Se a modernidade foi inicialmente construída como um discurso acoplado ao das religiões cristãs (relidas como cultura), o desenvolvimento do giro historicista, que marca o século XIX, abre espaço para a percepção de que uma parte relevante do que era percebido como ordem natural não passava de resultados de crenças culturais. Nesse momento, houve uma espécie de radicalização da modernidade, voltada a purificar os resquícios religiosos que haviam sobrevividos dentro das concepções de mundo.

Tal giro historicista não ocorreu nas próprias organizações sociais (que continuaram fiéis a seus mitos formadores e a suas identidades simbolicamente construídas), mas ficou circunscrito aos círculos intelectuais, especialmente às ciências e à filosofia. As teorias desenvolvidas a partir de meados do século XIX estão ligadas à incorporação de um historicismo, ou seja, do reconhecimento de que as organizações humanas e os sistemas simbólicos precisam ser compreendidos como uma construção histórica, e não como a revelação de uma ordem natural.

Podemos enxergar nesse movimento uma radicalização da de uma modernidade que começou reduzindo a ordem natural aos elementos racionalmente necessários, e se desenvolveu por meio de uma deflação ainda maior dos elementos que estariam aptos a compor essa ordem natural. Os historicismos do século XIX colocaram em dúvida a possibilidade de que valores metafísicos pudessem ser parte dessa ordem natural, o que deslocou a moralidade (e não apenas a religião) para o campo das crenças privadas. O desenvolvimento de uma consciência histórica teve impactos substanciais nas teorias científicas sobre a sociedade, com o desenvolvimento de abordagens históricas sobre a economia, sobre as concepções morais e sobre as organizações políticas.

Porém, a historicização com impactos mais profundos foi a mais inesperada: a historicização da biologia, por meio das teorias da evolução. Antes dos biólogos evolucionistas, as estruturas metafísicas da modernidade eram justificadas por uma natureza humana. Até esta época, parecia claro que toda organização complexa deveria ter sido criada por uma deidade intencional ou que ela deveria corresponder a uma essência natural, o que apontava para a existência de uma natureza humana fixa e eterna. O impacto das teorias de Darwin representou um terremoto para as perspectivas metafísicas da modernidade, que assentavam a validade objetiva em características essenciais da humanidade.

A ideia de que as características dos seres humanos eram partilhadas com outros animais e que foram sendo lentamente construídas em um processo histórico e contingente inviabilizava a crença de que haviam características essenciais da humanidade, fixadas de uma vez por todas. A lógica darwiniana era simples o suficiente para ser compreendida: um processo de variação cega e de seleção pelo ambiente, suficientemente longo, poderia gerar organizações complexas, sem partir de nenhum valor essencial.

Não se tratava de historicizar apenas as tradições culturais, mas de interpretar historicamente a natureza humana, uma ideia tão radical que até hoje levanta objeções das pessoas ligadas a uma interpretação metafísica do mundo. Ainda era possível falar de uma ordem natural, mas esta ordem era ainda mais deflacionada: ela somente poderia ser composta por certos padrões de interação entre fatos, descritos pela ciência, sem qualquer possibilidade de construir modelos explicativos baseados em uma natureza humana imanente. Esse tipo de crítica colocava em xeque a teoria política da modernidade: reduzia o contratualismo a uma mitologia, tratava os governos constitucionais como uma forma política contingente e, no campo jurídico, retirava qualquer sentido da ideia de direito natural.

O historicismo pode ser visto como uma radicalização da modernidade, na medida em que rompe definitivamente as pontes entre verdade e tradição. A modernidade política de Hobbes já acentuava o caráter artificial dos governos, mas tentava qualificá-los como uma exigência natural da nossa racionalidade. Essa artificialidade rompia com a ordem política medieval, mas também rompia com a ideia renascentista de que deveríamos buscar no passado os modelos do presente. Para um europeu do século XV, a idade de ouro dos romanos podia soar como uma espécie de paraíso perdido.

A utopia moderna não foi a de retomar aquilo que um dia fomos (e que somos fadados a repetir ciclicamente), mas a de implantar um novo modelo de sociedade, capaz de concretizar no presente os direitos naturais dos homens. Os antigos percebiam os ciclos políticos como inevitáveis: monarquias degeneravam em tiranias, o que motivava revoltas aristocráticas que abriam espaço para a formação de oligarquias que fatalmente se reconcentrariam em uma monarquia ou seriam dissolvidas em uma democracia cuja instabilidade reconduziria à monarquia, ou a uma nova oligarquia. A ordem natural era cíclica.

A utopia política moderna era a de romper esse ciclo e criar formas políticas estáveis, cuja solidez estaria na sua capacidade de se adequar à ordem natural. Na utopia moderna, a igualdade, a liberdade não são apresentadas como simples aspirações políticas, mas como direitos de cada um dos homens. Com isso, o discurso social da modernidade é um discurso jurídico, pautado pela definição de cada indivíduo como um sujeito de direitos, e pela elaboração de limites jurídicos ao exercício do poder político, e pela inevitabilidade de um progresso rumo a uma modernização cada vez maior da sociedade.

Nesse contexto, a linguagem do direito tornou-se tão central que a própria sociedade passou a ser apresentada como resultado de um contrato. Não somos mais uma comunidade natural de irmãos ou de fiéis, mas um grupo de indivíduos unidos por meio do estabelecimento de uma constituição que regula a organização e o exercício do poder político.

O Estado de Direito instituído por essa constituição é uma invenção moderna, calcada sobre a ideia de que não pode haver autoridade acima da própria lei. Nesse contexto, o Direito Público assumiu uma função preponderante, pois é ele que organiza o império da lei (rule of law), essa marca definidora do modelo de organização social do ocidente contemporâneo.

Inicialmente, a modernidade buscou equilibrar a artificialidade dos governos com a naturalidade dos direitos, uma solução híbrida que sempre gerou paradoxos e contestações, pois instaurou uma luta para definir quais seriam os verdadeiros direitos naturais, essas formas peculiares pelas quais os juristas modernos reintroduziram a tradição na ordem natural racionalizada. O giro historicista inviabilizou essa estratégia de justificação da política, afirmando a artificialidade de todos os direitos.

Se os diretos todos forem frutos da política, não haveria sentido na tese básica do contratualismo liberal: a de que a legitimidade dos governos pode ser medida pela observância dos direitos naturais e pela adoção de um governo limitado capaz de garantir a sua observância.

No âmbito das teorias jurídicas, o giro historicista abre a cisão, até hoje mal resolvida, entre historicistas e naturalistas. Parece-me que o senso comum dos juristas buscou construir uma solução híbrida, em que parte do direito seria historicamente determinado, mas parte do direito integraria uma ordem natural imanente: a igualdade, a liberdade, a autonomia dos povos, a dignidade humana e os outros direitos interpretados como naturais. Ocorre, porém, que esse híbrido é o próprio naturalismo: nenhuma teoria naturalista postula que todo o direito seja natural, mas apenas que uma parte dele (a mais relevante) esteja inscrito na ordem das coisas. Chega-se a uma espécie de jusnaturalismo mínimo (que reconhece pouquíssimos direitos como sendo naturais), mas que não pode trabalhar sem a noção de uma ordem natural metafísica.

A prevalência atual do naturalismo reflete o fato de que o historicismo teve um impacto gigantesco nas teorias sociais e filosóficas, mas teve um impacto reduzido nas práticas sociais e no senso comum. Esse distanciamento entre teorias e mitologias continua até hoje e marca uma espécie de eclipse da filosofia como discurso social relevante.

Na compreensão e na justificação do projeto moderno,  uma série de filósofos teve papel fundamental. Hobbes, Descartes, Hume, Rousseau e Kant são referências obrigatórias para a compreensão do projeto social iluminista. Porém, uma vez que iluminismo alcançou hegemonia, os filósofos perderam seu espaço, pois esse novo tempo era daqueles capazes de concretizar o projeto, e não de criticá-lo.  A reflexão crítica insufla revoluções, mas atrapalha a construção lenta e paulatina do novo regime, colocando dúvidas sobre as novas certezas, dificultando os processos de catequização por meio dos quais as novas verdades são cristalizadas no senso comum.

A filosofia viva e pulsante costuma estar na contramão das tradições, e desde Sócrates sabemos que um dos papéis típicos do filósofo é o de realizar a crítica dos poderes e dos saberes instituídos. O filósofo sempre exige uma justificativa que legitime o exercício do poder, mas as autoridades tradicionalmente não se veem no dever de realizar uma justificativa filosófica explícita, exceto nos momentos de crise.

Nas épocas em que existe uma tradição claramente hegemônica, é percebida como natural a autoridade reconhecida pela tradição (que pode se dos deuses, dos reis, dos pais, dos homens, do povo). No século XIX, a necessidade de modernizar as sociedades era sentida com um imperativo necessário, visto que eram justamente as nações modernas que ganhavam poder na ordem internacional. O processo de modernização (que para nós foi um processo de colonização) era vivido como parte da própria ordem natural, dispensando inclusive as justificativas racionalistas. Enquanto contestação da tradição, a modernidade envolveu a mobilização filosófica. Quando os filósofos historicistas vieram acusar a modernidade de ser apenas uma nova tradição, essa crítica não teve muitos ecos fora da academia.

A naturalização da modernidade torna dispensável uma justificação filosófica explícita, pois ninguém se sente no dever de provar o que é por si evidente. Quando as crises colocam em xeque a eficácia desses processos de naturalização, cresce a importância dos filósofos e de suas variadas estratégias argumentativas de legitimação, que permitem ancorar o poder em outros pontos.

Uma vez que a locomotiva iluminista do progresso foi colocada em movimento, que restava a nós exceto implantar no mundo as utopias da modernidade? A necessidade de garantir a liberdade, a igualdade e o desenvolvimento econômico são objetivos tão óbvios que dispensam qualquer justificação filosófica. A cientifização dos saberes, a codificação e a constitucionalização dos direitos, a democratização da política e a liberalização da economia eram os caminhos evidentes a seguir, e eles estavam ligados às mitologias do início da modernidade, questionadas diretamente pelas perspectivas historicistas.

No plano prático da política, já não mais era preciso discutir o que fazer, mas apenas como fazer. Nesse ambiente, o século XIX assistiu a uma espécie de rarefação filosófica dos discursos sociais em geral, e do discurso jurídico em particular. A filosofia antiga era vista como artigo de museu e a filosofia moderna já tinha sido assimilada pelas narrativas constitucionalistas do senso comum. Nesse contexto, os questionamentos de ordem filosófica eram vistos como uma abstração fora de lugar. Não é por acaso que, ao longo do século XIX, a filosofia perdeu espaço na formação dos juristas, que passou a ser dominada por duas ordens de discurso que são normalmente qualificadas como positivistas, mas que não devem ser confundidas.

De um lado, houve um positivismo cientificista, caracterizado pela tentativa de superar o discurso filosófico dos direitos naturais por meio de um discurso de matriz científica. Aliás, como veremos adiante, houve vários positivismos cientificistas, ligados às diversas concepções de ciência que existiam no início do século XX, entre os quais cabe destacar o positivismo sociológico e o positivismo formalista.

Porém, as concepções ligadas a um positivismo científico nunca conseguiram ter grande penetração no discurso jurídico, que continuou sendo dominado por uma perspectiva que sacraliza a lei e encara o direito como um conjunto de normas a serem aplicadas. Esse enfoque dogmático reduz o direito a um saber técnico, voltado a capacitar os estudantes a manejar os instrumentos judiciais disponíveis. E esse tecnicismo, que também é chamado de positivismo, é que está na base do senso comum dos juristas.

Esse senso comum é o horizonte a partir do qual os juristas modernos compreendem o seu campo de conhecimento e a sua atividade. Trata-se de uma concepção filosoficamente rarefeita, inconsciente dos seus pontos de partida, das suas incongruências e dos seus limites. É claro que ele está permeado por uma filosofia implícita, que organiza os conceitos e dá sentido ao conjunto. Porém, esses conceitos raramente são trazidos ao nível da reflexão, na medida em que a formação jurídica está concentrada em como manusear os conceitos estratificados.

Um nome mais preciso para essa filosofia implícita foi dado por Luis Alberto Warat: senso comum teórico dos juristas (Warat 1994). Não se trata exatamente do senso comum dos juristas, no sentido das concepções e valores que esse grupo normalmente partilha. Trata-se especificamente do senso comum dos juristas acerca de sua própria atividade, acerca das teorias e das práticas sobre o direito. O modo como os juristas compreendem a sua própria atividade é mediado por uma série de conceitos, de descrições de como se estrutura a política, de explicações acerca de como opera o judiciário, de elementos que promovem uma autodescrição. Trata-se de um sistema evidentemente paradoxal, pois o exercício de se autodescrever termina por também nos determinar: descrever-se modifica o objeto descrito, em um jogo circular.

Na atualidade, esse senso comum teórico, essa filosofia implícita rarefeita (mas que não se pretende rarefeita...) adota a forma do constitucionalismo, que é o modo pelo qual os juristas se apropriaram das teorias políticas modernas. Esse constitucionalismo aparece como um conjunto acoplado de teorias, entre as quais:

  1. uma teoria do ordenamento jurídico, que apresenta o direito como um sistema normativo;
  2. uma teoria da norma jurídica, que descreve as unidades que compõem o direito e as categorias a partir das quais elas podem ser apreendidas;
  3. uma teoria constitucional, que apresenta as constituições como normas político-jurídicas que têm propriedades especiais, que permitem que elas promovam a interação entre o sistema político e o sistema jurídico;
  4. uma teoria do estado, que confere uma leitura normativa da política, descrevendo os governos como pessoas que são constituídas pelo direito constitucional, mas que estabelecem o ordenamento jurídico infraconstitucional;
  5. uma teoria hermenêutica, que orienta dogmaticamente as formas de interpretação normativa e aplicação do direito;

Entendo que essas teorias, acopladas, são a base da percepção contemporânea acerca dos fenômenos jurídicos, motivo pelo qual é preciso compreender tanto as teorias filosóficas e jurídicas que elaboram esses conceitos quanto a forma simplificada (e distorcida) por meio da qual o senso comum teórico dos juristas se apropria delas.

Porém, não é possível entender adequadamente essas teorias sem ter desenvolver previamente um repertório de conhecimentos históricos, que permitam compreender os processos "genealógicos" por meio dos quais elas foram desenvolvidas. Cada teoria dessa tem raízes antigas, tem desenvolvimentos próprios, tem conceitos contingentes e suas próprias tensões. Cada uma delas é composta pela sedimentação de conceitos que têm origens diversas, itinerários particulares e funções muito diferentes.  Por isso, o primeiro passo para compreendê-las e realizar uma espécie de arqueologia do pensamento jurídico, que  nos oferece as bases mínimas para perceber um pouco das sutilezas que estão envolvidas nos debates jurídicos contemporâneos, mas que escapam das descrições bastante limitadas que nos são oferecidas pelo senso comum teórico dos juristas.