos vagos e classificações imprecisas não altera nem os objetos nem os conceitos, que deve poder ser percebidos diretamente pela nossa razão. Dentro desse modelo, os conceitos são produtos de nossa racionalidade e não devem ser confundidos com os signos linguísticos que os designam.

Atividade 11. O conceito de gato permaneceria o mesmo se os gatos fossem extintos?

Em nossas culturas, quando uma pessoa pergunta “o que é a justiça?”, ela não quer saber o que uma cultura chama de justiça, nem se interessa por saber qual é o conjunto de atos considerados injustos em determinado momento. Esse tipo de pergunta não manifesta uma dúvida sobre o “o que chamamos de justiça”, mas sobre “o que a justiça realmente é”. Os filósofos gregos não inventaram a pergunta sobre o verdadeiro significado de “bem” ou de “coragem”. Eles apenas criaram um modelo que torna explícito que esse gênero de indagação envolve uma pergunta sobre os “atributos essenciais de um objeto”, e não sobre os “critérios de pertinência a uma categoria”.

Com isso, o nome “justiça” não apontaria diretamente para um conjunto de objetos (os atos justos), mas para a própria essência que é compartilhada por esses objetos. Assim, a análise filosófica clássica nos indica que os vários nomes que podemos ter para justiça (justice, justicia, 正義) se referem ao conceito “justiça”, que deve ser uma descrição adequada dos atributos que todo objeto precisa ter para que se constitua como ponte. Essa descrição é realizada por nosso pensamento, de tal forma que o conceito de justiça permanece o mesmo, ainda que os signos que se referem a ele mudem de acordo com a língua utilizada.

3. A gestão dos paradoxos

3.1 A justiça existe?

Marco Polo poderia responder que a justiça existe, tal como os unicórnios, os espíritos e os deuses: como elementos de um sistema simbólico. A categoria justiça pode fazer referência a essas crenças compartilhadas, mas isso não quer dizer que exista no mundo algo como a verdadeira essência da justiça.

Essa redução de todos os conceitos a categorias linguísticas classificatórias está em franco conflito tanto com as nossas culturas quanto com a filosofia clássica, pois esses sistemas consideram que os conceitos devem refletir a ordem imanente das coisas. A marca particular da filosofia grega é a de indicar que cada pessoa tem uma capacidade racional que lhe é própria e que integra a “essência” dos seres humanos, que é a sua própria “humanidade”. Essa racionalidade possibilita que cada indivíduo reconheça os padrões organizativos da natureza, identificando os verdadeiros conceitos de justiça, de beleza ou de azul.

O conceito é um produto do pensamento e o pensamento é uma função da nossa psique, ou seja, de nossa alma. Se a alma consegue apreender a ordem do mundo é porque ela também é abstrata e racional: cada ser humano tem em si um pouco da eternidade que marca a ordem imanente. Na interpretação cristã de Tomás de Aquino, a racionalidade humana é uma forma de participação na racionalidade divina (Tomás de Aquino, 1980): nosso intelecto é uma espécie de fagulha do intelecto absoluto de um deus absoluto.

Não deve causar estranhamento que uma cultura que descreve o elemento mais específico dos seres humanos é uma psique simultaneamente real, imaterial e eterna, considere que a essência de todos os objetos do mundo seja também real, imaterial e eterna. Cada uma dessas homologias reforça a percepção de um universo ordenado e coeso, cujas regularidades atravessam tanto os seres empíricos como as entidades imateriais. Para esse tipo de abordagem, o conceito não é uma classificação linguística: trata-se da representação mental de uma essência, ou seja, dos atributos que definem o modo de ser dos diversos seres que observamos.

Nos discursos atravessados pela crença em uma ordem subjacente, existe uma primazia do ontológico sobre o linguístico: eles consideram que há diversos entes no universo, sendo que o modo de ser de cada um deles é naturalmente definido. Os vários seres que compartilham a mesma essência formam uma espécie de “classe natural”, que o nosso intelecto pode identificar e representar por meio de um “conceito”. Essa representação mental ocorre por meio do puro pensamento, que opera no ambiente intangível de nossa alma cognoscente, esse curioso espaço em que os acontecimentos são simultaneamente reais e intangíveis. Nós conhecemos este plano inefável porque somos habitados por uma alma que nos capacita a sair da caverna e enxergar as coisas como elas verdadeiramente são.

Tal perspectiva pode ser chamada de “realismo”, por entender que as entidades abstratas (almas, sentidos, essências, etc.) devem ser compreendidas como objetos reais, apesar de não terem existência física. O realismo considera que o mundo somente se torna compreensível quando reconhecemos como reais as entidades abstratas necessárias para explicar os fenômenos observáveis.

Os antigos viam o movimento dos animais e se espantavam com o fato de que, em dado momento, eles morriam. Essa passagem era explicada por meio do conceito de alma: uma entidade intangível que os seres vivos tinham e que os seres mortos não tinham mais (Lorenz, 2009). O conceito de psique (alma) fazia parte do repertório mínimo de signos linguísticos que eram necessários para a produção de modelos descritivos razoáveis do mundo. As almas não eram observadas no mundo empírico, mas ninguém duvidava de sua existência, visto que ela podia ser racionalmente inferida a partir de nossas observações: como não havia explicações alternativas, admitir a existência das almas se impunha como um imperativo de racionalidade.

Os cientistas modernos fazem algo semelhante com a gravidade. Observamos vários fenômenos (queda de maçãs, órbitas dos astros, pedras que rolam numa montanha) e inferimos que eles somente podem ser explicados sob a suposição de que existe uma misteriosa “força da gravidade”. A força da gravidade é como o espírito do mundo: uma entidade quer não é observável, mas que se mostrou durante muito tempo como a explicação mais plausível para oferecer uma descrição razoável de muitos fenômenos naturais.

A potência da metafísica está justamente no fato de que nossos modelos explicativos tipicamente fazem referências a objetos não-empíricos, sem os quais nos tornamos menos capazes de compreender os fenômenos que nos cercam nem organizar sistemas sociais bem acoplados com eles. Tendo em vista que nossos universos simbólicos se enriquecem com a multiplicação de entidades abstratas (como almas, deuses, forças gravitacionais ou tempo), torna-se tentadora a proposta do realismo, de tratar esses elementos como se eles fossem dotados de uma existência autônoma.

3.2 Existem categorias verdadeiras?

O pensador realista arquetípico é Platão, que reconheceu explicitamente que nossa linguagem fala das formas das coisas como se tais formas tivessem uma existência autônoma. Platão entendia que somente podemos observar empiricamente a concretude das pedras, mas sustentava que a observação das pedras que formam uma ponte, feita por uma alma dotada de racionalidade, seria capaz de nos mostrar os atributos próprios do arco elas formam.

Frente à demanda de Kublai Khan, Platão teria feito um discurso sobre os atributos essenciais dos arcos que caracterizam uma ponte. De fato, Platão não se interessava muito pelas pedras, que não passavam de elementos empíricos transitórios. Mais importante era a própria ideia de ponte, um modelo abstrato e eterno como a alma que o observa, uma essência que transcende as pedras, as madeiras e os metais. Platão argumentava que, se somos capazes de reconhecer pontes, árvores e peixes, é porque nosso intelecto já deveria dispor de “modelos inatos”, sem os quais fatalmente confundiríamos uma ponte com uma torre ou com uma estrada.

A resposta de Marco Polo ao Khan sugere que a palavra “arco” seria uma categoria abstrata que designaria uma certa forma de organização das pedras de uma ponte. Essa posição é incompatível com a existência de um conceito objetivamente verdadeiro (ou falso) de arco ou de ponte. Para que seja possível analisar a veracidade de um conceito, é preciso que ele faça referência a algum objeto existente, motivo pelo qual Platão entendia que a veracidade objetiva de uma proposição (como “tubarões são peixes”) dependeria da existência de modelos reais tanto de “tubarão” quanto de “peixe”.

Saindo da biologia e ingressando na política, podemos nos perguntar como é possível identificar um governo justo ou uma decisão legítima. Para Platão, a possibilidade de uma argumentação sólida sobre o bem exige que a palavra justiça não seja apenas um conceito linguístico usado para categorizar os atos humanos: é preciso que exista uma “ideia de justiça”, enquanto objeto abstrato.

Marco Polo poderia retorquir: “sem atos, a justiça não existe”. “Justiça” não passa de um nome usado para designar um conjunto de atos, a partir de atributos que eles compartilham. “Direito” não passa de uma categoria que usamos para fazer referência a conjunto de enunciados normativos. Em resposta, os platônicos acentuariam que a compreensibilidade do mundo exige a existência tanto dos atos avaliados como dos critérios de avaliação. Para que haja critérios objetivos de justiça (como a vedação da escravidão ou da tortura), é preciso que esses parâmetros sejam dotados de uma existência autônoma, com relação aos fatos que eles designam.

Marco Polo provavelmente concordaria com o argumento platônico, mas acentuaria que não existe um conceito objetivamente correto de ponte, de direito ou de justiça. No universo, entre várias coisas, existem animais, comportamentos e crenças. Para que um valor fosse objetivamente correto, os critérios que o definem deveriam existir, tal como as pedras e os peixes. Por isso, o resultado das posições de Marco Polo é um relativismo, que trata todas as categorias a partir dos seus conteúdos linguísticos.

O relativismo do comerciante veneziano não é compatível com o realismo moral das nossas culturas, para as quais tem muito mais apelo as teses platônicas de que existem conceitos corretos de direito, de pessoa e de propriedade. Para que exista algo como uma categoria verdadeira, é preciso que exista no mundo uma classe natural, para que possa haver uma correspondência entre a linguagem e o mundo descrito. Categorias não podem ser baseadas em critérios de conveniência classificatória, mas devem corresponder a um modelo natural de organização das coisas: as categorias verdadeiras não são critérios linguísticos artificias, mas classificações que respeitam as essências compartilhadas pelos próprios objetos.

Quando falamos em categorias verdadeiras, em valores objetivos de justiça e em conceitos universais de direito, assumimos o lado de Platão. Querendo ou sem querer, o uso desse tipo desse repertório categorial implica a adoção de uma perspectiva essencialista, que considera existentes certos objetos abstratos.

3.3 As palavras e as coisas

Considerando que nossas formas de processamento cerebral tratam percepções, memórias e conhecimentos de maneira integrada, devemos reconhecer que Platão tinha razão em notar que a nossa linguagem opera como se os padrões de organização (como os arcos das pontes) fossem efetivamente objetos autônomos. O equívoco platônico foi o de extrair consequências ontológicas a partir de uma observação dos modos como nós construímos nossos modelos linguísticos. Todavia, para fazer justiça com Platão, é preciso ter em vista que ele vivia em uma sociedade que compreendia o funcionamento cerebral como a operação de uma alma cognoscente, que habitava um corpo perceptual e instintivo. Se a própria cognição era explicada a partir da referência a uma entidade abstrata tida como real (a alma), não deve causar espanto que Platão supusesse que o mundo real fosse estruturado a partir de certos modelos abstratos.

De Platão a Kant, os filósofos supuseram a existência de uma alma, onde se radicava a nossa racionalidade. A explicação kantiana de que nós temos a obrigação de observar as conclusões de nossa racionalidade é a de que nossa alma intelectual se submete naturalmente aos ditames da razão, pelo fato de ela ser essencialmente racional. Kant avançou com relação a Platão, visto que ele compreendeu que nos nossos modos de cognição definem nossas percepções do mundo. Enquanto Platão supunha que nós conseguimos observar diretamente a realidade de um universo essencialmente racional, Kant entendeu que nossas descrições dependem da integração de formas humanas de sensibilidade e de cognição (Kant, 2001).

Kant intuiu que nossa cognição e nossa sensibilidade operam de maneira integrada, mas não havia em sua época conhecimentos biológicos que pudessem acoplar essa intuição a uma descrição científica. Depois de Kant, tornou-se incomum falar de alma, mas consolidou-se a ideia de que haveria uma forma de “consciência”, que não poderia ser reduzida ao funcionamento material dos nossos corpos.

Já no século XX, Husserl apontou a incapacidade da ciência de descrever os processos de uma “consciência” que não era empiricamente observável e que, portanto, deveria ser compreendida a partir de uma análise reflexiva: uma análise da consciência, feita pela própria consciência. Esse tipo de reflexão deveria ser capaz de nos mostrar as “essências” dos seres: a observação cuidadosa dos fenômenos deveria ser capaz de evidenciar sua estrutura interna racional, suas essências imanentes e universais.

Ao longo do século XX, alcançamos um conhecimento biológico que rompeu com a dualidade alma/corpo e passou a investigar nossa cognição como expressão de nossos modos específicos de funcionamento cerebral.

Observar as conclusões de pensadores tão sagazes como Platão, Kant e Husserl nos sugere que os seres humanos não conseguem, a partir de uma reflexão sobre seus próprios modos de pensar, diferenciar o que são percepções e o que são modelos construídos a partir delas. Com efeito, é compreensível que os seres humanos tendam a considerar que os modelos criados por seus processos cognitivos sejam materialmente existentes, uma vez nosso processamento cerebral nos sugere que nós observamos esses padrões diretamente no mundo.

Tal dificuldade de separar os objetos empíricos dos nossos modelos de compreensão faz com que precisemos estar sempre atentos para a radical diferença entre as palavras e as coisas. Em especial, precisamos levar em conta que a palavra “ponte” designa objetos que têm determinadas características (formas, funções, dimensões), mas essa palavra não tem as mesmas qualidades dos objetos que ela designa. Palavras podem ser precisas, ambíguas, podem ter histórias longas ou curtas, podem ter etimologias diversas. As coisas podem ser verdes, pesadas e venenosas.

Esse distanciamento tão grande entre a palavra-ponte e os objetos-ponte pode nos causar estranhamento, especialmente porque vivemos em uma cultura que parece pressupor que as palavras têm uma relação mais estreita com as coisas. Se existe uma ordem no mundo, então deveria haver uma relação direta entre os objetos e as classes: deveríamos conseguir chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes. Para isso ser possível, deveríamos ser capazes de diferenciar os nomes verdadeiros, que revelam os atributos essenciais dos objetos, e os falsos nomes, que obscurecem a nossa percepção das coisas.

Platão percebeu essa necessidade e tentou superá-la reconhecendo que, para que os verdadeiros nomes sejam conhecidos, eles devem ser objetos observáveis, e não apenas rótulos: essas categorias devem ser tratadas como objetos abstratos, que existem em um mundo particular, sob pena de não podermos alcançar um conhecimento objetivo sobre a justiça, sobre o bem ou sobre a verdade (Balaguer, 2016). Se essas palavras forem meras classificações, o conhecimento moral seria impossível, algo que soa absurdo para a episteme clássica, para usarmos um conceito que Michel Foucault apresenta no livro que inspirou o título deste item (Foucault, 1989).

Segundo Foucault, cada época desenvolve uma série de condições de verdade, que determinam o que é aceitável ou não de ser dito na arena pública. Na época dos gregos, não era concebível uma explicação do mundo que não se estruturasse sobre a ideia de uma ordem natural imutável e de uma racionalidade humana capaz de desvelá-la. Dentro desse contexto, era razoável que Platão considerasse que os sentidos dos nomes teriam existência real, para que fosse possível distinguir os nomes verdadeiros dos nomes falsos.

Já para os nominalistas, a justiça não é um objeto abstrato, mas é uma categoria linguística. “Pássaro” não é um rótulo que designa um conceito que aponta para objetos que compartilham a mesma passaridade essencial. Trata-se apenas um recorte, um agrupamento de coisas diversas, realizado por razões instrumentais. Para os nominalistas, não faz sentido esperar que existam classes que correspondam às coisas.

O enfrentamento entre nominalistas e realistas é um debate recorrente na filosofia ocidental, o que denota uma dificuldade em integrarmos aquilo que a linguagem parece fazer (possibilitar classificações abstratas) com aquilo que a filosofia grega esperava da nossa racionalidade (diferenciar as categorias falsas daquelas verdadeiras categorias, que guardam conformidade com a própria ordem do mundo).

3.4 Filosofia e paradoxos

O discurso filosófico se nutre dos paradoxos que os filósofos percebem nas narrativas, inclusive filosóficas, produzidas pelas culturas que eles analisam. O pressuposto da filosofia de matriz grega é a existência de uma natureza perfeitamente organizada, a partir de uma combinação de princípios ordenadores que regem tanto o mundo físico como o mundo social, o que envolve a definição das funções de cada pessoa e das estruturas de governo.

Esse não é um traço particular da cultura grega ou europeia: trata-se de uma característica transversal que ocorre em vários modelos de pensamento do mundo antigo, tanto no ocidente como no oriente. Existem indícios, inclusive, de que esse tipo de perspectiva tem raízes na forma pela qual o nosso cérebro processa as informações que ele capta do mundo, integrando-as em sua própria rede de memórias e conhecimentos.

A suposição de que existe uma ordem coerente por trás dos fenômenos empíricos faz com que os vários atores sociais tendam a observar o mundo em busca de compreender os princípios de sua organização. Previsivelmente, os discursos que são produzidos nas variadas culturas mostram certas incongruências, especialmente em virtude de seu engajamento dogmático na reprodução de valores e narrativas dominantes em uma cultura.

A filosofia emerge nos lugares em que se torna legítimo, e não herético, que os indivíduos questionem publicamente a solidez das narrativas tradicionais, o que faz com que os temas filosóficos clássicos sejam aqueles com relação aos quais a linguagem comum não oferece respostas coerentes: os critérios de verdade e de bem, a origem do movimento, os limites do nosso conhecimento.

Uma das questões que sempre abismou os filósofos foi o caráter paradoxal do conhecimento. Por um lado, parece evidente que nós conhecemos o mundo, ainda que de forma imperfeita: cada um de nós observa os fenômenos, faz deles uma representação mental e se comunica sobre eles a partir da linguagem. A evidência de que somos capazes de conhecer se choca com a percepção racional de que o conhecimento deveria ser impossível, pois a mera observação dos fenômenos empíricos não nos conduziria a percebê-los como uma totalidade ordenada.

A pura observação dos fatos somente produz fragmentos: vemos uma árvore particular, sentimos um tremor de terra específico, saboreamos um peixe singular. Os filósofos gregos perceberam claramente que a singularidade dos eventos observados não permitiria a sua integração em uma totalidade de sentidos. Muitos de nós não ficaríamos espantados com essa situação: a falta de um sentido intrínseco nas coisas tem permeado os discursos filosóficos e científicos dos últimos duzentos anos, o que faz com que ela não seja propriamente uma novidade. Porém, muitos dos sujeitos contemporâneos sentem o mesmo desconforto de Platão perante um universo em que cada objeto não tenha um modo de ser específico, incluindo suas funções e finalidades.

Na base desse mal-estar está a nossa crença na existência de uma ordem natural subjacente, cujas origens e estruturas dessa convicção serão tratadas no segundo livro deste curso. As respostas de todos os filósofos sempre foram calcadas nas episteme de suas épocas, entendida foucaultianamente como o conjunto de critérios que define o que pode ser chamado de verdade. Desde a antiguidade, as pessoas que acreditam firmemente na existência de uma ordem natural tendem a produzir discursos que indiquem que essa ordem abrange tanto o mundo físico como o mundo social, com suas normas, valores e finalidades.

Essa crença conduz a uma percepção particular das relações entre as palavras e as coisas.  No plano da linguagem, a filosofia grega percebeu que não seria possível descrever perfeitamente a ordem natural, visto que toda descrição linguística tem certas imprecisões. A tradução do pensamento em linguagem é necessária para a comunicação, mas ela nunca consegue ser perfeitamente executada.

Nessa tensão entre as palavras e as coisas, os gregos adotaram uma terceira via. Não acreditaram demasiadamente nas palavras, mas tampouco podiam crer que o mundo seria totalmente revelado aos nossos sentidos falíveis. O acesso à realidade íntima das coisas deveria ser dado por uma outra faculdade humana: uma racionalidade capaz de desvelar as verdades eternas inscritas na ordem natural. Essa abordagem implicava uma distinção entre o pensamento (atividade abstrata por meio do qual a psique exerce sua própria racionalidade) e a linguagem (atividade por meio da qual tentamos expressar os nossos pensamentos).

Atividade 12. Você acredita na existência de capacidades psíquicas que não são resultados de atividades corporais? Você considera que “mente” é uma palavra genérica para tratar de nossas atividades cerebrais ou que existe uma dualidade mente/corpo?

A crença nessa ordem dissolve o paradoxo do conhecimento, quando ela é acoplada à crença em uma racionalidade capaz de observar diretamente os princípios naturais de organização: os modos de ser de cada coisa, que são tipicamente chamados de essência. O conjunto de características que a natureza atribui a cada objeto é a sua essência: pedridade das pedras, a humanidade dos homens, a juridicidade do direito. Uma vez que as essências existem e podem ser observadas, o conhecimento deixa de ser paradoxal.

Essa construção tem um custo ontológico: ela precisa afirmar a existência autônoma de certas entidades abstratas. O mundo não pode ser meramente físico. O universo precisa ter simultaneamente objetos físicos (como planetas e jacarés) e objetos abstratos (como os conceitos de justiça e de validade), cuja existência é metafísica. A existência autônoma de entidades metafísicas é um elemento necessário para que a filosofia grega, as religiões e o senso comum contemporâneo fundamentam a sua convicção na existência de uma ordem natural subjacente, na qual as sociedades devem se espelhar.

A linguagem teria como objeto imediato os pensamentos (pois tentaria traduzi-los de uma maneira comunicável). Seriam os próprios pensamentos que teriam como objeto as coisas como elas são: o pensamento operaria mediante conceitos, que seriam uma espécie de representação mental das coisas. Os conceitos seriam uma parte de nosso pensamento e, por isso, poderiam ser verdadeiros ou falsos, em virtude de sua correspondência com o modo de ser das coisas descritas.

O verdadeiro conceito de peixe ou de justiça dependeria do seu grau de correlação com a essência dos peixes ou da própria justiça. Como os conceitos são formas de pensamento, eles existem de forma autônoma, fora da linguagem. Platão chegou a explicar essa autonomia pela indicação de que há um plano puramente arquetípico, habitado pelos modelos abstratos (porém reais) que participam da própria ordem subjacente à natureza.

Em oposição a essa concepção realista dos conceitos e das essências, tomadas como objetos dotados de existência autônoma, construiu-se uma abordagem que rompeu a dualidade pensamento linguagem. Considerando que a cognição humana opera por meio de operações linguísticas, vários pensadores construíram uma teoria alternativa à filosofia clássica e ao senso comum, baseada na afirmação de que as categorias linguísticas eram apenas formas de classificação dos fenômenos, a partir de critérios predefinidos. Nessa percepção, os signos linguísticos são meros rótulos, que apontam para certos conjuntos de objetos (peixes, direitos reais ou governos), por meio da fixação de um critério de pertinência a esse conjunto.

Nas perspectivas nominalistas, os conceitos são apenas categorias e, portanto, não correspondem a nada que tenha existência autônoma no mundo. O universo não é percebido como um conjunto de objetos dotados de modos de ser (finalidades, funções, significados, etc.) definidos pelos princípios organizadores de uma ordem subjacente. As coisas têm apenas existência: não têm significação, não têm deveres, não têm uma teleologia naturalmente definida. Essa abordagem não é comprometida com a descoberta da ordem imanente do mundo, mas com a construção de modelos linguísticos que sejam capazes de oferecer uma compreensão adequada de fenômenos empíricos.

O resultado de uma abordagem nominalista é a impossibilidade de falar de “conceitos verdadeiros”, pois os conceitos não correspondem a nada. Referir-se a conceitos verdadeiros (de justiça, de direito ou de política) seria tão estranho como falar de sabores verdadeiros de sorvete ou de formas literárias verdadeiras. Esse tipo de linguagem trata certos critérios classificatórios (escolhidos de forma evidentemente seletiva) como se fossem essências naturais eternas e predefinidas: a essência da prosa, o romance arquetípico ou o verdadeiro sabor do sorvete de chocolate.

O presente texto sugere que as teorias de tipo realista e nominalista são vias alternativas para gerir o paradoxo do conhecimento, constituído pela aparente impossibilidade de descobrir a essência das coisas a partir de uma observação do mundo. Os realistas descrevem o paradoxo de um modo particular (as observações empíricas não nos mostram os padrões metafísicos subjacentes) e o dissolvem por meio da afirmação de que temos uma capacidade racional de enxergar diretamente os princípios abstratos de organização. Do lado realista, o paradoxo é dissolvido pelo simples abandono da ideia de que haveria uma ordem de significados objetivos a ser apreendido. Se os únicos significados que existem são aqueles que atribuímos às coisas, por meio das categorias que usamos para classificá-las, essa operação não conduziria a paradoxos, mas tampouco nos levaria a um conhecimento objetivo dos padrões de organização do mundo.

Atividade 13. Você se sente mais próximo da sensibilidade dos realistas ou dos nominalistas?

Referências