1. Introdução
O referencial teórico é um elemento fundamental das pesquisas científicas porque, como afirmam Laplane e outros, “conceptual clarifications not only improve the precision and utility of scientific terms but also lead to novel experimental investigations because the choice of a given conceptual framework strongly constrains how experiments are conceived” (2019). Sem um referencial adequado, não é possível compreender os limites e as possibilidades das pesquisas e, menos ainda, produzir abordagens originais.
Todavia, somos conscientes de que o referencial teórico (ou marco teórico) costuma ser um dos elementos que geram maior dificuldade para os pesquisadores, tanto nos projetos quanto nos trabalhos. Cremos que essa dificuldade vem do fato de que os pesquisadores tendem a ter conhecimentos profundos de sua especialidade (que chamaremos aqui de conhecimentos materiais) e o desenvolvimento do projeto tende a exigir o desenvolvimento de conhecimentos razoáveis de estratégias de abordagem (que chamaremos aqui de conhecimentos metodológicos).
Já a definição do referencial teórico demanda uma reflexão filosófica que não é muito comum entre os pesquisadores, especialmente entre os pesquisadores empíricos, que dedicam a maior parte de seu tempo ao desenvolvimento e à aplicação de metodologias adequadas. Inobstante, como afirmou Albert Einstein:
So many people today—and even professional scientists—seem to me like somebody who has seen thousands of trees but has never seen a forest. A knowledge of the historic and philosophical background gives that kind of independence from prejudices of his generation from which most scientists are suffering. This independence created by philosophical insight is—in my opinion—the mark of distinction between a mere artisan or specialist and a real seeker after truth. (Howard & Giovanelli 2019)
Apesar dessa relevância central dos quadros conceituais que são utilizados pelas pesquisas (e que são justamente o que chamamos de marco teórico), muitas pessoas não têm clareza sobre os repertórios conceituais que elas próprias utilizam. Isso faz com que seja um lugar-comum dos cursos de metodologia afirmar que as pessoas sempre têm referenciais teóricos, ainda que sejam meramente implícitos. Nos cursos de metodologia científica, um dos objetivos é tornar explícitos esses quadros conceituais, de tal modo que o estudante se torne consciente deles e, com isso, também adquira autonomia suficiente para questioná-los e para adotar referenciais alternativos.
2. Do senso comum às teorias especializadas
Não é possível falar das coisas sem partir de um repertório de conceitos e classificações. Por exemplo, toda vez que falamos do poder judiciário, utilizamos vários conceitos. Parte deles é compreensível por qualquer falante do português, tais como: juiz, decisão, tribunal, lei e interpretação. Esses conceitos usados pelas pessoas em geral compõem um repertório compartilhado de conhecimentos que podemos chamar de senso comum. O senso comum é a base da nossa comunicação e ele é construído de forma consuetudinária, a partir da consolidação de certos usos em uma comunidade linguística.
Por mais que o senso comum seja importante, as pessoas que desenvolvem práticas especializadas precisam desenvolver repertórios linguísticos específicos, capazes de descrever com mais riqueza as situações envolvidas nessa prática. Um jurista bem formado certamente sabe que há computadores, que usam programas, que manejam dados e que podem inclusive resolver problemas mediante inteligência artificial. Todavia, se você perguntar ao jurista quais são os tipos de computadores, quais são as classes de programas, quais são as diferentes formas de organizar dados e as diferenças entre inteligência artificial e aprendizado de máquina, é bem possível que ele não saiba responder, pois esses tipos de classificação ultrapassam a linguagem típica que eles aprenderam tanto em seus processos de socialização quanto no ensino formal.
Por que o jurista não conhece essas classificações? Porque ele pode resolver a maioria dos seus problemas práticos sem elas. Não criamos classes novas porque gostamos de multiplicar os conceitos, mas porque as situações que enfrentamos não se deixam resolver adequadamente quando tentamos usar as mesmas estratégias para enfrentar situações diferentes. Uma pessoa graduada em direito certamente aprendeu várias classificações típicas desse ofício, no qual interpretar contratos é diferente de interpretar leis, no qual direitos reais são regulados de forma diferente de direitos pessoais, no qual os efeitos de uma sentença declaratória são diferentes de uma sentença mandamental.
Essas tipologias criam novos níveis de complexidade. Para o senso comum, basta ter uma noção geral acerca de contratos, leis e sentenças, mas a necessidade de resolver situações juridicamente complexas exige essas tipologias especializadas, que permitem diferenciar as situações e desenvolver estratégias específicas para cada uma delas. Toda pessoa que detém um conhecimento especializado pode fazer perguntas que os falantes da língua não têm como responder, pois lida com diferenciações conceituais que tentam administrar as dificuldades de uma área.
Um bom mestre de obras precisa saber sobre diferentes técnicas construtivas, para ser capaz de escolher a que melhor se adapta às peculiaridades da construção a ser edificada. Um bom advogado precisa saber sobre diferentes estratégias de resolução de conflitos para poder orientar as pessoas que buscam os seus serviços. Ocorre que alguns advogados têm conhecimentos mais amplos e outros têm conhecimentos mais restritos.
Cada pessoa conhece e sabe manejar um determinado conjunto de abordagens, que podemos chamar de repertório ativo, e também sabe reconhecer (mas não operar) um grupo maior de enfoques, que podemos denominar repertório passivo. Além disso, existe um conjunto gigantesco de técnicas, conhecimentos e abordagens que ela simplesmente desconhece que, portanto, são estranhas ao seu repertório. Quando um indivíduo observa uma casa, por exemplo, ele pode avaliar se gosta dela ou não (o que só envolve o senso comum e seu gosto estético pessoal), mas o sujeito pode não contar com um repertório conceitual para identificar as influências arquitetônicas envolvidas no projeto e as técnicas construtivas. No caso de indivíduos que não arquitetos, nem engenheiros, nem mestre de obras, esssa essa ignorância é plenamente justificada.
A dificuldade ocorre quando um jurista não se mostra capaz de compreender as várias abordagens plausíveis a respeito de uma questão jurídica. Assim como é possível que o mestre de obras somente saiba construir casas de um único modo (que ele identifica como a forma correta de construir), também é possível que o advogado somente saiba escrever petições de uma única forma (que ele identifica como a maneira correta de escrever petições) e que um juiz decida sempre com as mesmas estratégias argumentativas.
No caso dos juristas, essa limitação de repertório é estimulada pelo discurso dogmático, e isso representa uma dificuldade especial para a pesquisa. Esperamos que um engenheiro aprenda sobre técnicas construtivas de modo mais rico do que os juristas, que muitas vezes são ensinados como se houvesse apenas uma forma correta de classificar os objetos e de tomar as decisões com relação a eles. O discurso dogmático é voltado para organizar o processo decisório e torná-lo mais previsível.
O direito processual é um bom exemplo desse reducionismo dogmático. A atuação judicial pode ser pensada a partir da categoria central de ação, que é a estratégia civilista típica. Essa abordagem se concentrará em criar uma tipologia das ações e a focar aprendizado jurídico na identificação de qual seria a ação adequada para defender um direito. Essa estratégia centrada na ação difere de uma abordagem centrada no processo, na medida em que questiona a utilidade em classificar ações e acentua a existência de uma ampla liberdade do direito de fazer pedidos (Costa & Costa 2011).
Em vez de criar uma tipologia dos pedidos possíveis, uma abordagem centrada no processo diz que tudo pode ser pedido aos juízes e que o importante é regular como o judiciário exercerá a jurisdição, construindo respostas a tais postulações. Com isso, em vez de pensar em um tipo de processo para cada modalidade de ação, seria mais adequado identificar certos modos de exercício jurisdicional, que podem ser desencadeados pelos pedidos dos autores. Em vez de um rol de dezenas de classes de ações, cada qual com suas peculiaridades de processamento, essa abordagem aponta para alguns modos diversos de processar os pedidos (cautelar, ordinário, executivo, etc.).
Qual dessas abordagens é correta? Esta é uma pergunta ruim. Podemos perguntar qual dessas abordagens é dominante, e isso é uma questão empírica, que pode ser respondida por uma observação do mundo. Mas perguntar qual é a estratégia correta de classificação nos coloca uma questão insolúvel em termos empíricos. Podemos escolher uma estratégia e podemos justificar essa escolha com bons (ou maus) argumentos, mas seria muita pretensão afirmar que um certo conjunto de categorias corresponde objetivamente aos fatos. Categorias classificam fatos, elas não espelham a sua essência (Costa 2020), e por isso não podemos falar que uma das classificações possíveis corresponde verdadeiramente aos fatos.
Para complicar ainda mais a situação, a sistemática classificatória hegemônica mistura os dois sistemas e gera um modo híbrido de descrever os processos, que nem é vinculado totalmente à teoria abstrata do direito público nem à teoria concreta das abordagens civilistas.
Esse trânsito fatalmente nos levaria a uma teoria em que o centro de gravidade fosse ocupado pela jurisdição, e no qual a seletividade judicial fosse entendida como uma expressão do poder judicial do Estado, e não de uma limitação do direito subjetivo da parte. Tal passo, contudo, é incompatível com as vinculações civilistas dos juristas que deram início ao movimento de autonomia do processo. Entender o processo como expressão de um poder, e não como realização de um direito, era uma mudança incompatível com a percepção hegemônica da estrutura do direito e da função do Judiciário. (Costa & Costa 2011).
Nas teorias processuais, como ocorre em muitos campos do direito, os sistemas classificatórios que a dogmática hegemônica utiliza não são muito consistentes, pois unem classificações que usam critérios diferentes, bases teóricas diferentes e apontam para elementos diversos. Esse é o caso das teorias “mistas” ou “ecléticas” que aparecem comumente como soluções dogmáticas adequadas, mas que terminam por nos oferecer sistemas classificatórios inconsistentes, que não viabilizam modelos descritivos adequados.
Ocorre que nem todos os juristas são educados para perceber os sistemas de classificação que estão na base de suas percepções. É mais comum que sejamos educados para identificar as classificações usadas na legislação ou na jurisprudência (que podem ser ou não úteis para a pesquisa) e a considerar corretas as classificações dominantes na cultura jurídica. Abordagens dogmáticas tendem a naturalizar um sistema classificatório e a desconsiderar os demais, que muitas vezes não são estudados ou são encarados apenas como “descrições” ultrapassadas ou incorretas do funcionamento do direito. Esse tipo de estratificação conceitual e de falta de horizonte teórico não é um problema específico do direito, pois Albert Einstein já o identificava na física há mais de 100 anos:
Concepts that have proven useful in ordering things easily achieve such an authority over us that we forget their earthly origins and accept them as unalterable givens. Thus they come to be stamped as “necessities of thought,” “a priori givens,” etc. The path of scientific advance is often made impassable for a long time through such errors. For that reason, it is by no means an idle game if we become practiced in analyzing the long commonplace concepts and exhibiting those circumstances upon which their justification and usefulness depend, how they have grown up, individually, out of the givens of experience. By this means, their all-too-great authority will be broken. They will be removed if they cannot be properly legitimated, corrected if their correlation with given things be far too superfluous, replaced by others if a new system can be established that we prefer for whatever reason. (Einstein 1916; citado por Howard & Giovanelli 2019)
3. Marco teórico e revisão de literatura
O marco teórico não é a revisão de literatura, mas é muito ligado a ela, pois é normalmente a revisão da literatura que coloca o pesquisador iniciante frente à multiplicidade de abordagens possíveis. Por esse motivo, você deve desenvolver o seu referencial teórico depois de ter realizado uma ampla revisão de literatura, que deve ser capaz de revelar a você a multiplicidade de abordagens adotadas com relação ao seu objeto.
Se você efetuar uma revisão muito focada, é possível que você localize somente a produção convergente com as suas intuições, e não a produção que é crítica (ou mesmo cética) com relação à sua metodologia e à viabilidade do seu problema de pesquisa. Vale a pena explorar a produção em áreas conexas (história, sociologia, filosofia, ciência política), pois é sempre no contato com o estrangeiro que percebemos as peculiaridades de nossa cultura. Essa, inclusive, é a principal virtude da antropologia: o olhar de uma pessoa estranha, imersa em uma cultura que não lhe é familiar, pode notar padrões que escapam às pessoas que estão imersas nessa própria cultura.
Ninguém consegue ser externo a si próprio. Porém, quando você explora pesquisas de pessoas que adotam perspectivas diversas da sua, esse contato com a diferença tem a possibilidade de estimular uma percepção diversa sobre a própria prática. Esse é um dos motivos pelos quais a universidade precisa ser plural e ter espaço para múltiplas vozes: a nossa crença de que a diversidade é capaz de gerar estranhamentos e que esses estranhamentos são produtivos. Não é por acaso que a tradição platônica acentua que a filosofia está ligada à capacidade de espanto frente a situações que nos são familiares.
Trabalhos de história do direito, de sociologia jurídica e de direito comparado são ótimas fontes no sentido de identificar a multiplicidade de abordagens possíveis, pois essas são disciplinas que comportam teorias com perspectivas muito diversas entre si. Mas leia com especial cuidado os trabalhos de filosofia do direito, porque essa abordagem foca sobretudo no modo como as categorias se relacionam. Trabalhos de filosofia envolvem (direta ou indiretamente) reflexões sobre as abordagens teóricas em conflito, sobre os limites das categorias, sobre as potencialidades e limites de certas formas de classificar os fenômenos jurídicos.
Se você utilizar a sua revisão de bibliografia como um balão de ensaio para produzir espanto, a partir do estranhamento produzido pela diferença, ela será o seu melhor instrumento para identificar que categorias você maneja. Para realizar esse objetivo, evite cuidadosamente as armadilhas do discurso dogmático do direito, que se concentra em buscar referências que fortalecem a tese defendida. No caso da pesquisa, a sua exploração da literatura existente precisa identificar tanto os textos que são convergentes com as suas intuições quanto os textos que apontam em sentido diverso.
Os trabalhos diferentes vão contribuir para você compreender as distinções e, com isso, reforçar a consciência da própria identidade, num permanente esforço de autorreflexividade (Yin 2016). E os trabalhos convergentes vão servir propriamente como o seu marco teórico, pois fornecerão a você um repertório de descrições, de explicações, de abordagens, de classificações e de conceitos que você pode utilizar como modelo.
Em trabalhos de graduação, especialização e até mesmo de mestrado, uma das saídas adequadas é a de unir revisão de literatura e referencial teórico no mesmo tópico. Embora não se trate da mesma coisa, uma forma de mostrar o marco teórico é ir indicando, dentro da revisão, quais são os textos que ofereceram os modelos que você utilizará.
Nos doutorados, convém manter a diferença para deixar claro que o estudante (ou candidato) tem clareza teórica suficiente para separar esses dois elementos, mas no nível de complexidade dos mestrados, pode ser suficiente apontar os trabalhos com os quais existe afinidade e marcar a diferença com relação a perspectivas alternativas, pois esse trabalho ajuda a mostrar, dentro do campo de estudos, onde se encaixa o trabalho que você pretende realizar.
4. A variada relevância do marco teórico
Cada pesquisa tem as suas particularidades e devemos reconhecer que nem sempre o marco teórico é um elemento central. Nos trabalhos mais explicativos, que buscam traçar relações de causalidade, o marco teórico é um elemento indispensável e complexo, pois é preciso estabelecer claramente os critérios teóricos que justificam a inferência de relações causais.
As metodologias voltadas a inferir a existência de causalidade são calcadas em um uso complexo das teorias, exigindo uma combinação de desenvolvimentos teóricos e metodológicos que não se espera de um mestrado. Nos mestrados, é razoável que o pesquisador aplique uma metodologia já desenvolvida, mas o desafio de modelar uma metodologia explicativa costuma exigir um tempo incompatível com esses cursos. A formulação de uma abordagem metodológica original é esperada nos doutorados, que por isso mesmo duram o dobro do tempo, o que permite que o pesquisador dedique dois anos a estabelecer sua metodologia (defendida publicamente na qualificação) e outros dois anos a aplicá-la.
Nos trabalhos empíricos mais descritivos, o marco teórico é importante, mas é menos desafiador, na medida em que não é necessária essa camada de critérios de aferição de causalidade. Isso faz com que o marco teórico seja mais simples, concentrando-se na explicação das categorias que são usadas para descrever o objeto, especialmente nas classificações que são aplicadas. Essa simplificação é maior quando se trata de trabalhos descritivos que não têm uma hipótese definida, mas que buscam mapear um determinado campo, como uma pesquisa voltada a estabelecer um perfil das decisões de Mandados de Segurança no STJ. Nesse caso, o marco teórico será basicamente composto de uma descrição das variáveis que serão mensuradas para descrever as ações, e dos critérios de classificação que serão utilizados.
Quando a pesquisa não é orientada somente por objetivos (como é o caso da descrição das decisões de um determinado tipo de processo), mas lida com hipóteses descritivas (por exemplo, o teste da hipótese de que as juízas são mais interrompidas do que os juízes homens, nas seções de julgamento), é preciso explicitar claramente as teorias que oferecem os critérios de validação ou invalidação das hipóteses pelos resultados do trabalho. No caso da pesquisa mencionada, um dos elementos centrais da teoria seria o esclarecimento do que é considerado interrupção.
Todo comentário é interrupção? E quais são os tipos de interrupção? Parece diferente interromper o discurso para fazer um pedido de explicações, ou para contrapor-se, ou para fazer uma piada. Pode ser que as mulheres sejam mais interrompidas, mas uma descrição adequada do fenômeno pode exigir que sejam classificadas as várias formas de interrupção, visto que a medição da ocorrência de interrupções pode não descrever o fenômeno de modo suficientemente complexo. Talvez haja um padrão nas modalidades de interrupção que não se mostre na simples contagem do número de interrupções, que pode levar a conclusões enganosas ou insuficientes. Esse conceito de interrupção, bem como a tipologia de interrupções seria uma parte central do marco teórico dessa pesquisa.
Em toda pesquisa quantitativa de caráter conclusivo (em oposição às pesquisas exploratórias), o marco teórico exerce papel fundamental de orientação do pesquisador desde o início do processo de investigação. Ele é indispensável para a formulação do problema, para a definição das hipóteses e para as demais etapas que compõem do desenho da pesquisa. Isso ocorre porque é preciso ter uma teoria que estabeleça claramente o modo como certas medidas podem justificar certas conclusões.
Quando uma correlação pode ser considerada causalidade? Que tipo de configuração de dados pode nos indicar que as mulheres são efetivamente mais interrompidas do que os homens, pelo fato de serem mulheres? Pode acontecer de escolhermos um tribunal em que as mulheres são mais interrompidas que os homens, mas essa divergência pode ser explicada por outros fatores: talvez a interrupção seja mais constante no caso de juízes com muitos votos divergentes e as juízas podem divergir mais. Nesse caso, ser mulher não seria um fator que causaria mais interrupções. Para poder lidar com essas questões, é preciso desenvolver uma metodologia adequada, mas isso por sua vez depende de uma teoria adequada: sobre significado das interrupções, sobre classificações dos juízes, sobre as relações entre divergência e interrupções.
Para as pesquisas empíricas quantitativas, contar com um marco teórico definido é vital para que seja possível alcançar bons resultados. Já nas pesquisas qualitativas, o marco teórico desempenha, com frequência, um papel ancilar nas fases iniciais da investigação, servindo, basicamente, para justificar a necessidade de sua realização e oferecer algumas orientações sobre o caminho a ser trilhado pelo pesquisador. Isso acontece porque as perspectivas qualitativas muitas vezes se baseiam na capacidade individual do pesquisador de formular interpretações, a partir do seu próprio horizonte de compreensão. Nesse caso, é difícil estabelecer um marco teórico predefinido, uma forma específica de lidar com os dados, visto que eles serão interpretados ao longo do processo.
Nas metodologias qualitativas, a abordagem coloca o pesquisador frente a fenômenos complexos que desafiam a sua interpretação, o que faz com que a escolha dos repertórios conceituais muitas vezes seja feito ao longo do processo. Quando enfrentamos os desafios de compreender o sentido das entrevistas, de identificar os argumentos centrais, ou de identificar os pressupostos filosóficos de uma prática cultural, é difícil partir de uma rede predefinida de conceitos (como aqueles que são necessários para fazer um levantamento quantitativo de dados). Nesses casos, o marco teórico é importante, mas ele pode ser simplificado.
Em vez de indicar todas as categorias que serão usadas, será suficiente indicar as perspectivas gerais que orientam a pesquisa. Para quem faz o projeto, pode parecer uma boa escolha, já que desonera o projeto de um desenvolvimento teórico mais abrangente. Entretanto, isso também significa um risco (começar a pesquisa sem uma definição clara das categorias que serão usadas) e impõe ao pesquisador um peso muito maior: já que não é possível definir todos os conceitos de antemão, o pesquisador deverá contar com um repertório muito amplo de conceitos para poder lidar com o seu objeto. Isso obriga os pesquisadores qualitativos a ter uma formação filosófica mais sólida e uma “sensibilidade conceitual” muito desenvolvida, sem as quais não lhes seria possível formular categorias úteis a partir do contato com o objeto de pesquisa.
Quanto mais simplificado o marco teórico do projeto, mais a realização da pesquisa depende de um conhecimento teórico especialmente amplo dos pesquisadores. Isso é o que ocorre, por exemplo, nas abordagens de teoria fundamentada, que têm por objetivo desenvolver categorias teóricas de forma indutiva, a partir dos dados levantados na pesquisa: as proposições teóricas surgem dos dados empíricos obtidos no processo de investigação, e não em estudos prévios. Trata-se, pois, de um desenho de pesquisa muito arriscado para quem não tem um repertório conceitual amplo e não conta com orientação adequada.
No caso das pesquisas quantitativas, que exigem marcos conceituais muito definidos, é comum que uma pesquisa de mestrado possa se limitar a indicar uma determinada teoria, que será implementada a partir de seus conceitos e metodologias. Esse tipo de abordagem pressupõe um campo já mapeado, com teorias desenvolvidas, com conceitos estratificados e bem definidos. Mas o que podemos fazer em uma pesquisa exploratória? Nesse caso, o pesquisador decide se lançar em campo de conhecimento ainda pouco explorado, em que haja somente fragmentos teóricos ou descobertas interessantes, mas parciais, que não constituam uma teoria propriamente dita, com o nível de desenvolvimento necessário para se qualificar como tal.
Nos campos em que não existem teorias claras, não se pode exigir que o pesquisador indique previamente uma teoria à qual o trabalho se filiará. Ainda assim, o pesquisador pode construir seu marco teórico a partir das orientações ou elementos parciais para desenvolver os estudos de natureza exploratória. Quando há teorias estratificadas e metodologias bem definidas, é possível que o pesquisador (normalmente em abordagens empíricas quantitativas) chegue a bons resultados mediante a aplicação de modelos predefinidos. Já no caso das pesquisas exploratórias e, de modo geral, nas pesquisas qualitativas, o sucesso da investigação dependerá muito da habilidade do pesquisador, da extensão e da riqueza dos seus conhecimentos.
Portanto, a complexidade do marco teórico do projeto é inversamente proporcional às exigências teóricas e filosóficas que recaem sobre o pesquisador. Quanto mais claro o marco teórico, quanto mais desenvolvido o quadro conceitual a ser usado, menor será o esforço teórico que o pesquisador precisará fazer ao longo do trabalho. Se você puder definir de antemão o seu quadro conceitual, de modo bem ajustado com a metodologia, sua pesquisa poderá constituir uma aplicação do quadro teórico a um conjunto de observações empíricas.
Se você não tiver a possibilidade de definir previamente esse quadro, a pesquisa exigirá que você tome essas decisões metodológicas e teóricas ao longo do processo, de forma autônoma, um exercício que é mais indicado para pesquisadores experientes ou, no mínimo, investigadores que puderem contar com uma orientação teórica e metodológica constante e intensa.
5. A coerência do marco teórico
A qualidade de um marco teórico não é medida por sua extensão ou pelo número de referências contidas em seu texto. A apresentação de um amontoado de citações desconectadas entre si ou a abordagem de temas que não se relacionam diretamente ao problema de pesquisa são exemplos de estratégias ruins para a realização dessa atividade. Em vez disso, sugere-se, para a construção de um marco teórico adequado, a observância dos critérios de seletividade, profundidade e coerência.
A seletividade confere foco à perspectiva teórica desenvolvida pelo pesquisador. A delimitação precisa do objeto de pesquisa é uma reconhecida virtude de um estudo científico, que também deve balizar a construção do marco teórico. Retomar aspectos teóricos muito elementares de uma área temática abrangente ou antecedentes históricos remotos que não possuem relação de proximidade com o problema investigado pode tornar o projeto ou o relatório de pesquisa mais prolixo, sem, no entanto, contribuir para a qualidade do trabalho.
Em vez de extensão, recomenda-se profundidade, característica que se relaciona à anterior. Diferentemente dos manuais, que se propõem a abarcar as diversas temáticas relativas a determinado ramo do direito, as pesquisas científicas se debruçam sobre problemas específicos, bem delimitados e com certo grau de profundidade. Não se deve qualificar como pesquisa científica um estudo que somente se disponha a examinar dado problema de forma superficial e desconectada da literatura especializada existente sobre o assunto. A profundidade exigida do pesquisador na análise do problema formulado reflete-se na tarefa de construção do marco teórico, devendo ser com ela compatível.
Coerência diz respeito à adoção de mecanismos de ligação lógica entre os elementos do marco teórico. As postulações ou afirmações teóricas devem estar entrelaçadas, concatenadas, bem como devem ser consistentes entre si.
Ao mencionarmos as postulações ou afirmações de um ou mais autores como elementos do marco teórico, dois esclarecimentos se fazem necessários. Em primeiro lugar, é conveniente ressaltar que o marco teórico não corresponde, como regra, à integralidade da obra de determinado autor. O marco teórico é constituído, na verdade, por alguma afirmação ou concepção específica de um autor, cujo conjunto da obra pode ser formado por teorias distintas, relacionadas a questões diversas ou, até mesmo, incompatíveis entre si.
Além disso, uma pesquisa pode ter mais de um autor como marco teórico ou, ainda, mais de um marco teórico. Isso pode ocorrer, por exemplo, em investigações interdisciplinares ou em estudos que adotem processos mistos de pesquisa. O que importa, nesses casos, é que os diferentes autores ou marcos teóricos sejam convergentes entre si e compatíveis com o problema de pesquisa.
6. Entendendo os conceitos utilizados
O primeiro passo para definir um marco teórico é encarar as próprias definições, conceitos e tipologias como classificações possíveis e não como descrições corretas. Esse tipo de operação envolve um esforço de desnaturalização dos próprios marcos, que somente se mostra viável quando o estudante amplia os seus conhecimentos para além do discurso dogmático hegemônico, que normalmente é o discurso aprendido na graduação.
O primeiro passo para construir o marco teórico é desnaturalizar os próprios conceitos, é observá-los cuidadosamente para compreender:
- quais são as tipologias que usamos?
- elas são compatíveis entre si?
- quais são os seus pressupostos?
- em que tipo de abordagem elas se encaixam?
Esse é um processo de autoconhecimento, que desafia fortemente nosso viés de confirmação. Nossa tendência é a de exigir pouco dos sistemas classificatórios que nos são familiares: poucas justificativas, poucas explicações, poucas problematizações. Antes de fazer uma escolha consciente sobre os modelos disponíveis, é preciso se dedicar a compreender os modelos teóricos que estão implícitos no modo pelo qual nós formulamos o problema e desenvolvemos a metodologia.
O problema é que essa auto-observação, além de ser muito difícil, somente se torna viável quando aumentamos o nosso repertório teórico o suficiente para que vejamos as nossas abordagens como abordagens possíveis. Precisamos deixar a posição do mestre de obras que somente sabe repetir as técnicas construtivas que ele aprendeu e passar à posição do mestre de obras que conhece alternativas adequadas para diferentes situações e que, com isso, pode fazer escolhas técnicas adequadas.
Esse trânsito pode ser fácil de descrever, mas é um movimento difícil de se realizar. O caminho para desenvolver essa consciência teórica é longo, envolve muita leitura e, de fato, não se espera que estudantes de mestrado cheguem a um alto grau de consciência teórica. Por isso, exigências teóricas mais sólidas tendem a ser realizadas apenas no nível do doutorado. Nos mestrados, espera-se dos pesquisadores a capacidade de aplicar uma metodologia e operar dentro de um marco teórico, mas sabemos que esses desenvolvimentos não são tipicamente oferecidos na graduação e que vão ser desenvolvidos ao longo do curso, seja ele acadêmico, seja profissional.
Desenvolver metodologias inovadoras e inovações teóricas (criticando e propondo alterações mais substanciais das teorias disponíveis, especialmente nas tipologias) é algo que se espera apenas no final do processo de doutoramento, pois é marca da originalidade que deve caracterizar o doutorado. Portanto, é mais que compreensível que mestrandos tenham dificuldade na definição do marco teórico, especialmente no início do seu curso, quando precisam fixar o seu projeto de pesquisa.
Na construção definitiva do projeto de pesquisa, a fixação de um marco teórico é um passo importante e devemos ter em mente que o seu desenvolvimento é muito facilitado por uma boa orientação: enquanto os estudantes raramente têm o repertório de teorias que os permite escolher entre abordagens possíveis, os orientadores são pesquisadores experientes e contam com um repertório teórico mais amplo. Isso faz com que uma das funções dos orientadores seja indicar para os orientandos que há várias abordagens possíveis, de tal forma que a definição do referencial teórico do trabalho seja fruto de uma escolha consciente, e não da repetição maquínica de um modelo tido como correto, especialmente quando se trata de um modelo dogmático.
Embora a orientação facilite o desenvolvimento dessa consciência, trata-se de um processo em que o estudante é o protagonista: cabe ao pesquisador analisar cuidadosamente o seu problema e a sua metodologia, em busca de compreender a sua própria base teórica, em ao menos 3 dimensões.
7. Dimensões do referencial teórico
D1. A perspectiva geral de abordagem: o campo teórico
Essa perspectiva geral pode ser respondida a partir do seu problema, especificamente do tipo de questão que ele propõe e das abordagens que ele suscita.
- Trata-se de uma questão dogmática? Nesse caso, você deve estar se perguntando sobre os critérios adequados de tomada de decisão: sobre a interpretação correta de uma norma, sobre a adequação de uma linha jurisprudencial, sobre a aplicabilidade de um princípio.
- Trata-se de uma questão histórica? Nesse caso, você não se perguntará sobre se determinada decisão é correta (ou devida, ou válida), mas sobre o processo histórico que conduziu a determinadas configurações sociais. Você pode investigar a história de uma interpretação, de um conceito, de uma divergência jurisprudencial, mas esse é um tipo de enfoque se concentra em explicar como certos fatos ocorreram.
- Trata-se de uma questão de ciências sociais? Nesse caso, você não se perguntará sobre a história de uma tomada de decisão, nem sobre os processos que levaram a certas relações sociais a adotarem certo formato. A sua pergunta será sobre as configurações da sociedade contemporânea, sobre as formas pelas quais os seres humanos praticam comportamentos coordenados. As ciências sociais (sociologia, ciência política e antropologia) tipicamente explicam a atuação da sociedade introduzindo uma “classificação” que permita dividir a sociedade como um todo em alguns subsistemas com características próprias, por vezes chamados de instituições (economia, política, direito), e concentram-se na explicação de certos fenômenos sociais a partir da interação entre esses subsistemas.
- Trata-se de uma questão sociológica? Quando o cientista se concentra no funcionamento de certas instituições sociais, a partir de uma observação empírica, chamamos esse trabalho tipicamente de sociológico. A sociologia do direito tende a propor descrições e explicações acerca do modo como as instituições jurídicas interagem com outros fatores sociais, em uma rede complexa de interações. Portanto, as abordagens sociológicas não se concentram nos discursos dogmáticos, nos argumentos explicitados pelos ministros, mas nos comportamentos efetivos da corte. Pode-se perguntar, por exemplo, quais são as funções desempenhadas por um tribunal, quais são as consequências de determinadas decisões, qual é a relação do ensino jurídico com a estrutura das profissões jurídicas. As abordagens sociológicas se concentram em explicar o que uma instituição faz, e não o que ela diz que faz.
- Trata-se de uma abordagem de ciência política? A ciência política é uma determinada vertente da sociologia política que concentra seus esforços na compreensão do funcionamento do subsistema político de uma sociedade, bem como de sua interação com outros subsistemas. A ciência política normalmente adota um enfoque quantitativo.
- Trata-se de uma abordagem econômica? A teoria econômica propicia diversas estratégias de investigação que incluem as instituições jurídicas em sua abordagem, com destaque para a Análise Econômica do Direito, que toma de empréstimo os métodos da teoria microeconômica para avaliar a eficiência dos
elementos do direito. Em especial, esse enfoque permite investigar o direito sob a perspectiva da racionalidade dos agentes e efetuar análises de custo/benefício relacionadas a determinados contextos de preferências. - Trata-se de uma abordagem antropológica? Abordagens antropológicas costumam utilizar uma metodologia de observação participativa, que aposta na inserção do pesquisador na comunidade que ele busca estudar, com o objetivo de realizar uma investigação qualitativa capaz de descrever o modo como opera uma cultura.
- Trata-se de uma abordagem filosófica? Abordagens filosóficas normalmente não se concentram na observação de fatos empíricos, mas na análise de certos discursos, com o objetivo de compreender quais sãos os seus pressupostos teóricos, quais são as formas como eles se conectam com discursos filosóficos precedentes, quais são as categorias que ele formula. Essas análises filosóficas estão ligadas à discussão acerca das categorias utilizadas e do modo como elas se inter-relacionam.
Perguntas como essas indicam algumas das perspectivas gerais de abordagem que o seu trabalho pode adotar. Trata-se de uma descrição muito genérica e abstrata da perspectiva adotada pelo trabalho, que é importante como ponto de partida, mas que nunca é suficiente para organizar um trabalho, tendo em vista que cada uma dessas abordagens pode ser conduzida de múltiplas formas.
D2. Perspectiva específica de abordagem: a teoria de base
Uma vez definida a perspectiva geral, você precisa dar um passo a mais e buscar, entre as muitas teorias existentes dentro de cada uma das abordagens, qual é a perspectiva mais próxima da abordagem que você propõe no seu problema + metodologia.
A dificuldade nesse ponto é a de que cada uma dessas áreas conta com múltiplas teorias, múltiplas formas de abordagem, múltiplos repertórios conceituais. São tantas perspectivas que não é possível esgotar essa temática em um curso geral de metodologia. Porém, podemos explorar algumas possibilidades.
- Se você adotar uma perspectiva dogmática, dificilmente será possível realizar propriamente uma pesquisa, visto que a dogmática é um discurso ligado à defesa retoricamente adequada de teses jurídicas. Se você se pergunta sobre a correção de uma determinada interpretação, isso é feito provavelmente porque você pretende defender que uma interpretação que você já formulou é correta. Embora não seja possível estabelecer uma metodologia empírica de análise (pois a correção de uma interpretação não é mensurável por uma análise empírica), você pode esclarecer da melhor forma possível quais são os critérios hermenêuticos que tornariam uma interpretação correta. Algumas das teorias com maior uso nos trabalhos dogmáticos são justamente teorias que estabelecem certos critérios gerais de interpretação correta, como a teoria da integridade de Dworkin e certas abordagens neoconstitucionalistas que oferecem critérios para a aplicação de determinados princípios constitucionais.
- Se você adotar uma perspectiva histórica, seu marco teórico deve ser primordialmente metodológico: identificar uma teoria que esclareça quais são as fontes que podem ser utilizadas, como elas devem ser trabalhadas e que tipo de conclusões você pode tirar de determinadas fontes.
- Ao adotar uma perspectiva de ciências sociais, o mais comum é que você tenha de se posicionar inicialmente sobre uma questão central dessa abordagem: se você tentar explicar os comportamentos coletivos a partir de uma análise de fatores individuais (interesses, preferências, ideologias, etc.), você estará ligado a teorias clássicas fundadas na agência (na atuação individual dos agentes); se você inverter essa lógica e entender que os comportamentos individuais são determinados pelas estruturas sociais, você estará próximo do estruturalismo (que, na ciência política, é normalmente chamado de institucionalismo). Ao combinar de alguma forma agência individual (como as preferências ideológicas dos ministros e a sua busca por prestígio) com as decorrências das estruturas estabelecidas (como os critérios de votação de um Tribunal), você estará no campo híbrido do neoinstitucionalismo.
Nas pesquisas empíricas sobre o direito, a adoção de um marco neoinstitucional (implícito ou explícito) é o mais comum. Se você pretende identificar padrões decisórios a partir da análise de certos elementos institucionais (como as leis, as formas de seleção dos juízes ou as funções políticas do judiciário) e de certos elementos de agência (como o interesse político dos ministros, suas relações interpessoais e características peculiares de seus processos de nomeação), você estará frente a uma abordagem que pode se qualificar de neoinstitucionalista, um rótulo que é bem comum nas pesquisas em ciência política, mas pouco comum nas pesquisas em direito.
D3. Categorias específicas utilizadas: o modelo de dados
Se o seu projeto lida com alguma forma de levantamento de dados, isso deve estar esclarecido na metodologia e você deve ter algumas intuições acerca dos tipos de dados que você pretende coletar. Com isso, você deve ser capaz de indicar que coletará dados acerca de certos objetos (a unidade de análise), sendo que para cada objeto você levantará dados acerca de determinados atributos (as variáveis), com o objetivo de tentar identificar padrões na interação ou comportamento de objetos que fazem parte de um determinado conjunto (o universo de análise). Para cada variável, você deve ser capaz de traçar a sua amplitude (os valores que podem ser atribuídos a cada objeto), o que envolverá a necessidade de compreender as classificações ligadas a cada atributo.
Se você conseguir discernir com clareza (ao menos relativa) a unidade de análise, o universo, a amostra, as variáveis e as tipologias ligadas a elas, você terá os elementos básicos do seu modelo de dados. Todas essas categorias deverão estar devidamente explicadas no seu marco teórico, especialmente quando elas envolverem tipologias.
O desenvolvimento de tipologias é uma tarefa árdua, complicada e sujeita a muitos percalços. Erramos muito e penamos muito até chegar a uma tipologia minimamente adequada. Por isso mesmo, todo pesquisador prefere adotar padrões classificatórios que já foram desenvolvidos em trabalhos próprios, que já foram testados em pesquisas anteriores e que já foram validados pela sua aprovação em uma banca ou em peer review.
Adotar classificações alheias é uma forma de evitar um trabalho imenso e de incorporar reflexões valiosas. É claro que isso nem sempre é possível, pois muitas vezes você trabalha em campos pouco explorados, em que faltam referenciais teóricos adequados. Nesse caso, porém, o mais provável é que você tenha de se limitar a conduzir uma pesquisa exploratória, que não parte de marcos definidos, mas parte do reconhecimento de que é necessário construir esses marcos (o que é o objetivo específico das pesquisas exploratórias, que se voltam a construir categorias capazes de guiar outras pesquisas, de caráter conclusivo).
8. Conclusão
O marco teórico deve ser pensado pelo pesquisador como uma forma de fixar um quadro conceitual dentro do qual poderá trabalhar. Quando a fixação desse marco pode ser realizada de modo preciso, é preferível que você faça isso. Quando não é possível, você precisa desenvolver os esclarecimentos teóricos de modo mais autoral e, possivelmente, terá de fazer muitas escolhas teóricas ao longo do trabalho.
Em pesquisas exploratórias, os marcos teóricos são mais genéricos e débeis, pois não há uma rede de categorias consolidada que possa guiar o pesquisador. Nesse caso, você pode fazer uma revisão de bibliografia indicando a falta de trabalhos na área e de quadros de referência bem estabelecidos, e dentro dessa revisão indicar alguns textos com os quais o seu trabalho pretende dialogar.
Em pesquisas qualitativas com alcance diverso do exploratório, os marcos teóricos podem avançar um pouco mais, mas especialmente no que chamamos de primeira dimensão: a do quadro teórico mais geral, ligado à perspectiva geral de abordagem. A escolha de uma abordagem histórica leva a certas escolhas metodológicas e teóricas diferentes de uma abordagem sociológica, e o seu referencial pode dedicar um ou dois parágrafos para mostrar que você é consciente dessa inserção e de suas implicações. Essas são pesquisas em que a metodologia também é mais genérica e deixa muito espaço para a interpretação, o que também contribui para diminuir o peso do marco teórico e para aumentar as exigências de conhecimento teórico do pesquisador.
Em pesquisas quantitativas, mesmo que meramente descritivas, o marco teórico costuma ser mais robusto, pois a análise de dados exige a construção de um modelo de dados claro, com categorias bem definidas, com codificações adequadas. Essas exigências metodológicas resultam em um quadro teórico mais denso, que precisa ser definido a priori, para ser viável partir para as observações empíricas.
Em pesquisas quantitativas explicativas, o marco teórico alcança seu máximo de complexidade, pois além de um esclarecimento geral do campo e de uma explicitação das categorias usadas no modelo de dados, é também preciso introduzir um elemento teórico complexo: a identificação dos critérios que serão utilizados para identificar a presença de causalidade. Nesses casos, crescem a relevância e a complexidade do marco teórico, que provavelmente terá de designar teorias específicas, que lidem com a questão da inferência causal.
Dado que a fixação desses marcos depende de um repertório teórico amplo, a fixação definitiva do referencial teórico (que integrará o trabalho final) é uma atividade que deve ser realizada em conjunto com os orientadores, especialmente nos níveis de especialização e mestrado. Porém, na definição provisória (contida no projeto), convém que os estudantes escolham um nível de complexidade compatível com a sua experiência e seu conhecimento teórico, sendo uma boa estratégia a unificação entre o referencial teórico e a revisão bibliográfica.
Além disso, é conveniente que pesquisadores iniciantes optem por pesquisas que não exijam o desenvolvimento de metodologias próprias e de marcos teóricos inovadores, pois esse tipo de escolha pode exigir um tempo que não é disponível nas graduações, especializações e mesmo nos mestrados. Na prática, sugere-se que pesquisas empíricas feitas nesse grau sigam modelos previamente testados (especialmente quando se trata de pesquisas conclusivas) ou que adotem uma perspectiva mais descritiva. Por fim, sugere-se que seja avaliada com cuidado a escolha de pesquisas qualitativas que diminuem a necessidade de explicitar o marco teórico no projeto, mas que impõem ao pesquisador a necessidade de desenvolver habilidades teóricas e metodológicas sofisticadas para que possam realizar adequadamente a investigação proposta.