1. A redução do direito à lei

O primeiro grande marco do modo contemporâneo de elaborar normas jurídicas foi o Código Civil francês de 1804, que representa um marco no processo de mudança do papel da legislação dentro das ordens jurídicas. Ao longo do século XIX, houve um aumento no número de leis e nos conteúdos por elas abarcados, uma mudança no estilo legislativo (mais exaustivo e preciso) e correspondentes modificações nas estratégias de ensino jurídico.

Quando a Revolução de 1889 irrompeu na França, as leis ainda não haviam sido sistematizadas na forma de códigos, de forma que o direito se encontrava em grande medida esparso em costumes locais, leis particulares e uma cultura romanística compartilhada. Mesmo que os regimes absolutistas tenham ampliado a relevância da legislação, dentro de cada Estado ainda prevalecia a pluralidade de fontes que marcou o direito medieval. A organização absolutista do Estado implicava um projeto de hegemonia das leis (vistas como superiores às outras fontes do direito positivo), mas não de monopólio do direito legislado (Hespanha 1993).

Essa situação começou a mudar com o despotismo esclarecido, por meio do qual algumas monarquias ingressaram no processo de modernização pregado pelo iluminismo. Exemplo paradigmático desse período foi uma lei portuguesa promulgada em 1769: a Lei da Boa Razão, que alterou o sistema de fontes do direito português à luz do despotismo esclarecido, impondo a todos os juízes a observação estrita das leis editadas pela coroa (Gilissen 1995). Naquele momento, ainda eram vigentes as Ordenações Filipinas, de 1603, cujo livro III, título LXIV, determinava minuciosamente a hierarquia das fontes de direito, estabelecendo que os casos que não fossem pela própria ordenação deveriam ser julgados com base nas leis, na jurisprudência das cortes ou no direito consuetudinário local. Na hipótese de essas três fontes serem omissas, o caso deveria ser julgado com base no direito romano ou, se a questão envolvesse pecado, de acordo com o direito canônico. Porém, se o Corpus iuris civilis não determinasse uma solução precisa para o caso, deveria ele ser julgado com base nas glosas de Acúrsio e de Bártolo. Por fim, se os juízes não encontrassem em nenhuma dessas fontes subsídios adequados para o julgamento, a questão deveria ser remetida ao próprio rei, para que ele a decidisse.

A Lei da Boa Razão veio modificar esse sistema de fontes, mediante o fortalecimento da autoridade da lei, a exclusão do direito canônico, a contenção do direito consuetudinário e, principalmente, a limitação ao uso do direito romano, cuja aplicação pelos juízes chegava a funcionar como um limite à própria autoridade real. Tanto era assim que o historiador português António Hespanha afirma que “em relação à doutrina, a lei não era apenas um fenômeno minoritário, era também um fenômeno subordinado”(Hespanha 1993:13).

A Lei da Boa Razão assim foi batizada porque ela se justifica pelo fato de que, embora as Ordenações Filipinas mandassem obedecer ao direito romano apenas na medida em que ele era fundado na boa razão, muitos juízes tomaram essa permissão por pretexto para aplicar quaisquer normas romanas, sem fazer diferença entre as que eram baseadas na boa razão e as que “têm visível incompatibilidade com a boa razão, ou não tem razão alguma, que possa sustentá-las, ou têm por únicas razões, não só os interesses dos diferentes partidos, que nas revoluções da República, e do Império Romano, governaram o espírito dos seus Prudentes, e Consultos, segundo as diversas facções, seitas, que seguiram”(Almeida 1985:728).

Em vez de insistir na tendência medieval de sacralização do direito romano, os iluministas do final do século XVIII acentuavam a incompatibilidade da Europa moderna com os costumes particulares dos romanos, “que nada podem ter de comuns com os das Nações, que presentemente habitam a Europa, como superstições próprias de Gentilidade dos mesmos Romanos, e inteiramente alheias da Cristandade dos séculos, que depois deles se seguiram”(Almeida 1985:728). Merece especial atenção o fato de que foram vedadas as referências às glosas de Bártolo e Acúrsio, sob o argumento de que esses autores “foram destituídos; não só de instrução da História Romana, sem a qual não podiam bem entender os textos que fizeram os assuntos dos seus vastos escritos, e não só do conhecimento da Filologia, e da boa latinidade, em que foram concebidos os referidos textos; mas também das fundamentais regras do Direito Natural, e Divino, que deviam reger o espírito das Leis, sobre que escreveram”(Almeida 1985:729).

A Lei da Boa Razão representa um momento em que os Estados tentavam estabelecer a lei como a fonte de maior hierarquia e a referência jurídica primária para o exercício da jurisdição. Porém, a vitória das revoluções burguesas trouxe uma radicalização desse projeto, dentro do espírito de reductio ad unum da modernidade, desencadeando o que o historiador português António Hespanha (1993) chama de projeto de redução do pluralismo: a tentativa de reduzir o todo o direito social ao direito do Estado e todo o direito estatal à lei. Já não bastava garantir a soberania do Estado e a preponderância da lei, mas era preciso conquistar o monopólio da legislação estatal sobre o direito.

Marquês de Pombal

Para além do direito estatal, eram apenas admissíveis discretas referências ao direito natural, mas não aos direitos canônico e romanístico, pois estes configuravam heranças feudais incompatíveis com o iluminismo. Mesmo que ainda se admitisse a aplicação do direito consuetudinário, a multiplicação das leis reduziu os costumes a uma fonte supletiva de pouca importância prática. Assim, o projeto não se resumia a unificar o direito sob a bandeira do Estado, mas envolvia a criação de um novo direito, adequado ao projeto de organização social vinculado ao projeto político do iluminismo, que já se manifestava no despotismo esclarecido, mas cuja maior expressão foi o Estado de Direito fundado em princípios liberais.

Com a ascensão da burguesia ao poder e ganhou espaço a garantia da segurança jurídica almejada pelos ideais liberais, especialmente ligados à garantia de que os contratos devem ser cumpridos e de que a intervenção estatal nos negócios privados deveria limitar-se ao estabelecimento das regras gerais claras e homogêneas. Essa valorização da segurança foi uma das tônicas das abordagens jurídicas dos séculos XIX e XX, sendo comuns afirmações como as do jurista português Domingues de Andrade:

A vida e o espírito postulam um direito recto, quer dizer, justo e oportuno: um direito que harmonize a pura justiça que valore e julga a realidade existente, aspirando a estruturá-la segundo um modelo ideal, com o efectivo e relativo condicionalismo dessa mesma realidade, — um direito, no fim de contas, que estabeleça a justiça do possível ou a possível justiça. Mas por outro lado a vida pede também, e antes de tudo, segurança, e portanto um direito certo, ainda que seja menos recto. A certeza do direito, sem a qual não pode haver uma regular previsibilidade das decisões dos tribunais, é na verdade condição evidente e indispensável para que cada um possa ajuizar das consequências de seus atos, saber quais os bens que a ordem jurídica lhe garante, traçar e executar os seus planos de futuro. (Domingues de Andrade 1987)

Dentro desse espírito de unificação e de racionalização, houve um movimento de sistematização do direito na forma de códigos. O processo de codificação era uma demanda originada do jusracionalismo iluminista, que defendia a elaboração de um direito positivo organizado e completo, que cristalizasse na forma de lei o direito natural (Olivecrona 1971:10). Essa foi a inspiração dos primeiros códigos, feitos ainda durante os regimes de despotismo esclarecido. Na Prússia, por exemplo, após uma gestação de algumas décadas, entrou em vigor em 1794 o Allgemeines Landrecth (direito territorial geral), um código construído a partir do modelo jusnaturalista de Puffendorf e Wolff e que englobava tanto o direito público como o privado e que representava a “versão prussiana do absolutismo esclarecido tardio”(Wieacker 1993:376) e, unindo o racionalismo naturalista ao centralismo absolutista, ela pretendeu reduzir toda atividade jurídica à aplicação direta e literal da lei. A supressão do papel da doutrina e da jurisprudência chegou a tal ponto que, em 1798, editou-se um decreto proibindo “a interpretação através de precedentes, de comentários ou de especiosidades eruditas” e determinou que quaisquer dúvidas deveriam ser submetidas a uma “comissão legislativa” para que ela as resolvesse por meio de uma interpretação autêntica (Wieacker 1993:377).

Uma concepção jurídica igualmente naturalista, embora inspirada pelos princípios liberais da revolução francesa, foi a inspiração dos primeiros projetos franceses de codificação, elaborados por Cambacères antes da subida de Napoleão ao poder (Bobbio 1995:67). Porém, com a subida de Napoleão, o jusnaturalismo revolucionário foi preterido em favor de uma mentalidade pragmática, distanciada da perspectiva abstrata e universal do racionalismo do século XVIII e ligada à idéia de que “as leis devem ser adaptadas ao caráter, aos hábitos, à situação do povo para o qual elas são feitas”, pois “as leis são feitas pelos homens e não os homens pelas leis”. Essas afirmações, atribuídas por Bonnecase (1933) a Portalis (que foi o principal redator do Code Napoléon) indicam que fonte de inspiração filosófica dos próprios elaboradores do Código não foi um jusracionalismo que pretendia consolidar o direito natural na forma de direito positivo. Ademais, parte do código era baseada nas conclusões práticas da cultura jurídica francesa anterior à revolução, pois, como afirma Norberto Bobbio, a principal influência do código foi o Tratado de direito civil de Pothier, o maior jurista francês do século XVIII, que descreveu justamente o direito civil do Antigo Regime. (Bobbio 1995:72)

Os codificadores eram jusnaturalistas e a codificação francesa não apenas inaugurou a forma moderna de se construir o direito (ligada ao monopólio estatal do poder político), mas também fixou uma série de conteúdos normativos adequados ao ideário liberal que estava na base da organização dos Estados de Direito. Com a ascensão da burguesia, consolidada por volta de 1800, o liberalismo passou a compor o núcleo dos valores que orientavam a organização dos Estados ocidentais, que pregavam valores de igualdade e liberdade e defendiam noções como a de que era preciso um governo de leis e não de homens e de que o poder do estado era limitado pelos direitos naturais dos indivíduos.

Com a publicação do Código Civil dos Franceses (Code Civil des Français) em 1804, e a codificação de outras partes do direito francês durante a década que se seguiram, criou-se uma outra realidade jurídica, mais adequada ao contexto econômico e social da época, bem como ao racionalismo dominante no contexto filosófico. O direito, que antes deveria ser buscado nos costumes de cada região ou no direito romano, foi unificado em cada país por meio de uma legislação organizada em códigos que deveriam regular exaustivamente as relações sociais. Assim, o movimento de codificação significou uma espécie de concretização dos ideais jusnaturalistas de sistematização, mas também marcou o início da derrocada do naturalismo jurídico, pois foi estimulada a mentalidade de que segundo a qual “os códigos nada deixam ao arbítrio do intérprete; este não tem por missão fazer o direito, que já está feito. Não há mais incertezas; o direito está escrito em textos autênticos” (Laurent, citado por Bevilaqua 1972).

2. A hermenêutica imperativista

Como afirma Foucault, cada sistema de poder engendra um sistema de saber. Mas isso não significa que devamos descrever as mudanças na compreensão do direito como um mero resultado superestrutural das mudanças ocorridas na própria estrutura da organização social. A ordem do discurso, ou seja, a organização dos saberes, é parte integrante da ordem de poder, que não existe sem o discurso que organiza a sua compreensão e aplicação (Foucault 1996).

A nova ordem jurídica (o direito estatal, legalizado, codificado) nasce juntamente com um novo discurso, pautado por regras diversas das que organizavam o discurso jurídico do antigo regime. Modificaram-se as regras de interdição de conteúdos, pois já não mais se podia fazer referência a certas fontes normativas antes comuns. Modificaram-se as regras de abertura, pois a codificação deveria tornar o conhecimento do direito acessível aos cidadãos comuns. Novos mitos foram introduzidos na base da compreensão do direito, especialmente com a consolidação uma concepção democrática da legitimidade do poder político, baseada especialmente no contratualismo de Rousseau, segundo a qual uma lei é legítima na medida em que é criada por um legislador cuja autoridade deriva da representação popular. Dessa forma, passou-se a entender que a lei era uma expressão direta da vontade do legislador e, nessa medida, uma expressão indireta da vontade popular, o que fez com que a figura do legislador assumisse a posição de maior destaque nas teorias políticas e jurídicas.

Nesse novo contexto, a atividade dos juristas não era mais apresentada como uma prudência, mas como uma mera técnica, que sequer aspirava ao estatuto de ciência. Não se tratava da mais da *arte do justo e do equitativo, tampouco se tratava de produzir ciência acerca do campo do direito, pois não se buscava a produção de uma teoria. De acordo do discurso jurídico que se desenvolveu na França, após a publicação dos códigos, a atividade do julgador deveria limitar-se a interpretar as regras jurídicas (buscando seu sentido original), qualificar os fatos relevantes (avaliando o enquadramento das situações fáticas aos conceitos normativos, mediante um processo de subsunção) e, caso verificasse a ocorrência do enquadramento dos fatos nas normas, efetuar a aplicação do direito, especificando as consequências cabíveis.

A ideia que orienta essa concepção é a de que a competência para criar normas deve caber ao Poder Legislativo e, eventualmente, ao Poder Executivo, pois a autoridade para estabelecer regras de conduta é derivada da delegação popular, mediante o voto. Como o Poder Judiciário não é escolhido pelo voto, a ele não pode ser estendido de forma alguma o poder de criar o direito, sendo-lhe reservado apenas a competência de dizer o direito, ou seja, de solucionar os conflitos sociais mediante a aplicação das normas jurídicas elaboradas pelos legisladores democraticamente instituídos. Ao juiz, portanto, não caberia a criação do direito (que se esgota na legislação) nem a definição e implementação de políticas públicas (atividade exclusiva do poder Executivo), mas somente a aplicação das normas positivas. Portanto, o seu labor não seria criativo, pois não é o juiz que determinava o significado da norma (ele apenas o identifica) nem as conseqüências da sua aplicação (ele apenas as esclarece).

O jurista encarregado de realizar essa atividade não era um cientista nem um filósofo, pois o seu saber era eminentemente prático: exigia-se dele o domínio de uma técnica, e não o conhecimento de uma teoria. Em tal contexto, os campos da reflexão teórica e filosófica ficaram ligados às concepções jusnaturalistas que não tinham mais um espaço efetivo no discurso dos juristas, pois a única referência normativa possível era o próprio direito positivo. Esse primeiro positivismo, então, era marcadamente tecnicista e legalista, pois era justamente o discurso que mediava a aplicação da lei aos fatos pelos operadores do direito.

Dentro dessa nova ordem do discurso, constituiu-se uma nova hermenêutica, que prefiro chamar de imperativista, dado que ela percebia a lei como um comando imperativo dado pelo legislador aos cidadãos. Assim, por mais que a valorização dos textos legais conferisse a essa hermenêutica um caráter predominantemente literalista, sua vinculação à literalidade da lei não se dava por uma sacralização da autoridade do texto (como ocorria entre os glosadores e teólogos), mas por um respeito quase místico da autoridade do legislador, que se expressava por meio do texto. Nesse sentido, Henri Capitant, jurista da época, afirmava que a lei era obra consciente e refletida do homem, sendo resultado das deliberações dos legisladores e, portanto, apresentando-se como expressão do pensamento comum daqueles que a editaram. Dessa forma, “para determinar qual é o sentido da regra contida na fórmula legal, é preciso descobrir o que quiseram dizer os seus autores”(Capitant 1927:95).

A interpretação não poderia ser coisa diversa da reconstrução do pensamento legislativo contido na lei, no que a hermenêutica jurídica da época se aproximava dos cânones hermenêuticos das outras disciplinas, especialmente das concepções de Schleiermacher, que sustentava a preponderância hermenêutica do autor e de sua intenção. Assim, buscar na interpretação um outro objetivo significaria substituir o sentido correto da lei por um sentido subjetivo do intérprete, pelos seus próprios interesses e valores, o que seria absurdo.

Além disso, como sustentava Baudry-Lacantinerie, a função do direito era regular os fatos e não adaptar-se a eles. Portanto, dar a uma norma interpretação diversa da que desejavam originalmente seus autores, com o objetivo de adaptá-las às exigências do momento presente, implicaria infidelidade à própria lei: seriam os fatos que estabeleceriam a lei e não a lei que regeria os fatos (citado por Soler 1962). Assim, na medida em que a intenção do legislador encontra-se fixada um momento histórico e não se pode modificá-la com a passagem do tempo, exceto por meio de um outro ato legislativo, que venha a modificar a própria lei. Por isso, ganhou relevância o estudo dos trabalhos preparatórios, ou seja, dos debates legislativos relativos à própria elaboração da norma interpretada

Esse recurso aos trabalhos preparatórios era sobretudo relevante na França porque o processo de feitura do Código Civil de 1804 foi bastante documentado, de tal forma que havia um vasto material de consulta acerca dos posicionamentos dos seus autores, o que estimulou a escola tradicional francesa a valorizar sobremaneira o recurso aos trabalhos preparatórios. (Aubry & Rau 1939:244; Mazeud 1967:127) Porém, mesmo que não haja uma documentação adequada dos debates parlamentares e que em alguns casos essa vontade seja de difícil identificação, a busca de descobrir a intenção do legislador tentava fazer com que os juízes se afastassem de seus valores pessoais e procurassem descobrir a vontade de um legislador que efetivamente existiu. Dessa forma, a busca da intenção do legislador funcionava como uma maneira de conferir objetividade e previsibilidade às decisões judiciais.

Além desse argumento, que é baseado no próprio conceito de interpretação, houve na França quem tentasse extrair do próprio Código de Napoleão a obrigação de respeitar a vontade do legislador. Aubry e Rau, por exemplo, sustentavam que embora o Código Civil francês não contivesse regras sobre interpretação de leis, deveriam ser aplicadas a essa operação, mediante analogia, as normas que o Código estabelecia para a interpretação dos contratos. Consideravam que, tal como os contratos são expressão da vontade das partes contratantes, as leis são expressão da vontade do legislador e que, portanto, era preciso utilizar as mesmas regras hermenêuticas em ambos os casos.(Aubry & Rau 1939:241)

Havia, portanto, uma clara intenção de fazer com que, como preconizava Montesquieu, os juízes não fossem “senão a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que desta não podem moderar a força nem o rigor” (Montesquieu 1987). E essa busca era especialmente importante no início do século XIX porque muitos dos juristas da época foram formados durante o Antigo Regime. Assim, tanto os elaboradores do Código Civil como os seus primeiros intérpretes não eram positivistas nem legalistas, de forma que eles tendiam a interpretar a lei utilizando-se de todos os recursos que lhes ofereciam as suas concepções filosóficas sua educação jurídica (Bonnecase 1933:290). Então, de que adiantaria criar novas leis se os juízes decidissem aplicá-las à luz do antigo direito romano e dos costumes consolidados na tradição jurídica anterior? O Code Civil promovia uma profunda revisão em certos modos de organização da sociedade (especialmente na estrutura da família) e implicava a derrogação dos costumes locais em favor de uma regulação de âmbito nacional. Era inadmissível, pois, que juízes que não representavam a vontade do povo nem os valores liberais viessem a limitar, por via interpretativa o alcance e o sentido das medidas implementadas pelo legislador.

Para que a autoridade do legislador pudesse permanecer incólume, afigurava-se preciso estabelecer estruturas que limitassem a criatividade hermenêutica dos juristas. Assim, interpretação deveria voltar-se à identificação de um sentido contido no próprio texto, evitando com isso que os juristas manipulassem os significados e atribuíssem sentidos arbitrários, especialmente considerando que, tal como reconhecia a Lei da Boa Razão “a experiência tem mostrado que as sobreditas interpretações dos advogados consistem ordinariamente em raciocínios frívolos, e ordenados mais a implicar com sofismas as verdadeiras disposições das leis, do que a demonstrar por elas a justiça das partes”(Gilissen 1993:334). Portanto, o discurso hermenêutico daquele momento exigia que os juízes evitassem ao máximo a influência de seus valores subjetivos e de suas condicionantes ideológicas, o que deveria ser conquistado por meio da fixação de padrões objetivos para a resolução jurídica dos conflitos sociais, conferindo à atividade jurídica um grau de previsibilidade adequado a garantir a segurança jurídica tão cara ao ideário liberal da época.

De acordo com as teorias típicas do século XIX, a interpretação era somente necessária nas situações em que a lei fosse obscura ou incompleta. Na maioria dos casos, porém, o legislador consegue traduzir de maneira eficaz a sua intenção, de tal forma que o sentido da regra é claro o suficiente para ser percebido à primeira vista, de tal forma que ao juiz caberia simplesmente aplicar a norma aos fatos.

Essa postura era baseada em uma distinção entre interpretação e aplicação, que eram vistas como etapas diferentes de um raciocínio jurídico tripartido. Ao deparar-se com um caso, o jurista deveria, antes de mais nada, identificar as normas aplicáveis. Feita essa identificação, era preciso verificar se elas tinham alguma obscuridade que exigisse a sua interpretação, procedimento pelo qual seria esclarecido o seu verdadeiro significado. Porém, se a norma fosse clara, seria possível realizar diretamente a sua aplicação aos casos concretos, definindo as consequências jurídicas dos fatos analisados.

Assim, havia problemas específicos de interpretação (ou seja, dificuldades relativas à definição do sentido de normas com significado obscuro) e de aplicação (ou seja, dificuldades relativas à aplicação de normas gerais a casos concretos). E foi justamente com base nessa distinção conceitual que Schleiermacher deixou de lado a hermenêutica jurídica em seu projeto de hermenêutica geral, pois a ciência hermenêutica que ele propunha tinha a ver com a determinação dos sentidos verdadeiros (interpretação) e não com as implicações concretas desses significados (aplicação).

Com base nessa diferenciação, houve quem defendesse que a aplicação do direito deveria caber aos juízes, mas que a interpretação deveria caber ao próprio legislador. Assim, em caso de obscuridade da norma, a questão deveria ser enviada ao próprio poder legislativo, a quem cumpriria esclarecer o sentido correto, mediante o que se convencionou chamar de interpretação autêntica, ou seja, aquela realizada pela própria autoridade legislativa, por meio de uma lei interpretativa. Essas leis interpretativas, por terem como única função explicitar melhor o sentido de normas anteriormente válidas, não trariam qualquer inovação no campo jurídico e, nessa medida, não seriam submetidas ao princípio da irretroatividade. Porém, o recurso ao legislador nunca se impôs como modo regular de interpretação do direito nos Estados contemporâneos, tendo se firmado a possibilidade de os juízes interpretarem os textos legislativos.

A própria possibilidade de realizar interpretações autênticas tinha opositores severos, como Savigny, que ainda em 1802 afirmava ser descabido falar em interpretação autêntica, “porque quando o legislador como tal esclarece uma lei, aparece uma nova lei que tem sua origem na primeira, de modo que não se pode falar em uma interpretação daquela.” (Savigny 1994:12) De forma semelhante, em 1921, Ferrara observava que “a chamada interpretação autêntica não é verdadeira interpretação, mas funda a sua eficácia de modo autônomo na declaração de vontade do legislador: é uma lei com efeito retroativo” (Ferrara 1987:134).

De toda forma, perdurou durante muito tempo a ideia de que a interpretação era um procedimento aplicável apenas a textos com sentido gramatical obscuro. Chegou mesmo a haver no projeto do código civil francês um dispositivo que, apesar de não ter sido incluído na versão definitiva, traduzia muito bem a concepção dominante naquele momento histórico: “Quando uma lei é clara, não se deve esquivar-se de sua letra à pretexto de lhe respeitar o espírito” (Mazeaud 1967:138). Essa noção, mesmo não tendo sido positivada, foi absorvida pelo senso comum dos juristas da época e permaneceu bastante arraigada na cultura jurídica. Assim, sendo claro o texto, não se admitia a pesquisa acerca da vontade do legislador, idéia essa que normalmente é transmitida por meio do brocardo latino in claris cessat interpretatio (havendo clareza, não deve haver interpretação) (Mazeaud 1967:138).

Entretanto, passou-se gradualmente a entender que mesmo o sentido literal era objeto de interpretação, consolidando-se na tradição imperativista a diferença entre interpretação gramatical (fundada na literalidade da lei) e interpretação lógica (baseada no primado da intenção sobre a literalidade). Essa interpretação literal tinha um caráter meramente declarativo, na medida em que a literalidade expressava adequadamente a vontade do legislador. Já a interpretação lógica seria adequada apenas aos casos em que o sentido do texto fosse claramente diverso do sentido intencionado, o que poderia levar o jurista a realizar uma interpretação restritiva nos casos em que o legislador utilizasse uma redação que fosse além de sua própria intenção, de tal forma que o intérprete precisa restringir a letra da lei para preservar o seu espírito, ou uma interpretação extensiva quando o legislador utilizasse uma redação que não expressasse toda a sua vontade, forçando o intérprete a ampliar o sentido para além da letra da lei, de modo a respeitar a vontade do legislador.

Assim, havia um predomínio do critério gramatical de interpretação, que somente poderia ser ultrapassado em situações muito especiais. Mesmo quando os adeptos dessa teoria admitiam uma abertura um pouco maior, como era o caso de Aubry e Rau (que consideravam que a interpretação também deveria ser usada quando, apesar de clara, a letra da lei não exprimisse o verdadeiro pensamento do legislador), essa abertura vinha coberta de ressalvas, asseverando que tal possibilidade deveria ser usada com o máximo cuidado e quando houvesse uma iniquidade manifesta ou quando fosse tão absurda que não se poderia esperar do legislador uma inconsequência tão flagrante.(Aubry & Rau 1939:243) Porém, mesmo eles ressaltaram, após enumerar certos princípios interpretativos ligados à interpretação lógica, que “malgrado o valor incontestável das indicações que foram dadas, o procedimento mais certo será sempre interpretar o Código Napoleônico por ele mesmo”(Aubry & Rau 1939:247), o que indica que o jurista sempre deveria dar prioridade à literalidade da lei, evitando perder-se nas sutilezas hermenêuticas que o poderiam desviar do seu verdadeiro sentido.

Contudo, havia posições mais extremadas, como a do jovem Savigny, que afirmava existir apenas interpretação declarativa, pois a extensão e a restrição são operações que “contradizem totalmente o caráter de nossa ciência”(Savigny 1994:12) , na medida em que são operações tão arbitrárias que não podem ser consideradas interpretação, dado que o juiz não reconstrói a vontade do legislador, mas impõe seus próprios valores e interesses a pretexto de fazer interpretação.

Porém, o imperativismo não tinha como se esquivar da tensão latente entre a literalidade da lei (fonte de segurança e objetividade) e a vontade do legislador (fonte de legitimidade). Pelo contrário, ele se nutria justamente dessa tensão, pois foi justamente a busca de garantir a autoridade do legislador que conduziu ao fortalecimento da interpretação gramatical. Contudo, tanto imperativos de ordem teórica quanto prática tornaram necessário estabelecer uma válvula de escape que possibilitasse evitar decisões literais absurdas, de tal forma que se consolidou no discurso jurídico imperativista a possibilidade de realizar interpretações restritivas ou extensivas nos casos em que a letra da lei fosse evidentemente incompatível com a intenção legislativa.

Todo poder engendra um saber, e o saber jurídico ligado à autoridade centralizada do Estado burguês e ao modelo judiciário vigente era vinculado a um enfoque judicial do direito (ou seja, o direito era visto a partir da perspectiva do juiz), que não tinha pretensões de cientificidade (naquela época sequer era cogitado o conceito de ciência jurídica) e que partia do pressuposto democrático de que aplicar o direito significava dar-lhe o sentido desejado pelos representantes do povo.

3. A Escola da Exegese

Para reforçar essa nova ordem do discurso, realizou-se na França uma reforma educacional que alterou a estrutura do ensino jurídico, substituindo as antigas faculdades de direito por escolas de direito colocadas sob o controle direto das autoridades políticas, com o objetivo de que estudos jurídicos passassem a limitar-se ao estudo da lei, deixando de lado o direito natural, a filosofia jurídica, e as outras fontes clássicas do direito como o costume e a jurisprudência (Bobbio 1995:81). A expressão máxima dessa nova perspectiva foi a famosa frase do professor Bugnet: eu não conheço o direito civil; ensino apenas o Código de Napoleão. Com essa reforma, o Estado francês buscou reforçar os axiomas de que o direito estabelecido pelo legislador não podia ser questionado pelo juiz e de que a única coisa que um jurista precisaria conhecer era a própria lei, pois, como bem resumiu António Hespanha:

Perante os códigos, não podiam valer quaisquer outras fontes de direito. Não o direito doutrinal, racional, suprapositivo, porque ele tinha sido incorporado nos códigos, pelo menos na medida em que isso tinha sido aceito pela vontade popular. Não o direito tradicional, porque a Revolução tinha cortado com o passado e instituído uma ordem política e jurídica nova. Não o direito jurisprudencial, porque aos juízes não competia o poder de estabelecer o direito (poder legislativo), mas apenas o de o aplicar (poder judicial). A lei — nomeadamente esta lei compendiada e sistematizada em códigos — adquiria, assim, o monopólio da manifestação do direito. A isto se chamou de legalismo ou positivismo legal. (Hespanha 1997:177)

Os juristas que estudaram a partir de 1804 tiveram uma educação bastante diversa dos seus próprios professores, pois a estes somente era permitido oferecer-lhes uma descrição minuciosa e técnica da legislação francesa. Foi preciso, porém, quase duas décadas para que os estudantes formados por esse novo método passassem a compor a parte mais significativa da comunidade jurídica francesa e para que a nova mentalidade se tornasse dominante no senso comum. Nesse período de transição, que durou cerca de vinte anos, professores educados ainda no regime anterior foram gradualmente elaborando a uma metodologia adequada ao ensino e aplicação dos códigos, bem como à visão legalista que se impunha na época.

Consolidou-se, então, um tipo de postura que implica a valorização dos saberes práticos e é avesso à teoria e à filosofia que lhe subjazem, perspectiva essa que até hoje predomina no senso comum dos juristas. Isso não significa que a prática jurídica tenha deixado de observar padrões predefinidos, pois o discurso da dogmática jurídica é muito eficiente para estruturar a prática judiciária. Porém, essa organização dogmática não é feita por meio de um discurso teórico-filosófico, mas por um discurso técnico-prático, que estimulou o florescimento de uma mentalidade legalista que veio a ser conhecida como Escola da Exegese, pois os seus adeptos se limitavam ao estudo dos códigos, na busca de realizar a sua exegese, ou seja, de esclarecer o sentido correto de cada passagem da lei. Porém, ao serem educados para operar o discurso dogmático sem compreender a teoria que organiza esse próprio discurso, os juristas se tornaram praticamente cegos para a base teórica e filosófica que sustentava, com sua estrutura invisível, os padrões de organização de sua própria prática.

A Escola da Exegese teve sua primeira exposição madura no Curso de direito francês de acordo com o Código Civil, publicado por Duranton em 1825, e dominou a cultura jurídica francesa por cerca de cinquenta anos. Durante esse período, vincularam-se à concepção exegética vários juristas de renome, tais como Aubry, Rau, Demolombe e Baudry-Lacantinerie, cujos tratados de Direito Civil permaneceram como textos básicos para a interpretação do Código até o início do século XX. Em sua maioria, essas obras eram construídas como comentários ao Código Civil, construídos na mesma ordem da lei e esclarecendo ponto a ponto o significado de cada um dos seus artigos com base em uma análise gramatical e em referências à vontade do legislador.

Uma exceção foi a obra de Aubry e Rau, juristas de Estrasburgo que elaboraram uma exposição sistemática do direito civil semelhante à abordagem típica dos textos germânicos da época. Porém, não obstante essa peculiaridade ter feito com que alguns estudiosos não os classificassem como membros da Escola da Exegese, Julien Bonnecase ressalta que, embora Aubry e Rau não adotassem a metodologia exegética pura (baseada em um esclarecimento pontual das normas do código), eles defendiam as ideias típicas da escola, como a valorização da lei e da vontade do legislador (Bonnecase 1933).

A orientação exegética era tão forte que o primeiro estudo sobre o Código Civil a fugir da ordem dos artigos e instituir uma visão sistemática sobre o direito civil francês foi realizada pelo alemão Karl Zachariae e, na tradução dessa obra para a língua francesa, a ordem sistemática adotada pelo autor foi alterada para adequar-se à ordem do Código, que era a usual no modelo exegético (Bobbio 1995:83). Tal fato evidencia a principal característica da Escola da Exegese: culto do texto da lei e a redução do conhecimento jurídico à pura exegese dos códigos.

Convém notar que, nos textos da época, era ainda cabível a referência ao direito natural (ou ao menos a princípios jurídicos superiores ao direito positivo), mas apenas para reforçar o culto à lei. Aubry e Rau, por exemplo, sustentavam ser princípios absolutos e imutáveis “a personalidade dos homens, o direito de propriedade, a constituição da família, a liberdade e a força obrigatória dos contratos e a necessidade do Estado”(Aubry & Rau 1939:23). Dessa forma, apesar de admitirem a existência do direito natural, esses dois célebres representantes da Escola da Exegese consideravam que tais princípios eram excessivamente gerais e abstratos e que, portanto, era “impossível determinar as regras a priori destinadas a organizar e desenvolver tais princípios, regras essas que apresentam um caráter contingente e variável”(Aubry & Rau 1939:23). Na prática, essa postura significava que nenhuma norma do direito positivo poderia ser considerada pelo juiz como incompatível com o direito natural.

A observação de tensões como essa fez com que Bonnecase afirmasse que uma das principais características da Escola da Exegese era a sua postura ilógica e paradoxal frente à existência do direito, pois sustentava que o direito tinha uma base metafísica (fundada em princípios superiores e imutáveis), mas simultaneamente afirmava que o legislador era todo-poderoso (Bonnecase 1933:535). E ele parece ter razão ao identificar a origem dessa postura na mentalidade estatalista acrítica dessa escola (Bonnecase 1933:540), pois ela tinha que sustentar ao mesmo tempo que o Estado tinha legitimidade para organizar a sociedade (o que somente pode ser feito a partir de uma perspectiva metafísica) e que as leis tinham que ser fielmente cumpridas em virtude exclusivamente da autoridade estatal.

As graves limitações metodológicas dessa escola derivavam justamente do fato de que ela era organizada em volta de uma espécie de cegueira teórica, pois os profissionais do direito que nela se alinhavam desconsideravam as bases teóricas da sua própria atividade, o que os convertia em meros operadores do direito, homens práticos que estudavam os códigos como se eles contivessem em si todas as chaves para a sua própria compreensão. Ou seja, os juízes e advogados partiam do pressuposto (epistemologicamente ingênuo e politicamente cínico) de que o caráter sistemático da própria elaboração legislativa dispensaria o jurista da necessidade de elaborar um arsenal conceitual e teórico para desenvolver sua atividade. O conhecimento das leis positivas dispensava a produção de teoria, pois o seu sentido era claro a qualquer um que as estudasse com cuidado.

Não existe método para identificar a literalidade, pois a percepção do sentido gramatical é imediato e não mediado pela aplicação de uma metodologia hermenêutica qualquer. Assim, o critério básico para a interpretação era fundado em um espécie de “evidência gramatical”: confiantes na clareza das leis modernas, os operadores do direito acreditavam que a simples observação das leis conduziria o intérprete ao sentido correto, pois o sentido correto era o sentido literal evidente para qualquer pessoa devidamente educada.

Esse modo de pensar é anti-metodológico, pois ele desconfia que toda metodologia é uma forma de escapar da evidência, que a interpretação é uma espécie de malabarismo retórico que como função distorcer o sentido correto das normas. Por isso, a Escola da Exegese desenvolveu alguns conceitos hermenêuticos relevantes, mas não podia oferecer uma metodologia hermenêutica propriamente dita, na medida em que ela se constituía por meio de uma negação da própria interpretação judicial, que deveria reduzir-se a uma mera aplicação.

O mais próximo que essa corrente chegou de desenvolver uma metodologia foi o oferecimento de uma descrição do processo de aplicação, apresentado como um modo racional de subsumir fatos a normas. Partindo do pressuposto de que o juiz recebe do legislador as normas e que o jurista conhece os fatos do mundo, resta-lhe apenas realizar uma operação quase-mecânica para verificar a adequação entre o fato e a norma.

A aplicação do direito fica, então, reduzida a uma operação lógica dedutiva, que infere da norma jurídica a solução aplicável aos fatos que nela se “encaixam”. Assim, o raciocínio jurídico é apresentado como uma forma de pensamento silogístico, em que a norma é a premissa maior e os fatos são a premissa menor. Dessa forma, justifica-se que a aplicação do direito não é uma operação voluntarística, mas uma operação objetiva, na justa medida em que ela representa a aplicação das regras da lógica ao campo jurídico.

Para a Escola da Exegese, a função do juiz não deve ser a de criar normas jurídicas nem a de interferir no sentido das regras existentes, restando-lhe apenas extrair das normas as consequências logicamente adequadas. A sua atividade, portanto, não é criativa mas descritiva, não é valorativa mas puramente racional. A limitação metodológica desse tipo de apresentação é evidente, pois toda ela é fundada justamente em tomar por dado o sentido da norma. A aplicação silogística depende de uma prévia interpretação, pois é impossível subsumir fatos a uma norma cujo sentido não é estabelecido. Por isso, a apresentação silogística do direito, acompanhada de uma teoria da interpretação fundada em fracos critérios de evidência, não é capaz de esclarecer devidamente os problemas do direito.

A atividade jurídica não podia ser entendida como a aplicação de um método complexo de interpretação, pois a elaboração desses métodos implicaria uma espécie de desconfiança acerca da clareza das novas leis. Subjaz a tal concepção a crença de que subordinar a aplicação do direito à interpretação dos juízes significa conferir aos juízes uma competência que deveria ser privativa do legislador, pois interpretar seria distorcer a evidência.

Não é por acaso que a única via dogmaticamente aberta para escapar da literalidade da norma era a afirmação de que o sentido gramatical era evidentemente diverso do sentido intencionado pelo legislador: portanto, somente a invocação da autoridade do próprio legislador poderia afastar a aplicação do sentido literal da norma. Trabalhar com critérios de evidência é justamente afastar a possibilidade do método, cuja valorização implica um certo ceticismo acerca da evidência, ceticismo necessário para que alguém se esforce para controlar a atividade interpretativa por meio de critérios previamente definidos.

O predomínio de uma tal perspectiva obstava o surgimento de uma metodologia hermenêutica propriamente dita, pois a possibilidade de uma prática interpretativa mais reflexiva e sofisticada foi recusada em nome da garantia da segurança que deveria advir da aplicação gramatical dos textos. Essa auto-restrição dos juristas a critérios de literalidade e evidência implicava uma negação da historicidade (pois os sentidos corretos não deveriam mudar no tempo) e, nessa medida, inviabilizou o desenvolvimento de flexibilização que possibilitassem adaptar as velhas fórmulas aos novos fatos.

As inconsistências teóricas e limitações da Escola da Exegese poderiam permanecer em um plano inconsciente, desde que as decisões tomadas pelo Estado fossem socialmente percebidas como legítimas, pois, nesse caso, não haveria tensão entre os princípios de legitimidade e de autoridade. Entretanto, as profundas mudanças sociais do final do século XVIII fizeram com que esses princípios entrassem em choque, pois muitas das decisões tomadas com base nos códigos já não eram mais adequadas ao sentimento social de justiça. À medida em que soluções legislativas não mais respondiam aos ideais de justiça, a Escola da Exegese começou a declinar, pois o culto à letra da lei perdia a sua força. Assim, a longevidade da Escola da Exegese correspondeu ao tempo em que foi socialmente aceitável uma aplicação gramatical estrita dos Códigos elaborados no início do século XIX.

Essa mudança tornou-se visível na França a partir a década de 1880, data que Bonnecase fixa como o início do processo de decadência da Escola Exegética (Bonnecase 1933:290). Um dos principais motivos que contribuiu para esse fato foi a introdução, no ensino universitário francês, de matérias que ultrapassavam a descrição técnica do direito civil e acentuavam as relações entre o direito e a sociedade. O estudo de disciplinas tais como direito público, economia política e história do direito terminou por quebrar o monopólio do pensamento civilista (ou seja, vinculado ao direito civil) e começaram a aproximar os estudos jurídicos dos estudos científicos sobre a sociedade.

Esses novos questionamentos abriram espaço para uma visão mais histórica e sociológica acerca do direito, desenvolvida por juristas como Duguit, Planiol, Esmein, Salleiles e Gény, que promoveram uma renovação do pensamento dominante e fizeram com que, no início do século XX, a Escola da Exegese perdesse sua posição hegemônica. Assim, quando as mudanças introduzidas pela revolução industrial se tornaram tão grandes que o direito codificado começou a ser percebido como obsoleto, a Escola da Exegese cedeu gradualmente espaço a concepções hermeneuticamente mais flexíveis, notadamente para algumas linhas do positivismo sociológico ou para as perspectivas germânicas caracterizadas pelo primado de uma concepção cientificizante e pela elaboração de uma Teoria Geral do Direito adequada aos novos tempos.