Os discursos e as coisas
1. Categorias paradoxais
1.1 A dissolução dos pseudoproblemas
A maioria dos discursos filosóficos contemporâneos indica que o conceito de peixe não existe no mundo. Somente os peixes concretos existem. O conceito de peixe é entendido um artefato linguístico, uma distinção formulada por algumas culturas em nosso esforço para falar do mundo. A artificialidade de todos os conceitos não é uma tese aceita pelas perspectivas filosóficas clássicas, que se dedicam à identificação da natureza ontológica das coisas. Tal essencialismo ainda está presente em várias abordagens utilizadas contemporaneamente, como as correntes neokantianas e fenomenológicas, que rejeitam as abordagens linguísticas e naturalistas e dão continuidade à tradicional busca de essências imanentes.
Nós podemos indagar: o que é um peixe? Uma abordagem ontológica deveria se perguntar sobre qual seria a essência dos peixes, determinação que seria necessária para saber, por exemplo, se os golfinhos fazem parte dessa categoria. Já uma perspectiva linguística observa os discursos sociais que utilizam a palavra “peixe” para identificar as regras implícitas nesse uso. Um tal ponto de vista opera uma inversão das questões filosóficas clássicas, que não buscam compreender as estruturas das práticas sociais, mas analisar em que medida elas correspondem à própria natureza das coisas.
Se classificarmos os animais pelo seu habitat, as baleias e os tubarões poderiam ser incluídos na mesma categoria, à qual poderíamos dar qualquer nome que desejássemos. Entretanto, não seria tão fácil saber se os cavalos-marinhos ou as moreias são efetivamente peixes, ou se elas integram outras categorias de animais marinhos. Para os realistas, esse tipo de dificuldade classificatória teria uma dimensão ontológica, pois ela seria entendida como uma dificuldade na identificação precisa da essência dos peixes, fundamental para a definição precisa desse conceito. Já para os nominalistas, esta seria simplesmente uma imprecisão nos critérios de pertinência definidos para a categoria linguística “peixe”.
Em um primeiro momento, esse diagnóstico fez com que os filósofos da linguagem se dedicassem ao desenvolvimento de repertórios categoriais mais rigorosos, capazes de reduzir as imprecisões típicas dos nossos discursos. A intuição que inspira tal movimento é a de que muitas das questões ontológicas tradicionalmente ligadas à filosofia não passam de perguntas mal formuladas.
A imensa plasticidade de nossa linguagem natural permite perguntar coisas estranhas, tais como: “qual é a cor do quadrado redondo?”. Embora seja linguisticamente compreensível, a pergunta parece mal formulada, pois utiliza categorias inadaptadas aos objetos descritos. Um quadrado não pode ser redondo porque a definição de quadrado é incompatível com um formato circular. Um quadrado redondo não é uma categoria ontológica paradoxal, mas apenas uma expressão mal construída.
Em vez de nos espantarmos com a densidade filosófica do paradoxo ontológico envolvido na existência dos quadrados redondos, deveríamos apenas excluir de nossa linguagem a possibilidade de fazer esse tipo inadequado de atribuição de qualidades. Não há relevância alguma em discutir qual é a cor de um quadrado: esta não é uma questão filosófica, mas um pseudoproblema. Como quadrados são entes abstratos e cores são atributos de entes concretos e, deveríamos reconhecer que a atribuição de certas qualidades a determinados seres não é falsa nem verdadeira: é simplesmente absurda.
Construções linguísticas absurdas podem ser muito importantes para a literatura, mas não oferecem bases sólidas para um conhecimento rigoroso do mundo. Tal como afirma o poeta Manoel de Barros, a poesia envolve uma espécie de delírio da linguagem, que ocorre quando uma criança afirma que “ouviu a cor dos passarinhos” (Barros, 2010c). A filosofia da linguagem reconhecia plenamente a força poética dos paradoxos e a importância social da arte, mas tentou diferenciar claramente as funções do discurso explicativo da ciência e a inventividade criativa dos discursos artísticos.
A ciência busca se constituir como um conhecimento rigoroso do mundo e, nessa medida, precisa utilizar uma linguagem tão precisa quanto possível. Para a poesia, é importante poder utilizar figuras paradoxais e surpreendentes, como o intenso azul dos quadrados redondos. Já o discurso científico não pode recorrer a tais figuras surrealistas e metafóricas, pois todos os seus enunciados devem ser claramente definidos e empiricamente testáveis. Os primeiros filósofos da linguagem perceberam que os discursos científicos eram permeados de expressões imprecisas e de referências essencialistas, que geravam proposições cuja correspondência com os fatos era difícil de avaliar. Para superar esse problema, foi desenvolvida uma abordagem analítica que impunha aos discursos científicos uma exigência particular de clareza: uma ciência rigorosa exigia uma linguagem rigorosa, que precisa impedir (tanto quanto possível) o surgimento de ambiguidades e imprecisões.
1.2 Sentido e referência
Os primeiros filósofos da linguagem, como Bertrand Russell (Russell, 1905), mapearam as formas pelas quais o caráter impreciso das linguagens naturais (como o português e o francês) conduzia à produção de enunciados paradoxais. Tais incongruências tendem a ser percebidos pelos realistas como questões ontológicas complexas, pois eles compreenderem que há uma homologia entre a linguagem e o mundo (Conti, 2020) : um paradoxo na linguagem apontaria para uma incongruência nas próprias coisas, o que seria inadmissível, dado o pressuposto metafísico de que a natureza é um conjunto perfeitamente ordenado.
Russell identificou que a fonte mais comum dos paradoxos era a autorreferência, que ocorre quando um enunciado linguístico fala de si próprio, como na famosa sentença mentirosa: “Esta frase é falsa” (Bolander, 2017). Se a frase for verdadeira, ela é falsa. Se ela for falsa, será verdadeira. Como é absurdo que uma afirmação possa ser simultaneamente verdadeira e falsa, não temos critérios adequados para classificá-la.
Essa questão aflorou de forma incisiva no final do século XIX, quando Gottlob Frege tentou compatibilizar a matemática com a lógica a partir do uso extensivo de uma teoria dos conjuntos. Na base dessa teoria estava a noção própria de conjunto: fariam parte de um determinado conjunto todos os elementos que cumprissem os critérios de pertinência previamente definidos, que Frege chamava de “marcas” (Frege, 1960a, p. 145).
E o que a matemática tem a ver com a filosofia? A centralidade da noção de conjunto, que também é utilizada pelo próprio Frege para pensar o papel linguístico das categorias, como “justiça” ou “ponte”. No momento que foram publicadas, as teses de Frege não tiveram muito impacto pois, como ele próprio identificou, suas ideias pareciam ser demasiadamente metafísicas para os matemáticos e demasiadamente matemáticas para os filósofos (Frege, 1960a, p. 143). Com o tempo, porém, a sua influência se tornou tão grande que veio a ser reconhecido como o marco inicial do linguistic turn: o momento em que se diagnosticou que a filosofia tradicional incidia recorrentemente no erro de tratar significados linguísticos como se eles se tratassem de elementos ontológicos. A teoria de Frege permitiu que entendêssemos cada conceito (como “peixe”) faria referência a um conjunto determinado de seres (os “peixes”), sendo que a pertinência a esse grupo seria definida por um conjunto finito de atributos (Frege, 1960a, p. 150).
Uma das principais inovações filosóficas de Frege foi identificar que a descrição de que cada signo linguístico envolve duas dimensões diversas, que não devem ser confundidas: o sentido do termo (o conjunto de atributos) e a referência (o conjunto dos objetos designados) (Frege, 1960b). Essa composição parecia dar a Frege uma teoria logicamente adequada para explicar nossas capacidades linguísticas, que superasse os últimos resquícios de realismo. Os realistas tentaram trataram esses repertórios de atributos de um signo como se eles fossem um objeto abstrato: a essência. Frege reduziu o significado de um conceito a um conjunto finito de atributos (e não de substâncias), que servem para fixar os limites de um conjunto determinado de objetos.
Uma das grandes vantagens desse sistema foi deslocar vários problemas do nível da referência para o nível do sentido, o que permite tratar sem problemas de categorias paradoxais, como quadrados redondos. Para as abordagens essencialistas, o conceito é uma representação mental de uma essência, que é compartilhada por um grupo de objetos. Na perspectiva de Frege, não há espaço para supor que os objetos referidos por um conceito partilham uma essência comum: eles são apresentados simplesmente como o conjunto de objetos referidos por um conjunto de marcas arbitrariamente definidas. Segundo o próprio frege, a definição de um conceito não permite saber sequer se ele tem alguma referência.
Utilizando o referencial teórico formulado por Frege, Bertrand Russel defendeu explicitamente que expressões paradoxais como “quadrado redondo” são plenamente compreensíveis e que não acarretam um problema filosófico, uma vez que entendamos que a possibilidade linguística de formular um enunciado não implica a afirmação de que as entidades nomeadas efetivamente existem (Russell, 1905). A possibilidade de falar de quadrados redondos, de cavalos alados ou de leis objetivamente válidas não implica a manifestação da crença de que esses objetos efetivamente existem, tendo em vista que esse tipo de construção pode ser apresentado como um signo linguístico que tem sentido, mas não tem referência.
Nos termos da teoria de Frege, não se pode sequer cogitar da existência de conceitos verdadeiros, visto que a definição de verdade adotada nessa abordagem (correspondência de um enunciado aos fenômenos descritos) somente permite a avaliação de enunciados, e não de conceitos. Nomes e definições têm sentido e referência, mas eles não trazem enunciações que possam ser comparadas com os fatos empíricos. Portanto, a veracidade de um conceito passa a ser considerada uma ideia tão absurda quanto a sua cor ou seu volume: trata-se da atribuição de uma propriedade que não tem qualquer relação com o objeto designado.
Esse é um passo importante para a filosofia porque estabeleceu as bases de um discurso filosófico no qual a noção de “essência” simplesmente não tem lugar. A linguagem matematizada das ciências modernas não deixou espaço para discutir a finalidade dos objetos, uma vez que “finalidade” não é uma propriedade que possa ser designada por meio das linguagens matemáticas. Uma vez que a matemática somente é capaz de estabelecer relações quantitativas entre objetos, não se mostra viável produzir uma equação sobre as essências e as finalidades. Com isso, a matematização exclui das ciências qualquer dimensão metafísica, sem que seja preciso sequer apresentar argumentos nesse sentido.
No campo da filosofia, a abordagem matematizante de Frege exclui de seu sistema linguístico qualquer possibilidade de tratar das essências de um conceito, visto que o conceito de “sentido” não é apresentado como uma referência a objetos ideais, mas como um conjunto arbitrário de marcas. Com Frege, foram estabelecidas as bases para uma teoria que, em vez de refutar o essencialismo das perspectivas filosóficas tradicionais, se limita a qualificá-lo como um “delírio linguístico”, que pode ser evitado por meio do desenvolvimento de um repertório categorial adequado, que inviabilize o afloramento de questões metafísicas.
2. Verdade e validade
2.1 Verdade e enunciação
Uma das consequências mais duras da perspectiva analítica de Frege e Russell é a impossibilidade de avaliar a veracidade de afirmações feitas sobre nomes sem referência ou com sentidos indefinidos. Para ambos, a veracidade é uma qualidade que somente faz sentido atribuir a enunciados completos, compostos por definições claramente estabelecidas e empiricamente verificáveis (Frege, 1960b; Russell, 1905). Como Wittgenstein esclarece no Tractatus (Wittgenstein, 1922), obra que consolida a abordagem analítica, somente enunciados descrevem de fenômenos empíricos podem ser avaliados em termos de sua veracidade.
Para as narrativas analíticas, a “veracidade” é entendida como uma correspondência entre enunciados descritivos e os fenômenos que eles descrevem. O nominalismo de Frege chega ao ponto de redefinir a palavra “conceito” para descrevê-la como uma função que atribui qualidades a um objeto (Frege, 1960b). Na teoria madura de Frege, em vez de ser uma representação mental de uma essência, o conceito passa a ser considerado como uma mera atribuição de propriedades, que teria a estrutura C(x): esse enunciado corresponderia à atribuição à variável x dos atributos definidos pelo conceito C.
Na medida em que o conceito seria um enunciado atribuidor de qualidades, ele seria passível de ser avaliado em termos de verdade e falsidade. Chamar essa função de conceito é quase uma ironia: tal como na abordagem clássica, os conceitos são passíveis de veracidade; todavia, o seu conteúdo ontológico é esvaziado, na medida em que os conceitos são reduzidos à afirmação de que um certo objeto faz parte de uma classe (Frege, 1960b).
Embora haja sentido linguístico na atribuição de qualidades a um objeto empiricamente inexistente (como o atual rei da França ou o sentido objetivo de uma norma), a inexistência de uma referência concreta impossibilita a avaliação da veracidade dessa frase. Com essa construção teórica, Frege nega a possibilidade de analisar a veracidade de objetos que não têm existência empírica. Essa posição leva Wittgenstein a defender, no Tractatus, que o conhecimento rigoroso dos cientistas deve permanecer em silêncio sobre todas as afirmações cuja veracidade não pode ser acessada em termos de correspondência com os fatos (Wittgenstein, 1922). Esse naturalismo é posteriormente generalizado pela epistemologia de Popper, que nega status de cientificidade a qualquer enunciado que não pode vir a ser refutado por meio de uma referência factual (Popper, 1973).
A aplicação direta dos critérios analíticos ao campo jurídico resultaria em uma refutação não apenas do caráter científico do conhecimento jurídico. Como aponta Frédéric Rouvière, a falseabilidade popperiana exige a possibilidade de submeter as afirmações jurídicas a um teste empírico que não faz sentido quando se trata de enunciados sobre significados de um texto normativo, cuja definição não pode ser medida em termos factuais (Rouvière, 2015, p. 2227). Enunciados que atribuem propriedades a nomes sem referência empírica (como “direitos humanos” ou “culpa”) simplesmente não têm cabimento dentro de um conhecimento rigoroso acerca de fenômenos do mundo.
Essa incompatibilidade flagrante com as abordagens jurídicas (Rouvière, 2015, p. 2227) faz com que os filósofos do direito que dialogam com a filosofia da linguagem tipicamente utilizem referenciais teóricos diversos do cientificismo naturalista da filosofia analítica de Frege, Russell e do primeiro Wittgenstein.
A primeira via que se abre é um retorno ao realismo de matriz platônica. Retorno não é bem a palavra, tendo em vista que a maioria dos juristas nunca abandonou a sensibilidade jusnaturalista, que compreende o mundo social a partir da pressuposição de que existe uma ordem jurídica imanente à natureza, que deve servir como modelo para as nossas formas de organização social.
Juristas ligados ao jusnaturalismo continuam tratando da “soberania popular” e do “sentido correto das normas” como entidades observáveis no mundo, e não como categorias de análise. No âmbito dos discursos dogmáticos do direito, permanece comum a adoção acrítica de uma perspectiva realista, comprometida com a existência de entidades abstratas como o verdadeiro sentido de “propriedade”, de “gênero” ou de “personalidade jurídica”.
Para esse tipo de abordagem, a possibilidade de formular categorias paradoxais continua sendo entendida uma deficiência que deve ser enfrentada por meio da adoção de categorias efetivamente adequadas às essências dos objetos descritos. Os juristas desse tipo tendem a seguir o neokantismo do Kelsen da Teoria Pura do Direito, que se dedicou ao estudo das categorias universais do direito, que seriam necessárias a qualquer prática jurídica que se pretendesse racional e que, nessa medida, poderiam subsidiar a criação de uma teoria geral do direito (Kelsen, 2010). Esta mesma tendência pode ser verificada em juristas que se apresentam como ligados à fenomenologia, que atualiza as pretensões platonistas de encontrar as essências universais da experiência jurídica, tal como ocorre em Bergel (Bergel, 2012).
A segunda via que se abre é a adoção de uma abordagem realista diversa, que não aponta para a realidade dos conceitos, mas para a observação efetiva de fenômenos empíricos e das práticas jurídicas efetivas. Entre os vários realismos, destacam-se os da escola escandinava, de Karl Olivecrona e Alf Ross, da escola americana, que culmina nos Critical Legal Studies (Brunet, 2022) e da escola francesa, de Michel Troper (Troper, 2011). Essa via se aproxima dos critérios de cientificidade da escola analítica, mas termina por romper com o senso comum dos juristas, na medida em que nega a possibilidade de fazer afirmações objetivamente corretas sobre os fatos.
Uma terceira via envolve a incorporação do giro pragmático da filosofia da linguagem, que trata as interações linguísticas como formas de agir, e não como formas de se referir objetivamente aos fatos. Uma das possibilidades abertas por esta perspectiva é a construção de teorias da argumentação, que não enxergam o direito como uma prática orientada por um conhecimento científico acerca do direito (que seria impossível), mas como uma atividade social que envolve a fixação de regras argumentativas próprias.
Essas alternativas serão abordadas ao longo do curso de filosofia do direito, mas a devida compreensão dessas possibilidades exige que você se posicione com relação aos paradoxos da fundamentação do conhecimento, que são resumidos na formulação do célebre trilema de Munchhausen.
2.2 O trilema de Munchhausen
A tomada de posição com relação às possíveis abordagens teóricas e filosóficas sobre a sociedade (inclusive sobre o direito e a política) envolve a devida compreensão do paradoxo que veio a ser denominado como trilema de Munchhausen (ou trilema de Agripa) (Weisberg, 2021), que decorre dos usos de conceitos relacionais, tais como causalidade e justificação, que indicam a existência de uma relação entre objetos diversos.
A justificação estabelece uma relação entre argumento e conclusão. A causalidade indica que certos fenômenos (ou conjuntos de fenômenos) são aptos a desencadear outros fenômenos e que, dessa forma, podem ser percebidos como sua causa. O caráter relacional desses fenômenos faz com que diferentes objetos sejam ligados entre si, resultado que, em si, não é paradoxal. Todavia, nossos discursos não se limitam a afirmar que determinados fenômenos são causados por outros, mas partem do pressuposto de que “todo fenômeno tem uma causa”. Essa afirmação pode soar trivial, mas o resultado de sua aplicação é o de que nos impelir a buscar as causas de um fenômeno e depois investigar as causas das causas, depois as causas das causas das causas, e assim por diante.
O conceito de causa, entendido como uma categoria explicativa aplicável a todos os fenômenos, nos conduz a uma rede infinita de causas e efeitos, que é a primeira possibilidade do trilema. Para os modelos de pensamento que supõem uma ordem no mundo, a corrente infinita de relações parece absurda, pois ela introduziria um grau de incerteza inadmissível. Se toda explicação causal exige uma nova explicação, seria inalcançável um conhecimento seguro do mundo, pois não nos seria dado encontrar a “primeira causa” de um fenômeno, ou a “justificativa” que fundamenta uma crença.
Para evitar que toda explicação nos conduza a uma cadeia infinita, parece que há outras duas alternativas possíveis. A primeira nos faz retornar à afirmação de que as categorias linguísticas devem ser compreendidas em uma rede, pois o seu significado é definido fazendo referência a outras categorias. Esse tipo de explicação gera uma espécie de circularidade: uma categoria depende de outras, mas isso não indica uma cadeia infinita, mas um sistema fechado.
Ocorre que tal descrição não é congruente com o fato de que aprendemos as linguagens. Um sistema circular de referências mútuas não teria começo nem fim, e, portanto, não poderia ter uma porta de entrada para quem desconhece todas as referências. Como nós aprendemos uma língua a partir de nossas experiências sociais, supomos que o sistema linguístico não deveria ser composto apenas de referências internas, inacessíveis a quem já não as conhecesse. Portanto, a circularidade parece não oferecer uma descrição adequada de nossa relação com o mundo.
As duas primeiras alternativas do trilema são a cadeia infinita e a circularidade, e ambas não são acopláveis a nossas culturas baseadas na existência de uma ordem natural finita e compreensível. Por esse motivo, os filósofos sempre se dedicaram a oferecer narrativas compatíveis com a terceira alternativa: a existência de certos princípios absolutos, que permitiriam cortar a cadeia infinita e fundamentar as relações que se baseiam neles.
Um dos argumentos mais célebres da filosofia é a tese aristotélica de que a existência de relações de causalidade exigiria a existência de um primeiro motor imóvel. A utilização de um conceito universal de causalidade, aplicável a todos os fenômenos, exige que essa universalidade seja rompida ao menos em um caso: a causa primeira, que seria a origem de todo movimento. No campo do direito, Kelsen se notabilizou por usar a mesma lógica e sustentar que, para que os juristas possam falar em normas válidas, é preciso supor a existência de um primeiro motor imóvel normativo: uma norma válida em si mesma, que ele designou como norma fundamental (Kelsen, 1992, 2010).
A herança dos filósofos gregos é o projeto de encontrar fundamentos tão sólidos que nos permitam romper as cadeias infinitas de relações, estabelecendo pontos de partida seguros para ancorar nossos conhecimentos. Somente esse tipo de certeza possibilitaria a passagem da opinião (doxa) para um conhecimento rigoroso (episteme). Essas certezas nunca podem ser encontradas no mundo físico, pois o seu caráter absoluto e eterno somente é compatível com a imutabilidade do mundo inteligível, constituído pela própria ordem natural e percebido pelas faculdades racionais de nossa psique.
2.3 Os paradoxos do direito
Apesar de muito promissora, a construção proposta por Frege e continuada pela filosofia analítica tinha um problema fundamental: ela utilizava uma noção de conjunto que fatalmente conduzia a paradoxos. Esses paradoxos não ocorriam enquanto os conjuntos tinham como integrantes apenas objetos simples, mas afloravam toda vez que se tentava fazer afirmações gerais acerca dos próprios conjuntos. Russell apontou para Frege que seria possível falar de um conjunto R, ao qual pertencessem todos os conjuntos de objetos existentes. Essa definição particular conduziria à paradoxal afirmação de que R ∈ R, ou seja, que o conjunto deveria ser parte de si mesmo, algo que o próprio Frege chegou a admitir explicitamente (Frege, 1960c).
Embora esse problema matemático possa parecer muito abstrato, ele tem uma aplicação direta no campo do direito: o discurso jurídico trata do próprio direito e, com isso, muitos são os enunciados que terminam por gerar alguma forma de autorreferência, instituindo circularidades que atravessam várias dimensões do direito.
A circularidade ocorre em uma dimensão estrutural, tendo em vista que normas jurídicas do direito positivo regulam as suas próprias condições de validade e suas formas de interpretação. A tese de que a sociedade deve ser submetida ao império do direito (rule of law) implica que o sistema jurídico deve imperar sobre si próprio. Esse tipo de construção faz com que seja sempre indecidível saber se o direito pode ou não ser alterado mediante processos interpretativos: por um lado, os juízes têm o dever de seguir o direito; por outro, a sua interpretação do direito tem validade jurídica.
Da existência de um direito interpretável emerge uma dinâmica paradoxal, em que as normas são alteradas na medida em que são interpretadas. Toda decisão judicial é simultaneamente aplicadora e criadora: portanto, aquilo que chamamos de direito nunca pode ter um conteúdo definido em si mesmo. Os magistrados, especialmente aqueles que atuam nas cortes supremas, tomam decisões que se justificam sobre um “sentido normativo” cujo sentido é definido pelas próprias decisões que o aplicam.
Esse é um paradoxo que pode ser resolvido a partir do reconhecimento que a aplicação do direito é uma atividade política, tal como afirma Hans Kelsen (Kelsen, 1992). Kelsen indica que os juízes sempre são atores políticos, pois a implementação do direito exige a realização de escolhas valorativas que não podem ser previstas integralmente no conteúdo das normas. O custo dessa desparadoxalização é o abandono do pressuposto que permeia o discurso jurídico: a ideia de que existe um direito a ser aplicado.
Existe também uma outra dimensão paradoxal, na relação das descrições do direito com o seu conteúdo. O discurso dos juristas busca descrever os direitos e deveres que cada pessoa tem, o que implica a adoção de uma perspectiva que trata o direito como um objeto a ser conhecido. Todavia, cada posicionamento doutrinário integra um debate social infinito acerca do sentido objetivo do direito. Com isso, não são apenas os atos de autoridade que geram situações paradoxais: toda afirmação sobre o direito tem a possibilidade de interferir na percepção social do direito.
Tal como acontece nas línguas naturais, toda frase que enunciamos contribui, ainda que marginalmente, para a configuração geral da língua. Toda língua muda ao longo do tempo, por meio da acumulação de pequenas variações nos modos como os falantes produzem seus discursos: abandonando algumas palavras, mudando pronúncias, criando neologismos, etc. A língua, tal como o direito, é produto de uma comunidade de falantes que, ao produzirem discursos que obedecem a uma certa “ordem discursiva”, participam de um processo de contínua transformação dos seus conteúdos.
Uma pessoa que afirme “esta frase não é uma frase”, incorre fatalmente em paradoxos. Um jurista que afirme “a minha interpretação é conforme ao direito” incorre fatalmente em um jogo de autorreferências. Se o conhecimento jurídico for considerado como o conjunto das proposições verdadeiras sobre o direito, ele fatalmente incorre no paradoxo de Russell: ele deverá ser um subconjunto de si mesmo.
Para evitar os paradoxos, filósofos como Russel e Tarski introduziram em seus sistemas uma forma de vedar a possibilidade de que uma frase falasse de si própria, por meio da fixação de níveis hierárquicos (Bolander, 2017). Afirmações que integram uma hierarquia determinada podem tratar de objetos de níveis inferiores, mas nunca podem falar de objetos do próprio nível. No direito, esse tipo de diferenciação de níveis é bastante comum, e realiza exatamente essa função desparadoxalizante.
A distinção entre direito natural e direito positivo, por exemplo, viabiliza a criação de uma relação unilateral: o direito natural regula e define os critérios do direito positivo, mas o direito positivo não pode regular o direito natural. Com isso, o paradoxo da autorreferência é evitado: o direito positivo não pode tratar de si mesmo e o direito natural dispensa justificação, por tratar-se de um ponto de partida considerado autoevidente.
A releitura moderna dessa estratégia conduziu o constitucionalismo a promover uma cisão no próprio direito positivo, distinguindo o direito constitucional (que se impõe ao próprio poder legislativo) e direto infraconstitucional (que pode ser alterado pelos legisladores). Para além da estabilização política, essa divisão cria níveis hierárquicos diversos: a legislação é produzida pelo poder legislativo, que recebe sua autoridade da constituição, que foi instituída pelo exercício de uma soberania popular que dispensa justificação. Mais uma vez, somos colocados frente à fixação de vários níveis hierárquicos, com vedação de autorreferência e fundamento em uma autoridade absoluta.
O problema da autoridade absoluta é que ela gera uma exceção injustificável na cadeia de validade. Na nossa linguagem normativa, validade é um conceito relacional: um objeto válido sempre tem sua validade definida por um outro objeto, de nível hierárquico superior. Porém, toda vez que um jurista analisa um sistema normativo concreto, ele pressupõe uma justificação objetiva da sua validade, o que termina exigindo a postulação de certos elementos que sejam “válidos em si mesmos”. Portanto, a noção de validade nos conduz fatalmente ao trilema de Munchhausen.
No discurso jurídico da modernidade, essa incongruência é tipicamente enfrentada pelo desdobramento do conceito de validade em dois modos: a validade relativa das normas positivas e a validade absoluta do direito natural ou das autoridades naturais. Com isso, o discurso jurídico moderno termina por atualizar, ainda que inconsciente, a metafísica platônica.
Quando um filósofo moderno se pergunta “o que é o direito?”, ele normalmente parte do pressuposto de que existe a entidade abstrata “direito”. Não existem apenas direitos e deveres particulares a cada pessoa, mas deve haver um sistema que articula todos esses direitos e deveres dentro de uma ordem normativa global. A teoria jurídica é influenciada pelo platonismo, pela crença de que existem certas interpretações corretas, certos conceitos que correspondem aos fatos, certos objetos que são simultaneamente abstratos e reais. Tal influência faz com que a adoção de perspectivas ligadas ao nominalismo da filosofia contemporânea cause estranhamento a muitos juristas.
Se a validade jurídica, a norma e a interpretação correta fossem apenas nomes (e não objetos abstratos), parece que a ciência jurídica perderia totalmente o seu objeto. Se tais entidades forem apenas categorias linguísticas, não poderemos fazer sobre elas afirmações objetivamente válidas. Tudo estava relativamente bem enquanto éramos inocentemente jusnaturalistas: um sistema que retira sua validade da própria estrutura natural do mundo pode parecer absurdo, mas não é paradoxal. Uma norma jurídica seria válida quando ela correspondesse à própria ordem natural, que seria simultaneamente física e normativa.
Todavia, quando o avanço do historicismo corroeu a velha estratégia jusnaturalistas de afirmar a existência de uma ordem normativa imutável e eterna, os paradoxos da normatividade voltaram a ser sentidos como um problema fundamental. No século XVIII, Kant percebeu que somente restava para a modernidade investir na única ponte que ainda ligava o mundo sensível ao inteligível: o pensamento.
A modernidade elegeu como ponto arquimediano a evidência do pensar: um pensar que é, ao mesmo tempo, empírico (porque percebemos nosso pensamento) e metaeimpírico (porque nossos sentidos não são capazes de perceber nosso pensamento). O projeto kantiano é construído sobre essa distinção clara entre o pensamento e as coisas. As críticas de Hume aos raciocínios indutivos (Hume, 1975) convenceram Kant de que a observação direta das coisas não pode garantir generalizações confiáveis. Por outro lado, Kant partilhava a confiança cartesiana de que somos capazes de perceber diretamente o nosso próprio pensar. Em Kant, a racionalidade humana continuava sendo um exercício do pensamento, que era uma faculdade de nossa alma imaterial.
Quando a filosofia da linguagem corrói a distinção entre alma e corpo, substituindo-a por uma faculdade linguística a partir da qual nós elaboramos discursos acerca do mundo, rompem-se as últimas pontes que ligavam o mundo das essências abstratas e eternas e o mundo das contingências concretas e transitórias. Se o conhecimento sobre o mundo é um discurso linguístico produzido dentro da própria historicidade humana, o caráter paradoxal do direito se torna evidente: os juristas utilizam uma noção de validade que nos deixa presos em um labirinto de Munchhausen, sem qualquer saída aparente.
3. As frestas do labirinto
3.1 O delírio da linguagem
Em nosso itinerário pelos labirintos da linguagem, uma das primeiras coisas a abandonar é a ideia de que o conhecimento pode ser um espelho da natureza (Rorty, 1995). Até bem pouco tempo atrás, entendíamos que os conceitos deveriam corresponder às propriedades das coisas. Os pássaros seriam seres essencialmente diversos das cobras e as cobras seriam seres essencialmente diversos dos lagartos. Essa é a herança ontológica que devemos aos pensadores da Grécia antiga e que constitui a marca distintiva da filosofia clássica ocidental.
Nosso esforço de compreensão não começou com um trabalho consciente voltado a definir categorias artificiais, mas com a tentativa de descobrir as essências imutáveis, objetivas, absolutas. No mundo antigo, as palavras deveriam corresponder, de alguma forma, a propriedades existentes no mundo, pois os conceitos deveriam ser portadores de uma verdade. Não se colocava em dúvida de que deveria haver um conceito verdadeiro de pássaro, que fosse capaz de designar uma classe de objetos cuja essência (ou seja, cujo modo específico de ser) era a de ser um pássaro.
A ideia de um conceito verdadeiro gera uma série de dificuldades, que foram bem percebidas pelos antigos. Os nomes eram percebidos como referências a um conceito, e conceitos somente podem ser verdadeiros quando correspondem a algo que existe. O Rei da Pérsia, as Pirâmides do Egito, a Justiça: essas expressões linguísticas somente podem ter um sentido objetivo quando elas denotam um objeto existente, pois o nome estabelece uma relação de correspondência.
O nome substitui, na linguagem, a própria coisa referida. Quando falo de Sócrates, eu trato de uma pessoa que existiu, não falo de uma palavra. Quando digo que Sócrates era mortal, eu uso esse adjetivo para atribuir uma qualidade a um sujeito. Mas qual é objeto que corresponde à palavra mortal? A mortalidade é um atributo, não é uma coisa. Na nossa percepção intuitiva da linguagem, as coisas têm atributos, mas não existem atributos autônomos, independentes das coisas. O azul, o frio, o justo. Todas as qualidades somente existem enquanto atributos de objetos específicos, de tal modo que parece claro que não faz sentido buscar no mundo um azul que não seja a cor das coisas azuis.
Ocorre que quando dizemos que um determinado objeto é um cavalo ou um pássaro, ser cavalo ou ser pássaro são atributos desse objeto. A consciência de que a linguagem é uma coleção de atributo, sendo que esses atributos não correspondem a coisas determinadas, coloca em risco a nossa percepção comum, que toma a linguagem como uma série de palavras que indicam determinados fatos (ser azul, ser cavalo, ser injusto).
Ser. Na raiz de todos esses atributos, está a própria noção de ser. Essa é a noção mais original, mais poderosa e mais problemática. Será que ser é um atributo? Um objeto pode ser azul, ser quadrado e ser leve. Mas ele pode simplesmente ser? Essa é uma questão complicada porque o verbo ser (to be, être, estar) é normalmente utilizado para estabelecer relações: ele relaciona um objeto a um atributo.
Linguisticamente, a frase “o cavalo é” parece simplesmente incompleta. Ela tem um problema no nível sintático, ou seja, da própria estrutura de construção do enunciado: falta um pedaço da frase, o que a torna sem sentido aparente. Podemos dobrar a frase e dizer “o cavalo é uma coisa que é”, e isso nos aponta para um sentido não relacional da ideia de “ser”, que normalmente expressamos por meio do verbo “existir”. Quando dizemos que o cavalo existe, atribuímos uma qualidade ao cavalo (existir) por meio de um verbo e não de adjetivos qualificadores ligados por um verbo ser ou estar.
Parece que existir e ser estão ligados, mas essa ligação é obscura. Inclusive porque atribuímos várias qualidades a seres inexistentes: unicórnios são brancos, quadrados redondos não existem. Quando a própria inexistência é um atributo linguisticamente atribuível a um objeto, levados a um terreno pantanoso: qual é o ser de um objeto que não existe? Nessa pergunta, o que aflora como pantanoso não é exatamente o terreno de uma linguagem que pode ser simplesmente emotiva e poética, portadora de fantasias delirantes. O que fica borrado é a ligação entre linguagem e verdade, que parecia evidente para Platão e a filosofia grega, mas que fica obscurecida pela possibilidade de construirmos enunciados com sentidos absolutamente paradoxais.
Que verdade é possível numa linguagem que delira? A linguagem humana permite falar de coisas existentes e inexistentes. Fala inclusive de coisas impossíveis, como quadrados redondos e estrelas de massa infinita. A linguagem, como um mecanismo de interação entre seres humanos, não nos conduz a paradoxos. Os paradoxos linguísticos, inclusive, são uma grande fonte artística, utilizada exaustivamente pelos poetas como Manoel de Barros, especialistas em construir situações em que a palavra delira.
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo,
lá, onde a criança diz:
eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
Funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz
De fazer nascimentos
–O verbo tem que pegar delírio. (Barros, 2010c)
Os poetas talvez estejam certos, explorando a linguagem como um elemento expressivo. Isso faz com que os poetas sejam perigosos, pois eles podem convencer as pessoas de coisas falsas e, inclusive, de coisas nocivas. Por isso mesmo Platão pretendia vedar a poesia, com sua capacidade incrível de produzir sonhos e sombras que nos distanciam da verdade que não nos é mostrada pela linguagem, mas pela nossa racionalidade.
3.2 Metafísicas linguísticas
A crítica mais produtiva dirigida à filosofia analítica não veio dos neometafísicos jusnaturalistas, mas dos filósofos que acoplaram a reflexividade linguística dos analíticos com a radical historicidade das abordagens hermenêuticas. Esse movimento começa pelo diagnóstico de que o projeto de elaborar linguagens rigorosas é um curioso delírio cientificista.
Frege era um matemático, interessado em rigor e precisão, crítico do modo estranho e irreflexivo como filósofos inventavam categorias incongruentes. Parece inquestionável a imensa contribuição da filosofia analítica que ele inspirou: desenvolvimento de uma consciência crítica sobre o que os filósofos fazem quando buscam desvendar racionalmente a essência natural das coisas.
Se a filosofia é uma análise crítica das potencialidades de um sistema simbólico, a filosofia analítica marca uma dobra especialmente importante: trata-se da filosofia olhando-se no espelho e percebendo as estruturas retóricas decorrentes de sua crença acrítica nas potencialidades ontológicas de nossa racionalidade.
Desde a demolidora crítica de Frege, os filósofos refletiram muito sobre o sentido de suas práticas e o alcance dos seus conceitos. Quanto mais pensamos nas relações entre as palavras e as coisas, mais temos dificuldades para ajustar nossas conclusões com um senso comum para o qual continua sendo estranha a noção de que as coisas das quais falamos, mesmo as que nos parecem mais concretas, já são (ao menos em parte) linguagem. Se essa condição linguística dos conceitos é relevante para categorias que designam objetos concretos (como planetas, pontes e seres vivos), o que dizer das entidades que reconhecemos desde sempre como abstratas?
O que dizer da justiça? O que dizer da verdade ou da legitimidade? Que podemos conhecer acerca dos motivos pelos quais criamos e derrubamos regimes de governo bastante reais? Todas essas palavras parecem destituídas até dos elementos empíricos que as pontes parecem ter. A justiça, a igualdade de gênero e o direito de não ser escravo parecem ser puras formas linguísticas, que não existem sequer como formas de generalização. Tais conceitos, centrais em nossas culturas e nossas formas de interagir com o mundo, talvez não passem de artefatos linguísticos, categorias a partir das quais classificamos certos objetos considerados moralmente relevantes.
Se tais conceitos forem apenas convenções linguísticas, não haverá nenhuma afirmação objetivamente verdadeira sobre eles: não haverá a possibilidade de identificar uma justiça objetiva, uma verdade necessária, uma legitimidade natural. Frente a esse problema, Platão optou por desafiar o senso comum (afirmando que as formas precisam existir) para oferecer uma justificativa mais sólida à percepção comum de que o mundo é uma totalidade perfeitamente ordenada. A filosofia analítica desafiou dois mil anos de platonismo para afirmar que, se desejamos um conhecimento rigoroso, devemos evitar paradoxos e, consequentemente, nos calar acerca de tudo o que não pode ser empiricamente observável.
Essa opção pelo silêncio termina por revelar uma certa forma de pensamento que não é exatamente platonismo, mas é mais antigo e mais abrangente: a crença na ordem fundamental das coisas. A filosofia analítica nos mostrou que a atividade reflexiva nos leva a admitir certas ideias paradoxais, ou seja, concepções que desafiam a opinião comum das pessoas (doxa). Por mais que o discurso de Frege se recuse a insistir na ontologia grega, ele termina adotando uma metafísica deflacionada: para falar da realidade, precisamos usar conceitos que não estão no mundo, mas que são partes do nosso aparato linguístico.
A Justiça não precisa existir metafisicamente como ideia, para que seja possível discutir se uma condenação penal foi injusta ou não. Platão precisou transformar o sentido das palavras em coisas, para que elas tivessem existência objetiva em um mundo metafísico; os analíticos identificaram essa armadilha retórica e tentaram transformar as palavras em signos que se referem a coisas. De um modo ou de outro, há um desejo de fazer com que seja possível construir um conhecimento rigoroso das coisas, sem que fiquemos atolados no lamaçal dos paradoxos linguísticos, que colocam em risco a imagem que fazemos dos nossos próprios saberes.
Tal como os platonistas, os analíticos têm uma rejeição fundamental pelo caráter paradoxal da linguagem. Ambos os grupos diagnosticam uma tensão entre linguagem e objetos e resolvem essa tensão propondo uma revisão desparadoxalizadora: do lado platônico, postula-se a necessidade de a linguagem espelhar as essências; do lado analítico, busca-se a construção de regras semânticas que impeçam a ocorrência de discursos paradoxais.
Olhando em perspectiva, os discursos analíticos causam estranhamento, na medida em que eles acentuaram a inevitabilidade dos paradoxos, mas ainda assim insistem em construir um conhecimento sem paradoxos. Creio que essa postura vem do reconhecimento de que os paradoxos são incongruências linguísticas: dado o caráter arbitrário das linguagens, seria legítimo evitá-los por meio da construção de regras linguísticas adequadas.
Ainda está presente aí a noção de que existe uma ordem física perfeitamente organizada, que não pode ser bem descrita por uma linguagem científica paradoxal. Podemos construir qualquer linguagem, mas a linguagem que desejamos fazer, enquanto cientistas, é um sistema protegido contra paradoxos. Nesse ponto, o desejo de rigor dos matemáticos se encontra com o desejo jurídico por segurança. O Frege jurídico é Kelsen, que formula também uma lógica, uma linguagem na qual seja possível falar do direito, sem as pretensões essencialistas da filosofia metafísica. Ambos são extremamente importantes em seus contextos, são muito coerentes em seus argumentos, mas conduzem ao mesmo problema: os custos de uma teoria desparadoxalizada são altos demais.
3.3 Aporia da caverna
Entre os vários pontos que o direito e a filosofia têm em comum, está o fato de que tanto os filósofos como os juristas produzem conhecimento acerca do seu próprio conhecimento.
Uma filosofia sem paradoxos não pode falar de si mesma, mas apenas de outros discursos, como a ciência. Uma filosofia perfeitamente analítica precisa deixar de ser filosofia, mas não pode deixar de sê-lo, por tratar-se de um discurso sobre os saberes. Uma filosofia sem paradoxos é inevitavelmente um discurso paradoxal.
Uma teoria jurídica sem paradoxos não pode falar de si mesma, mas apenas de outros discursos, como a dogmática jurídica. Uma teoria jurídica analítica precisa adotar o descritivismo naturalista das ciências, precisa aspirar a ser uma ciência jurídica, com objetos empíricos e métodos bem definidos. Uma teoria jurídica sem paradoxos é uma teoria paradoxal, pois ela influencia o objeto que deveria descrever.
Toda afirmação sobre o direito contribui para a transformação ou manutenção do sistema normativo que se busca explicar de forma externa. Toda reflexão humana acerca dos limites e potencialidades de nossa capacidade de conhecer o mundo nos impele para um jogo de espelhos que fatalmente nos leva a paradoxos. Nem o direito nem a filosofia podem escapar de sua vocação para a autorreferência, produzindo discursos que tratam de si mesmos.
Esse tipo de circularidade gera problemas incontornáveis porque ninguém é bom juiz de suas próprias percepções. Nenhum de nós consegue identificar claramente seus próprios delírios como fantasias e suas próprias convicções como crenças. Por isso, as autodescrições dos filósofos e dos juristas se aproximam das autobiografias, que são tão interessantes pelo que mostram quanto pelo que ocultam e distorcem. De modo resumido, o exercício de um autoconhecimento conduz ao problema de que as observações reflexivas se apresentam como uma descrição objetiva de um fenômeno (ou mesmo como a única descrição objetiva possível), mas terminam por fazer apreciações sobre os méritos e sobre a autoridade da própria atividade descritiva.
O espelho que usamos para nos observar nos oferece uma imagem muito diferente do que a que nos daria uma câmera que nos filmasse, pois os espelhos invertem as imagens: tudo que está de frente aparece como se estivesse de costas e o que está na direita aparece na esquerda. Como estamos acostumados a nos olhar no espelho, tomamos a imagem invertida pela nossa verdadeira imagem, o que tende a causar estranhamento toda vez que vemos uma foto na qual nossa imagem aparece “desinvertida”. Essa imagem “objetiva” desafia nossa autoimagem, pois nossos rostos são assimétricos e acaba que a imagem real nos parece uma outra pessoa, desconforto que as câmeras frontais de celulares buscam contornar gerando selfies que simulam espelhos.
Curiosamente, a inversão da selfie faz com que ela nos pareça mais natural, pois o natural não é uma imagem objetiva da realidade, mas uma imagem que emula o mundo que tipicamente percebemos. Ocorre, porém, que não temos como obter um conhecimento objetivo sem que seja um conhecimento produzido pelo olhar humano, que não sabe identificar o quanto seus modos de enxergar determinam o conhecimento dos objetos que são observados.
Além de ser pouco objetiva, a autodescrição tipicamente não leva em conta que, toda vez que descrevemos a nós mesmos (ou atividades das quais tomamos partes), esse processo de (re)construção de narrativas altera as nossas próprias percepções. No direito, uma transformação de perspectivas implica uma alteração fundamental dos objetos: no direito de família, por exemplo, a discussão sobre a legitimidade das relações homoafetivas alterou nossas concepções sobre quem pode se casar. Um debate sobre gênero pode alterar substancialmente os entendimentos acerca dos direitos das pessoas trans. Todo debate sobre um universo simbólico tem o potencial de alterar a sua própria estrutura, uma vez que os significados são definidos pelos processos interpretativos. Inclusive, a utilidade da psicanálise vem justamente desse fato: descrever nossa vida faz com que compreendamos os significados de nossos atos de forma diversa, o que gera uma alteração simultânea nos critérios de observação e na coisa observada (que não são os fatos empíricos, mas a sua significação pessoal e cultural).
Parece impossível construir um olhar neutro, puramente descritivo, sobre objetos simbólicos. Seja porque não existe o ponto arquimediano no qual possamos assentar uma alavanca que nos mova a nós mesmos, seja porque todo processo cognitivo altera a estrutura do objeto observado. Não há saída para esse labirinto: o estabelecimento de hierarquias não resolve o problema porque, ainda que os filósofos apontem os riscos da autorreferência, nossos discursos precisam falar de si mesmos. O principal objeto das narrativas sociais é a própria sociedade, que se reproduz por meio de uma dinâmica narrativa que simultaneamente a transforma.
Tal como ocorre na natureza, a reprodução perfeita conduz à morte. Dado o caráter mutável do ambiente em que os seres vivos estão inseridos, uma reprodução demasiadamente fiel impediria o afloramento das diferenças, cuja acumulação opera lentas transformações no conjunto. Todo universo simbólico é estruturalmente aberto a essa constante mutação: ela não pode ser impedida, ainda que possa haver algum controle sobre os ritmos de transformação. A construção de uma mentalidade literalista e a vedação da interpretação dos textos sagrados pode reduzir a velocidade da mutação, inclusive para níveis que gerem um risco efetivo de desacoplamento com relação ao ambiente.
Entretanto, não é possível proibir que uma linguagem fale sobre si própria. As hierarquias antiparadoxalizantes de Russell têm um custo maior do que os seus benefícios. Os discursos humanos sempre terminam falando sobre si mesmos, numa “dobra” que fatalmente conduz aos paradoxos da autorreferência: discursos que querem descrever o mundo terminam sempre por falar de si próprios, numa paradoxal subjetividade objetiva.
Portanto, não há uma superação do paradoxo dentro da linguagem. De fato, é assim que eu compreendo as observações de Frege com relação ao paradoxo apontado por Russell: precisamos admitir que ele existe, mas não parece possível elaborar uma linguagem que resolva esse problema (Frege, 1960c). Frege sugere que não parece ser viável construir uma linguagem que deixe de operar com base em sistemas de classificação e, portanto, toda linguagem acabará sendo levada a admitir a ideia de um conjunto que englobe a si mesmo.
Não parece viável construir um caminho linguístico para fora da linguagem. Tal como diagnosticava o antigo taoísmo, uma linguagem que use categorias se torna inevitavelmente paradoxal. Essa velha compreensão impeliu os taoístas a afirmar (como os filósofos gregos...) que os paradoxos estariam na própria linguagem, e não no mundo. Porém, enquanto os gregos insistiram em afirmar o primado do pensamento sobre a linguagem, como se houvesse a possibilidade de alcançar conceitos perfeitos não-linguísticos, Lao Tzu sugeriu que a postura do sábio é não falar.
Curiosamente, esta também foi a postura de Wittgenstein no Tractatus: a filosofia analítica indica que somente é possível falar sobre fenômenos empíricos e que, toda vez que a linguagem corresse o risco de dobrar-se sobre si mesma, deveríamos nos calar. Mas o fato é que o próprio Wittgenstein não se calou, pois ele logo percebeu que a função da linguagem não era compreender o mundo, mas construir um mundo de significações.
Quem quer que observe a linguagem como um instrumento para falar objetivamente do mundo perde de vista o fato de que a função social da linguagem é outra: trata-se de um artefato que foi desenvolvido para a coordenação da vida em sociedade e não para fazer ciência. Os gregos construíram a descrição ilusória de que os humanos têm uma racionalidade que lhes permite observar diretamente os padrões de uma ordem natural perfeita e justa. Os biólogos contemporâneos contestam que a função adaptativa de nossas habilidades cognitivas seja esta: a racionalidade começa a ser descrita como uma habilidade capaz de coordenar pessoas, e não de descrever a efetiva verdade das coisas.
Considerando que a vida da espécie humana é um empreendimento coletivo, é provável que não exista uma saída para fora da linguagem. Por isso, parece ter mais razão Cornelius Castoriadis quando renova a velha metáfora platônica para dizer que não podemos sair da caverna (1992).
Pensar filosoficamente não é sair da caverna nem substituir a incerteza das sombras pelos contornos nítidos das próprias coisas, a claridade vacilante de uma chama pela luz do verdadeiro Sol. É entrar no Labirinto [...]. É perder-se em galerias que só existem porque as cavamos incansavelmente, girar no fundo de um beco cujo acesso se fechou atrás de nossos passos — até que essa rotação, inexplicavelmente, abra, na parede, fendas por onde se pode passar. (Castoriadis 1992, 10)
O que podemos é andar incansavelmente pelas galerias, dando voltas em becos sem saídas até que esse caminhar em círculo faça abrir rachaduras nas paredes. A saída não está lá para ser percorrida, mas é possível criar novos caminhos. Gradualmente. Com muito esforço. Mas é possível. Não há aberturas que nos conduzam para fora da caverna, mas é possível modificar os túneis por onde transitamos e as formas como vivemos dentro deles.