Publicação original

Costa, Alexandre A. O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria e Sociedade, n. 19, v. 1, 2011.

Resumo

Resumo: O constitucionalismo conduz à paradoxal admissão de uma soberania popular que precisa ser absoluta (para fundamentar a validade da constituição) e ao mesmo tempo limitada (para respeitar a validade da constituição). Esse paradoxo da soberania limitada tem sido evidenciado por pensadores políticos e jurídicos ao longo da última década, e o poder constituinte é uma das principais categorias a partir das quais o constitucionalismo enfrenta essa questão.    O presente artigo trata das relações existentes entre o poder constituinte e o paradoxo democrático, e para isso (1) realiza uma investigação arqueológica acerca de como foi possível que a teoria política desenvolvesse essa construção paradoxal, (2) explica o modo como a teoria política elaborou a noção de poder constituinte para enfrentar algumas decorrências desse paradoxo, (3) mostra como essa categoria foi incorporada pelo constitucionalismo liberal e faz uma análise da teoria liberal do poder constituinte e (4) mostra como as críticas democráticas contemporâneas dessa categoria conduzem a uma identificação entre poder constituinte e soberania popular.

Abstract

Constitutionalism leads to a paradoxical acceptance of a popular sovereignty that must be absolute (to support the validity of the constitution), while limited (to respect the validity of the constitution). This paradox of limited sovereignty has been evidenced by legal and political thinkers during the last decade, and constituent power is one of the major categories used by constitutionalism to face this problem.  This article discusses the relationship between the constituent power and the democratic paradox, and for that it (1) conducts an archaeological investigation about how it was possible that political theory developed this paradoxical construction, (2) explains how political theory developed the notion of constituent power to face some consequences of this paradox, (3) shows how this category was included by liberal constitutionalism and analyses the liberal theory of constituent power and (4) shows how contemporary democratic criticism about this category leads to an identification between constituent power and popular sovereignty.

1. O povo tem o direito de alterar a constituição?

Parece que sim, pois as teorias democráticas tendem a reconhecer o princípio da soberania popular, inscrito em nossa Constituição sob a forma canônica de que todo poder emana do povo. Por outro lado, a dogmática constitucional entende que, ao estabelecer uma constituição, o povo se compromete a exercer sua soberania apenas de forma indireta, por meio de instituições que operam de acordo com os procedimentos definidos na própria lei fundamental. Assim, o único ato soberano do povo seria abdicar de sua soberania, atribuindo poder constituinte a um grupo de representantes responsável por instituir um governo de poderes limitados. Nessa perspectiva, típica do constitucionalismo, até mesmo uma manifestação unânime dos cidadãos brasileiros seria percebida como ilegítima para estabelecer quaisquer direitos e obrigações.

Isso ocorre porque instituir uma constituição significa estabelecer que todas as instituições de um Estado são submetidas a uma lei que define a organização e os limites do poder estatal. Tal norma não pode ser modificada pelas autoridades estatais porque seria absurdo admitir que uma instituição constituída alterasse o fundamento de sua própria autoridade. Se todas as regras presentes no texto constitucional pudessem ser alteradas pelo poder legislativo, então não haveria constituição, dado que o legislativo seria soberano. Essa soberania legislativa não seria uma categoria nova na filosofia política, pois ela foi defendida pelos teóricos modernos anteriores ao movimento constitucionalista, como Locke e Rousseau.

Utilizando os conceitos desenvolvidos pelos contratualistas, podemos afirmar que as constituições nasceram quando, no século XVIII, o poder legislativo abdicou da sua própria soberania por meio do estabelecimento de leis que previam um sistema de poderes divididos e limitados. Esse procedimento permitiu que se substituísse a soberania legislativa pela supremacia da constituição, embora a própria legitimidade constitucional fosse justificada com base na ideia de soberania popular.

Tal combinação de constituição soberana e povo soberano é paradoxal, na medida em que se reivindica para cada um desses elementos um atributo que desde Bodin é entendido como constitutivo da própria noção de soberania: a ausência de limites (1992: 8). A incompatibilidade entre esses dois elementos tem sido evidenciada por pensadores contemporâneos tanto da política quanto do direito. Essa é a tensão que Michelman chamou em 1999 de paradoxo da democracia constitucional (Chueri e Godoy 2010: 159), que Chantal Mouffe identificou como o paradoxo democrático (2000: 3) e que Loughlin e Walker identificaram como o paradoxo do constitucionalismo  (2007: 1).

Embora a admissão explícita desse paradoxo seja nova, o diagnóstico da tensão remonta ao fim do século XVIII, quando o abade Sieyès formulou a noção de poder constituinte, com a qual buscou equacionar as tensões existentes entre a soberania popular e a constituição (1997: 97). Desde então, as referências a um poder constituinte cresceram, e esta se tornou a principal categoria teórica com que se tenta anular o referido paradoxo, mediante a sustentação de que o povo permanece soberano mesmo sob a vigência de uma constituição. Todavia, é duvidosa a consistência teórica dessa articulação entre o poder ilimitado do povo e a autoridade ilimitada da constituição.

A única forma de evitar que essa dupla soberania conduza a aporias seria mostrar que existe uma identidade necessária entre esses dois termos, o que afastaria a necessidade de resolver eventuais colisões entre os interesses populares e as regras constitucionais. Tal identidade, porém, não passa de um postulado teórico, visto que os interesses efetivos dos indivíduos e grupos sociais podem colidir com a regulação constitucional, tal como têm ocorrido em vários países árabes ao longo deste ano de 2011. O constitucionalismo realiza essa milagrosa identificação afirmando que o povo é o autor da constituição e que, portanto, somente o próprio texto constitucional pode ser entendido como manifestação legítima da soberania popular. Tal perspectiva nega a legitimidade de qualquer atuação política que não seja mediada pelas instituições definidas pelo texto constitucional, fazendo com que a soberania popular seja ao mesmo tempo fundante da constituição e limitada por ela.

O constitucionalismo conduz à paradoxal admissão de uma soberania popular que precisa ser absoluta (para fundamentar a validade da constituição) e ao mesmo tempo limitada (para respeitar a validade da constituição). O presente artigo tem como objetivo realizar uma investigação arqueológica acerca de como foi possível que a teoria política desenvolvesse essa construção aporética e do modo como a elaboração da categoria de poder constituinte representa uma tentativa de anular o paradoxo do constitucionalismo democrático.

2. Arqueologia do paradoxo da soberania limitada

O caráter absoluto da soberania política entrou em crise desde que, no século XVII, as reflexões de Locke sobre a Revolução Inglesa apontaram para a necessidade de uma restrição aos poderes do Estado. Locke defendia que o legislativo era o poder supremo em toda sociedade civil, “ao qual todos os outros estão e devem estar subordinados” (1994: 173). Supremo, todavia, não significava absoluto, na medida em que até mesmo os legisladores precisavam observar as exigentes determinações de um direito natural que não impunha apenas o respeito à vida e à propriedade, mas também determinava que o governo deveria ser exercido por meio de leis permanentes, conhecidas do povo e aplicadas por juízes imparciais (1994: 70). Tal como os demais teóricos do século XVII, Locke somente imaginou que o poder legislativo podia ser limitado por uma lei natural, e não por uma lei positiva (Gough 1994: 28).

A possibilidade de um direito positivo supraestatal limitar o poder legislativo foi uma invenção do constitucionalismo do século XVIII, inspirado pela tese de Montesquieu de que apenas poderes moderados eram compatíveis com a liberdade (1992: 132). Mas como seria possível restringir o poder soberano, sendo que a sua autoridade foi entendida ao longo da modernidade justamente como um poder que não encontrava limites no direito positivo? Uma soberania limitada parecia uma contradição em termos e, de fato, a exigência de poderes políticos limitados implicou redefinir o próprio conceito de soberania, que sofreu uma deflação. No Espírito das Leis, por exemplo, Montesquieu usou frequentemente o termo soberania para referir-se ao mero poder de governar. Essa categoria não designava uma autoridade absoluta, mas indicava apenas o atributo que caracterizava os governantes, podendo caber tanto ao povo (nas democracias), como a uma parte do povo (nas aristocracias) ou a um monarca (1992: 42).

Essa concepção de uma soberania moderada teve uma importância singular nas revoluções burguesas, pois inspirou sistemas de organização política que buscaram suplantar as dificuldades típicas dos regimes que concentravam todos os poderes do Estado nas mãos do monarca. Porém, apesar de sua inquestionável influência na modelagem das instituições políticas do séc. XVIII, tal perspectiva conduziu a filosofia política a paradoxos que já eram bem conhecidos desde que a filosofia grega estabeleceu a ideia de que o poder político precisava sempre de uma justificação racional.

No discurso da filosofia política, um poder somente se considera legítimo quando ele tem uma fundamentação adequada, o que levou os filósofos políticos antigos e modernos a desenvolver complexos discursos de legitimação. Esses discursos não podem apelar para a ideia de um poder político válido em si, pois toda autoridade deve ter por base uma autoridade que lhe é superior. Assim, admitir a existência de uma autoridade política implica pressupor que ela seja dotada de um poder fundamentado, que por sua vez precisa de outro fundamento e assim por diante, o que tende a nos conduzir a uma cadeia infinita de validade. Como uma cadeia infinita parece absurda, torna-se necessário quebrá-la em algum momento, o que leva à admissão de que deve existir um poder cuja validade não depende de fundamento. Tanto para os antigos quanto para os modernos, esse poder fundante e não fundado, esse primeiro motor imóvel da legitimidade política, era a própria natureza, pois cabia às sociedades humanas conformar-se aos ditames naturais percebidos pela nossa razão.

Enquanto essa concepção jusnaturalista se relaciona com o fundamento do poder político, a noção de soberania é uma elaboração teórica para lidar com a sua estrutura. O que Bodin chamou de soberania foi o mais alto poder de comando (1992: 1), referindo-se à própria capacidade de se fazer obedecido, e não ao direito de exercer o governo. Soberania é um conceito que designa um atributo dos governantes que exercem autoridade de forma ilimitada e perpétua, independentemente do discurso legitimador que justifica tal poder. O poder soberano se afirma como a autoridade mais alta em uma determinada esfera de governo, pois ele não reconhece existência de qualquer autoridade política que lhe seja superior. Todavia, a própria soberania não podia ser vista como o último elo na cadeia de validade, pois até mesmo o poder soberano precisava ser justificado por meio de uma referência ao direito natural.

Essa noção de soberania ganhou espaço ao longo da Idade Moderna, na medida em que o poder político se tornou centralizado nas mãos dos monarcas. Assim, ela tem uma forte vinculação com a consolidação do absolutismo, ou seja, de governos em que a autoridade monárquica centralizada suplantou as várias ordens intermediárias de poder que caracterizaram o período medieval. Ao conferir uma justificativa moderna para o poder absoluto dos Estados nacionais, Hobbes apontou que a transição do Estado de Natureza para o Estado de Sociedade implicava necessariamente a criação de uma autoridade soberana, ou seja, limitada apenas pelo direito natural.

Essa noção está presente em todas as teorias contratualistas, que ligam ao soberano político o poder de estabelecer o direito positivo que organiza uma sociedade política. Nesse sentido, as várias perspectivas contratualistas apresentam-se como teorias da soberania: o poder político que elas articulam, a partir do contrato social, é sempre um poder absoluto, embora a sua titularidade possa ser atribuída ao Estado, ao povo ou à nação. Mesmo em sua versão liberal, o contratualismo conduziu ao reconhecimento de um poder legislativo de caráter supremo, ainda que Locke considerasse que o povo detinha o poder de “destituir ou alterar o legislativo quando considerar o ato legislativo contrário à confiança que nele depositou” (1994: 219). Porém, mesmo nesse caso, o poder do povo se limitava à possibilidade de destituir um legislativo que se tornou ilegítimo por violar os direitos naturais que ele deveria proteger, o que não significava que o povo poderia exercer uma atividade legislativa direta.

Já em sua versão democrática, o contratualismo de Rousseau conduziu a um deslocamento da soberania estatal para uma soberania popular. Esse trânsito não implicou uma mudança na própria categoria de soberania, na medida em que a soberania do povo continuou mantendo as mesmas características absolutas da soberania estatal hobbesiana. Houve apenas o reconhecimento de que um governo exercido por magistrados escolhidos pelo povo nunca teria um caráter soberano, dado que esses poderes eram decorrentes de uma delegação. Para Rousseau, soberano era apenas o poder legislativo exercido diretamente pelo povo, e esta autoridade não poderia ser restringida por qualquer lei ou autoridade (1993: 69).

Enquanto a soberania continuou a ser compreendida como um poder absoluto, ela não conduziu a paradoxos. Todavia, o constitucionalismo do século XVIII realizou uma mescla entre liberalismo e democracia, tomando de Rousseau a noção de que a soberania popular é absoluta, mas identificando essa soberania com o poder supremo de que falava Locke, que se esgotava na própria definição, ou redefinição, do poder legislativo. Esse trânsito conceitual faz uma alteração sutil, mas imensa, no sentido da própria soberania popular, que deixa de ser um poder de autogoverno para tornar-se um fundamento do poder de governo. Nas modernas democracias indiretas, o poder soberano do povo somente pode ser utilizado para nomear representantes que governem em seu nome e, nessa medida, servir como mecanismo para legitimar os atos das instituições políticas. Essa mudança no sentido político da soberania popular não foi operada pelos contratualistas, mas pelos constitucionalistas, que tentaram estabelecer um governo limitado fundado em uma soberania ilimitada e estruturado por uma lei suprema. E a fonte do paradoxo está justamente em submeter o governo a duas supremacias distintas: a do povo e a da lei.

Foi dentro desse quadro conceitual que o movimento de constitucionalização iniciado com a independência dos EUA compreendeu a si próprio. O famoso we the people, com que começa a Constituição dos EUA, é uma clara manifestação de que a promulgação da constituição foi vista como exercício direto da soberania popular. A Convenção da Filadélfia, que elaborou o projeto que deu origem ao texto constitucional, não foi convocada para esse fim e em momento algum se julgou investida no direito de estabelecer uma constituição. Madison, no artigo n. 40 do Federalist Papers, analisa essa questão de forma minuciosa, buscando mostrar que a Convenção da Filadélfia foi convocado pelos United States in Congress assembled com o objetivo de “revising the Articles of Confederation, and reporting to Congress and the several legislatures such alterations and provisions therein, as shall, when agreed to in Congress, and confirmed by the States, render the federal Constitution adequate to the exigencies of government and the preservation of the Union”. Portanto, a Convenção não poderia impor a instituição de uma Federação, mas apenas sugerir ao povo que adotasse a proposta realizada. Por isso, todos os que consideram que o Congresso excedeu os seus poderes ao propor uma constituição devem levar em conta que “as the plan to be framed and proposed was to be submitted to the people themselves, the disapprobation of this supreme authority would destroy it forever; its approbation blot out antecedent errors and irregularities”.

Porém, na medida em que o exercício dessa soberania se cristalizou em um conjunto de regras escritas que somente pode ser modificado segundo um sistema bastante rígido de emendas, temos que a invenção do constitucionalismo constitui uma proteção do texto constitucional contra a própria soberania do povo, que ficou esvaziada na medida em que não seria mais possível admitir que uma manifestação espontânea do povo fosse considerada uma manifestação de sua soberania.

A Constituição dos EUA formulou uma nova ideia de povo (o povo dos EUA, que não se confundia com o povo de cada um dos Estados Confederados) e criou um sistema por meio do qual se poderia considerar que ele manifestaria a sua vontade: o rígido sistema de emendas. Essa autolimitação original de um povo constituído pela própria constituição passou a ser impositiva para o próprio povo assim constituído, instituindo a noção de que a soberania somente poderia ser manifestada na forma da lei. Com isso, apesar de utilizar a semântica de Rousseau, a instituição de uma lei suprema que estabelece uma democracia representativa termina por esvaziar a noção original de soberania popular.

A grande invenção do constitucionalismo foi o estabelecimento de uma estratégia jurídica inovadora: a definição de normas positivas supraestatais, que derivassem diretamente do exercício soberano do povo e que, nessa medida, não fossem sujeitas à alteração pelas autoridades políticas. Após séculos procurando estabelecer critérios para definir uma autoridade legítima, surgiu uma teoria filosófica que pretendeu deixar vazio o lugar da máxima autoridade política. Estava criado o moderno direito constitucional: textos legislativos que estabeleciam a organização e os limites do poder do Estado e que, por isso mesmo, não poderiam ser modificados pelas próprias autoridades políticas, exceto de acordo com o difícil processo definido pelo próprio texto constitucional. No plano da lógica, evita-se o paradoxo da soberania limitada, pois continua sendo afirmado o caráter absoluto do poder popular. No plano prático, porém, a supremacia da constituição afastava a soberania do povo, pois estava escrito que somente pela letra da lei é que o povo poderia falar.

O caráter paradoxal dessa autolimitação da soberania tem sido apontado por vários filósofos políticos, tal como Chantal Mouffe, que no seu livro The democratic paradox afirmou que “what cannot be contestable in a liberal democracy is the idea that it is legitimate to establish limits to popular sovereignty in the name of liberty. Hence its paradoxical nature” (2000: 3-4). Nessa obra, ela questiona a tendência atual de desvincular a democracia da noção de soberania popular, para ligá-la apenas à vertente liberal que a identifica democracia com a mera presença do Estado de Direito e dos direitos humanos. Essa preocupação, tão marcante no mundo contemporâneo, não é propriamente nova, na medida em que são argumentos muito semelhantes aos de Mouffe que conduziram o abade de Sieyès a formular o conceito de poder constituinte.

3. A invenção do poder constituinte por Sieyès

O poder constituinte é uma categoria criada pelo abade Sieyès em 1788 com o objetivo de justificar a possibilidade de o terceiro estado realizar a convocação de uma Assembleia Nacional para redefinir a constituição francesa. Trata-se, portanto, de um conceito originalmente revolucionário, voltado a contrapor-se ao próprio constitucionalismo francês da época, segundo o qual seria impossível a qualquer um alterar a forma de governo estabelecida na constituição. Embora não houvesse uma constituição liberal escrita, o próprio Sieyès reconhece que havia uma constituição no sentido de regras que definiam a organização do governo e que nenhuma entidade governamental poderia alterá-las (1994: 97).

Assim, o poder constituinte nasceu como um argumento para legitimar a mutação constitucional, suplantando a tese constitucionalista de que a vontade da maioria não pode alterar a constituição. A tese de Sieyès deve ser compreendida em seu contexto, já que, diferentemente do que ocorre nas constituições escritas, a constituição consuetudinária da França não tinha mecanismos que possibilitassem a sua alteração por qualquer dos poderes políticos. Assim, a mutação constitucional precisava ser justificada diretamente na soberania, que foi lida juridicamente por Sieyès como um poder constituinte de titularidade da nação.

Hoje, a existência de mecanismos institucionais de mudança torna normalmente desnecessária a argumentação de Sieyès, já que boa parte das regras constitucionais pode ser alterada mediante emenda. Todavia, a questão levantada pelo abade revolucionário não perdeu sua força porque uma série de normas não pode ser modificada mediante emendas constitucionais (as ditas cláusulas pétreas) e porque cada vez se tornam mais comuns as tentativas de convocar assembleias restritas para promover alterações na constituição que não seguem o rito nela previsto. Essas questões atualizam o problema de Sieyès, que é o de definir em que medida as regras constitucionais existentes podem impor limites ao exercício da soberania nacional.

Essa pergunta foi enfrentada pelo abade em um panfleto no qual ele procurava responder a questão: o que é o terceiro estado? Essa não é uma pergunta sobre quem é o povo, entendido como a totalidade dos cidadãos, mas sobre qual é o lugar ocupado por esse conjunto de pessoas que se define por exclusão: não são nobres e não são clero. Como esclarece o próprio Sieyès, o terceiro estado é “o conjunto dos cidadãos que pertencem à ordem comum” e que, nessa medida, não têm qualquer privilégio (1997: 58).

O terceiro estado compunha a maioria dos súditos de um Estado em que não havia qualquer reconhecimento de um direito à maioria, pelo simples fato de ser maioria. O terceiro estado não tinham um espaço privilegiado na sociedade feudal e que, por isso mesmo, eram os seus integrantes que desejavam reestruturar a sociedade de um modo que ela contemplasse os seus interesses. Em 1788, essa acomodação de interesses não implicava necessariamente uma exigência radical de democracia, tanto que o próprio Sieyès sintetiza sua posição nos seguintes pares de pergunta e resposta:

1ª) Que é o Terceiro Estado? Tudo.
2ª) O que tem sido ele, até agora, na ordem política? Nada.
3ª) O que é que ele pede? Ser alguma coisa. (1994: 51)

Apesar de constituir a maioria, o terceiro estado não estaria postulando uma exclusão política da nobreza e do clero, mas apenas “ter verdadeiros representantes nos Estados Gerais, ou seja, deputados oriundos de sua ordem, hábeis em interpretar sua vontade e defender seus interesses”, tendo “uma influência pelo menos igual à dos privilegiados e um número de representantes igual ao das outras duas ordens juntas” e que os votos se contassem por cabeça e não por ordem. (1994: 63) Essa proposta acarretaria uma sensível redução dos poderes da nobreza e do clero, e Sieyès tinha consciência de que isso a tornava absolutamente inaceitável para o primeiro e o segundo estado. Então, como seria possível operar legitimamente tal modificação? É nesse ponto que o abade exerce sua criatividade jurídica e termina por formular a oposição teórica entre poder constituinte e poder constituído.

Primeiramente, ele reconheceu que a França tinha uma constituição, ou seja, uma organização do seu próprio governo, definida por leis positivas. Tal reconhecimento foi importante porque Sieyès percebia que a proposta do terceiro estado não era a de uma simples alteração legislativa, mas de uma alteração constitucional, na medida em que implicava uma modificação na estrutura do governo. Esse era justamente o argumento dos conservadores: as regras constitucionais precisavam ser respeitadas, dado que elas próprias é que definiam a divisão dos três estados. Por acaso, esse é o mesmo argumento utilizado por todos os ditadores do norte da África e do Oriente Médio para justificar a manutenção do seu poder face às crescentes revoltas que se acirraram na região no início de 2011. Essa utilização revelava o potencial conservador do argumento constitucional: o respeito à ordem instituída impedia as pretensões do povo de aumentar a sua representatividade.

Mas quem pode legitimamente estabelecer a constituição? “Em cada parte, a constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte” (1997: 94), cujo titular é o ente político soberano, que Sieyès identificava com a nação. Essa nação soberana é que delega ao governo os seus poderes, que são apenas os necessários para manter a boa ordem. A ideia de que os poderes do governo são constituídos, e portanto limitados, reforçava o argumento dos conservadores, na medida em que “nenhuma espécie de poder delegado pode modificar nada nas condições de sua delegação” (Sieyès 1997: 94). A defesa dessa posição tendia a estabelecer a constituição política como imutável, na medida em que nenhum governo ou movimento popular poderia alterá-lo. Mas havia uma possibilidade em aberto: a constituição poderia ser modificada mediante uma manifestação direta da nação soberana.

A tese de Sieyès era a de que a nação não estava submetida à constituição, pois “seria ridículo supor a nação ligada pelas formalidades ou pela constituição a que ela sujeitou seus mandatários” (1997: 95). A constituição é uma norma do direito positivo, que constrange apenas os governos, mas não a própria nação que a constituiu e que, portanto, pode modificá-la a qualquer momento. Aqui, a inspiração de Rousseau permite um passo além do que seria o poder supremo do povo de Locke: a alteração constitucional poderia ocorrer em virtude de uma mudança na opinião coletiva, e não apenas em razão de uma quebra do contrato social.

O argumento de Sieyès é forte tanto no uso da categoria política de soberania nacional, quanto na apropriação do conceito jurídico de representação. Se o governo é um representante da nação, então existe aí uma espécie de procuração e quem constitui um procurador sempre pode desconstituí-lo, mesmo que o representante não tenha praticado atos ilícitos. Além disso, os poderes do procurador são sempre limitados e entre eles nunca pode estar o de alterar a própria procuração. Ao submeter o governo às categorias jurídicas de representação, tratando-o como uma espécie de procurador, ganha densidade o argumento de que seria absurdo que o governo (ou seja, os Estados Gerais) tivesse o poder de alterar a sua própria composição. E também ganha força a tese de que o outorgante pode alterar os limites da procuração, desde que fale em nome próprio.

Com isso, Sieyès abriu a caixa de Pandora constitucionalista: desejamos um governo limitado, mas fundamentamos essa limitação em uma soberania nacional ilimitada. Portanto, nenhuma nação “pode impor deveres a si mesma”, nenhuma constituição pode limitar a força criativa do soberano. A soberania não é o poder de destituir o tirano, mas o poder de se autorregular. Assim, quem fala em nome da nação tem um poder absoluto: o poder constituinte. Mas quem pode falar em nome da nação? A resposta de Sieyès foi: uma assembleia escolhida pelo povo, na qual deve ser respeitado o direito de igualdade, de tal forma que a representação se dá por cabeça e não por ordem. Aqui vem o golpe de mestre: o poder de definir a constituição dos Estados Gerais não pode repetir a organização dos estamentos feudais, mas deve respeitar a igualdade moderna em uma eleição voltada a selecionar representantes extraordinários que exercerão a plenitude do poder constituinte.

Mas quem poderia convocar tais eleições? Quem poderia definir os critérios pelos quais seriam eleitos os representantes? Aqui a lógica de Sieyès foi sobrepujada pelo seu engajamento, e ele respondeu a essa questão com outra pergunta: “quando a salvação da pátria é necessária para todos os cidadãos, vai-se perder tempo perguntando-se quem tem o direito de convocar?” (1994: 102) Até esse ponto, Sieyès seguia rigorosamente as regras do discurso jurídico: todo poder tem um titular, todo governo é limitado, o soberano atribui poderes ao governo por meio de uma relação de representação e ele pode alterar a qualquer momento esses poderes. Aqui ele rompeu o argumento porque a lógica jurídica seria reconduzida aos seus paradoxos: quem tem direito de estabelecer os modos pelos quais o soberano se manifestará? Essa é uma pergunta que transcende a lógica jurídica, baseada na oposição original entre constituinte/constituído. É evidente o absurdo do poder constituído ter a possibilidade de ordenar ao poder constituinte que se manifeste e de conformar essa manifestação. Assim, é incompatível com o rigor do discurso jurídico a conclusão de que “se o príncipe [...] é incompetente para decidir sobre a Constituição, não podemos dizer o mesmo quanto à provocação dessa decisão: a convocação geral”. (1994: 102)

Mas era evidente que o príncipe não convocaria uma assembleia geral voltada a diminuir os seus poderes, de modo que Sieyès propõe que o próprio Terceiro Estado, que compunha 95% da população, convocasse uma Assembleia Nacional formada por representantes excepcionais do povo e voltada a estabelecer uma nova constituição. Como os outros 5% se negariam a legitimar esse procedimento, bastaria estabelecer que as decisões deveriam ser tomadas por uma maioria que sobrepujasse também o número dos deputados que caberiam ao clero e à nobreza (1994: 111). Assim, a Assembleia Nacional, convocada pelo terceiro estado e composta por seus integrantes poderia falar pela nação e teria um poder ilimitado.

Portanto a formulação inicial de Sieyès foi uma tentativa de tornar delegável a soberania popular, que dentro das categorias políticas existentes não era passível de delegação. Mesmo a Constituição dos EUA tinha sido elaborada por uma Convenção (que, aliás, não havia sido convocada para essa finalidade) e somente se considerou válida na medida em que foi aprovada pelo que se entendeu considerar a vontade soberana do povo. O abade revolucionário precisou identificar que o povo soberano tem poder constituinte, possibilitando enxergar nesse elemento apenas uma das facetas da soberania.

Utilizando a linguagem do direito civil, que diferencia os poderes gerais dos poderes especiais que se pode conferir a um procurador, Sieyès elaborou uma concepção na qual o poder constituinte poderia ser conferido a uma Assembleia, a qual teria o poder de elaborar o texto constitucional sem a mediação do próprio povo. Essa operação resolve simultaneamente dois problemas. Em primeiro lugar, confere-se solidez jurídica à argumentação de que a existência de uma Constituição não pode servir como argumento legítimo para limitar a soberana vontade da nação. Em segundo lugar, o poder de elaborar a constituição era entendido apenas como um elemento delegável da soberania popular, desde que essa delegação fosse realizada por meio de uma eleição com a finalidade especial de constituir uma Assembleia cujo poder se esgotaria no momento do seu exercício.

É preciso ressaltar que o pensamento de Sieyès era comprometido com a noção liberal de governo limitado, na medida em que ele inviabilizava a constituição de um governo que se instituísse como soberano. O extraordinário poder de fazer a constituição tem um limite claro: por se esgotar no estabelecimento das regras constitucionais, ele nunca pode ser atribuído ao governo. Em nome do poder constituinte não se podem fazer leis, não se podem estabelecer políticas, não se pode governar um povo. Em suma, ele não pode ser confundido com a própria soberania, que na semântica democrática tem como único titular o povo. Portanto, nenhum órgão governamental poderia exercer o poder constituinte, já que ele se anularia no momento em que próprio governo seria constituído.

Ao dar este último passo, Sieyès terminou por oferecer uma construção mais semelhante à de Locke que à de Rousseau: o poder constituinte da Assembleia se esgota na definição da divisão dos poderes e na estruturação do Estado. O poder legislativo não poderia ser exercido como soberania, mas apenas como poder constituído, vez que a autoridade popular ficava restrita à nomeação de representantes para exercer o poder específico de estabelecer uma nova ordem jurídica. Nessa medida, a teoria do poder constituinte conseguia equilibrar o dogma democrático da soberania popular como o dogma liberal de que nenhum governo deve ser soberano. Assim, por mais que o poder constituinte seja inspirado na categoria democrática de soberania popular, a utilização desse conceito é inevitavelmente ligada à semântica liberal.

4. Soberania do povo x soberania da lei

O conceito original de Sieyès utilizava a lógica jurídica contra si própria, para justificar a alteração constitucional por meio da eleição de uma assembleia com poderes específicos para modificar a ordem constitucional. Soberania é um conceito político, mais do que jurídico, pois indica um poder absoluto, superior a todas as regras positivas, cuja única limitação possível seria o próprio direito natural. O poder absoluto sempre transcende o discurso jurídico, que se volta exclusivamente ao exercício de poderes limitados: onde não há limitação, não há deveres, e onde se rompe a dualidade direito/dever, o discurso jurídico apenas é capaz de multiplicar paradoxos.

Por isso cabia razão a Kelsen ao afirmar que o discurso jurídico somente faz sentido quando se parte da ficção de que existe uma norma fundamental, cuja existência é paradoxal justamente por romper a noção de que a validade de uma norma exige sempre um fundamento externo a ela (2003: 215). A validade em si é uma noção contraditória, mas esse contrassenso é estabelecido pela simples admissão do conceito de validade, sem o qual é impossível o discurso jurídico. Na base do discurso teórico há sempre o delírio platônico da coisa em si, cuja ocultação se dá por meio de uma profissão de fé ou de uma admissão da ficcionalidade.

O caminho de Sieyès é o primeiro: é evidente que a nação é naturalmente soberana, ou seja, ela é dotada de um poder que não exige justificação. Esse poder absoluto não pode ser limitado nem pode ser objeto de abdicação porque, como afirmava Rousseau, “o próprio povo não pode, mesmo que o quisesse, despojar-se desse direito incomunicável porque, de acordo com o pacto fundamental, a vontade geral é a única que obriga os particulares” (1993: 54). Por isso, o poder constituinte permanece intocado mesmo na vigência de uma constituição, que pode ser alterada a qualquer tempo por mediante uma manifestação da nação soberana. Porém, se esse poder é ilimitado, quem poderia estabelecer os modos pelo qual ele seria exercido? Como poderia uma determinada assembleia ser considerada investida do poder constituinte, uma vez que ela seria escolhida por certos membros do povo, segundo um procedimento determinado por alguma organização política? Nesse contexto, parece inviável a pretensão de Sieyès no sentido de que o terceiro estado poderia se autoconvocar para exercer o poder constituinte, dado que isso implicaria a admissão de que um grupo não dotado de poder constituinte teria a faculdade de conformar o poder soberano. No direito, esse é um problema paradoxal, pois a autoridade somente pode derivar da autoridade.

Na política, contudo, essa situação não é paradoxal: toda vez que haja condições políticas para que uma determinada manifestação seja compreendida como expressão de um poder ilimitado, estaremos frente ao poder soberano. E toda vez que é possível limitar juridicamente um determinado poder, não estamos face à soberania. Além disso, a soberania é entendida como um poder e, portanto, ela somente pode ser compreendida como poder de alguém. Faz parte do pensamento jurídico, que conformou a filosofia política moderna, a noção de que todo poder tem um titular e, portanto, pensar a soberania implica identificar quem é a autoridade soberana. Essa tendência permanece forte até em teóricos contemporâneos, como Negri, que identifica o problema do poder constituinte na identificação de “um sujeito adequado ao procedimento absoluto” (1999: 42).

O principal representante desta ideia é Carl Schmitt, que desenvolveu uma teoria constitucional que acentua o caráter absoluto da soberania. Schmitt adotou as categorias formuladas por Sieyès, especialmente a compreensão de que o poder constituinte é uma dimensão da soberania, reconhecendo inclusive que a Assembleia Constituinte é qualitativamente distinta do parlamento (Schmitt 1982: 50). Ele notou que o problema da teoria liberal deriva da tentativa de substituir a soberania do povo pela soberania das leis, que não passa de uma ficção da linguagem jurídica. Como resume Scheuerman, “liberals refuse to concede the unavoidable limits of normativism. Nonetheless, they still must grapple with the exigencies of a political universe inconsistent with their normativistic inclinations” (1996: 306). Schmitt identificou que a teoria constitucional do Estado burguês de Direito é incapaz de lidar com o conceito de soberania porque ela parte da premissa de que a validade jurídica do texto constitucional é absoluta, um pressuposto que “no presenta otro resultado que el de dejar en la sombra una cuestión tan fundamental como la de la soberanía” (1982: 123).

Para Schmitt, o normativismo levou a teoria jurídica liberal a “dejar desantendidos, o desconocer, fenómenos esenciales de la vida constitucional” (1982: 23), que é política e não jurídica, e portanto não se explica com base em ficções. Politicamente, não faz sentido falar em uma validade absoluta de qualquer norma, inclusive das próprias constituições, visto que elas somente valem em decorrência de uma decisão. “La Constitución no es, pues, cosa absoluta, por cuanto no surge de si misma [...]. No se da a sí misma, sino que es dada por una unidad política concreta” (1982: 46).

Mas de onde vem a validade dessa decisão constitucional? Para um normativista, como Kelsen, a validade de uma ordem somente pode ter como fundamento uma norma. Por trás da autoridade suprema, é preciso supor a existência de uma norma suprema que estabelece essa própria autoridade, o que implica uma prioridade lógica do direito sobre a política. Schmitt, porém, resolve essa questão do modo oposto: ele reconhece que acima de toda norma existe uma decisão política, de tal forma que não se pode pensar uma regra sem uma autoridade que a determina. Ele reconhece que o problema de quem pode emitir a Constituição é uma questão de força e não de autoridade (1982: 97) e que “toda unidad política existente tiene su valor y su ‘razón de existencia’ no en la justicia o conveniencia de normas, sino en su existencia misma”. E completa, estabelecendo o primado ontológico da política sobre o direito: “Lo que existe como magnitud política, es, jurídicamente considerado, digno de existir.” (1982: 46).

Essa precedência do poder sobre a norma aparece em Schmitt como uma forma de decisionismo: a própria a Constituição é instituída por uma decisão política por meio do qual uma unidade política define autonomamente a sua forma de organização (1982: 66). Nessa medida, Scheuerman aponta que a principal diferença entre a teoria de Schmitt e o constitucionalismo liberal é o fato de que a validade do direito positivo não é derivado de uma norma pretensamente legítima (a Constituição), pois a legitimidade “ultimately can refer to nothing more than the efficacy of a particular set of political power holders or decision-makers” (1996: 308).

Tal concepção, que aponta para um governo de homens e não de leis (1996: 301), é perfeitamente acoplada às perspectivas tradicionais do contratualismo, que somente são capazes de explicar devidamente o fenômeno do governo a partir de referências a entidades políticas dotadas de um poder absoluto. Hobbes, por exemplo, com sua lógica rigorosa e absolutamente iliberal, estabeleceu com clareza que o contrato social institui um homem ou uma assembleia como soberano na medida em que atribui a eles um poder que não é submetido a qualquer regra de direito positivo (1997: 144). Portanto, não faria sentido algum em Hobbes a distinção poder constituinte/constituído, na medida em que o poder dos governantes era ilimitado. Rousseau herdou de Hobbes esse caráter ilimitado da soberania, embora tenha deslocado a sua titularidade do governante para o povo. Nessa medida, Rousseau precisou diferenciar claramente o soberano (que é o povo) e o governo, que não passa de um ministro competente para exercer a administração. Apesar disso, na perspectiva de Rousseau não faria sentido a distinção poder constituinte/constituído porque a legislação é uma prerrogativa do soberano e, portanto, não está sujeita a limites. Caberia ao governo apenas aplicar as leis, o que excluiria de pronto a sua legitimidade para alterar os limites de sua própria autoridade, que somente poderia ser estabelecida pelo legislador, ou seja, pelo próprio soberano, já que “o poder legislativo pertence ao povo e só pode pertencer a ele” (1993: 69).

Por mais que a noção de direito natural fosse importante para justificar a validade do contrato social tanto em Hobbes quanto em Rousseau, nas concepções desses filósofos os direitos naturais não funcionam como limites políticos ao exercício do poder soberano. Mesmo Locke, que impunha ao soberano o dever de respeitar os direitos naturais, não estabeleceu a possibilidade de que fossem instituídos politicamente limites jurídicos à soberania. Nenhum dos contratualistas clássicos, portanto, defendeu uma estrutura política semelhante à dos Estados de Direito contemporâneos, visto que o contrato social estabelece uma autoridade suprema, cujo caráter absoluto é necessário para que ela possa estabelecer o próprio direito positivo. Nessa medida, o legislador é sempre legibus solutus, justamente por ser soberano.

A noção de um legislador não-soberano é construída com outras bases, que remontam ao governo misto de Políbio na antiguidade, ao republicanismo de Maquiavel no renascimento e às teses modernas de Montesquieu. A noção de soberania da lei, e não de um conjunto de homens (povo, nação, assembleia, monarca) é uma invenção do século XVIII, que buscava um governo de leis e não de homens, que foi coroada pela inovação dos EUA em posicionar uma constituição jurídica escrita acima de todos os poderes políticos. Como sintetizou Thomas Paine “in America the law is king. For as in absolute governments the King is law, so in free countries the law ought to be King; and there ought to be no other” (1776).

Herdamos de Montesquieu a noção de que o governo legítimo deve sempre ser moderado, ou seja, deve ser limitado. Todo poder político absoluto, ou seja, todo poder soberano, tende a conduzir a formas despóticas de governo, e por isso mesmo devemos construir instituições políticas que impeçam a concentração absoluta do poder. Quem tem direito de estabelecer uma constituição desse tipo? A resposta a essa pergunta é irrelevante no contexto de Montesquieu, que não se importa com a justificação filosófica do poder, mas com a identificação de estruturas de governo capazes de promover a liberdade. O sistema político não se justifica por sua adequação a um direito natural, mas pela sua capacidade de gerar um governo moderado, onde seja possível haver cidadãos livres. “A liberdade política só existe nos governos moderados. Mas ela [...] não existe nestes senão quando ali não se abusa do poder; temos porém a experiência eterna de que todo o homem que tem em suas mãos o poder é sempre levado a abusar do mesmo; e assim irá seguindo, até que encontre algum limite” (1992: 132)

Nesse contexto, tampouco é necessário tratar da noção de poder constituinte, dado que ele não passa de uma apropriação jurídica da ideia de soberania. Assim, estamos frente a um uso da categoria de soberania popular, da autoridade suprema do povo para definir sua forma de organização. Em nenhum momento se supôs que essa soberania pudesse ser delegável a uma assembleia nem que ele se encerrasse no estabelecimento das regras constitucionais.

Até o fim do século XVIII, portanto, a ideia de poder constituinte não tinha espaço para aflorar, dado que a neutralização da soberania popular pela edição da constituição escrita torna inútil, para não dizer francamente subversiva, a ideia de que uma manifestação espontânea do povo poderia alterar as regras constitucionais. Por mais que seja possível falar que o Federalist Paper n. 40 lida com a noção de poder constituinte, essa é uma utilização metonímica da categoria, em que soberania popular (absoluta e indelegável) é tomada como poder constituinte (delegável a uma assembleia). Além disso, quem determinou que a aprovação de 9 estados poderia dar validade a uma constituição estabelecida sobre os cidadãos de todos os 12 estados? Quem determinou que os votantes falariam em nome do povo, por meio de assembleias organizadas pelos congressos de cada Estado? A determinação do processo por meio do qual o povo se faz ouvir é simultaneamente a determinação de quem é o povo e a submissão da soberania a decisões previamente tomadas pelos poderes políticos. É possível o povo falar de outro modo? Talvez não seja. Mas é curiosa a nossa capacidade de acreditar que o resultado desse procedimento possa ser compreendido como uma expressão da soberania popular. Como questionou o antifederalista Henry aos delegados da Convenção de Ratificação da Virgínia: “What right had they [in the Philadelphia Convention] to say, We the people? Who authorized them to speak the language of, We the people, instead of, We the states?” (Frank 2007).

O constitucionalismo americano promoveu o deslocamento da soberania do povo para a lei, que continua presente em nosso imaginário sob o título de supremacia da constituição, criando assim um conceito paradoxal: a soberania da lei. A soberania de uma pessoa ou de um corpo político podia ser uma categoria injusta, mas não era paradoxal. Um poder político soberano era um poder absoluto, no plano do direito positivo, e isso é plenamente compreensível. A soberania política é uma categoria abstrata (como toda categoria), mas que se refere a uma realidade concreta: uma instituição que não admite sua subordinação a outras. Já a soberania da lei nos remete aos paradoxos do discurso jurídico, ligado ao fato de que toda lei é feita por uma autoridade. Uma lei soberana somente poderia admitir, acima dela, o direito natural. Todavia, essa ligação precisa ser mediada por uma autoridade que tenha o poder de elaborá-la, de tal forma que a soberania da norma não se sustenta sem a soberania do legislador constituinte. Como pode esse poder soberano se anular no momento em que a constituição é elaborada?

Poderia Deus criar uma pedra tão grande que ele não fosse capaz de levantá-la? Essa velha questão escolástica revela o paradoxo de todo poder ilimitado: pode ele limitar-se a si próprio? Uma vez que o povo exerça sua soberania para limitar a si próprio, criando uma constituição que define limites para o exercício do poder, seria essa limitação reversível? Sieyès enfrentou uma variação desse problema: se o povo cria uma constituição e não estabelece mecanismos de mudanças, devemos entender que ela é por isso mesmo imutável? A resposta dele foi evidentemente um não, com o qual ele se opôs à vertente do constitucionalismo que apresentava a constituição como uma anulação autônoma da soberania.

Essa foi a anulação promovida pelo constitucionalismo liberal de matriz norte-americana, que curiosamente forneceu aos conservadores franceses os argumentos necessários para afirmar que o terceiro estado não poderia alterar a constituição, ainda que se tratasse de um estamento majoritário. Assim, a formulação de Sieyès acerca de um poder constituinte pode ser interpretada como uma revolta contra o elemento conservador do constitucionalismo, que negava expressão direta à soberania popular.

Desde Locke, a teoria liberal somente reconhece ao povo o poder de estabelecer o poder legislativo, que seria a autoridade suprema do Estado. Com a inspiração de Montesquieu, o poder supremo foi fracionado em diferentes poderes, e o estabelecimento dessa divisão de poderes exigiu a elaboração de normas jurídicas supraestatais, as constituições. A reação de Sieyès pode ser interpretada como uma tentativa de articular esse constitucionalismo liberal a uma política revolucionária: não se tratava de uma rejeição do constitucionalismo, mas a tentativa de levar a sério o dogma da soberania popular, que não poderia se esgotar em um momento passado, pois a sua perenidade era necessária para justificar a revolução. Todavia, o constitucionalismo precisava confinar esse ímpeto aos momentos revolucionários, de tal forma que promoveu uma redução da soberania popular ao poder constituinte.

A afirmação do poder constituinte do povo, como dimensão permanente de sua soberania, parece implicar uma negação direta da supremacia da constituição, o que motivou Negri a afirmar que “o poder constituinte resiste à constitucionalização” (p. 7). Todavia, a perspectiva adotada pelo constitucionalismo liberal possibilita a articulação desses conceitos mediante o esvaziamento da soberania popular, que é reduzida a um poder episódico mediante uma teoria do poder constituinte inspirada na construção de Sieyès.

5. A crítica da teoria liberal do poder constituinte

A percepção dessa tensão entre constitucionalismo e poder constituinte é reiterada na primeira frase do O poder constituinte de Antonio Negri: “Falar de poder constituinte é falar de democracia” (1999: 7). Seguindo os passos de Negri, somos levados a concluir que falar de poder constituinte também significa contrapor-se ao constitucionalismo liberal, visto que este “é um aparato que nega o poder constituinte e a democracia” (1999: 444).

Não obstante, ao longo dos últimos duzentos anos foi sendo construída uma teoria liberal do poder constituinte, que se utiliza da mesma terminologia de Sieyès, mas tem uma finalidade oposta: não se trata de liberar a potência da soberania nacional face aos limites de uma dada constituição histórica, mas de contribuir para a anulação prática da própria noção de soberania como poder absoluto. Na base dessa concepção está a noção de que todo poder absoluto é indesejável, ainda que seja o poder absoluto do povo. Rousseau dedicou-se com cuidado a substituir o rei pelo povo no velho dito inglês the king can do no wrong. A volonté génerale nunca pode estar errada na medida em que ela é a própria razão. Mais fácil é admitir que nenhum procedimento pode conduzir a esta vontade geral, que não é a vontade da maioria nem a de todos nem a de alguma assembleia, mas apenas pode ser identificada na razão do povo e que, nessa medida, mantém-se como critério transcendental para a avaliação da legitimidade (1993: 54).

Pode o povo ser antidemocrático? Essa é uma pergunta curiosa, pois se demos significa povo, ela conduz a uma contradição em termos. Não é à toa que a palavra democracia somente adquiriu um viés positivo em pleno século XIX, especialmente depois da obra de Tocqueville, que acentuou as virtudes igualitárias dos governos democráticos, mas acentuou também o quanto esse igualitarismo poderia trazer riscos à liberdade. Seguindo essa intuição, muitos autores modernos mantém acesa a análise das tensões latentes (e inevitáveis) entre o princípio igualitário da democracia e o princípio liberal da liberdade. O fato de essas duas demandas terem movido as revoluções burguesas não implica que haja uma implicação direta entre eles. Rousseau, em especial, defendeu uma versão absoluta da democracia. Locke defendeu um liberalismo que não precisaria ser democrático. Ao longo do século XX, esses dois elementos foram sendo gradualmente combinados, até que se consolidasse no senso comum a ideia de que “não só o liberalismo é compatível com a democracia, mas a democracia pode ser considerada como o natural desenvolvimento do Estado Liberal” (Bobbio 2000: 42).

Essa identificação é tão grande que autores como Cunninghan chegam a afirmar que “quase todas as democracias ou aspirantes à democracia são tipicamente descritas, em círculos teóricos e em discursos populares, como democracias liberais” (2009: 38). Embora a maioria dos teóricos ainda tenda a explorar as convergências entre esses dois elementos, há pensadores atuais que têm explorado as tensões entre liberalismo e democracia. Atualmente, podemos destacar os trabalhos de Chantal Mouffe (2000) e Antonio Negri (1999), que partem das reflexões de Carl Schmitt para acentuar o potencial heurístico de reconhecer que a semântica democrática não é redutível à liberal. Como apontou, William Scheuerman, em um momento no qual o constitucionalismo liberal voltou a ser alvo de críticas, muitos teóricos se inspiraram na “ambitious Weimar-era critique of the fundaments of liberal constitucionalism” (1996: 300) que Schmitt empreendeu na década de 1920, defendendo, especialmente que “liberal institutions essentially invalidate democratic politics, making these two political approaches fundamentally incompatible with one another” (Wolin 1990: 402).

Esta perspectiva contrapõe-se à visão hegemônica que tende a identificar Estado Democrático com Estado Liberal e a qualificar como totalitarista (o que significa praticamente mau em si) todo argumento em que “os sacrossantos princípios do liberalismo não sejam glorificados” (1999: 47). Tal percepção levou Negri a realizar uma crítica minuciosa à teoria liberal do poder constituinte, em que essa categoria funciona apenas como um critério para determinar os limites do poder constituído. Poder constituinte é justamente aquilo que o legislador ordinário não tem, o que faz com que os seus atos desbordantes das competências definidas no texto constitucional devam ser anulados por meio do controle de constitucionalidade. O judicial review, que talvez seja a instituição liberal mais contrária ao princípio democrático majoritário, utiliza-se recorrentemente de referências ao poder constituinte, mas apenas para dizer que ele não está ali. Enquanto o discurso democrático de Sieyès pretendia afirmar a presença da soberania onde os poderes constituídos se negavam a enxergá-la, o discurso liberal se utiliza dessa categoria apenas para afirmar que a soberania do povo não pode ser utilizada como critério válido para se contrapor à soberania da constituição. Negri procedeu a uma desconstrução do mecanismo que “encerra o poder constituinte em um mecanismo jurídico” para melhor controlá-lo, mostrando com clareza que os infindáveis debates jurídicos sobre o poder constituinte não fazem senão anulá-lo, especialmente as discussões acerca da natureza jurídica do poder constituinte e de sua titularidade.

Nas análises jurídicas sobre o poder constituinte, é comum a afirmação de que ele se trata de um poder pré-jurídico, o que o coloca fora do alcance do direito positivo. Como aquilo que está fora desses limites ultrapassa as fronteiras da dogmática jurídica, esta deveria se calar acerca dessa categoria, visto que as normas positivas não podem regular o exercício nem a configuração do poder constituinte. Afirmações sobre esse poder deveriam fazer parte da filosofia do direito e não da dogmática jurídica, pois o que está em jogo é a definição dos próprios critérios de juridicidade que podem fundar uma determinada dogmática. Alexandre Bernardino Costa identificou com razão que a dificuldade da dogmática constitucional em tratar do poder constituinte é tão grande que muitas vezes essa categoria “é apresentada por meio de metáforas como as forças da natureza, e é pouco trabalhada em termos conceituais” (2005: 9). Mas essa negação marca apenas os limites da própria linguagem dogmática, que não são enfrentados pela filosofia jurídica, na medida em que essa perspectiva pode questionar o fundamento da validade do próprio direito positivo (validade essa que é pressuposta nas perspectivas dogmáticas).

No discurso filosófico do direito, são dois os tipos de enfoque acerca do poder constituinte. De um lado, temos uma perspectiva transcendente, de matriz platônica, que compreende o poder constituinte como uma necessidade lógica derivada da própria noção de poder constituído. Essa é a posição dos que supõem a necessidade lógica da soberania como fundamento do poder, formulando a distinção poder constituinte/constituído para explicar que o poder político efetivo somente pode ser devidamente pensado caso se suponha a existência de um poder abstrato que lhe seja anterior. Essa é uma formulação dos filósofos e não dos cientistas políticos (que se limitam a observar o fenômeno do poder, que é sempre instituinte) nem dos juristas dogmáticos. Tal visão é tributária da concepção de Sieyès, que caracterizava o poder constituinte como uma das dimensões da soberania, para afirmar que este poder não se esgota na produção de uma constituição positiva e que, portanto, o poder constituinte permanece ativo ao longo de todo o desenvolvimento político de um povo soberano. Esse caráter perene e constituinte da soberania foi atualizado especialmente na obra de Antonio Negri, para quem o poder constituinte é uma subjetividade coletiva, sendo que esse “sujeito constituinte nunca se submete à permanência estática e cerceadora da vida constitucional” (1999: 448).

Uma vez formulada por via dedutiva, a categoria de poder constituinte passou a ser utilizada para organizar um pensamento indutivo, de matriz aristotélica. Muitos juristas apropriaram-se da noção de Sieyès e passaram a “observar” que, na origem histórica de toda mutação constitucional, existia um poder político que organizava essa transformação na estrutura da organização estatal, poder esse que passou a ser denominado como constituinte. Evidentemente, não se observava um poder constituinte unificado e homogêneo, mas interpretava-se a mudança constitucional como se ela fosse movida por um poder determinado, em uma descrição retrospectiva das mutações constitucionais.

Esse enfoque é a que domina o constitucionalismo atual, em que poder constituinte é o nome que se dá ao poder político que instituiu historicamente uma constituição. Nada mais distante da ideia de Sieyès, para quem o poder constituinte era uma face da soberania que toda nação tinha para determinar a sua própria constituição. Convertido de um direito de autorregulação nacional para um poder que foi capaz de modificar a ordem constitucional, o poder constituinte perdeu totalmente o seu viés revolucionário. De um poder vivo e atuante, capaz de redefinir os rumos de uma constituição, ele se transforma em um poder morto, estacionado no tempo, que aprisiona o momento legitimador de uma ordem jurídica em um início mitológico.

Esse trânsito não pode ter sua relevância minimizada: da afirmação deôntica de que todo poder exige um fundamento, passou-se a uma constatação fática de que toda ruptura constitucional é motivada por um movimento social e daí para uma apropriação jurídica da política: todo movimento social é juridicamente compreendido como o exercício de um poder. Somente essa mutação explica o fato de que o poder constituinte passou a ser o nome de um elemento que sempre está no passado das constituições: é o poder que a constituiu, e não que a (re)constitui a cada momento. É somente com este poder isolado no passado que a dogmática constitucional é capaz de lidar, afirmando, como Sanches Agesta que “o poder constituinte não pode ser localizado pelo legislador, nem formulado pelo filósofo, porque não cabe nos livros e rompe o quadro das Constituições. Surge como o raio que atravessa a nuvem, inflama a atmosfera, fere a vítima e desaparece” (Costa 2005: 9).

Na formulação de Sieyès, era preciso que o poder constituinte da assembleia se esgotasse no momento da promulgação da constituição, mas isso significava apenas uma limitação à autoridade do governo, e não à soberania do povo. Isso ocorria porque o poder constituinte era uma das dimensões da soberania. Já na formulação liberal, terminou-se por operar uma redução da soberania ao poder constituinte, entendido como o poder por meio do qual uma determinada constituição histórica foi feita. Assim, o exercício do poder constituinte esgotava toda a manifestação possível da soberania popular, passo necessário para ceder espaço ao exercício controlado do poder político. E é nessa medida que o poder constituinte se transformou em uma categoria meramente conservadora.

Essa é a origem da teoria liberal do poder constituinte, que o converte em um mito fundador para mantê-lo afastado da prática constitucional efetiva. De um modo quase cínico, os teóricos liberais afirmam que o poder constituinte não é anulado, mas que permanece constantemente com o seu titular (o povo), muito embora a sua efetiva utilização somente ocorra nos movimentos revolucionários que causam a ruptura de uma ordem constitucional. Trata-se de um poder tão absoluto que não admite um uso institucionalizado: por ser ilimitado, ele não tem lugar em uma ordem constitucional. Assim, ele somente pode ser localizado no passado, na origem mítica de uma revolução vitoriosa.

No constitucionalismo liberal, a soberania do povo não é entendida como o poder de se autogovernar (pois todo governo deve ser limitado), mas simplesmente como o poder de dar a si próprio as normas fundamentais, ou seja, a constituição. Essa redução liberal da soberania popular ao poder constituinte é um dos elementos fundamentais do constitucionalismo, que com essa operação consegue afastar a validade de qualquer invocação da soberania popular como justificação legítima para a alteração da ordem constitucional. O poder constituinte, assim, fica represado no passado, no momento em que a constituição foi feita. No presente, a sua invocação é sempre considerada como inconstitucional e, portanto, inválida.

6. Poder constituinte ou soberania?

Os limites entre as categorias poder constituinte e soberania são tênues, e não são respeitados por vários dos pensadores que se debruçam sobre o tema. Uma abordagem muito comum é estudar as origens do poder constituinte fazendo uma genealogia dos conceitos variados que indicam o surgimento de uma soberania popular (Loughlin e Walker 2007: 27-128). Embora o poder constituinte seja uma faceta delegável da soberania, a distinção entre esses conceitos somente aparece no final do século XVIII, quando se busca um discurso capaz de justificar a legitimidade de uma constituição elaborada e promulgada por uma assembleia. Assim, a formulação de Sieyès busca sustentar a tese constitucionalista de que o poder legislativo não poderia regular a separação de poderes, mas ao mesmo tempo justificar a possibilidade de uma assembleia poder elaborar e promulgar uma constituição. Nessa construção, fortemente ligada ao liberalismo, o poder constituinte é episódico e se esgota na formulação da constituição, reforçando o padrão jusracionalista do contratualismo, o qual afirma que o único modo racional de exercer a autonomia (das pessoas ou dos povos) é anulá-la em nome de um poder capaz de gerar segurança e proteger os direitos naturais.

Essas perspectivas integram o constitucionalismo liberal que se estratificou como concepção jurídica hegemônica na segunda metade do século XX, e cuja crítica tem sido levada a cabo por Antonio Negri e por vários outros pensadores críticos contemporâneos. A identificação dessa crítica democrática ao liberalismo fez com que James Tully cunhasse o termo constitucionalismo democrático (democratic constitutionalism), para diferenciar essa abordagem da defesa hegemônica de uma democracia constitucional (2007: 315). Essas perspectivas tendem a evidenciar o paradoxo do constitucionalismo, que Loughlin e Walker definem invocando a afirmação de Maistre de que o liberalismo faz do povo “um soberano que não pode exercer soberania” (2007: 1).

Todavia, essa reação democrática ao liberalismo, por mais que se utilize da categoria de poder constituinte, tende a anular esse conceito por meio de sua identificação com a própria soberania popular. O caso paradigmático dessa dissolução é a teoria de Negri, que termina por considerá-lo como uma subjetividade coletiva que se encontra além de toda limitação jurídica (1999: 182), ou seja, um sujeito coletivo soberano, no sentido hobbesiano da palavra. Essa identificação conduz Negri, na precisa interpretação de Lio Barshack, a dissolver a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos, pois estes nunca se tornam independentes da permanência constante do poder democrático da multidão (2006: 219). A mesma crítica também é feita por Giorgio Agamben, ao afirmar que Negri “na sua ampla análise da fenomenologia histórica do poder constituinte, não pode encontrar em parte alguma o critério que permite isolá-lo do poder soberano” (2002: 51).

Convém ressaltar que Negri não se propõe a identificar poder constituinte e soberania, pois, como bem define Wilson Theodoro Filho, o que ele está disposto a chamar de soberania seria uma institucionalização do poder constituinte que anularia o seu caráter de potência (2011: 59). Porém, essa distinção implicaria uma apropriação do sentido reduzido de soberania, típico do liberalismo, que a liga ao poder de governar e, com isso, nega o seu caráter de poder ilimitado. Com isso, Negri termina ligando a soberania a um poder institucionalizado e, nessa medida, constituído. Assim, a distinção conceitual entre poder constituinte e soberania se manteria possível na medida em que resulta na apropriação de um sentido liberal de soberania limitada e de um deslocamento semântico que reconhece ao poder constituinte os atributos que Bodin atribuiu à soberania: perenidade e falta de limites. Com isso, apesar das terminologias diversas, o resultado de Negri se aproxima bastante da teoria de Agamben, que não admite a existência de um poder constituinte distinto da soberania e afirma uma perenidade da soberania, no sentido de ser um poder que pode revogar a cada momento a própria constituição (Theodoro Filho 2011: 70).

Essa negação do caráter excepcional do poder constituinte tem a virtude de evitar a dissolução do poder constituinte nos poderes constituídos, que é marca distintiva do constitucionalismo liberal. Todavia, Negri promove uma dissolução correlata do poder constituinte na soberania, o que abre espaço para uma crítica liberal no sentido de que “Negri ignores the threats to individual autonomy posed by his model of immanent constituent power and absolute democracy. He does not acknowledge any correlation between the empowerment of popular forces and the loosening of the rule of law, on the one hand, and the violation of individual liberties, on the other” (Barshack 2006: 221). E essa crítica é baseada em uma noção liberal que é sempre presente, mas raramente verbalizada: a ideia de que “the more episodic and fleeting is sovereign presence, the safer are individual autonomy and human rights” (Barshack 2006: 222).

Não há espaço no constitucionalismo democrático para uma noção de poder constituinte que se diferencie da ideia de soberania popular. Isso ocorre porque a categoria poder constituinte indica um poder que é absoluto (no sentido de não encontrar limites no direito positivo) mas não é perene, pois se esgota ao ser exercitado. Um poder constituinte que se protrai no tempo é uma distorção desse conceito, como ocorreu na ditadura militar pós-64, que repetidas vezes invocou o poder constituinte da junta militar para editar atos institucionais impostos anos depois do golpe.

Ocorre que falar de constituição é falar de liberalismo, pois somente os valores liberais justificam a existência de um conjunto de normas jurídicas positivas que têm autoridade superior à daquela exercida pelos agentes políticos. O Brasil, durante a ditadura militar, não tinha uma constituição vigente, pois o governo “revolucionário” se julgava imbuído de poder constituinte para realizar atos institucionais capazes de modificá-la a cada momento, inclusive com a alteração no próprio regime de separação de poderes. Uma autoridade que não se esgota na elaboração de uma constituição, passando a integrar o tempo mitológico da fundação da ordem, mas segue agindo como o mais alto poder de governo (Bodin 1999: 8), não é poder constituinte, mas soberano. Portanto, o poder constituinte é uma categoria que somente faz sentido dentro de um discurso liberal, que busca estabelecer limites para a potência criadora do povo, reduzindo a manifestação legítima da soberania a momentos episódicos ocorridos no passado, e protegendo as instituições atuais de qualquer movimento que busque atuar em nome do povo.

Como o senso comum dos juristas contemporâneos envolve um misto de democracia e liberalismo, não é de causar espanto que haja várias tentativas de compatibilizar essas duas perspectivas. Alexandre Bernardino Costa, por exemplo, ao tratar do tema, reconheceu a consistência dos argumentos críticos de Negri, mas adotou, com inspiração em Habermas e Fioravanti, uma abordagem que trabalha “não uma oposição entre constitucionalismo e democracia, e sim uma tensão complementar” (2005: 193). Essa tentativa de conciliar democracia e constitucionalismo é a pedra filosofal de boa parte do constitucionalismo contemporâneo, não obstante o reconhecimento de que esta é uma tarefa tão complexa como problemática, especialmente porque ao impor uma ordem normativa a si próprio estabelece limites à soberania popular (Chueri e Godoy 2010: 160).

Uma análise dos discursos que buscam estabelecer essa compatibilização indica que eles têm muito mais de liberalismo que de democracia, na medida em que buscam justificar que é democraticamente necessária a aceitação dos limites liberais impostos à soberania. Chueri e Godoy, por exemplo, afirmam que existe uma “insanável e produtiva tensão entre democracia e constitucionalismo”, ressaltando tipicamente com inspiração em Habermas que “o fato de que um é constitutivo do outro” e que isso não significa “necessariamente o fim da tensão ou um certo apaziguamento ingênuo entre ambos” (Chueri e Godoy 2010: 160-168). E terminam por sustentar que a democracia só se realiza quando estão presentes “os princípios e as regras estabelecidos pela constituição. Ao mesmo tempo, a constituição só adquire um sentido perene se está situada em um ambiente radicalmente democrático”. (Chueri e Godoy 2010: 171)

Essa manifestação mostra menos o resultado de uma investigação do que as consequências de um engajamento prévio quanto aos valores de liberdade e igualdade modelados pela ideologia liberal. Assim, o argumento leva à conclusão de que os valores pressupostos como compatíveis são efetivamente compatíveis, o que configura uma petição de princípio. Esse tipo de abordagem, para além de seu dogmatismo, não leva em conta devidamente alguns elementos ressaltados por Tully ao tratar do imperialismo da moderna democracia constitucional, expressão que ele tomou emprestada de um artigo de 1953, em que Gallager e Robinson buscaram esclarecer a dimensão imperialista do livre comércio, mostrando que a imposição do free trade operava como uma forma de manter a dominação das potências sobre os mercados emergentes, sem incidir nos custos do domínio colonial direto (2007: 315). Essa interpretação, que se incorporou ao senso comum nos últimos 50 anos, não foi devidamente explorada no que toca ao modo como a democracia constitucional desempenha um papel relevante “in dispossessing non-European peoples of popular sovereignity over their resourses, labour, and markets and opening them to the informal paramountcy of the great powers and their trade companies” (2007: 316).

Essa perspectiva marxista acentua que o constitucionalismo é uma resposta liberal as pretensões democráticas, estabelecendo uma mítica autolimitação soberana da soberania, ou seja, um contrato social, que pode conduzir a resultados profundamente destoantes dos interesses da própria população. O liberalismo, ao reduzir os interesses sociais à sua própria leitura dos direitos humanos, nega a soberania popular que ele próprio invoca como base legitimadora dos textos constitucionais. Esse paradoxo não pode ser resolvido apenas com base na afirmação de que é útil ou conveniente para o interesse público a manutenção das democracias constitucionais, por serem elas a melhor forma de governo de que dispomos na contemporaneidade. Por mais que eu concorde que essa é a melhor organização estatal possível nos dias de hoje, preciso acentuar que a justificativa teórica apresentada não passa de uma mistificação racionalista.

7. Conclusão

O constitucionalismo liberal busca escapar do paradoxo da soberania limitada mediante a ficção de que o povo permanece soberano mesmo com o advento da constituição. Essa é uma construção idealizante, que atribui soberania a um poder que não pode ser exercitado e, com isso, termina desnaturando a noção de soberania, que deixa de designar um poder absoluto e passa a apresentar apenas um fundamento absoluto para a autoridade. Esse trânsito esvaziou o conceito de soberania, que ficou reduzido a um elemento retórico de legitimação dos poderes constituídos.

Tal esvaziamento não é reconhecido pela teoria constitucional hegemônica, que não admite a ideia de que a constituição estaria fundada em um poder fictício, e para defender a tese contrária terminou por desenvolver uma teoria do poder constituinte que permite a construção de uma curiosa narrativa: o povo tem um poder absoluto e permanente, mas que somente pode ser exercido na própria instituição do texto constitucional. Essa operação reduz a soberania do povo a um poder constituinte, que tem caráter excepcional e se esgota na elaboração do texto constitucional. Em contraposição, a autoridade para criar normas e interpretar o direito era apresentada como um poder permanente, mas limitado.

Com isso, os dois atributos fundamentais da soberania ficaram separados: poder ilimitado de um lado, poder permanente de outro. O poder do povo passou a ser entendido como absoluto, mas excepcional, enquanto o poder legislativo passou a ser entendido como perene, mas limitado por uma constituição que ele próprio não poderia modificar. Essa cisão termina por operar, no constitucionalismo, um fechamento idêntico ao que ocorreu na teologia judaica quando o Deuteronômio determinou que “nada acrescentareis às palavras que eu vos digo e nada delas tirareis” (Perelman 1999: 439). Uma vez estabelecido o fechamento do texto sagrado que determina a divisão dos poderes, consideram-se heréticas (ou seja, ilícitas) todas as tentativas de alterá-lo fora dos procedimentos formais de emenda. O resultado é que não se reconhece aos cidadãos o direito de modificar a constituição, que é compreendida como um exercício de autolimitação da soberania do povo.

É claro que ninguém duvida que constituições sejam eventualmente alteradas por meio de revoluções, mas essa é apenas a admissão de um fato. Reconhecemos que constituições são modificadas, mas isso não significa de modo algum que dispomos de critérios para afirmar que certos movimentos revolucionários têm o direito de alterá-las. Essa percepção tende a fazer com que o senso comum dos juristas conjugue o povo soberano sempre no passado: foi ele quem criou a constituição vigente, mas ninguém pode falar em seu nome para mudar a ordem hegemônica. A soberania do povo torna-se uma espécie de conceito suicida: esse poder somente é exercido para anular a si próprio, mediante a delegação do poder constituinte a uma assembleia. Com isso, a legitimidade torna-se uma categoria apenas retrospectiva, utilizada como parte do discurso de legitimação das revoluções vencedoras.

Dessa forma, a soberania do povo brasileiro é entendida como a fonte do poder constituinte, mas o único ato soberano praticado por esse povo teria sido a delegação do seu poder à Assembleia Nacional Constituinte de 1987. É certo que a dogmática constitucional tende a afirmar que a soberania não se esgota na eleição dos legisladores constituintes, mas esse é um reconhecimento vazio. Assim, a soberania permanece no discurso jurídico e político apenas como fundamento místico da autoridade (Derrida 2007: 21) dos representantes que falam em nome do povo, mas não lhe é reconhecido qualquer papel (cri)ativo no exercício da política.

A conclusão deste trabalho é que a categoria poder constituinte é um elemento da semântica liberal, representando o conceito por meio do qual se opera a mistificação liberal do fundamento do poder dos estados constitucionais. Como afirma Barshack, “the unity of a corporate group consists in the unity of the law that defines and regulates it, because the group’s corporate-ancestral authority manifests itself primarily through its laws”, de modo que “the law constitutes the unity of the group to which it applies, rather than being freely endorsed by a pre-existing group” (2006: 197). O poder constituinte faz parte da mitologia liberal, que tenta localizar o tempo fundador no passado, fechando o sistema jurídico ao impedir a existência presente de um poder capaz de alterar as estruturas definidas no início.

Já na mitologia democrática, essa possibilidade permanece aberta, tal como ocorre como nas teorias de Rousseau e de Negri, em que o povo tem a possibilidade de exercer, a cada momento, um poder soberano, que o primeiro chama de poder legislativo e o segundo chama de poder constituinte. Portanto, as tentativas contemporâneas de democratizar o constitucionalismo, por mais que operem com a categoria de poder constituinte, de fato estão reduzindo este conceito à noção de soberania popular, enquanto as tentativas contemporâneas de manter separados o poder constituinte e a soberania, por mais que se apresentem como uma forma de equilibrar democracia e liberalismo, estão operando dentro de uma semântica liberal.

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