Costa, Alexandre. O controle de constitucionalidade no direito comparado. Brasília: Thesaurus, 2008.

Este texto corresponde à primeira parte de minha dissertação de mestrado, defendida em 1999, na Universidade de Brasília.

Capítulo I - Controle de Razoabilidade

A - O problema da legitimidade

Um dos princípios que norteia o Estado Democrático de Direito contemporâneo — espécie de organização social em que vivemos (ou pretendemos viver) — é o de que os atos estatais não devem apenas emanar de uma autoridade política escolhida pelo povo e ser resultado de procedimentos preestabelecidos: os atos praticados em nome de um Estado Democrático de Direito também devem ser legítimos. No atual estágio da democracia, isso significa que esses atos devem refletir os valores e interesses da população, em virtude do dogma de que todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido. Contudo, a definição de quais são os valores e interesses de um povo é sempre muito problemática. E em uma sociedade plural como a nossa, na qual são muito variados os interesses e valores das pessoas e grupos que compõem a população, essa questão atinge um grau de complexidade que a torna praticamente insolúvel.

Em um primeiro momento, a opção pela democracia representativa parecia resolver o problema: a vontade expressa pelos representantes do povo seria identificada com a vontade da população. Contudo, as limitações desse modelo mostram-se de forma cada vez mais evidente, sendo a experiência nacional-socialista um dos exemplos mais claros de distorção. Mas embora as decisões das assembléias legislativas nunca sejam perfeitas, a forma representativa de governo ainda se apresenta como o melhor método de tomada de decisões de que dispomos. Todavia, há vários casos em que as decisões dos legisladores não são meramente imperfeitas, mas absolutamente inaceitáveis — e é importante ressaltar aqui a importância da noção de aceitabilidade.

Por ser impossível chegar sempre a um consenso, especialmente nas complexas sociedades contemporâneas, nós optamos por respeitar as decisões da maioria. No entanto, a idéia de que os vencedores das eleições efetivamente representam os interesses das pessoas que os elegeram é claramente uma ficção. Trata-se de uma ficção fundamental para a idéia de legitimidade nas democracias representativas, mas não deixa de ser uma ficção — o que gera uma teoria política muitas vezes alheia à realidade. Partindo do pressuposto que os parlamentares devem funcionar como representantes do povo, conclui-se que as decisões tomadas pela pessoas que vencem as eleições são legítimas. Contudo, esse não é um raciocínio válido porque nele há uma passagem injustificada do ideal para o real.

E aqui chegamos no ponto central da questão. O problema da legitimidade envolve sempre uma relação entre o real e o ideal — uma tensão que é traduzida para o Direito sob a forma da dicotomia entre ser e dever-ser. A eleição de um grupo de pessoas para que estabeleçam as regras gerais que regerão uma comunidade é simplesmente um método de tomada de decisões. Outro modelo possível seria atribuir a uma única pessoa esse poder. De toda forma, um método de tomada de decisões não passa de um fato. Ao analisar uma determinada organização social, podemos verificar se as decisões políticas fundamentais são tomadas por um corpo de pessoas escolhidas pelos seus pares, por uma pessoa investida de um poder hereditário, se há uma oligarquia que concentra em suas mãos todo o poder político etc. Mas constatar a existência de um modelo de organização política nada nos diz sobre a sua legitimidade.

Os problemas relativos a legitimidade, para utilizar uma antiga distinção, não são questões de fato, mas de direito. Em outras palavras, a legitimidade não é uma questão de ser, mas de dever-ser, o que significa que uma ordem não se torna legítima apenas porque é eficaz. E o que torna legítima uma ordem social ou jurídica? Para essa questão foram oferecidas muitas respostas. Toda a história do jusnaturalismo pode ser descrita como uma busca pelos fundamentos de legitimidade do Direito.

1. Jusnaturalismo

Em um primeiro momento, consideravam-se legítimas as normas que podiam ser derivadas de alguma espécie de Direito Natural. Esse método de legitimação do poder político operava principalmente por meio da derivação da autoridade do chefe político a partir da autoridade divina ou da própria natureza das coisas. A idéia de que os homens podem criar normas de comportamento obrigatórias por mera convenção é, em termos históricos, bastante nova. Inicialmente, não havia uma diferenciação entre as esferas de valor, formando um conjunto homogêneo as normas que atualmente distinguimos em categorias diversas: religiosas, morais e jurídicas. Assim, as normas que hoje em dia são consideradas jurídicas eram antes revestidas de um conteúdo sagrado, o qual foi perdido no processo de “desencantamento do mundo” que caracterizou a transição da Idade Moderna para a Idade Contemporânea[1]. Com isso, a obrigação dos membros de uma dada comunidade de obedecerem às ordens do chefe político tinha um caráter sagrado, baseando-se nos valores transcendentes que davam unidade ao grupo.

Essa idéia de que a legitimidade da autoridade política é fundada em uma ordem que transcende a mera convenção social permaneceu presente na cultura ocidental até poucos séculos atrás. De acordo com a escolástica medieval as leis humanas seriam legítimas na medida em que se adequassem à ordem divina[2]. Mesmo com a passagem para a Idade Moderna, a teoria do direito divinos dos reis continuou sendo utilizada para justificar a necessidade dos súditos obedecerem às ordens dos monarcas.

Mesmo após a decadência das justificativas teológicas, não foi abandonada a tentativa de uma fundamentação transcendente. No contratualismo hobbesiano, o direito absoluto dos reis era justificado pela necessidade humana de segurança, sempre ameaçada pelos instintos naturais do homem, os quais buscam realizar sua finalidade “(que é principalmente sua própria conservação e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por destruir ou subjugar um ao outro”[3]. Todavia, apesar da consistência lógica de sua argumentação, as idéias de Hobbes não gozam de grande prestígio na nossa sociedade atual, por esta ser inspirada por valores democráticos.

Já a teoria contratualista de Locke parece bem mais aceitável aos olhos contemporâneos, pois se ele utiliza a hipótese do contrato social, é apenas para fundamentar a garantia, frente ao Estado, dos direitos naturais do homem. Locke entende que estado de direito é apenas um remédio adequado para os males do estado de natureza e que o Estado é uma organização que depende da livre escolha dos cidadãos — e é justamente o fato dessa adesão ser voluntária que cria a obrigação de obedecer às ordens dos dirigentes do Estado. O resultado dessa construção é que, como as pessoas não podem dispor sobre os seus direitos naturais, o Estado também não pode aboli-los ou limitá-los. Todavia, embora a idéia de que deve haver direitos individuais que sirvam como limites ao poder do Estado tenha grandes repercussões no constitucionalismo atual, a concepção de que esses limites podem ser extraídos do Direito Natural (entendido este como um conjunto de normas imutáveis e eternas) deixou de ser aceitável a partir da ascensão do positivismo ao status de teoria jurídica dominante.

O contratualismo de Rousseau oferece uma teoria da legitimidade muito mais desenvolvida que em Locke. Pergunta-se Rousseau no início do primeiro capítulo do Contrato Social: “l’homme est né libre, e partout il est dans les fers. Tel se croit le maître des autres, qui ne laisse pas d’être plus esclave qu’eux. Comment ce changement s’est-il fait? Je l’ignore. Qu’est-ce que qui peut le rendre légitime? Je crois pouvoir résoudre cette question.”[4] Com isso, Rousseau deixa claro desde o início que o seu objetivo é construir uma teoria sobre a legitimidade, e não uma explicação sociológica dos motivos que nos levaram organizar os Estados nem uma descrição histórica da sua formação.

E quando uma decisão estatal pode ser considerada legítima? A resposta de Rousseau é: quando for uma expressão da vontade geral. Embora não seja expressa a distinção entre a vontade geral ideal e a vontade geral como resultado real da deliberação dos cidadãos, percebemos que Rousseau desenvolveu argumentos em ambos os sentidos. Por um lado, esforçou-se por caracterizar a vontade geral como uma expressão do interesse público — e não de interesses particulares — como no ponto em que afirmou que:

Il s’ensuit de ce qui précède que la volonté générale est toujours droite et tende toujours à l’utilité publique: mais il ne s’ensuit pas que les déliberations du peuple aient toujours la même rectitude. [...] Il y a souvent bien de la différence entre la volonté de tous et la volonté générale; celle-ci ne regarde qu’à l’intérêt commun; l’autre regarde à l’intérêt privé, et n’est qu’une somme de volontés particuliéres.[5]

Por outro lado, Rousseau buscou fornecer critérios práticos para uma deliberação real. “Si, quand le peuple suffisamment informé délibère, les citoyens n’avoient aucune communication entre eux, du grand nombre de petites différences résulteroit toujurs la volonté général, et la délibération seroit toujours bonne.”[6] Além disso, afirmou que “pour qu’une volonté soit générale, il n’est pas toujous nécessaire qu’elle soit unanime, mais il est nécessaire que toutes les voix soient comptées; toute exclusion formelle rompt la généralité”[7]. Assim, percebemos que Rousseau trabalhou os dois lados do problema da legitimidade — tanto o aspecto real como o ideal da questão — , o que possibilita enquadrar alguns de seus argumentos na discussão contemporânea sobre o tema, pois essa tensão entre vontade ideal e consenso real é retomada nas atuais discussões sobre a legitimidade, especialmente em Habermas[8]. Entretanto, esse enfoque é abandonado a partir do final do século XIX e somente vem a renascer com alguma força no segundo pós-guerra.

2. Positivismo jurídico

Como reação extrema às fundamentações naturalistas, desenvolveu-se no séc. XIX o positivismo jurídico — rótulo que utilizamos para qualificar um grupo heterogêneo de correntes jurídicas que têm como ponto comum a recusa da existência de direito natural, a partir da afirmação de que o direito é fruto da mera convenção social. Os positivistas, contudo, ao invés de proporem uma solução para o problema da legitimidade, apenas deslocaram a questão para fora dos limites da ciência do direito. A legitimidade das normas reconhecidas como vigentes não é entendida pelos positivistas como um problema juridicamente relevante, pois a construção de uma dogmática consistente exige que a legitimidade das normas jurídicas seja pressuposta, e não problematizada.

Questões sobre a legitimidade podem ser colocadas, mas devem ser discutidas em um foro político, e não jurídico. Dessa forma, o problema da legitimidade é reduzido à uma questão de vigência. Além disso, os positivistas também não se preocupam muito com o problema da eficácia. As teorias positivistas oferecem aos juristas apenas regras de identificação das normas que devem ser consideradas jurídicas — entre as quais as mais célebres são a “regra de reconhecimento” de H. L. A. Hart e a “norma fundamental” de Hans Kelsen — as quais definem os critérios de vigência, conceito que para os positivistas é o único elemento a ser levado em conta na aferição da validade de uma norma[9].

Os defensores de teorias positivistas tendem a afirmar que as normas jurídicas não limitam a liberdade: elas apenas configuram a liberdade. Dessa forma, seríamos livres apenas para fazer aquilo que a lei permitisse ou obrigasse. Isso aconteceria porque as pessoas têm apenas os direitos que lhe são conferidos pelo Estado: logo, como não há liberdade fora do direito, o Estado não pode restringir a liberdade das pessoas. E, como o direito à liberdade é concedido pelo próprio Estado aos cidadãos, as normas positivas nunca seriam capazes de restringir a liberdade de ninguém — elas apenas conformariam o direito de liberdade, estabelecendo o seu conteúdo e os seus limites.[10]

Se admitíssemos a teoria positivista de Kelsen ou de Hart, seríamos levados a considerar que um Tribunal pode tomar suas decisões de forma meramente dogmática: quando o juiz se encontra no seu espaço de “discricionariedade judicial”[11] ou frente a uma indeterminação do direito[12], ele tem completa liberdade para escolher entre as diversas possibilidades de interpretação. Na medida em que não há critérios jurídicos que podem conduzir o julgador a uma solução necessária, a sua autoridade lhe permite escolher qualquer das opções, sem que lhe seja necessário fundamentar essa escolha.

3. Superação do positivismo

O positivismo não oferece respostas aceitáveis aos problemas jurídicos atuais e que devemos superar os limites auto-impostos pelos positivistas. A definição de limites para liberdade das pessoas é uma condição necessária à vida em sociedade, e essa é uma função do Direito nas sociedades modernas. Todavia, no contexto do Estado Democrático de Direito contemporâneo, uma limitação arbitrária aos direitos de liberdade não pode ser aceita como jurídica: ela pode ser consagrada nas leis, mas não admitimos que ela faça parte do Direito. Então, para serem legítimas, as decisões tomadas pelos representantes do povo devem ser minimamente aceitáveis pela população. Embora seja inevitável uma certa distância entre o interesse geral (esse conceito metafísico) e a vontade expressa pelos legisladores eleitos, ela não pode chegar a se tornar uma oposição.

Como bem resumiu Habermas, as normas jurídicas positivadas pelos Estados Democráticos de Direito buscam ser, ao mesmo tempo, eficazes e legítimas[13]. Entre essas duas pretensões há uma eterna tensão, pois as exigências que elas impõem aos juristas são, muitas vezes, de difícil conciliação ou mesmo contraditórias. A pretensão de eficácia exige um esforço no sentido de que as pessoas efetivamente adeqüem suas condutas aos padrões previstos nas normas e que os comportamentos desviantes sejam punidos, assegurando a ordem, a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões. No desempenho dessa função, o Judiciário tem um papel privilegiado, pois dentro da estrutura do Estado é ele que define, em última instância, o que pode ou não ser exigido dos cidadãos.

Quando o Estado dita uma norma para orientar o comportamento das pessoas, ele limita a liberdade de escolha dos indivíduos. É nesse ponto que se inserem os problemas relativos à segunda pretensão: a legitimidade. Entendemos que uma limitação imposta pelas leis à liberdade individual somente é juridicamente válida quando se trata de uma decisão política legítima. Entretanto, longe de nos oferecer uma solução, esse posicionamento nos conduz de volta ao delicado problema de estabelecer critérios para aferir a legitimidade de uma norma.

Antes de desenvolver essa questão, convém tratar de outra forma de encarar o problema da legitimidade. A abordagem mais tradicional na cultura jurídica brasileira é a que divide a validade de uma norma jurídica em três esferas distintas: vigência, eficácia e fundamento valorativo[14]. O conceito de vigência opera, no campo jurídico, um papel equivalente ao conceito de existência no âmbito das ciências naturais: tem vigência toda norma que é parte do ordenamento jurídico, assim como têm existência todos os fenômenos que ocorrem no mundo. A vigência é uma qualidade formal, o que significa que uma norma apenas pode ser considerada vigente quando ela possuir uma série de características formais, as quais são definidas por uma regra básica de reconhecimento.[15]

A eficácia ou validade social, como já dito, é caracterizada pela efetiva obediência aos preceitos estabelecidos pela normas. Ao contrário da vigência, trata-se de um conceito que admite gradações. Uma norma jurídica é vigente ou não, mas pode ser eficaz em vários graus. Já a exigência de fundamento valorativo confunde-se, em última instância, com a de legitimidade. Trata-se da exigência de que os valores consagrados nas normas sejam compatíveis com os valores dominantes na sociedade de um determinado tempo, ou seja, que a norma se fundamente em valores legítimos — o que nos remete de volta ao problema a definição dos critérios de legitimidade.

O positivismo deu uma importante contribuição para uma definição mais clara dos problemas jurídicos — contrapondo-se às correntes psicologistas e sociologistas do direito — e para tornar mais rigorosos os nossos critérios de interpretação e aplicação das normas. Todavia, como o positivismo limita-se ao raciocínio dedutivo a partir de normas cuja validade é pressuposta, ele é incapaz enfrentar o problema das concretizações das normas por meio de operações de determinação[16]. Em outras palavras, como o positivismo limita suas preocupações à esfera da vigência (relações lógicas entre normas cuja validade é pressuposta), ele não é capaz de nos dar uma orientação conveniente quando buscamos enfrentar o problema da legitimidade. Para tanto, é preciso desenvolver métodos que integrem os três aspectos da validade — vigência, eficácia e validade —, o que somente pode ser feito por uma teoria liberta dos limites auto-impostos pelos positivistas.

Na Introdução, descrevemos algumas teorias que se propõem a desempenhar esse papel e construímos a partir dela o nosso marco teórico. Em especial, parece-nos adequado o enfoque de Perelman, que busca na argumentação jurídica uma possível fonte de legitimidade para as opções valorativas dos juízes. O simples fato de que o ordenamento jurídico dá ao juiz a competência para julgar um certo caso não tem o condão de tornar legítimas as suas decisões — é preciso que o juiz fundamente a sua decisão na busca de persuadir as outras pessoas de que ela é adequada.

Todavia, identificamos na teoria de Perelman um sério problema na sua referência a um auditório universal como princípio regulador do atividade argumentativa, pois essa concepção leva o jurista a elaborar argumentos que sejam aceitáveis para todas as pessoas. Essa idealização tende a conduzir-nos de volta aos limites da lógica formal[17], que contém os únicos argumentos capazes de convencer todos os seres racionais. Além disso, a racionalidade que podemos obter por meio da idéia do auditório universal não nos garante a legitimidade das decisões, na medida em que a aceitabilidade social de uma posição depende dos valores próprios de uma sociedade.

Quanto à questão dos sujeitos que devem ser persuadidos, consideramos que a teoria do discurso de Habermas oferece uma resposta melhor que a de Perelman. Essa teoria entende que todas as pessoas estão envolvidas em um grande processo discursivo, da qual todas elas tomam parte e, nesse contexto, uma solução é legítima na medida em que é aceitável pelas pessoas envolvidas no discurso. Quando Habermas busca uma fundamentação das normas morais, as quais devem ser aceitas por todos os homens, ele chega ao mesmo problema de Perelman com o conceito de auditório universal: um auditório universal, composto por todos os homens, é tão heterogêneo que se torna impossível justificar uma decisão valorativa, pois não há um consenso mínimo sobre o que deve ser considerado um valor.

Todavia, embora esse esquema apresente enormes dificuldades para a descrição da Moral, ele nos parece muito útil para a descrição do Direito, no qual o auditório a ser convencido não é formado pela universalidade dos homens, mas pelos integrantes de uma determinada sociedade — os quais têm umas série de valores comuns, fato que possibilita uma argumentação com base em valores e a conseqüente fundamentação de uma decisão valorativa. Contudo, é certo que a crescente complexidade da sociedade contemporânea coloca um problema sério a esta proposta: mesmo dentro de uma sociedade determinada, as diferenças que existem entre os valores dos diversos grupos sociais é tão grande que a possibilidade de justificar uma decisão valorativa é quase nula.

Se não levássemos a sério esse problema, poderíamos entender os juízes como porta-vozes dos valores sociais — função que não cabe a eles exercer, na medida em que eles fazem parte de grupos específicos. Mas é justamente quando enfrentamos essa questão que a teoria do discurso nos parece a mais adequada. São vários os grupos sociais, que defendem os interesses mais diversos. As decisões tomadas pelo Estado — e que são impostas a toda a sociedade — devem respeitar ao máximo todos esses valores. Mas não existe nenhum ponto ótimo harmonização que possa ser conhecido a priori, e seria por demais pretensioso um Tribunal que desejasse afirmar que as decisões tomadas por seus membros são as decisões mais adequadas para a sociedade.

Ao mesmo tempo, não parece adequado simplesmente ignorar o problema da aceitabilidade e impor as decisões dos tribunais por força apenas da sua autoridade — ou seja, não parece aceitável o positivismo. Nessa tensão entre a necessidade de tomar decisões eficazes e impô-las à sociedade (garantindo, assim, a ordem e a segurança jurídica), e a necessidade de tomar decisões aceitáveis pela sociedade à qual as decisões serão impostas (tensão essa descrita por Habermas a partir da oposição entre faticidade e validade[18]), é preciso buscar uma solução que harmonize essas duas exigências.

4. Legitimidade e Razoabilidade

Como dissemos anteriormente, a idéia de legitimidade presente nas democracias contemporâneas é intimamente relacionada com a de representatividade. Sendo impensável a possibilidade de uma democracia direta nos atuais Estados de Direito, a representação popular surge como instrumento prático para a tomada de decisões políticas. Foi desenvolvido, então, um conceito formal de legitimidade, o qual se funda em valores razoavelmente consolidados na nossa cultura político-jurídica, especialmente a noção de que as decisões políticas são legítimas quando tomadas pelos órgãos compostos pelos representantes do povo. Todavia, essa legitimidade formal — correspondente à regra de reconhecimento dos positivistas —, embora seja necessária, não é um critério suficiente para identificar as normas válidas.

Precisamos desenvolver métodos de avaliação da legitimidade, não apenas do procedimento decisório, mas das próprias decisões.[19] A idéia de que esses métodos são necessários não é nova em absoluto: ela permeia toda a história do Direito Natural e vários foram os critérios propostos pelos jusnaturalistas para avaliar a legitimidade do direito positivo. Todavia, durante o século XIX, houve um gradual declínio da credibilidade das teorias jusnaturalistas, acompanhado por uma ascensão das teorias positivistas que, na primeira metade deste século, alcançaram uma posição hegemônica na cultura jurídica dos países filiados ao sistema romano-germânico. Por isso, as teorias que atualmente buscam enfrentar o problema da legitimidade precisam que reconstruir a viabilidade desse projeto — que é considerado inviável pela teoria positivista dominante. E é esse o motivo pelo qual este trabalho alinha-se ao esforço de construir uma alternativa teórica viável frente ao positivismo.

Recusamos, contudo, o projeto de retorno aos pressupostos jusnaturalistas. O jusnaturalismo, mesmo nas correntes que abandonaram a busca de um direito universal e imutável, implica a pressuposição de que em cada sociedade há valores compartilhados pelos seus membros a um ponto tal que é razoável afirmarmos que esses valores devem ser observados por todos os membros da comunidade. Todavia, nos dois últimos séculos, a sociedade ocidental tornou-se por demais complexa para que consigamos identificar um amplo conjunto de valores desse tipo. É preciso desenvolver teorias que dêem a devida atenção a à imensa variedade de grupos sociais que defendem os valores mais diversos. E consideramos que os jusnaturalismos, na sua busca de encontrar princípios jurídicos que sejam válidos a priori, não dão a devida atenção à complexidade social — problema que nos parece ser melhor enfrentado pelas teorias que buscam na linguagem e nas interações lingüísticas, como as teorias da argumentação e do discurso.

Já mostramos anteriormente que a Segunda Guerra Mundial marcou um ponto de ruptura na noção de legitimidade democrática, especialmente na Europa continental. Até essa época, predominava um conceito formal de legitimidade, que se manifestava na idéia da intangibilidade do legislador — uma concepção forjada na Revolução Francesa e consolidada no século XIX. A experiência nazista[20] forçou uma mudança dessa concepção e o desenvolvimento de uma noção material de legitimidade: não bastava que o legislador fosse escolhido pelo voto direto, mas era dele exigido que respeitasse os valores do povo que o elegeu. Essa mudança de concepção possibilitou o desenvolvimento de um controle judicial da atividade legislativa que antes era quase impensável nos países da Europa continental[21].

Surgiu, então, a necessidade de buscar novas soluções para o problema da identificação dos interesses do povo, já que se mostrava inaceitável a solução que dominou o séc. XIX e início do séc. XX — qual seja, a legitimidade formal derivada de um processo de eleição de representantes. Por considerar que esse problema é insolúvel, alguns chegam a propor o seu abandono — esta é a opção positivista. Todavia, cremos ser possível oferecer uma resposta válida a essa questão: embora não possamos definir com exatidão quais são os atos legítimos, podemos ter certeza da ilegitimidade de algumas condutas, que são consideradas absolutamente inaceitáveis e que podemos chamar de atos arbitrários[22]. Acreditamos que esse projeto é viável: definir critérios para caracterizar determinados atos como juridicamente inválidos pelo motivo de serem socialmente inaceitáveis e, portanto, ilegítimos. Como bem observou Chaïm Perelman, muitos foram os conceitos jurídicos que tentaram lidar com esse problema:

Tout pouvoir sera censuré s’il s’exerce d’une façon dérasonnaible, donc inacceptable. Cet usage inadmissible du droit sera qualifié techniquement de façons variées come abus de droit, comme excès ou détournement de pouvoir, comme iniquité ou mauvaise foi, comme application ridicule ou inappropriée de dispositions légales, comme contraire aux principes généraux du droit communs à tous les peulpes civilisés. Peut importent les catégories juridiques invoqueés.[23]

Vários foram os conceitos elaborados pela tratar dos atos arbitrários, dando uma resposta jurídica ao problema da legitimidade: a razoabilidade é apenas um deles — ao lado do abuso de direito, do devido processo legal, dos princípios da proporcionalidade e da igualdade etc. Devemos, pois, entender a razoabilidade como um dos elementos da idéia de legitimidade — especificamente, ela deve ser tomada como a expressão contemporânea do repúdio aos atos arbitrários e das exigências de um mínimo de aceitabilidade no tocante à atividade discricionária dos agentes estatais: a aceitabilidade de um ato por parte dos seus destinatários é um dos elementos fundamentais da legitimidade democrática.

É interessante notar que essa ligação entre razoabilidade e legitimidade estava presente entre os constituintes que elaboraram a Carta de 1988, pois o texto final aprovado pela Comissão de Sistematização da Assembléia Nacional Constituinte afirmava que a razoabilidade seria uma condição de validade dos atos administrativos por ser um requisito da sua legitimidade. Entretanto, infelizmente esse texto foi suprimido pelo Plenário da Assembléia. [24]

A definição de critérios jurídicos para a avaliação da aceitabilidade racional é sempre muito problemática, especialmente tendo em vista que o senso comum dos juristas é profundamente influenciado pelo positivismo. O paradigma positivista reduz os problemas de legitimidade a questões formais: toda questão de legitimidade é reduzida a uma questão de vigência. Esse viés positivista que permeia o senso comum exige da dogmática jurídica um grande apego ao formalismo, e esse apego às formas é visto como uma garantia fundamental para a manutenção da ordem e da segurança jurídica. Um dos resultados dessa tendência é que muitas vezes os Tribunais elegem uma solução por critérios valorativos mas a fundamentam expressamente com base em argumentos formais.

Embora a ampliação do controle de razoabilidade seja vista com bons olhos por boa parte dos juristas, o nosso senso comum se ressente do fato de que esse controle é sempre feito para além dos limites do positivismo. Não é possível reduzir o controle de legitimidade a um controle meramente formal, visto que no exercício do controle de razoabilidade, os juízes necessariamente operam juízos de valor sobre as opções valorativas dos agentes estatais. O avanço do controle de razoabilidade depende, assim, de um desapego aos dogmas positivistas — especialmente o formalismo —, que são tão arraigados na nossa cultura jurídica. E, como afirmou Perelman, na conclusão do seu artigo sobre o racional e o razoável no Direito:

Nous voyons anisi que, en toute matière, l’inacceptable, le déraisonnable constitue une borne à tout formalism en matière de droit. L’idée du raisonnable, vague mais indispensable, ne peut pas être précisée indépendamment du milieu et de ce qui ce dernier considère comme inacceptable.

Alors que, en droit, les idées de raison et de rationalité ont été rattachées d’une parte à un modèle divin, d’autre parte à la logique et à la technique efficace, celles du raisonnable et de son opposé, le déraisonnable, son tiées aux réactions du milieu social et à leur évolution. Alors que les notions de raison et de rationalité se rattachent à des critères bien connus de la tradition philosophique, tels que les idées de vérité, de cohérence et d’efficacité, le raisonnable et le déraisonnable sont liés à une marge d’appréciation admissible et à ce qui, excédant les bornes permises, paraît socialement inacceptable.

Tout droit, tout pouvoir légalemente protégé est accordé en vue d’une certaine finalité : le détenteur de ce droit a un pouvoir d’appréciation quant à la manière dont il l’exerce. Mais aucun droit ne peut s’exercer d’une façon déraisonnable, car ce qui est déraisonnable n’est pas de droit.

La limite ainsi tracée me semble mieux certer le fonctionnement des institutions juridiques que l’idée de justice ou d’équité, liée à une certaine égalité ou à une certaine proportionnalité car, nous l’avons vu par plusieurs exemples, le déraisonnable peut résulter du ridicule ou de l’inapproprié, et pas seulement de l’inique ou de l’inéquitable.

En introduissant la catégorie du raisonnable dans une réflexion philosophique sur le droit, nous croyons éclairer utilement toute la philosophie pratique, si longtemps dominée par les idées de raison et de rationalité.[25]

Consideramos adequada a distinção proposta por Perelman entre racionalidade e razoabilidade. Ao controlar a racionalidade de uma norma ou do sistema jurídico, os critérios adotados seriam aqueles da lógica formal, especialmente o da coerência interna do sistema. Foi esse tipo de controle desenvolvido pelo positivismo e que tem sua melhor expressão no princípio da legalidade: a norma inferior ou os atos jurídicos não podem estar em contradição com a norma superior e, quando isso ocorre, eles são inválidos. Além disso, o positivismo exige que seja possível derivar a validade de cada norma individual a partir da norma fundamental[26] — o que ocorre apenas quando se pode demonstrar que cada norma individual tem fundamento na Constituição positiva.

Segundo Kelsen, a verificação da validade de um ato administrativo, por exemplo, dependeria da demonstração não apenas de que existe uma certa portaria que confere a um agente público a autoridade para praticar o tal ato, mas que também existe um decreto que confere autoridade ao ministro para expedir essa portaria, que existe uma lei que confere autoridade ao presidente para expedir esse decreto e que existe uma norma constitucional que confere autoridade ao Legislativo para elaborar essa lei. Quanto à norma constitucional, essa não pode ser referida a uma norma positiva superior, mas apenas à uma norma hipotética que serve como pressuposto da validade de todo o sistema normativo: a norma fundamental. E, para Kelsen, essa demonstração não era apenas necessária: ela era suficiente.

Vemos, assim, que todo o problema da validade era reduzido a uma questão de vigência (validade formal) e o problema da legitimidade era reduzido à aceitabilidade racional: somente poderia ser aceita uma inferência a partir de normas positivas e que observasse as regras da lógica formal. Contudo, as escolhas valorativas não podem ser avaliadas a partir da dicotomia racional/irracional. O critério da racionalidade é bastante útil apenas para avaliar operações dedutivas, mas é muito limitado quando se trata de avaliar operações de determinação.

Dessa forma, para que seja possível desenvolver uma teoria que oriente as opções valorativas dos agentes públicos, assim como o controle judicial dessas escolhas, é necessário que nos livremos das amarras positivistas. Com isso, deixaríamos praticamente intocado o controle de racionalidade construído pelo positivismo[27] e, sem buscar um retorno ao Direito Natural, poderíamos nos engajar ao esforço de construir um novo modelo de controle dos atos políticos, que opere não apenas sobre as operações dedutivas, mas também sobre as determinações.

Com isso, ficam definidas as fronteiras do controle de razoabilidade: trata-se da avaliação dos atos estatais que envolvem operações de determinação. Acreditamos ser importante essa distinção, pois o controle de racionalidade (que se faz principalmente pela aplicação do princípio da legalidade) desenvolve-se por critérios meramente formais, enquanto o controle de razoabilidade exige um tratamento adequado dos juízos de valor.

Convém ressaltar que o controle de legitimidade não é feito apenas pelo Judiciário, mas em todos os âmbitos do Estado. Este trabalho, contudo, limitar-se-á ao controle judicial de razoabilidade. E embora nossa maior preocupação seja esclarecer o modo como o STF tem operado o controle de razoabilidade das leis, também é conveniente discorrer sobre o controle de razoabilidade dos atos administrativos e judiciais, pois grande a inter-relação entre esses assuntos e o seu estudo traz diversas luzes sobre o nosso tema principal. Consideramos que existe controle de razoabilidade quando ao poder judiciário é reconhecida a competência para avaliar a razoabilidade do ato e invalidá-lo quando constatada a ausência desta. Em outras palavras, tal controle existe quando a razoabilidade dos atos estatais é considerada um requisito de validade que pode ser analisado pelo Poder Judiciário.

5. Controle de razoabilidade e controle de legitimidade

Do exposto, resta claro que consideramos que o problema da razoabilidade é vinculado à busca de legitimidade que marca o Estado Democrático de Direito. Embora fosse plausível considerar como sinônimas as expressões controle de razoabilidade e controle de legitimidade, optaremos por fazer uma distinção entre esses dois conceitos, na busca de evitar ambigüidades.

O controle de legitimidade pode operar-se mediante vários institutos, entre os quais o princípio da igualdade, o da proporcionalidade, o da razoabilidade e o devido processo legal. Dessa forma, seria impróprio reduzir o controle de legitimidade ao princípio da razoabilidade ou proporcionalidade, na medida em que esse tipo de controle também pode ser exercido por meio de outros conceitos jurídicos.

Dessa forma, ao controle dos atos discricionários dos agentes públicos, ou seja, das operações de determinação por eles realizadas, daremos o nome de controle de legitimidade. Ao controle de legitimidade realizado com base no princípio da razoabilidade, chamaremos de controle de razoabilidade. Assim, o controle de razoabilidade será entendido como uma das espécies de controle de legitimidade.

B - Discricionariedade e Controle de Razoabilidade

1. Determinação e discricionariedade

O conceito que São Tomás de Aquino chamou de derivação por determinação ainda hoje está presente na nossa cultura jurídica, que traduz a mesma idéia a partir da noção de discricionariedade. Utilizando a terminologia tomista, podemos definir um ato discricionário como sendo aquele que envolve uma operação de determinação — e não apenas de conclusão (dedução)[28]. A discricionariedade é um conceito jurídico que tem origem no Direito Administrativo, mas que — como veremos a seguir — pode ser utilizado para descrever as funções de todos os atos estatais que envolvem uma determinação. Façamos, pois, uma ligeira exposição sobre a idéia de discricionariedade no Direito Administrativo e de como esse conceito pode ser estendido para os atos legislativos e judiciais.

2. Vinculação e discricionariedade no Direito Administrativo

O Direito Administrativo divide os atos administrativos em duas espécies: vinculados e discricionários. A atividade administrativa é voltada para a implementação das decisões políticas e, no Estado contemporâneo, essas decisões são normalmente objetivadas na forma de uma lei[29]. As normas de Direito Administrativo normalmente atribuem conseqüências jurídicas a uma situação hipotética e, com isso, a atividade dos administradores é basicamente aplicar as disposições de uma norma geral a situações particulares, verificando se o caso concreto é abrangido pela definição abstrata da norma e indicando as suas conseqüências jurídicas.

Em alguns casos, as normas oferecem ao administrador critérios objetivos para a atribuição de conseqüências jurídicas às situações concretas. Nessa hipótese, a atividade administrativa é vinculada, ou seja, há apenas uma solução juridicamente válida para cada caso e não é necessário um juízo subjetivo do administrador para que a normas seja concretizada. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello: “atos vinculados seriam aqueles em que, por existir prévia e objetiva tipificação legal do único possível comportamento da Administração em face de situação igualmente prevista em termos de objetividade absoluta, a Administração, ao expedi-los, não interfere com apreciação subjetiva alguma”[30]. Como, nesses casos, os critérios jurídicos que regulam o caso concreto podem ser derivados da lei geral, identificamos aqui uma operação dedutiva, ou seja, uma conclusão no sentido tomista.

Por outro lado, existem casos em que a própria norma não oferece critérios objetivos para a avaliação jurídica das situações concretas. A concretização dessas normas exige do administrador uma avaliação subjetiva da situação concreta, um julgamento de conveniência e oportunidade. A norma oferece ao administrador alguns critérios que deverão orientar a sua opção subjetiva e o ato administrativo deve adequar-se a essas orientações, mas os critérios oferecidos pela norma não são suficientemente concretos para que haja uma única solução possível.

Nesse caso, teríamos um ato discricionário, que é definido por Celso Antônio como “os que a Administração pratica com certa margem de liberdade de avaliação ou decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade formulados por ela mesma, ainda que adstrita à lei reguladora da expedição deles[31]. Nesses casos, o agente administrativo precisa fazer uma operação de determinação, complementando a regra geral com critérios de sua escolha, para que seja possível a aplicação da norma abstrata ao fato concreto. Como afirmou Hely Lopes Meirelles:

Essa liberdade funda-se na consideração de que só o administrador, em contato com a realidade, está em condições de bem apreciar os motivos ocorrentes de oportunidade e conveniência da prática de certos atos, que seria impossível ao legislador, dispondo na regra jurídica — lei — de maneira geral e abstrata, prover com justiça e acerto. Só os órgãos executivos é que estão, em muitos casos, em condições de sentir e decidir administrativamente o que convém e o que não convém ao interesse coletivo. Em tal hipótese, executa a lei vinculadamente, quanto aos elementos que ela discrimina, e discricionariamente, quanto aos aspectos em que ela admite opção.[32]

3. Razoabilidade e discricionariedade no Direito Administrativo

Por se tratar a discricionariedade de um conceito jurídico amplamente conhecido — ao contrário da distinção tomista entre determinação e conclusão —, utilizaremos essa noção para definir os limites do controle de legitimidade, que passamos a definir como o controle judicial no qual se avalia a razoabilidade das opções dos agentes estatais, no exercício de função discricionária. Observemos, contudo, que essa ligação entre razoabilidade e discricionariedade não é original, pois já é defendida há muito tempo, especialmente no Direito Administrativo.

No Direito Administrativo, considera-se que o controle judicial de razoabilidade somente pode incidir sobre os atos discricionários. No caso dos atos plenamente vinculados, há apenas uma opção juridicamente possível ao administrador e, por isso, cabe ao juiz efetuar apenas um controle formal de legalidade, verificando apenas se o administrador implementou ou não o ato que a lei previa. Não há, portanto, julgamento subjetivo a ser avaliado. Já nos casos de atividade discricionária, o controle é dúplice. Há um controle formal, por meio do qual o juiz deve avaliar se a opção adotada pelo administrador estava dentro dos critérios estabelecidos pela norma. Mas é possível também um controle de legitimidade, no qual não será avaliado se a opção do administrador era uma das soluções juridicamente possíveis: o objeto do controle judicial de razoabilidade é o próprio juízo de conveniência e oportunidade realizado pelo administrador.

É interessante observar que, no direito inglês, a razoabilidade é entendida como um critério para verificar o abuso de poderes discricionários [abuse of discretionary powers]. Chegou-se a definir um critério, chamado de Wednesbury test, para definir quando a corte pode intervir na função discricionária dos administradores: “a court may interfere with the exercise of discretion for unreasonableness only when the authority has come to a conclusion ‘so unreasonable that no reasonable authority could ever have come to it’”[33]. E o sentido de irrazoabilidade foi definido por Lord Diplock no caso Tameside como denotando uma “conduct which no sensible authority acting with due appreciation of its responsibilities would have decided to adopt”[34].

A referência à discricionariedade está presente na própria definição do princípio da razoabilidade em matéria administrativa, enunciado por Celso Antônio nos seguintes termos: “a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida”[35]. Um conceito como esse não ser aceito sem reservas, especialmente na sua pressuposição de que existe e é cognoscível um senso normal de pessoas equilibradas. E, tal como Wade e Bradley afirmaram sobre o conceito de razoabilidade de Lord Diplock[36], trata-se de uma fórmula que dá margem a interpretações conflitantes[37]. De qualquer forma, a definição proposta por Bandeira de Mello evidencia que o controle de legitimidade somente pode ter como objeto atos administrativos discricionários — aqueles em que é necessário que o administrador faça uma escolha valorativa — e nunca os atos plenamente vinculados.

4. Discricionariedade do legislador

A transposição do conceito de discricionariedade dos atos administrativos para os legislativos é possível, mas são necessárias algumas ressalvas. Em primeiro lugar, devemos ressaltar que não existem atos legislativos plenamente vinculados. A vinculação relaciona-se com a aplicação de normas gerais a casos concretos, atividade que nada tem a ver com a função legislativa. Logo, não se pode opor atos discricionários a vinculados no âmbito legislativo: todo ato legislativo é discricionário, embora a liberdade de configuração do legislador possa ser maior ou menor, conforme as disposições constitucionais, os imperativos de sistematicidade do ordenamento, as tradições de um país, os valores dominantes etc.

A constituição estabelece os parâmetros aos quais a legislação deve-se adequar, oferecendo uma orientação que se opera em dois planos distintos. No plano formal, é estruturado o poder legislativo e feita a divisão de competências entre os diversos entes federativos. A observância das regras de competência e dos procedimentos estabelecidos pela constituição — em especial o processo legislativo —, é um requisito formal para a validade dos atos estatais, que podemos incluir no campo da vigência. Tais critérios oferecem-nos uma regra de reconhecimento dos atos que são prima facie válidos.

Já as regras constitucionais que criam direitos funcionam de outra forma: estabelecem certas normas que a legislação comum não pode alterar — ou ao menos não pode suprimir. Tratam-se de regras que estabelecem limites rígidos à liberdade de conformação do legislador. Se a Constituição afirma que ninguém pode “ingressar na casa de outrem sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”(Art. 5o, XI), o legislador não pode estabelecer uma norma que contrarie essa disposição.

Como os direitos fundamentais expressados por regras estabelecem limites ao conteúdo possível da legislação, já não podemos falar de uma limitação meramente formal. Contudo, eles não funcionam como critérios para o controle de legitimidade, pois apenas definem o campo de vinculação do legislador e a sua aplicação se dá por meio de operações dedutivas. Se o Congresso Nacional aprovasse uma lei que permitisse que nos casos de crimes hediondos, agentes públicos munidos de mandato judicial poderiam ingressar na residência de um suspeito durante a noite, essa lei seria inválida por ferir uma regra constitucional. Mesmo que houvesse motivos razoáveis e aceitáveis para uma regra como essa, a rigidez da norma constitucional não dá ao legislador a liberdade de fazer essa opção valorativa.

Mas, além de direitos fundamentais, a constituição estabelece princípios que orientam e limitam os possíveis conteúdos da legislação. Os princípios constróem a moldura dentro da qual os agentes estatais podem operar determinações das normas jurídicas positivas. Nesse sentido, os princípios contribuem para a delimitação do espaço em que a atividade estatal pode validamente ser exercida. Todavia, ao contrário das regras, os princípios têm uma dimensão que Dworkin chama de peso: quando dois ou mais princípios incidem sobre a mesma questão, é preciso buscar uma solução que não elimine os princípios em jogo, mas que harmonize essas diversas orientações. E cada princípio deverá ter uma importância para o caso proporcional ao seu peso. Nas palavras de Dworkin:

The difference between legal principles and legal rules is a logical distinction. Both sets of standards point to particular decisions about legal obligation in particular circumstances, but they differ in the character of the direction they give. Rules are applicable in an all-or-nothing fashion. If the facts a rule stipulates are given, then either the rule is valid, in which case the answer it supplies must be accepted, or it is not, in which case it contributes nothing to the decision.[38]

But this is not the way the sample principles in the quotations operate. Even those which look most like rules do not set out legal consequences that follow automatically when the conditions provided are met. We say that our law respects the principle that no man may profit from his own wrong, but we do not mean that the law never permits a man to profit from wrongs he commits. In fact, people of the profit, perfectly legally, from their legal wrongs. The most notorious case is adverse possession — if I trespass on your land long enough, some day I will gain a right to cross your land whenever I please.[39]

This first difference between rules and principles entails another. Principles have a dimension that rules do not — the dimension of weight or importance. When principles intersect (the policy of protecting automobile consumers intersecting with principles of freedom of contract, for example), one who must resolve the conflict has to take into account the relative weight of each. This cannot be, of course, an exact measurement, and the judgment that a particular principle or policy is more important than another will often be a controversial one. Nevertheless, it is an integral part of the concept of a principle that it has this dimension that it makes sense to ask how important or how weighty it is. Rules do not have this dimension.[40]

Devemos ressaltar que não há uma hierarquia a priori entre os princípios e que o peso é sempre medido em relação aos casos concretos. Assim, um princípio pode prevalecer sobre outro em algumas circunstâncias e em outras não. E é essa dimensão de peso que faz dos princípios os principais topoi utilizados para fundamentar as opções valorativas que orientam a determinação das normas — e é por isso que os princípios assumem um papel de grande destaque no controle de legitimidade. Por mais que as orientações que os princípios constitucionais estabelecem para a atividade do legislador sejam de fundamental importância, é preciso verificar que os princípios são critérios muito flexíveis. Ao legislador é reconhecida uma grande liberdade para determinar o peso relativo que cada princípio deve ter em um caso concreto — e cada vez mais se entende que os direitos constitucionais, por mais que sejam expressos de forma rígida, devem ser entendidos como princípios e não como regras.

Quando a Constituição trata da liberdade de imprensa, os termos que utiliza são terminantes: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”(art. 5o, IX). Colocada nesses termos, parece que não é possível qualquer limitação a essa liberdade. Todavia, logo no inciso posterior, a Constituição estabelece que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”(art. 5o, X). E não é preciso muito esforço para verificar que há muitos casos em que o exercício da liberdade de imprensa pode violar a intimidade das pessoas — como efetivamente o faz.[41]

Situações como essa exigem que se confira certa flexibilidade a essas normas, de forma que as suas exigências possam ser harmonizadas. Na busca de possibilitar uma harmonização entre esses comandos, pode o legislador estabelecer alguns limites à liberdade de imprensa e outros à inviolabilidade da intimidade. Quando o legislador estabelece uma norma como essa, ele estará dando força normativa a uma certa combinação entre os pesos dos princípios em jogo, o que pode levá-lo a restringir o alcance possível de um direito constitucional. Essas leis restritivas de direito são uma das expressões mais claras — e problemáticas — da discricionariedade do legislador.

Chamaremos de discricionariedade esse âmbito de liberdade da função legislativa, que permite aos legisladores determinar o peso específico que os princípios e valores constitucionais devem ter em um caso concreto e estabelecer regras gerais inspiradas nessa opção. Esse campo de liberdade da função legislativa é o que Canotilho chama de liberdade de conformação do legislador[42] e que chamaremos neste trabalho de discricionariedade do legislador.

A discricionariedade do legislador, nas sociedades ocidentais contemporâneas, é muito grande. Os princípios e direitos fundamentais estabeleçam um quadro flexível e as escolhas abertas ao legislador são muito amplas. Ele tem uma grande margem de apreciação para decidir qual peso conferir aos princípios e valores jurídicos em jogo e, com base nessa juízo valorativo, estabelecer normas gerais para regulamentar uma questão. O mesmo não ocorre com a atividade administrativa, em que a discricionariedade atribuída ao administrador tem normalmente o objetivo de possibilitar a adaptação de critérios flexíveis às particularidades do caso concreto, especialmente pela atribuição do poder de julgar se casos concretos se adequam a conceitos que têm um certo grau de fluidez. Ao contrário do que ocorre com a legislação — na qual se entende que há uma grande esfera de liberdade, condicionada pelos princípios e regras constitucionais —, o administrador somente tem as competências que lhe forem expressamente concedidas.

Em virtude do princípio da legalidade — que rege toda atividade administrativa — o agente público somente tem a discricionariedade que lhe é atribuída pelo legislador. Mas devemos ressaltar que a discricionariedade que o legislador pode atribuir ao administrador não tem limites fixos, o que pode resultar na delegação de um alto grau de liberdade de escolha. É o fenômeno que podemos observar, por exemplo, quanto a certos órgãos incumbidos de formular políticas públicas, como os Ministérios da Educação e da Saúde. De toda forma, a discricionariedade do legislador será sempre mais ampla que a do administrador, pois se aquela é limitada apenas pelos princípios e regras constitucionais, esta também sofre as limitações constantes dos princípios e regras infra-constitucionais.

Apesar dessas ressalvas, consideramos que a discricionariedade do legislador é um conceito útil. Embora todos os atos legislativos sejam discricionários — em maior ou menor grau —, a liberdade de configuração das regulações particulares sofre uma série de limites, especialmente dos princípios e direitos subjetivos constitucionais. Assim, mesmo que não caiba classificar os atos legislativos em discricionários e vinculados, podemos analisar a amplitude da discricionariedade que a constituição reserva ao legislador para regular as diversas relações sociais. Dessa forma, o conceito de discricionariedade legislativa serve para delimitarmos aquele campo no qual a atividade legislativa opera-se mediante juízos de conveniência e ponderações de interesses e valores — ou seja, o campo no qual o legislador tem liberdade de determinação.[43]

Faremos, pois, quanto aos atos legislativos a mesma limitação que é operada no Direito Administrativo: o controle de legitimidade somente pode ser realizado em relação ao âmbito discricionário da atividade do legislador[44]. No controle de legitimidade, portanto, indagar-se-á principalmente sobre adequação da legislação aos princípios e valores constitucionais. Durante muito tempo, considerou-se que essa esfera de discricionariedade do legislador era intangível e que ao Judiciário não cabia intervir nesse campo. Todavia, especialmente, após a Segunda Grande Guerra, tornaram-se bastante claros os problemas derivados dessa intangibilidade e passou-se a desenvolver métodos para o controle judicial da legitimidade das escolhas do legislador. E, atualmente, vários são os instrumentos que permitem ao Poder Judiciário proceder à invalidação de normas por considerar que os seus autores não efetuaram uma ponderação adequada dos princípios, valores e bens jurídicos relacionados à questão.

5. Discricionariedade dos atos judiciais

Os atos judiciais, em grande medida, dependem de operações dedutivas a partir de normas gerais. Todavia, há diversos momentos em que se exige dos juízes a realização de determinações do direito positivo. Essa idéia de que o juiz completa as normas gerais para possibilitar a sua aplicação aos casos concretos já estava presente em Aristóteles:

[T]oda lei é de ordem geral, mas não é possível fazer uma afirmação universal que não seja incorreta em relação a certos os fatos particulares. Nestes casos, então, em que é necessário estabelecer regras gerais, mas não é possível fazê-lo completamente, a lei leva em consideração a maioria dos casos, embora não ignore a possibilidade de falha decorrente dessa circunstância. E nem por isto a lei é menos correta, pois a falha não é da lei nem do legislador, e sim da natureza do caso particular, pois a natureza da conduta é essencialmente irregular. Quando a lei estabelece uma regra geral, e aparece me sua aplicação um caso não previsto por esta regra, então é correto, onde o legislador é omisso e falhou por excesso de simplificação, suprir a omissão, dizendo o que o próprio legislador diria se estivesse presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão.[45]

Tornou-se tradicional no direito a idéia de que todo ordenamento jurídico tem lacunas e, desde a Revolução Francesa, consolidou-se o princípio de que o juiz não pode denegar a prestação jurisdicional com argumento na inexistência de direito aplicável[46]. A questão das lacunas, especialmente a investigação dos limites da linguagem normativa, foi bastante desenvolvida pelo positivismo[47]. Todavia, as lacunas sempre foram entendidas como casos inevitáveis mas excepcionais, de tal forma que só eventualmente o juiz exerceria essa liberdade de criação normativa. Em Kelsen vemos a superação dessa idéia e a compreensão de que toda aplicação de normas a casos concretos envolve uma atividade criativa, em virtude da própria generalidade das regras jurídicas.

A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer.[48]

É justamente essa necessária complementação do conteúdo da norma, mediante operações de determinação, que caracteriza o âmbito da discricionariedade judicial. Para utilizar a terminologia de Larenz, cada norma positiva tem um sentido literal possível, ou seja, um conjunto de interpretações plausíveis de acordo com o uso lingüístico dos termos e expressões que formam a proposição normativa[49]. E a aplicação do Direito envolverá sempre a definição de “qual, de entre as múltiplas variantes de significado que podem corresponder a um termo segundo o uso da linguagem, deva em cada caso ser considerada”[50] — e os critérios para a definição de qual é a interpretação mais adequada ao caso concreto não podem ser dadas pela norma a ser interpretada. Larenz aponta vários critérios que podem ser utilizados para orientar essa determinação: o contexto significativo da lei, a sua intenção reguladora, os fins do legislador histórico, os princípios ético-jurídicos, especialmente os constitucionais etc. Todavia, afirma ele expressamente que não há “qualquer relação hierárquica fixa, no sentido de que o peso dos critérios particulares fosse estabelecido de uma vez por todas”[51] e que cabe ao julgador definir a combinação adequada de critérios, bem como seu peso específico, em função das particularidades do caso concreto. Reconhece, por fim, que a admissibilidade das decisões de um tribunal depende de que “os seus resultados resistam à crítica metódica”[52]

O sentido literal possível de Larenz tem a mesma função da metáfora do quadro ou moldura em Kelsen: afirmar que o juiz tem liberdade para fazer as escolhas valorativas necessárias à concretização das normas, mas sempre dentro de dentro de certos limites. E é justamente nessa liberdade que identificamos a esfera de discricionariedade judicial: a possibilidade de optar por uma dentre as várias interpretações plausíveis de uma norma, observadas as particularidades do caso concreto.

C - Controle judicial de razoabilidade

1. Controle de razoabilidade em sentido estrito e exigência geral de razoabilidade

O controle de razoabilidade, entendido como o controle da legitimidade das opções valorativas discricionárias dos agentes estatais, é o que poderíamos chamar de controle em sentido estrito. Mas, ao lado desse controle podemos identificar uma exigência genérica de que todos os atos estatais sejam justos, o que implica que sejam razoáveis e proporcionais. Contribui para isso o fato do termo razoabilidade ser polissêmico. Como bem notou Suzana Barros “razoabilidade enseja desde logo uma idéia de adequação, idoneidade, aceitabilidade, logicidade, equidade, traduz tudo aquilo que não é absurdo, tão-somente o que é admissível. Razoabilidade tem, ainda, outros significados, como, por exemplo, bom senso, prudência e moderação”[53].

Por ser um termo tão versátil, a sua utilização é constante na jurisprudência do STF, especialmente como referência a noções de bom senso e prudência. E a grande tentação de quem trabalha com o princípio da razoabilidade é identificar uma aplicação desse princípio a cada vez que a jurisprudência utiliza o termo razoabilidade. Todavia, ao ceder a essa tentação, terminamos por identificar o controle de razoabilidade como uma exigência genérica e abstrata de prudência e bom senso.

Com isso, corre-se o risco de diluir a idéia do controle a um ponto tal que a exigência de razoabilidade passaria a ser entendida como uma exigência de justiça, o que tenderia a desnaturar o conceito. Por mais que seja desejável que o exercício de poder obedeça a padrões de justiça, a idéia de justiça é ao mesmo tempo tão ampla e tão relativa que essa exigência não se tornou um requisito de validade dos atos estatais. A justiça conserva sua importância como uma idéia reguladora do sistema jurídico, como um valor a ser mantido em mente por todos os envolvidos[54]. Todavia, na atual dogmática jurídica, sustentar que uma lei é injusta não é um argumento suficiente para justificar a não-aplicação de uma norma ou a anulação de um ato. Se entendermos a exigência de razoabilidade de uma forma tão ampla a ponto de a identificarmos com a prudência, o bom senso ou a justiça, terminaremos por inviabilizar a sua utilização como um requisito de validade dos atos estatais.

Por outro lado, se considerarmos o princípio da razoabilidade como uma exigência geral de justiça, o seu âmbito de aplicação tornar-se-ia tão amplo que todas as questões envolveriam esse controle. E o resultado dessa ampliação seria novamente a diluição do conteúdo do controle de razoabilidade e a impossibilidade de se fixar critérios minimamente objetivos para a sua aplicação, pois os critérios que servissem para avaliar o bom senso de todas as espécies de atos estatais precisariam ser tão gerais, tão abstratos, que — tal como a idéia de justiça — não serviriam como um instrumento adequado para a avaliação da legitimidade dos casos concretos.

Dessa forma, para que seja possível desenvolver o controle de razoabilidade como um instrumento dogmático capaz de funcionar como um instrumento de avaliação da legitimidade dos atos estatais, é preciso definir com clareza o seu âmbito de aplicação, bem como o seu conteúdo. E é por esse motivo que fazemos a distinção entre a exigência geral de razoabilidade que deriva da idéia de justiça e o controle judicial de razoabilidade propriamente dito, o qual opera por critérios que possibilitam ao Judiciário anular ou modificar atos estatais em virtude de critérios de razoabilidade e será tratado preferencialmente por controle de legitimidade.

2. Evolução do controle judicial de razoabilidade

Nem sempre se exigiu que todos os atos estatais fossem razoáveis. Os atos de um monarca absolutista, por exemplo, não estavam sujeitos a qualquer tipo de controle. A situação não mudou drasticamente com a criação dos Estados de Direito, pois as primeiras constituições limitavam-se a estabelecer a estrutura do Estado, impondo limitações meramente formais ao exercício do poder político. Todavia, foi a partir desse momento que se insinuaram as primeiras formas de controle judicial de legitimidade, a partir de inovações que se limitavam ao âmbito do Direito Administrativo. Nos séculos XVIII e XIX, foram desenvolvidas categorias jurídicas como a reasonableness britânica, o Verhältnismässigkeit prussiano, o récours pour excès de pouvoir e o détournement du pouvoir franceses e o eccesso di potere italiano[55]. Esses novos conceitos permitiram ao Judiciário avaliar não apenas os pressupostos formais dos atos administrativos, mas também os juízos de conveniência inerentes à atividade discricionária dos agentes públicos.

Foi apenas no início deste século que o critério de razoabilidade passou a ser exigido também dos atos legislativos. Esse desenvolvimento teve início no direito norte-americano, onde há muito se utiliza a idéia de reasonableness[56], por meio da qual o juiz busca, a partir das particularidades das situações de fato e da regra do precedente, determinar os limites do razoável nos casos concretos.[57] Mas a sua conformação nos moldes atuais ocorreu apenas com a passagem, na jurisprudência dos Estados Unidos, do procedural due process para o substantive due process of law. Nessa virada interpretativa, a Suprema Corte norte-americana consolidou o entendimento de que a atividade discricionária deveria observar alguns standards[58] para que se caracterizasse a obediência ao devido processo.[59]

Na Europa, a França foi pioneira na utilização sistemática da teoria do desvio de poder para controle dos atos administrativos. Todavia, em função da reverência que o Poder Legislativo, o princípio democrático e a soberania popular têm desfrutado entre os franceses desde a revolução de 1789, a idéia de que o Judiciário deveria ter poderes para controlar a constitucionalidade das leis nunca lhes pareceu razoável[60] — sendo que até hoje a França não possui propriamente uma Corte Constitucional[61]. Contudo, essa idéia de que o poder do legislador não pode ser limitado não se restringia à França, tendo sido compartilhada pelos países europeus em geral.

Tal situação apenas foi alterada substancialmente após a Segunda Grande Guerra. A noção de que o poder do legislador não poderia ser limitado foi um dos elementos que contribuíram para a ascensão do nacional-socialismo na Alemanha. A ausência de controle jurisdicional sobre o juízo de conveniência do legislador facilitou a implantação da legislação nazista. Por isso, a Segunda Guerra Mundial apresenta-se como um marco importante no controle de legitimidade. Como afirmou Chaïm Perelman, a experiência do regime nacional-socialista foi um dos principais fatores que levaram à diminuição do respeito pela onipotência do legislador, característico da Europa do séc. XIX[62]. Assim, no pós-guerra a Europa conheceu a expansão do controle de razoabilidade dos atos administrativos. Na Alemanha, a proibição do excesso [Übermassverbot] foi elevada à categoria de princípio constitucional; na França os atos administrativos começaram a ser invalidados com fundamento em erreur manifeste d’apréciation; na Inglaterra confrontaram-se com o limite da manifest unreasonableness e na Itália foram invalidados os juízos de manifesta illogicità, de congruità e ragionevolezza.

Já o controle de razoabilidade das leis teve início com o transplante da teoria administrativa francesa para a Alemanha, onde o Legislativo não tinha no ideário nacional a intangibilidade que lhe atribuíam os franceses, especialmente após a experiência nazista. Por obra do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, o controle de legitimidade foi transposto do Direito Administrativo para o constitucional. A partir da jurisprudência da Corte, o princípio da proporcionalidade[63] foi elevado ao status de princípio constitucional implícito, por ter sido considerado como inerente à idéia de Estado de Direito.

Desde a sua instituição, pouco após o fim da Segunda Guerra Mundial*,* o Tribunal Constitucional Federal “foi cunhando paulatinamente o princípio, por meio de inúmeras decisões reconhecendo que o legislador não se deve exceder na sua liberdade de conformação dos direitos fundamentais”[64]. Segundo a moderna teoria alemã da proporcionalidade, toda restrição de direitos precisa ser adequada, necessária e proporcional, no sentido que deve ser apropriada para a consecução dos fins da norma, deve limitar os direitos o menos possível e deve traduzir uma justa medida entre o interesse público e o direito limitado.[65]

Assim, a devida compreensão do controle de razoabilidade exige a compreensão do desenvolvimento das categorias de devido processo e de princípio da razoabilidade, que se formaram respectivamente na jurisprudência norte-americana e alemã, e que se apresentam atualmente como os principais conceitos capazes de orientar o controle judicial de razoabilidade.

Capítulo II - O devido processo legal na Suprema Corte dos Estados Unidos da América

A - Devido processo substantivo e procedimental

O devido processo legal [due process of law] pode ser entendido em dois aspectos: procedural [traduzido como procedimental ou processual] ou substantive [traduzido como substantivo ou substancial]. No aspecto procedimental, o devido processo consiste na garantia de que um ato estatal apenas será válido quando for fruto de um processo adequado [a fair process] de tomada de decisão. Expressões importantes desse aspecto do due process são as exigências de ampla defesa, contraditório, da presença de um advogado, entre outras, e foram em boa parte originadas de desenvolvimentos do processo criminal. Todavia, o aspecto que nos interessa neste trabalho é o substantivo, que consiste na garantia dos cidadãos contra atos estatais arbitrários, os quais, dentro da teoria do devido processo, são aqueles praticados sem a observância de padrões mínimos de razoabilidade. Nas palavras de Bernard Schwartz, “arbitrary action is synonymous with unreasonable action and due process becomes a test of reasonableness”[66].

1. Standards do devido processo

Um ponto positivo que podemos perceber em toda a discussão norte-americana sobre o due process é a tentativa constante de estabelecer standards, critérios que possibilitem aos juízes uma avaliação razoavelmente objetiva das questões a eles submetidas. Todavia, não devemos entender os standards do devido processo como equivalentes aos subprincípios do princípio da proporcionalidade. Os standards não são regras de conteúdo definido, mas uma espécie de referências ao senso comum, de padrões de normalidade que servem como parâmetro para a avaliação da razoabilidade (entendida como aceitabilidade social) de alguns comportamentos. Eles não formam um conjunto sistemático, nem existe tal pretensão. A própria compreensão da teoria jurídica norte-americana sobre o due process of law exclui a possibilidade de se reduzir essa cláusula a um certa combinação de critérios fixos. Como afirmou o Justice Felix Frankfurter, em meados do século:

Due process, unlike some legal rules, is not a technical conception with a fixed content unrelated to time, place and circumstances. Expressing as it does in its ultimate analysis respect enforced by law for that feeling of just treatment which has been evolved through centuries of Anglo-American constitutional history and civilization, due process cannot be imprisoned within the treacherous limits of any formula. Representing a profound attitude of fairness between man and man, and more particularly between the individual and government, due process is compounded of history, reason, the past course of decisions, and stout confidence in the strength of the democratic faith which we profess. Due process is not a mechanical instrument. It is not a yardstick. It is a process.[67] [grifos nossos]

Por isso, não há na jurisprudência ou na doutrina norte-americanas uma enumeração exaustiva dos standards do devido processo, mas apenas referências a algumas decisões judiciais como estabelecendo padrões de normalidade [standards] que servem ao controle de razoabilidade.[68] Nesse ponto, é bastante clara a diferença entre o due process e o controle de razoabilidade desenvolvido na Alemanha, o qual foi reduzido a uma fórmula fixa — o princípio da proporcionalidade — , formada pela combinação de três elementos: adequação, necessidade e proporcionalidade.[69]

Podemos ligar essa preocupação às peculiaridades do common law, sistema no qual toda decisão judicial tem uma pretensão dúplice: resolver convenientemente um caso concreto e, ao mesmo tempo, estabelecer um precedente adequado para orientar a solução dos casos futuros. Essa segunda preocupação faz com que os juízes quase sempre busquem deixar claros os critérios valorativos por eles utilizados e tentem construir testes objetivos para serem aplicados aos casos futuros. Essa preocupação é mais fraca nos países de tradição romano-germânica, pois nesse modelo o papel da jurisprudência como fonte de Direito é reduzido frente ao das leis, que idealmente deveriam oferecer os critérios de juridicidade.

Em McCleskey v. Kemp, Justice Brennan afirmou que “we remain imprisoned by the past as long as we deny its influence in the present”[70]. Nesse caso, ele referia-se ao fato de que negar a existência do preconceito significa aceitar as formas mascaradas pelas quais ele se mostra nos tempos atuais. Mas podemos utilizar o mesmo raciocínio para afirmar que, ao negar o papel criativo da jurisprudência — ou não encará-lo de forma conseqüente —, nosso modelo jurídico não desenvolveu métodos adequados para orientar a criação jurisprudencial, mesmo no ponto em que é inevitável a criatividade jurisdicional: a interpretação.

Na jurisprudência da Suprema Corte, Lochner v. New York funciona como leading case do substantive due process of law porque nesse julgamento foram estabelecidos, pela primeira vez, os critérios pelos quais os atos estatais seriam avaliados. A Corte afirmou com todas as letras que, para que uma lei que interfira nos direitos individuais seja válida, “the act must have a more direct relation, as a means to an end, and the end itself must be appropriate and legitimate”[71]. Em voto dissidente, o Justice Oliver Wendell Holmes contrapôs-se à opinião da maioria, considerando que deveria ser outra a pergunta a ser feita: pode ser dito que um homem racional e razoável [rational and fair] consideraria que a lei é contrária aos princípios fundamentais da Constituição?[72]. Com o fim da Era Lochner, foi essa a interpretação que se tornou dominante.

Quanto ao campo de aplicação do due process, Edward Corwin afirma que as exigências do devido processo legal são aplicáveis às três funções do Estado[73]. Com base nas Emendas 5a e 14a, os standards do due process podem ser exigidos tanto do Poder Legislativo federal como do estadual. No tocante à administração, quando a legislação atribui aos agentes estatais o poder de afetar direitos dos cidadãos, as obrigações do devido processo tornam-se aplicáveis a eles. E no caso dos procedimentos judiciais, o devido processo exige que os litigantes tenham um julgamento justo [fair] e que os seus direitos não sejam mensurados por normas feitas para afetá-los individualmente, mas por disposições gerais, aplicáveis a todas as pessoas que se encontrem em posição similar.[74] Para o devido entendimento dessa última proposição, devemos ter em mente que, no common law, a atividade judicial mais importante não é a de aplicar leis gerais e abstratas a casos concretos, mas construir uma normas gerais a partir de um conjunto definido de precedentes — segundo a regra do stare decisis —, para aplicá-las aos casos concretos.

B - Histórico do devido processo substantivo

A exigência do due process of law foi introduzida na Constituição norte-americana em 1789 por meio da 5a Emenda, a qual estabelece que ninguém será privado da vida, liberdade ou propriedade sem devido processo legal. Em princípio, entendeu-se que isso significava apenas a garantia de um processo minimamente adequado[75] e, por isso, a Suprema Corte não operou qualquer desenvolvimento jurisprudencial desse princípio por praticamente um século. Um dos fatores que contribuíram para essa ausência de interesse na cláusula do due process foi o fato de que o devido processo era exigível apenas da União[76], e não dos estados. Como o Bill of Rights estabelecia uma série de direitos e garantias individuais, a Suprema Corte podia implementar esses direitos fundamentais de forma direta, sem a necessidade de mediar essa aplicação por meio de referências ao due process.

A cláusula do devido processo apenas começou a adquirir uma maior importância em 1868, com a aprovação da 14a Emenda, a qual dispunha que nenhum estado poderia privar alguém de vida, liberdade ou propriedade sem devido processo legal. Entretanto, não foi promulgada quanto aos estados uma declaração de direitos que pudessem ser exigidos frente ao Judiciário. Com isso, a cláusula do due process passou a desempenhar uma nova função na jurisprudência da Suprema Corte, servindo como instrumento conceitual que possibilitava à Corte impor aos estados os direitos consagrados no Bill of Rights. Assim, desde o início do século XX, o Bill of Rights passou a funcionar como limite à discricionariedade das assembléias legislativas estaduais, na medida em que descumprir essa declaração de direitos passou a implicar uma violação à cláusula do due process. Passados mais de cem anos dessa viragem jurisprudencial — que não seria exagerado chamar de revolução —, é fácil entendê-la apenas como um mero câmbio de opinião. Contudo, não seria razoável perder de vista as grandes dificuldades que afetaram esse processo de grande importância política, o qual durou mais de trinta anos — desde a publicação da 14a Emenda, em 1868, passando pelos Slaughterhouse Cases, de 1873, até que surgissem, já na virada para o século XX, as primeiras decisões que fizeram referência expressa ao devido processo legal em sentido substantivo[77].

1. Slaughterhouse Cases

Aparentemente, a finalidade da 14a Emenda era garantir frente aos estados os mesmos direitos fundamentais que os cidadãos tinham perante a União[78]. Todavia, a interpretação inicialmente dada a essa Emenda foi tão estreita que esse objetivo ficou inviabilizado. Nos famosos Slaughterhouse Cases[79], a Suprema Corte deu a sua primeira interpretação à primeira seção da 14a Emenda, na qual estão incluídas, entre outras, as cláusulas do devido processo legal e da equal protection. Nesses casos, avaliou-se a constitucionalidade de uma lei da Louisiana que estabelecia para uma certa empresa privada o monopólio do abate de animais na cidade de Nova Orleans durante vinte e cinco anos.

Em virtude dessa lei, os abatedouros existentes tiveram que ser desativados, mas os açougueiros independentes não foram proibidos de exercer sua atividade: conservaram seus pontos de venda mas foram obrigados a utilizar as instalações da empresa monopolista para o abate, pagando uma taxa estabelecida em lei. Os açougueiros acionaram a justiça, buscando invalidar a norma da Louisiana com base em quatro fundamentos constitucionais diversos: violação às cláusulas dos privilégios e imunidades, da servidão involuntária, do due process e da equal protection. No Tribunal Estadual, conseguiram que a lei fosse declarada inválida por violação das Emendas 13 e 14.[80] O caso foi, então, levado à apreciação da Suprema Corte, que recusou ponto a ponto todos os argumentos dos açougueiros e reverteu o julgamento do Tribunal Estadual[81].

Devemos ressaltar que o argumento do devido processo é apenas um dos utilizados pelos autores, que invocaram todas as previsões constitucionais que pudessem ter alguma relação com o tema. Com isso, ofereceram aos tribunais a oportunidade de utilizarem os fundamentos que considerassem mais adequado. Embora a Suprema Corte não tenha acolhido nenhum dos argumentos dos autores, ela teve a oportunidade de se manifestar sobre vários temas relevantes — e daí deriva a grande importância dos Slaughterhouse Cases. No tocante ao devido processo legal, o que verificamos é uma jurisprudência conservadora — tipo de posicionamento cuja ocorrência em um tribunal de última instância não deve causar espanto a ninguém.

A profunda importância desse julgamento foi expressamente reconhecida pelos Justices, ao admitirem, logo no início do acórdão, que entre todos os casos julgados pelos então membros da Corte, esse havia sido o mais relevante para os interesses dos Estados Unidos. Essa importância exigiu da Corte uma atenção especial, assim traduzida pelo Justice Miller, que redigiu a opinião da maioria[82]:

We have given every opportunity for a full hearing at the bar; we have discussed it freely and compared views among ourselves; we have taken ample time for careful deliberation, and we now propose to announce the judgments which we have formed in the construction of those articles, so far as we have found them necessary to the decision of the cases before us, and beyond that we have neither the inclination nor the right to go.[83]

Passando à análise da questão propriamente dita, a Corte rejeitou os argumentos fundados nas cláusulas dos privilégios e imunidades, da servidão involuntária, da equal protection e do devido processo. Trataremos aqui apenas dessa última, embora devamos ressaltar que a refutação mais cuidadosa foi a da alegada violação aos privilégios e imunidades, sendo que as referências ao devido processo foram tratadas pela Corte como um argumento de importância secundária, merecendo apenas as seguintes palavras:

The first of these paragraphs [que prevê a cláusula do devido processo legal] has been in the Constitution since the adoption of the fifth amendment, as a restraint upon the Federal power. It is also to be found in some form of expression in the constitutions of nearly all the States, as a restraint upon the power of the States. This law then, has practically been the same as it now is during the existence of the government, except so far as the present amendment may place the restraining power over the States in this matter in the hands of the Federal government.

We are not without judicial interpretation, therefore, both State and National, of the meaning of this clause. And it is sufficient to say that under no construction of that provision that we have ever seen, or any that we deem admissible, can the restraint imposed by the State of Louisiana upon the exercise of their trade by the butchers of New Orleans be held to be a deprivation of property within the meaning of that provision.[84]

Como é sabido, o sistema do common law é fundado na regra do precedente. Isso faz com que o processo de interpretação judicial das normas seja diverso do procedimento típico dos países de tradição romano-germânica. No nosso modelo, o juiz vê-se frente a uma norma geral e abstrata e o seu objetivo é extrair da própria norma um conteúdo. No common law, o juiz não é habituado a interpretar diretamente os textos das normas positivas, mas a aplicar as interpretações fixadas pelos precedentes. A aplicação de uma lei, após algum tempo, termina por tornar-se indireta, mediada pelas interpretações anteriores, as quais estabelecem precedentes obrigatórios.

Dessa forma, ganha ainda mais força o argumento de que, se após quase 100 anos de existência da cláusula do due process, não foi feita nenhuma interpretação reconhecendo a essa disposição um caráter substantivo, a Suprema Corte não poderia reconhecer-lhe esse caráter. Um princípio firmemente estabelecido tanto no direito inglês como no norte-americano é o de que um procedimento fundado em um costume que tenha sido observado por longo tempo não poderia ofender o devido processo: old process is due process [processo antigo, é processo devido][85]. A Corte optou por não inovar. Ela não operou propriamente um retrocesso, mas negou-se a levar às últimas conseqüências as alterações implementadas pela 14a Emenda.

2. Opção pelo devido processo substantivo

Com os Slaughterhouse Cases, a Corte recusou à cláusula do devido processo legal qualquer conteúdo substantivo. Essa posição foi reafirmada em Munn v. Illinois[86] mas já de uma forma enfraquecida, pois nos votos dissidentes foi defendido o abandono dessa linha. A recusa de atribuir um conteúdo substantivo ao devido processo tinha origem em um receio de interferir na harmonia da divisão dos poderes entre o âmbito federal e o estadual[87]. Essa preocupação, contudo, foi superada a partir do momento em que a Corte chegou à conclusão de que era preciso proteger o direito de propriedade contra as decisões estaduais que buscavam estimular o desenvolvimento social por meio da intervenções na economia. Essa opção ideológica pela defesa do liberalismo clássico fez com que a Corte buscasse desenvolver métodos que possibilitassem a defesa do direito de propriedade frente às inovações no campo do direito trabalhista, como as previsões de salário mínimo ou limites à jornada de trabalho. Justice Miller, que redigiu a opinião da Corte nos Slaughterhouse Cases, manifestou uma opinião amarga a respeito dos motivos que levaram ao abandono daquele precedente e à consolidação do devido processo substantivo:

It is vain to contend with Judges who have been at the bar the advocates for forty years of railroad companies, and all forms of associated capital, when they are called upon to decide cases where such interests [imposição estatal de direitos trabalhistas] are in contest. All their training, all their feelings are from the start in favor of those who need no such influence. [88]

Até o julgamento dos Slaughterhouse Cases, e inclusive neles, a defesa dos direitos individuais tinha como principal argumento a garantia dos privilégios e imunidades [privileges and immunities] dos cidadãos dos Estados Unidos. Entretanto, a interpretação dada a essa cláusula nos Slaughterhouse Cases foi tão restritiva que praticamente inviabilizou a possibilidade de maiores desenvolvimentos desse conceito.[89] Dessa forma, tornou-se necessário desenvolver outros instrumentos para garantir os direitos individuais frente aos estados e à federação. Para cumprir esse papel, duas eram as opções mais viáveis que se apresentavam à Suprema Corte, sendo que ambas implicavam a utilização de um conceito que pudesse funcionar como elo de ligação entre o Bill of Rights e os estados.

A primeira saída era utilizar o conceito de law of the land, que tem origem na Magna Charta de 1225, a qual estabelecia que “no subject shall be arrested, imprisoned, despoiled, or deprived of his property, immunities, or privileges, put out of the protection of the law, exiled, or deprived of his life, liberty, or estate, except by the judgment of his peers or the law of the land”[90]. A segunda opção era utilizar o due process of law, que tem origem na lei 28 de Eduardo III, de 1355, a qual dispunha que “no man of what state or condition he be, shall be put out of his lands or tenements, nor taken, nor imprisoned, nor disinherited, nor put to death, without he be brought to answer by due process of law[91]. Nesse embate, a teoria do devido processo legal revelou-se a mais adequada, como afirmou Edward Corwin:

[T]he Court gave unambiguous notice in its opinion in the Charles River Bridge case that aside form the “obligation of contracts” clause the Constitution of the United States contained no provision protective of vested rights as against State legislative power. Thus it became more and more evident that the doctrine of vested rights must, to survive, find anchorage in some clause or other of the various State constitutions. As it chanced, one such clause had already, prior to 1837, been put forward tentatively in the North Carolina jurisdiction with this very end in view, the “law of the land” clause of that State’s constitution; and the historic counterpart of this clause, the “due process of law” clause which mad its debut in American constitutional usage in the national Bill of Rights in 1791, was presently to be nominated for a similar role in the influential New York jurisdiction. Both clauses possessed the advantage that the precise historical significance of the terms “law of the land” and “due process of law” was shrouded in considerable mystery, but the “due process” clause finally won out because it also contained the words, at once comprehensive ad compendious, “liberty” and “property”.[92]

A opção da Suprema Corte pelo desenvolvimento do devido processo teve início já nos votos dissidentes dos Slaughterhouse Cases. Todos os dissidentes[93], acompanhando o voto de Field, concentraram-se na questão dos privilégios e imunidades[94]. Bradley, no entanto, em um voto individual, colocou a questão de uma forma mais ampla que a descrição oferecida pela opinião da maioria e mesmo dos dissidentes:

In my judgment, it was the intention of the people of this country in adopting [the 14th] amendment to provide National security against violation by the States of the fundamental rights of the citizen. [Any] law which establishes a seer monopoly, depriving a large class of citizens of the privilege of pursuing a lawful employment, does abridge the privileges of those citizens. [In] my view, a law which prohibits a large class of citizens from adopting a lawful employment, or from following a lawful employment previously adopted, does deprive them of liberty as well as property, without due process of law. Their right of choice is a portion of their liberty; their occupation is their property. Such a law also deprives those citizens of the equal protection of the laws, contrary to the last clause of the section. [It] is futile to argue that none but persons of the African race are intended to be benefited by this amendment. They may have been the primary cause of the amendment, but its language is general, embracing all citizens, and I think it was purposely so [expressed].[95] [grifos nossos]

Com esse voto, Bradley abre as portas para três das linhas argumentativas apresentadas pelos autores: privilégios e imunidades, devido processo e equal protection. Não aponta nenhum deles como o argumento mais importante, mas deixa a questão em aberto, possibilitando uma futura revisão desse posicionamento. A aceitação desses argumentos foi gradual, sendo influenciada por mudanças sociais e ideológicas. Em 1877, Justice Miller já verificava um grande aumento na utilização do conceito do devido processo legal:

The docket of this court is crowded with cases in which we are asked to hold that state courts and state legislatures have deprived their own citizens of live, liberty, or property without due process of law. There is here abundant evidence that there exists some strange misconception of the scope of this provision found in the 14th Amendment. In fact, it would seem [that] the clause under consideration is looked upon as a means of bringing to the test of the decision of this court the abstract opinions of every unsuccessful litigant in a State court of the justice of the decision against him, and of the merits of the legislation on which such a decision may be founded.[96]

Mas Miller demonstrou mais uma vez a sua falta de capacidade em prever as futuras linhas jurisprudenciais da Corte. Após afirmar, nos Slaughterhouse Cases, que a equal protection nunca viria a proteger senão os negros, errou novamente quanto ao sentido do devido processo. Aproximadamente vinte anos depois — tempo suficiente para a renovação de todos os membros da Corte —, optou-se por utilizar o conceito de devido processo como a chave que permitiria à Suprema Corte exigir dos estados o respeito aos direitos fundamentais. No primeiro momento, que foi do início do século até 1937, a grande influência dos princípios da ideologia liberal fez com que os únicos direitos efetivamente protegidos pelo due process fossem a propriedade e a liberdade no exercício de atividades econômicas. Para isso, foi preciso desenvolver uma construção jurisprudencial que reconhecesse à cláusula do devido processo não apenas o seu caráter procedimental originário, que implicava somente a garantia de um procedimento adequado, mas também um novo conteúdo: a garantia de atos estatais materialmente adequados.

Dessa forma, a Suprema Corte operou uma interpretação extensiva dos termos liberdade e propriedade, a qual permitiu uma garantia mais efetiva desses direitos, especialmente frente aos estados-membros. Construiu-se, assim, a teoria do devido processo substantivo [substantive due process], por meio da qual passou-se a controlar a adequação de todas as normas estaduais aos direitos de liberdade e propriedade, tal como eles eram entendidos pela Corte.

3. Era Lochner: o apogeu do devido processo substantivo

a) Lochner v. New York

O marco dessa virada aconteceu em 1887, com Mugler v. Kansas[97], mas a consolidação do posicionamento ocorreu apenas sete anos depois, com o julgamento do célebre caso Lochner v. New York[98], de 1905. Uma lei do estado de Nova York limitou a 10 horas diárias e 60 horas semanais o trabalho dos padeiros, e foi ela contestada judicialmente.[99] O caso chegou à Suprema Corte, que decidiu da seguinte forma:

The mandate of the statute, that 'no employee shall be required or permitted to work,' is the substantial equivalent of an enactment that 'no employee shall contract or agree to work,' more than ten hours per day; and, as there is no provision for special emergencies, the statute is mandatory in all cases. It is not an act merely fixing the number of hours which shall constitute a legal day's work, but an absolute prohibition upon the employer permitting, under any circumstances, more than ten hours' work to be done in his establishment. The employee may desire to earn the extra money which would arise from his working more than the prescribed time, but this statute forbids the employer from permitting the employee to earn it.

The statute necessarily interferes with the right of contract between the employer and employees, concerning the number of hours in which the latter may labor in the bakery of the employer. The general right to make a contract in relation to his business is part of the liberty of the individual protected by the 14th Amendment of the Federal Constitution. [...] The right to purchase or to sell labor is part of the liberty protected by this amendment, unless there are circumstances which exclude the right. [...] Both property and liberty are held on such reasonable conditions as may be imposed by the governing power of the state [...]

This court has recognized the existence and upheld the exercise of the police powers of the states in many cases which might fairly be considered as border ones. [...] It must, of course, be conceded that there is a limit to the valid exercise of the police power by the state. There is no dispute concerning this general proposition. [...]

[Quanto a esses casos, é sempre possível questionar:] Is this a fair, reasonable, and appropriate exercise of the police power of the state, or is it an unreasonable, unnecessary, and arbitrary interference with the right of the individual to his personal liberty, or to enter into those contracts in relation to labor which may seem to him appropriate or necessary for the support of himself and his family? Of course the liberty of contract relating to labor includes both parties to it. The one has as much right to purchase as the other to sell labor. This is not a question of substituting the judgment of the court for that of the legislature. If the act be within the power of the state it is valid, although the judgment of the court might be totally opposed to the enactment of such a law. But the question would still remain: Is it within the police power of the state? and that question must be answered by the court. [...]

It is a question of which of two powers or rights shall prevail,-the power of the state to legislate or the right of the individual to liberty of person and freedom of contract. The mere assertion that the subject relates, though but in a remote degree, to the public health, does not necessarily render the enactment valid. The act must have a more direct relation, as a means to an end, and the end itself must be appropriate and legitimate, before an act can be held to be valid which interferes with the general right of an individual to be free in his person and in his power to contract in relation to his own labor. [...]

We think the limit of the police power has been reached and passed in this case. [...] We think that there can be no fair doubt that the trade of a baker, in and of itself, is not an unhealthy one to that degree which would authorize the legislature to interfere with the right to labor, and with the right of free contract on the part of the individual, either as employer or employee.[100] [grifos nossos]

Com isso, percebemos que a Corte reconheceu a possibilidade de que os estados restringissem as liberdades individuais, desde que houvesse uma relação adequada entre fins perseguidos e meios instituídos pelas leis e que as finalidades mesmas pudessem ser consideradas adequadas e legítimas. Afirmou-se claramente os critérios a serem utilizados (adequação entre fins e meios e legitimidade dos fins) e concluiu-se que a norma em questão não passava no teste. No entanto, na linha jurisprudencial firmada por Lochner, embora haja referências aos direitos de liberdade e propriedade, a liberdade defendida pela Corte foi apenas a de contratar, o que terminou por estabelecer garantias reais somente para os direitos ligados à propriedade e ao trabalho.

Under this interpretation the substance or content of a state law must be reasonable in order to be constitutional. But the doctrine was first applied to safeguard property rights and the liberty of contract, chiefly of corporations, from state police power in the form of social legislation, and was destined to be rejected as the basis for the protection of civil liberties against state encroachment for another quarter century. This is ironical when it is remembered that the primary purpose of the Fourteenth Amendment was to safeguard the personal and civil rights of the Negroes who had been freed from slavery by the Thirteenth Amendment.[101]

b) Critérios do devido processo

Em Lochner v. New York[102]leading case[103] do substantive due process, julgado em 1905 —, a necessidade de observar o devido processo legal foi o argumento utilizado para afirmar que os objetivos que o legislador buscava atingir pela edição da lei impugnada estavam fora do âmbito reservado pela Constituição ao poder legislativo. Como afirmou Bernard Schwartz, “in holding the law invalid, the Court substituted its judgment for that of the legislator, and decided for itself that the statute was not reasonably related to any of the social ends for which the police power might validly be exercised”[104].

Aplicando o devido processo dessa forma, a Suprema Corte não fazia apenas um controle de adequação entre meios e fins, mas um controle muito estrito sobre as finalidades eleitas pelo legislador. Com isso, a Corte passou a declarar a inconstitucionalidade das leis de cujo conteúdo a maioria dos seus membros discordasse. Nas palavras de Bernard Schwartz, já não se tratava de uma avaliação de razoabilidade: “[t]he Court, in applying due process in such a manner, came close to exercising the functions of a ‘super-legislature’, setting itself up as virtual supreme censor of the wisdom of legislation.”[105]

c) O voto dissidente de Holmes

Mas as sementes da modificação desse entendimento já estavam no próprio julgamento de Lochner, mais especificamente no voto dissidente de Oliver Wendell Holmes, que afirmou ser papel do legislativo e não da Corte decidir qual é a melhor teoria econômica e propôs o entendimento do due process como um teste de razoabilidade. De acordo com Holmes:

[This] case is decided upon an economic theory which a large part of the country does not entertain. If it were a question whether I agreed with that theory, I should desire to study it further and long before making up my mind. But I do not conceive that to be my duty, because I strongly believe that my agreement or disagreement has nothing to do with the right of a majority to embody their opinions in law. It is settled by various decisions of this court that [state laws] may regulate life in many ways which we as legislators might think as injudicious or if you like as tyrannical as this, and which equally with this interfere with the liberty to contract. [...] Some of these laws embody convictions or prejudices which judges are likely to share. Some may not. But a constitution is not intended to embody a particular economic theory, whether of paternalism and the organic relation of the citizen to the State or of laissez faire. It is made for people of fundamentally differing views, and the accident of our finding certain opinions natural and familiar or novel and even shocking ought not to conclude our judgment upon the question whether statutes embodying them conflict with the [Constitution].

General propositions do not decide concrete cases. The decision will depend on a judgment or intuition more subtle than any articulate major premise. But I think that the proposition just stated, if it is accepted, will carry us far toward the end. Every opinion tends to become a law.

I think that the word liberty in the 14th Amendment is perverted when it is held to prevent the natural outcome of a dominant opinion, unless it can be said that a rational and fair man necessarily would admit that the statute proposed would infringe fundamental principles as they have been understood by the traditions of our people and our law. It does not need research to show that no such sweeping condemnation can be passed upon the statute before us. A reasonable man might think it a proper measure on the score of health. Men whom I certainly could no pronounce unreasonable would uphold it as a first installment of a general regulation of the hours of work.[106] [grifos nossos]

Esse posicionamento tornou-se dominante após o fim da Era Lochner, de forma que, atualmente, o teste de razoabilidade envolve a resposta à questão: “could rational legislators have regarded the statute as a reasonable method of furthering public health, safety, morals, or welfare?”[107]. Essa visão é orientada por um maior respeito às decisões políticas do legislador, ao qual é reconhecido um amplo poder discricionário na elaboração das leis. Com ele, reduz-se a possibilidade de que a Corte invalide uma lei apenas por não concordar com os valores que seus membros professam, pois não se entende que o Judiciário deva avaliar a conveniência dos fins elegidos pelo legislador, mas apenas se há um mínimo de razoabilidade na relação entre os meios instituídos pela norma e os objetivos do legislador. Quanto aos fins, a Corte deve apenas verificar se são possíveis dentro dos quadros da Constituição, e não se são os mais adequados.

d) Clear and present danger test

É interessante observar que a jurisprudência norte-americana sempre demonstrou a consciência de que nenhum direito é absoluto. Além disso, ela também demonstrou desde muito cedo a percepção de que há direitos constitucionais mais importantes que outros, de forma que as restrições a eles impostas pelo executivo ou legislativo necessitariam de uma justificativa mais forte que a usual. Essa intuição terminou por se consolidar na teoria do strict scrutiny — que será tratada de forma mais aprofundada no tópico sobre equal protection —, mas ao menos desde os anos 20 a Suprema Corte busca desenvolver métodos para tratar desses casos delicados.

Entre eles, um dos que levanta grandes discussões é o das limitações à liberdade de expressão. Durante a Primeira Guerra Mundial, foi editada a Lei de Espionagem, que previa punições a todos os que causassem obstáculos ao recrutamento e alistamento de soldados. Nessa época, Schenck e outros pacifistas distribuíram panfletos conclamando as pessoas a não se submeterem às convocações, afirmando que a conscrição violava a 13a Emenda e que apenas era de interesse dos poucos privilegiados de Wall Street. Não se estimulava nenhum ato de violência, mas apenas a resistência pacífica. Embora a Corte tenha admitido que essas afirmações seriam protegidas pelo Bill of Rights em condições normais, ela sustentou que uma tal restrição à liberdade de expressão seria aceitável em virtude das peculiaridades de um tempo de guerra.[108] Foi nessa decisão que Holmes fixou o critério do perigo real e iminente como exigência necessária para a limitação dos direitos fundamentais mais importantes, como a liberdade de expressão. Nas palavras de Holmes, “the question in every case is whether the words uses are used in such circumstances and are of such a nature as to create a clear and present danger[109].

Embora o julgamento de Schenck tenha sido unânime, as aplicações do teste nem sempre foram aceitos sem ressalvas — como se era de esperar de um critério que envolve decisões valorativas tão delicadas. No mesmo ano, por exemplo, ao julgar um caso em que a Corte considerou que a distribuição de panfletos marxista consistia um clear and present danger[110], Justice Holmes, acompanhado por Justice Brandeis, dissentiu sob o seguinte argumento:

I think that we should be eternally vigilant against attempts to check the expression of opinions that we loathe and believe to be fraught with death, unless they so imminently threaten immediate interference with the lawful and pressing purposes of the law that an immediate check is required to save the country.[111]

Essa linha jurisprudencial terminou por dar origem à doutrina do status privilegiado — preferred status doctrine —, segundo a qual alguns direitos, devido a sua importância capital, merecem um tratamento diferenciado. Para utilizar a descrição de Spicer:

The right of a state to regulate, for example, a public utility may well include, so far as the due process test is concerned, power to impose all of the restrictions which a legislature may have a “rational basis” for adopting. But freedoms of speech and press, of assembly, and of worship may not be infringed on such slender grounds. They are susceptible of restriction only to prevent grave and immediate danger to interests which the state may lawfully protect.[112]

4. Decadência da Era Lochner

a) Contradições internas

Durante a Era Lochner, as leis eram submetidas a uma avaliação [scrutiny] da adequação entre meios e fins. Quando julgava a validade de regulamentações sobre a economia, a Suprema Corte procedia a uma avaliação estrita tanto dos fins como dos meios empregados para alcançá-los. Nessa análise dos meios legislativos, a Corte requeria um relacionamento real e substancial entre a lei e seus objetivos[113].

Por um lado, foram feitas diversas avaliações dos fatos ligados à elaboração da norma, na busca de julgar se as circunstâncias conhecidas pela administração e pelo legislativo justificavam as intervenções. O melhor exemplo desse procedimento foi o famoso Brandeis brief, que ocorreu no caso Muller v. Oregon[114]. Apenas três anos após Lochner, a Corte julgou constitucional uma lei que proibia o emprego de mulheres em fábricas ou lavanderias por mais de 10 horas por dia. Para tanto, foi necessário afirmar que Lochner não constituía um precedente adequado para o caso — em linguagem mais técnica, era preciso distinguir [distinguish] o precedente. Essa operação foi feita pelo argumento de que o Estado tem um interesse mais forte em regular a jornada de trabalho das mulheres que a dos homens, pois as diferenças físicas entre os sexos justifica tal tratamento diferenciado. Para dar mais força a seus argumentos, o advogado da parte autora, Louis D. Brandeis— que futuramente se tornou membro da Corte — ofereceu uma petição que continha uma pequena parte de fundamentações dogmáticas e uma enorme quantidade de dados empíricos que comprovavam tecnicamente os problemas que uma longa jornada de trabalho causam às mulheres.

Contudo, apesar da validade de muitas leis ter sido mantida em virtude de argumentos técnicos e empíricos, casos como Muller v. Oregon eram exceção. Os parâmetros de julgamento da Corte continuavam sendo preferencialmente jurídicos. Havia uma grande desconfiança sobre os pareceres técnicos — que poderiam justificar qualquer decisão— e uma tendência maior a fundamentar as decisões da Corte nos valores tradicionalmente defendidos pelo common law.

Lochner itself provides the best example of such strict and skeptical means-ends analysis. [...] Yet considerable evidence, discussed at length by Justice Harlan in dissent, suggested that limiting the work week as New York had decided to do would enhance the health of bakers, whose working conditions appeared to pose significant threats to their health and welfare.[115]

No entanto, foram admitidas ainda em 1898, no caso Holden v. Hardy[116] leis que estabeleciam condições mínimas de trabalho para os mineiros, inclusive limites quanto à jornada de trabalho. Harlan, em seu voto divergente em Lochner v. New York, afirmou que essas duas decisões eram incompatíveis. No entanto, a maioria da Corte não admitiu essa objeção, sob o fundamento de que as condições de trabalho dos mineiros eram há muito reconhecidas pelo common law como perigosas e insalubres. Ao contrário, apesar das evidências técnicas, não havia no common law uma tradição em conferir aos padeiros proteções especiais.[117]

Da mesma forma, foram admitidas algumas restrições à liberdade de contratar com a finalidade de proteger a mulher. Os argumentos utilizados nesse caso não seriam muito convincentes nos dias de hoje, pois se ligavam à garantia da função da mulher como reprodutora e como mãe — uma função essencial para a sociedade que poderia ser prejudicada por excesso de trabalho não-doméstico. Todavia, mesmo nos casos em que estava envolvida a proteção à mulher, a Suprema Corte cassava as leis em que as restrições à liberdade de contratar não pudessem ser derivadas das presunções sexistas da época sobre a natureza e o papel das mulheres. As garantias em questões salariais, por exemplo, não eram consideradas razoáveis — ao contrário de trabalhos pesados ou prolongados — porque não comprometiam a estrutura física e as funções ligadas à maternidade.[118]

Essas diferenças de tratamento não foram consideradas desarrazoadas até meados da década de 30, quando tornou-se claro que a jurisprudência da Era Lochner garantia não a liberdade e o bem-estar efetivos das pessoas, mas o mito liberal de que uma sociedade de homens absolutamente livres seria naturalmente conduzida ao máximo de bem-estar possível. Quando se admitiu que as teorias econômicas intervencionistas de Keynes — economista cujas posições eram o fundamento do New Deal[119] — eram ao menos tão adequadas como a teoria da mão invisível do mercado de Adam Smith, tornaram-se insustentáveis os fundamentos da Corte para justificar as diferenças de tratamento de que tratamos acima.

b) Ataques externos

Além dos problemas de coerência interna — acentuados pela ausência de justificativa razoável para o tratamento distinto de situações semelhantes —, houve uma grande pressão política no sentido de aprovar as leis do New Deal, que seriam invalidadas se a Corte continuasse a aplicar a jurisprudência da Era Lochner. A tensão política foi levada a tal ponto que o recém-eleito presidente Franklin Roosevelt enviou ao Congresso um projeto — apelidado de court-packing plan — conclamando o legislativo a reorganizar o Poder Judiciário. Um dos pontos criticados foi o fato de que o cargo de juiz nas cortes federais é vitalício, o que possibilitava que houvesse juízes idosos ao ponto de terem sua capacidade de trabalho prejudicada. A mensagem afirmava que:

A lowered mental or physical vigor leads men to avoid an examination of complicated and changed conditions. Little by little, new facts become blurred through old glasses fitted, as it were, for the needs of another generation; older men, assuming that the scene is the same as it was in the past, cease to explore or inquire into the present or the future.[120]

Por causa disso, Roosevelt propôs que, para cada juiz que tivesse 70 anos — idade suficiente para pedir aposentadoria voluntária —, fosse designado um membro extra para compor o Tribunal. Na Suprema Corte da época, seis eram os juízes nessa condição: Hughes (75), Sutherland (75), Butler (71), Brandeis (81), McReynolds (75) e Van Devanter (78). Ressalte-se que apenas três dos nove justices não estavam enquadrados nesse grupo. O projeto foi rejeitado pelo Congresso, mas frente à situação política que se estabeleceu, alguns juízes contrários aos projetos do governo preferiram pedir sua aposentadoria para possibilitar a mudança de orientação. Costuma-se afirmar, por isso, que a switch in time saved nine [uma mudança em tempo salvou nove] — um jogo de palavras com o ditado inglês a stitch in time saves nine (um ponto [de costura] em tempo salva nove), que traduz a idéia de que uma ação feita na hora certa evita maiores problemas no futuro.

O período que vai de 1905 a 1937 é chamado de Era Lochner, na qual vigorou o entendimento de que o Estado não poderia limitar os direitos individuais dos cidadãos. Aos nossos olhos atuais, parecem absurdas várias das decisões dessa época. Foram repetidamente invalidadas as leis que estabeleciam remunerações mínimas, que limitavam a jornada de trabalho, que estabeleciam condições mínimas de trabalho, e várias outras normas que se tornaram comuns a partir de meados da década de 30 em vários lugares do mundo[121].

Many observers have contended that the Supreme Court’s decisions during the Lochner era were motivated by the majority’s conservative economic ideology and by its hostility toward labor regulation. Whatever the validity of these suggestions, it is clear that more than a few Americans shared the conservative beliefs held by some members of the Court. Many legislatures and courts resisted the Progressive movement, and it is clear that the Supreme Court’s views echoed a powerful strand in the thought and politics of the early twentieth century. For example, Charles Warren has noted that the number of contemporary commentators who approved the decision in Lochner v. New York at least equaled the number who attacked it [Warren, C. The Supreme Court in United States History 435-36 n° 1 (1922). The Court’s inclination in the Lochner era of Model II were hardly in the vanguard of social and economic thought, but at least until the 1930’s they were far from aberrant or peculiarly retrogressive.[122]

5. Jurisprudência pós-1937: Cortes Warren e Burger

Com a recusa da jurisprudência da Era Lochner, necessária para a aprovação do New Deal, o argumento do due process entrou em declínio. A legitimidade do substantive due process era derivada da necessidade de impor aos estados os direitos individuais. No entanto, quando a defesa dos direitos individuais passou a conduzir a soluções contrárias ao senso comum, ele perdeu grande parte de sua dignidade. Atualmente, a utilização do devido processo para a proteção de direitos econômicos e de propriedade está completamente desacreditada[123]. Com esse declínio do devido processo substantivo, a Corte começou a dar uma interpretação mais extensiva a outras previsões constitucionais, como a cláusula dos contratos[124] [contract clause] e a isonomia[125] [equal protection] — que precisaram ser ampliadas para cobrir o déficit deixado pela retração da abrangência do devido processo.

Essa situação começou a ser revertida no início dos anos 50, com a nomeação de Warrenpara o cargo de Chief Justice[126]. O primeiro caso importante desse período foi Williamson v. Lee Optical Co.[127], julgado em 1955, e normalmente conhecido como Lee Optical Case. Uma lei de Oklahoma estabeleceu a obrigatoriedade de prescrição médica — seja de um oftalmologista ou optometrista — para que o oculista pudesse duplicar lentes, substituir lentes danificadas (fabricando novas de iguais características), instalar lentes antigas em novas armações e adaptar os óculos à face do cliente. Os oculistas alegaram que essa exigência violava o devido processo legal por considerarem que tais operações eram simplesmente mecânicas, o que tornava dispensável uma nova prescrição médica. A Corte julgou o caso apresentando as seguintes razões:

The [Oklahoma] law may exact a needless, wasteful requirement in many cases. But it is for the legislature, not the courts, to balance the advantages and disadvantages of the new requirement. It appears that in many cases the optician can easily supply the new frames or new lenses without reference to the old written prescription. It also appears that many written prescriptions contain no directive data in regard to fitting spectacles to the face. But in some cases the directions contained in the prescription are essential, if the glasses are to be fitted so as to correct the particular defects of vision or alleviate the eye condition.

The legislature might have concluded that the frequency of occasions when a prescription is necessary was sufficient to justify this regulation of the fitting of eyeglasses. [...] Or the legislature may have concluded that eye examinations were so critical, not only for correction of vision but also for detection of latent ailments or diseases, that every change in frames and every duplication of a lens should be accompanied by a prescription from a medical expert.

It is enough that there is an evil at hand for correction, and that it might be truth that the particular legislative measure was a rational way to correct it. The day is gone when this Court uses the Due Process Clause [to] strike down state laws, regulatory of business and industrial conditions, because they may be unwise, improvident, or out of harmony with a particular school of [thought].[128] [grifos nossos]

Lee Optical marca o momento em que a Corte expressamente rejeita a jurisprudência da Era Lochner e afirma um novo teste para o due process: a necessidade de uma adequação racional entre os meios e os fins eleitos pelo legislador. Isso certamente marca uma redução no poder de fogo do devido processo, que definitivamente — ao menos até o presente momento —torna-se um controle de razoabilidade, e não uma forma de meramente substituir a discricionariedade dos legisladores pela dos juízes. A posição que terminou por consolidar-se foi a defendida por Holmes no seu voto dissidente em Lochner e que transformava o devido processo em um controle de razoabilidade[129]. No entanto, ao contrário do que se poderia supor à primeira vista, isso não teve como conseqüência um maior self-restraint. Pelo contrário, a Corte Warren pode ser caracterizada como a época de maior ativismo judicial experimentada pela Suprema Corte, na qual foram feitas as maiores intervenções judiciais no processo político de tomada de decisões. O caso que melhor marca esse período foi Brown v. Board of Education, no qual se declarou a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas públicas.

Se o devido processo foi o argumento predominante na Era Lochner, após esse período outros direitos entraram em ascensão. Por exemplo, a decisão de Brown v. Board of Education, fundamentou-se na equal protection clause — literalmente cláusula de igual proteção, correspondente ao nosso princípio da igualdade — que iremos discutir no ponto seguinte. Mas o devido processo, mesmo tendo perdido a primazia, manteve um lugar de grande destaque. A reafirmação do abandono da jurisprudência da Era Lochner é freqüente, mas foi acompanhada por uma grande ampliação no alcance dado à proteção do devido processo. Embora os critérios de aplicação do due process tenham sido limitados — o escrutínio já não era mais tão estrito e diminuiu o controle da aceitabilidade dos fins —, a jurisprudência da Corte Warren ingressou por um caminho que possibilitou um imenso ativismo judicial: o reconhecimento de direitos constitucionais não-escritos, que ampliou o objeto do due process sem tornar mais rígidos os critérios de aplicação. Um caso paradigmático desse momento foi Griswold v. Connecticut[130], na qual se discutiu a possibilidade de o estado tornar ilegal o uso e a prescrição médica de anticoncepcionais. Julgou a Suprema Corte, em opinião redigida por Douglas:

[W]e are met with a wide range of questions that implicate the Due Process Clause of the 14th Amendment. Overtones of some arguments suggest that [Lochner] should be our guide. But we decline that invitation as we did in [the West Coast Hotel, Olsen v. Nebraska, Lincoln Union, and Lee Optical cases]. We do not sit as a super-legislature to determine the wisdom, need, and propriety of laws that touch economic problems, business affairs, or social conditions. This law, however, operates directly on a intimate relation of husband and wife and their physician’s role in one aspect of that relation. [...]

The foregoing cases suggest that specific guarantees in the Bill of Rights have penumbras, formed by emanations from those guarantees that help give them life and substance. Various guarantees create zones of privacy. [...] We have recently referred [to] the Fourth Amendment as creating a “right to privacy, no less important than any other right carefully and particularly reserved to the people.” We have had many controversies over these penumbral rights of “privacy and repose”. These cases bear witness that the right of privacy which presses for recognition here is a legitimate one.

The present case, then, concerns a relationship lying within the zone of privacy created by several fundamental constitutional guarantees. And it concerns a law which, in forbidding the use of contraceptives rather than regulating their manufacture or sale, seeks to achieve its goals by means having a maximum destructive impact upon that relationship. Such a law cannot stand in light of the familiar principle [that] a “governmental purpose to control or prevent activities constitutionally subject to state regulation may not be achieved by means which sweep unnecessarily broadly and thereby invade the area of protected freedoms” NAACP [National Association for Advancement of Colored People] v. Alabama [357 U.S. 449 (1958)].[131]

E a extensão do conceito de liberdade — e conseqüentemente da amplitude da garantia do devido processo legal — fica ainda mais clara no voto concorrente de Goldberg, Warren e Brennan:

[Although] I have not accepted the view that “due process” as used in the 14th Amendment incorporates all of the first eight Amendments, [I] do agree that the concept of liberty protects those personal rights that are fundamental and is not confined to the specific terms of the Bill of Rights. My conclusion [that liberty] embraces the right of marital privacy though that right is not mentioned explicitly in the Constitution is supported both by numerous decisions [and] by the language and history of the Ninth Amendment, [which] reveal that the Framers [believed] that there are additional fundamental rights protected form governmental infringement, which exist alongside those fundamental rights specifically mentioned in the first [eight] amendments.[132]

Esse processo de ampliação da idéia de liberdade já se manifestava nos precedentes que fundamentaram Griswold[133], e continuou mesmo após o fim da Corte Warren. Julgamentos como Griswold e Brown v. Board of Education contrariavam expressamente a ideologia conservadora da época, a qual pregava um self-restraint. Esperava-se, assim, que com a aposentadoria de Earl Warren, fosse nomeado um Chief Justice que revertesse os holdings[134] dos casos citados — e de outros da mesma espécie — ou ao menos que estancasse o movimento de ativismo judicial. Essa parece ter sido a expectativa de Nixon, que nomeou Warren Burger como Chief Justice para comandar esse processo de judicial restraint. Pessoalmente, Warren Burger era mais conservador que Earl Warren, seu predecessor no cargo de Chief Justice. Entretanto, faltava a ele a grande capacidade de liderança que tinha Warren, e foram tomadas muitas decisões importantes — inclusive Roe v. Wade — contrárias aos posicionamentos pessoais de Burger. Em parte, isso deveu-se à forte personalidade de vários dos Justices da época, como Brennan e Douglas, que também exerciam uma forte influência sobre os posicionamentos do Tribunal. Além disso, devemos lembrar que a maior parte dos Justices era remanescente da Corte Warren. Por tudo isso, na Corte Burger realmente não tornaram mais estritos os critérios de aplicação do due process nem da equal protection, mas, pelo contrário, deu-se continuidade aos desenvolvimentos da Corte Warren quanto à ampliação do o âmbito de aplicação desses institutos.

O argumento do devido processo legal voltou ao primeiro plano na década de 70, especialmente no julgamento mais marcante da Corte Burger: Roe v. Wade, no qual o Tribunal apreciou a inconstitucionalidade de uma norma do Texas que criminalizava o aborto exceto em casos em que esse procedimento era necessário para salvar a vida da mãe. Vejamos algumas das considerações da Corte, a partir da opinião majoritária, redigida por Blackmun:

The Constitution does not explicitly mention any right of privacy. [But] The Court has recognized that a right of personal privacy, or a guarantee of certain areas or zones of privacy, does exist under the Constitution. [...] This right of privacy [...] is broad enough to encompass a woman’s decision whether or not to terminate her pregnancy. The detriment that the State would impose upon the pregnant woman by denying this choice altogether is apparent. [...]

[A]ppellants and some amici[135] argue that the woman’s right is absolute and that she is entitled to terminate her pregnancy at whatever time, in whatever way, and offer whatever reason she alone chooses. With this we do not agree. [The] Court’s decisions recognizing a right of privacy also acknowledge that some state regulation in areas protected by that right is appropriate. [A] state may properly assert important interests in safeguarding health, in maintaining medical standards, and in protecting potential life. At some point in pregnancy, these respective interests become sufficiently compelling to sustain regulation of the factors that govern the abortion decision. [...]

With respect to [the] interest in the health of the mother, the “compelling” point, in the light of present medical knowledge, is at approximately the end of the first trimester. This is so because of the now established medical fact [that] until the end of the first trimester mortality in abortion is less than mortality in normal childbirth. It follows that, from and after this point, a State may regulate the abortion procedure to the extent that the regulation reasonably relates to the preservation and protection of maternal health. [...] State regulation protective of fetal life after viability thus has both logical and biological justifications. If the State is interested in protecting fetal life after viability, it may go so far as to proscribe abortion during that period, except when it is necessary to preserve the life or health of the mother. Measured against these standards, [the Texas law] sweeps too broadly [and] cannot survive the constitutional attack made upon it here.

To summarize and repeat: A state criminal abortion statute of the current Texas type, that excepts from criminality only a life saving procedure on behalf of the mother, without regard to pregnancy stage and without recognition of the other interests involved, is violative of [due process]. (a) For the stage subsequent to approximately the end of the first trimester, the abortion decision and its effectuation must be left to the medical judgment of the pregnant woman’s attending physician. (b) For the stage subsequent to approximately the end of the first trimester, the State, in promoting its interest in the health of the mother, may, if it chooses, regulate the abortion procedure in ways that are reasonably related to maternal health. (c) For the stage subsequent to viability, the State in promoting its interest in the potentiality of human life may, if it chooses, regulate, and even proscribe, abortion except where it is necessary, in appropriate medical judgment, for the preservation of the life or health of the mother. [This] holding, we feel, is consistent with the relative weights of the respective interests involved, with the lessons and examples of medical and legal history, with the lenity of the common law, and with the demands of the profound problems of the present day.[136]

Vemos, assim, que Roe v. Wade foi decidido com base no argumento de que havia um direito constitucional à privacidade — o qual não pode ser encontrado em qualquer lugar do texto constitucional, mas que foi sendo construído jurisprudencialmente no common law — que garante à mulher a possibilidade de dispor sobre o seu próprio corpo. Na Era Lochner as atenções estavam concentradas no próprio due process e, mesmo com a retração pós-1937, restou consolidada a possibilidade de defender os direitos constitucionais por meio do substantive due process. Já nas Cortes Warren e Burger, as atenções voltaram-se para outras previsões constitucionais e para a definição dos direitos que eram garantidos pela Constituição.

Convém notar que a jurisprudência pós-Lochner representou um grande avanço no alcance do devido processo legal, pois foi alterada a ligação do devido processo substancial apenas aos direitos de propriedade. Antes de 1937, a Suprema Corte fez importantes avanços na área das liberdades civis que prepararam o caminho para o desenvolvimento do direito constitucional da liberdade civil desde aquela data. Inquestionavelmente, o mais significante desses avanços foi a interpretação pela qual as liberdades da 1a Emenda foram incluídas na liberdade da cláusula do devido processo legal da 14a Emenda, submetendo os atos estaduais à supervisão das cortes federais.[137]

A partir do começo do século, a proteção do due process foi gradualmente expandida para todos os direitos individuais contidos no Bill of Rights. Um dos casos mais interessantes, Meyer v. Nebraska[138], aconteceu em 1923, quando a Corte analisou o caso de uma lei que proibia o ensino de línguas estrangeiras modernas nas escolas. Um professor que insistiu em oferecer aulas de alemão — para uma comunidade de origem alemã —, foi condenado com base em tal lei e seu recurso chegou à Suprema Corte, que declarou inconstitucional a norma por considerar que ela violava, sem o devido processo legal, tanto o direito do professor em ensinar quanto o direito dos pais de controlar a educação dos filhos.

A reação contra a excessiva intervenção judicial nos campos econômicos causou o fim da Era Lochner, mas não diminuiu o ativismo da Corte: esse mudou menos de grau que de objeto. Como afirmou Gerald Gunther, “it has withdrawn from careful scrutiny in most economic areas but has increased intervention regarding a range of noneconomic personal interests not explicitly protected by the Constitution”[139]. Todavia, na grande relevância que os direitos fundamentais adquiriram desde o fim da Era Lochner, identificamos menos uma ampliação da idéia do devido processo e mais uma extensão do alcance dos direitos fundamentais. Durante a Era Lochner, o significado da cláusula do due process foi ampliado ao ponto de permitir a imposição do Bill of Rights ao estados. Já nas cortes Warren e Burger o desenvolvimento jurisprudencial tinha outro objetivo: a extensão do conteúdo dos direitos individuais, tais como a liberdade de expressão e o direito à intimidade.

Por fim, um ponto que deve ser ressaltado é o longo tempo que foi necessário para que a teoria do due process of law pudesse alcançar o seu estágio atual. A cláusula do devido processo está presente na Constituição norte-americana há mais de 200 anos, mas passou os primeiros cem anos em um estado de hibernação, durante o qual não ocupou um lugar de destaque. Durante cerca de 70 anos, a cláusula aplicou-se apenas à União [The United States], e apenas com a 14a Emenda, de 1868, ela passou a ser exigível dos estados. Entretanto, foram necessários outros 30 anos de gestação para que lhe fosse reconhecido um caráter substancial. Durante outros 40 anos — do início do século ao fim da década de 30 —, ela ocupou o lugar de maior destaque na atuação da Corte, até que se tornou necessária a sua retração porque as visões políticas conservadoras defendidas com base no due process se tornaram insustentáveis. Com isso, outras garantias constitucionais — especialmente a equal protection — foram elevadas ao primeiro plano (Brown v. Board of Education data de 1956), sendo que apenas no início da década de 70, com Roe v. Wade, o devido processo legal conseguiu ocupar novamente um lugar de destaque. Mesmo assim, o due process foi retomado em uma versão mais fraca que a corrente na Era Lochner. Todavia, repetimos, esse enfraquecimento dos standards foi acompanhado por uma ampliação dos objetos possíveis — de direitos consolidados e previstos expressamente no texto constitucional, para direitos não-escritos, implícitos ou construídos jurisprudencialmente —, e por isso não significou uma redução no ativismo judicial.

6. Situação atual: Corte Rehnquist

As decepções que Nixon teve com a nomeação de Burger[140]e Blackmun[141], só parecem ter sido contrabalançadas pela nomeação de Rehnquist— este sim um Justice que se mostrou fiel aos ideais conservadores de self-restraint. Rehnquist ingressou na Corte em 1972 e, em 1986, com a saída de Burger, foi promovido a Chief Justice pelo então presidente conservador Ronald Reagan, que foi responsável por três indicações: os Justices Sandra O’Connor[142], Antonin Scalia[143] e Anthony Kennedy. Lembrando que a Suprema Corte é formada por apenas nove membros e que Byron White[144] alinhava-se ideologicamente com os quatro membros acima citados, o final da década de 80 viu um prenúncio de uma nova época de self-restraint. Para ilustrar a orientação ideológica da Corte Rehnquist, é bastante útil reproduzirmos o seu voto dissidente em Roe v. Wade:

I agree [that liberty] embraces more than the rights found in the Bill of Rights. But that liberty is not guaranteed absolutely against deprivation, but only against deprivation without due process of law. The test traditionally applied in the area of social and economic legislation is whether or not a law such as that challenged has a rational relation to a valid state objective [...] [If] the Texas statute were to prohibit an abortion even where the mother’s life is in jeopardy, I have little doubt that such a statute would lack a rational relation to a valid state objective under the test stated in [Lee Optical]. But the Court’s sweeping invalidation of any restrictions on abortion during the first trimester is impossible to justify under that [standard]. While the Court’s opinion quotes form the dissent of Mr. Justice Holmes in [Lochner], the result it reaches is more closely attuned to the majority opinion of Mr. Justice Peckham in that case. As in Lochner and similar cases applying substantive due process standards to economic and social welfare legislation, the adoption of the compelling state interest standard will inevitably require this Court to examine the legislative policies and pass on the wisdom of these policies in the very process of deciding whether a particular state interest put forward may or may not be ‘compelling’.

Percebemos aqui a grande defesa do self-restraint, chegando Rehnquist ao ponto de afirmar que o ativismo judicial que orienta o julgamento de Roe v. Wade é idêntico e tão pernicioso quanto o de Lochner v. New York. Todavia, esse processo de ampliação do self-restraint avançou apenas até o ponto de evitar a continuidade de decisões judiciais que caracterizassem uma maior intervenção, mas não chegou ao ponto de reverter as decisões mais importantes das décadas anteriores. O momento atual é de um equilíbrio de forças razoavelmente estável: as decisões anteriores foram mantidas e não há uma perspectiva de alterá-las, o que garante a sobrevivência de uma jurisprudência progressista aliada a uma grande segurança jurídica.

Uma clara demonstração de que não há uma forte tendência para que essa situação seja revertida foi a recusa pelo Senado Federal da indicação de Robert Bork para a Corte[145]. Bork, autor de uma obra com título bastante sugestivo — A tentação da América: A seducão política do direito *— * é um dos principais representantes do originalismo, a vertente mais conservadora do interpretativismo, que defende a concepção de que apenas os valores dos constituintes originais podem ser utilizados como critérios para que a Suprema Corte declare a inconstitucionalidade de uma norma. A indicação, feita pelo Presidente Reagan, foi rejeitada pelo Senado em virtude das posturas radicalmente conservadoras de Bork, tendo sido aceita a posterior indicação de Anthony Kennedy, também conservador, mas de uma linha moderada. Segundo Ronald Dworkin:

O perigo que Bork representava para o ideal da integridade da constituição não era simplesmente a ameaça de decisões conservadoras. Bork é um radical porque ele se opõe a esse próprio ideal; Kennedy, até o presente, parece aceitá-lo. Bork sempre demonstrou uma forma mecânica, irrefletida de rejeitar argumentos fundados em princípios; ele sustenta que esses argumentos devem ser substituídos por afirmações supostamente históricas sobre o que os constituintes tinham em mente.[146]

Dessa forma, a rejeição de Bork e posterior aprovação de Kennedy foi uma demonstração de que não havia vontade política para que se desse continuidade ao ativismo judicial das Cortes Burger e Warren[147], mas que tampouco se desejava instaurar na Suprema Corte uma era de radical conservadorismo. Todavia, essa situação de equilíbrio somente estabilizou-se no início da década de 90, após alguns anos de incerteza sobre os rumos que a Corte tomaria. O exemplo que melhor ilustra esse momento foi o julgamento, em 1989, de Webster v. Reproductive Health Services[148]. Nesse caso, o Tribunal avaliou a constitucionalidade de uma lei do estado do Missouri que (1) determinava que todo médico, antes de realizar o aborto em uma mulher com mais de vinte semanas de gravidez, precisava determinar se o feto era viável, por meio de exames que atestem a idade, peso e maturidade pulmonar do feto; (2) proibia o uso de servidores e instalações públicas para assistir abortos que não visassem a salvar a vida da mãe e (3) tornava ilegal o uso de verbas públicas com o fim de encorajar ou aconselhar uma mulher a fazer abortos que não tivessem como único objetivo salvar a vida da mãe.

Para entender o significado desse caso, é preciso ter em mente o papel desempenhado por Rehnquist durante a Corte Burger. Desde que foi indicado para a Suprema Corte pelo presidente Nixon, em 1972, Rehnquist assumiu a missão de combater o ativismo judicial que caracterizava o Tribunal desde a Corte Warren. A defesa dessas posições fez com que, durante muito tempo, Rehnquist foi quase a única voz conservadora na Corte, o que lhe valeu o recorde histórico: durante os quatorze anos em que serviu como Justice antes assumir a presidência do Tribunal, Rehnquist figurou como único voto dissidente em nada menos que cinqüenta e quatro julgamentos[149].

Tudo isso mudou em meados da década de 80, quando as três indicações feitas por Reagan mudaram o perfil da Corte e Rehnquist foi alçado ao cargo de Chief Justice. Devemos ressaltar que o conservadorismo de Rehnquist tende a garantir um grande respeito à regra do stare decisis, o que faz com que normalmente não faça parte dos seus objetivos a mudança [overruling] de precedentes. Mas Roe v. Wade era um caso especial, considerado por ele como o pecado original, pelo qual a Suprema Corte caiu na tentação de anular todas as leis que considerava imperfeitas simplesmente por acreditar que os legisladores poderiam ter feito uma lei mais justa ou melhor. E o caso Webster parecia a ocasião perfeita para modificar esse precedente inaceitável aos olhos dos conservadores norte-americanos.

Bernard Schwartz conta que, em um primeiro momento, os quatro Justices de linha conservadora alinharam-se à posição de Rehnquist — White, O’Connor, Scalia e Kennedy — , o que resultou em uma maioria, ainda que apertada. Em oposição a esse grupo, estavam Brennan, Blackmun[150] e Thurgood Marshall[151]. Apenas Stevens permanecia em uma posição indefinida. Convém notar que normalmente é o Chief Justice que escreve a opinião da Corte nos casos mais importantes e que a posição particular de Rehnquist frente a Roe fazia com que ele tivesse um interesse especial em redigir essa decisão. E, na reunião em que essa situação foi definida, Rehnquist admitiu que discordava de Roe v. Wade, mas afirmou que o precedente derivado dessa decisão não seria anulado [overruled].

Entretanto, no projeto de decisão que submeteu à apreciação dos demais Justices, Rehnquist não observou esse compromisso e ofereceu uma opinião claramente incompatível com Roe, embora afirmasse que não se estava desconsiderando o precedente*.* Isso provocou uma reação adversa por parte de vários Justices, mesmo os de linha conservadora. Em um primeiro momento, Stevens alinhou-se aos dissidentes e enviou uma carta irônica ao Chief Justice, afirmando que se a Corte deveria abandonar um precedente tão importante, deveria fazê-lo expressa e justificadamente. Disse ele: “I am not in favor of overruling Roe v. Wade, but if the deed is to be done I would rather see the Court give the case a decent burial instead of tossing it out the window of a fast-moving caboose.”[152]. Em seguida, Blackmun fez um projeto de voto dissidente extremamente cáustico, com uma defesa apaixonada da garantia do direito ao aborto. Já Sandra O’Connor terminou por não apoiar a opinião de Rehnquist no ponto em que afirmava o abandono de Roe v. Wade, sustentando que era possível harmonizar a lei do Missouri com aquela decisão. Por fim, até mesmo Antonin Scalia, um dos principais expoentes conservadores da Suprema Corte atual, admitiu a procedência da crítica de Stevens e afirmou acreditar que a decisão deveria ser mais explícita.

Atacado, assim, tanto pela esquerda com seus votos dissidentes, pelo centro com sua tentativa de harmonizar as decisões, e pela direita com sua exigência de uma posição mais transparente, Rehnquist terminou sendo forçado a rever sua postura na tentativa de conservar a maioria. Após uma série de discussões e de mais três projetos de decisão apresentados, a Corte terminou por considerar válida a lei do Missouri, mas afirmando expressamente que com isso não se abandonava o precedente de Roe v. Wade.

No ano seguinte (1990), um novo caso sobre leis limitadoras do aborto foi apresentado ao Tribunal: Hodgson v. Minnesota, no qual se impugnava uma lei estadual que exigia a permissão de ambos os pais para que uma menor de 18 anos pudesse fazer o aborto. Após uma série de discussões, a Corte novamente ficou polarizada entre a linha conservadora de Rehnquist, Scalia, White e Kennedy e a progressista de Brennan, Blackmun, Marshall e Stevens, e mais uma vez o voto decisivo foi dado por Sandra O’Connor, que terminou por alinhar-se parcialmente aos dois grupos. Terminou-se por considerar que era inconstitucional a exigência de que ambos os pais concordassem expressamente com o aborto (seguindo a linha progressista, por 5 a 4), mas que no caso em que um dos pais discordasse, admitiu-se que era possível levar a questão aos tribunais para que o juiz desse a última palavra (seguindo a linha conservadora, também por 5 a 4).

Embora essa decisão tenha-se baseado em um equilíbrio de forças muito tênue, ela conserva uma grande importância pelo fato de Sandra O’Connor pela primeira vez ter-se posicionado pela inconstitucionalidade de uma restrição ao direito de abortar, o que caracterizou uma ruptura na maioria conservadora. Todavia, a situação continuava incerta porque o equilíbrio precário subjacente à decisão poderia ser rompido a qualquer momento, pois qualquer mudança de posicionamento alteraria a decisão. Ainda em 1990, Brennan aposentou-se, tendo sido substituído por David Souter, que também posicionou-se pela manutenção de Roe v. Wade. A aposentadoria de Marshall, que deu lugar a Thomas Clarence[153], em 1992, também não alterou significativamente o equilíbrio precário.

Todavia, com a aposentadoria do conservador White, em 1993, e o ingresso da Justice liberal Ruth Bader Ginsburg (indicada por Bill Clinton), a sobrevivência do precedente de Roe v. Wade parece estar “as secure for the foreseeable future as so controversial a decision can be”[154]. Percebemos, assim, a imensa influência que a ideologia dos membros de uma Corte exerce quanto aos julgamentos de um Tribunal e tênue equilíbrio de forças que pode ocorrer em certos períodos. No atual momento, tudo indica que foi alcançado uma situação mais estável na Suprema Corte dos EUA, de tal forma que não há uma perspectiva de abandono a curto prazo da jurisprudência progressista originada nas Cortes Warren e Burger, mas ao mesmo tempo não há indícios de uma retomada do ativismo judicial que marcou esses dois períodos.

Convém ressaltar, também, que o argumento do devido processo nem sempre tem um caráter progressista. O due process quase sempre é invocado para justificar um alto grau de ativismo judicial, mas o ativismo é muitas vezes ligado a um conservadorismo extremado. Nas Cortes Warren e Burger, o due process foi uma doutrina progressista porque os direitos defendidos com base nesse argumento eram progressistas— igualdade, aborto etc. No entanto, durante toda a Era Lochner — período de ouro do devido processo — esse argumento foi utilizado para impedir todas as tentativas de mudança na ordem econômica estabelecida, justificando decisões que hoje nos parecem completamente absurdas. E, voltando à primeira utilização do devido processo substancial, chegamos ao caso provavelmente mais traumático de toda a história da Suprema Corte: Scott v. Sandford, mais conhecido como Dred Scott Case*.*

Nesse processo, a Suprema Corte declarou inconstitucional o Pacto do Missouri [Missouri Compromise] segundo o qual os escravos que fossem conduzidos a estados nos quais a escravidão havia sido abolida, tornariam-se homens livres. Um desavisado escravocrata da região sul, ao levar um de seus escravos a um estado do norte, vê-se privado da sua propriedade porque o escravo é considerado livre pelo Pacto do Missouri. Julgando esse caso, a Corte estabeleceu o precedente de que os negros não podiam ser considerados cidadãos — seja dos estados ou da federação —e que:

Um ato do Congresso que priva um cidadão dos Estados Unidos da sua liberdade ou propriedade apenas porque ele trouxe sua propriedade a um território particular dos Estados Unidos, sem cometer qualquer ofensa ao Direito não pode ser dignificado com o nome de devido processo legal[155].

Foi a primeira vez que a Suprema Corte invalidou um ato do Congresso Federal, desde Marbury v. Madison — entre os dois casos passaram-se cerca de setenta anos. As conseqüências políticas dessa decisão foram desastrosas, contribuindo para a quebra do equilíbrio entre o norte e o sul do país e sendo um dos elementos que deram margem à Guerra Civil. Até hoje, designa-se esse caso usualmente com um adjetivo que traduza a indignação frente a esse posicionamento e suas conseqüências: normalmente se fala do infame caso Dred Scott.

Como afirmamos anteriormente, é consolidado no common law o princípio de que os procedimentos que vêm sendo aplicados de longa data são devido processo legal. O mesmo acontece no Brasil, em que algumas disposições que contrariam prima facie disposições constitucionais, como a da isonomia são mantidos porque consolidados há muito na legislação e na jurisprudência. Como afirmou Sepúlveda Pertence na ADInMC 1.753, a vetustez de alguns favores legais concedidos aos entes estatais no campo processual é um dos fatores que contribuem para a sua aceitabilidade. No entanto, parece natural para as mentes conservadoras converter essa afirmativa na de que o que não é antigo em termos de processo, não é devido processo legal. Foi esse tipo de orientação conservadora que inspirou a rejeição das inovações na área de legislação econômica durante a Era Lochner.

Entretanto, com isso não queremos dizer que o devido processo legal é uma doutrina intrinsecamente conservadora, mas apenas chamar a atenção que ela é um instrumento de forte ativismo judicial: seja ele conservador ou progressista. O due process é um argumento que não possui um conteúdo definido: os valores que serão defendidos com base nessa categoria serão aqueles que forem dominantes entre os membros da Corte — quer tais valores reflitam ou não os interesses populares, sejam ou não eles os dominantes dentro da cultura jurídica do país.

Com isso, queremos chamar a atenção para o fato de que, na hipótese (aparentemente remota) de o Supremo Tribunal Federal desenvolver uma teoria forte do devido processo legal, não se estaria garantindo decisões progressistas, mas apenas a possibilidade de um maior ativismo judicial, que seria orientado pelos valores dominantes entre os membros do Tribunal, que atualmente é marcado pelo conservadorismo. Ampliar os quadros do devido processo legal — ou do princípio da proporcionalidade e da isonomia — significa apenas atribuir um poder maior para o Supremo: serão os valores compartilhados pelos seus membros que definirão o modo como esse poder será utilizado.

C - Equal protection

Na história da equal protection, há um divisor de águas bem definido: a Corte Warren. Antes desse período, temos o que se chama de “old equal protection”, que funcionava apenas como um teste de racionalidade mínima. Durante a Corte Warren, foi desenvolvida a “new equal protection”, fase em que a igualdade tornou-se o principal argumento em cena. Após a Corte Warren, houve uma certa retração da equal protection, mas ela não voltou à sua condição originária de argumento marginal, conservando-se até hoje como um dos principais instrumentos de controle de constitucionalidade a serviço da Suprema Corte.

1. Old equal protection

A cláusula da equal protection ingressou na Constituição norte-americana em 1868, com a edição da 14a Emenda, a mesma que estendeu aos estados a aplicação do devido processo legal. Originalmente, o objetivo dessa previsão era garantir os direitos dos negros (recém libertos da escravidão) frente a discriminações efetuadas pelos governos e assembléias estaduais. Essa consciência era tão clara que Justice Miller, em uma passagem que se tornou célebre pela sua previsão equivocada, afirmou sobre a Seção I da 14a Emenda, no ponto em que ela refere-se à equal protection[156]:

In the light of the history of these amendments, and the pervading purpose of them, [it] is not difficult to give a meaning to this clause. The existence of laws in the States where the newly emancipated negroes resided, which discriminated with gross injustice and hardship against them as a class, was the evil to be remedied by this clause, and by it such laws are forbidden. [...] We doubt very much whether any action of a State not directed by way of discrimination against the negroes as a class, or on account of their race, will ever be held to come within the purview of this provision.[157] [grifos nossos]

Essa visão foi sendo abandonada, com uma gradual ampliação do alcance da garantia de tratamento isonômico. Justice Bradley, em seu voto dissidente nos Slaughterhouse Cases, já manifestou o entendimento que veio a se tornar dominante no início deste século:

It’s futile to argue that none but persons of the African race are intended to be benefited by this amendment. They may have been the primary cause of the amendment, but it’s language is general, embracing all citizens, and I think it was purposely so [expressed].”[158]

Contrariando as previsões do Justice Miller, foi essa a opinião que prevaleceu. Durante a Era Lochner, construiu-se sobre a cláusula da equal protection a exigência de uma relação de razoabilidade entre a discriminação e os objetivos da norma — de forma muito próxima à exigência de adequação entre fins e meios contida no devido processo legal substantivo. Todavia, não se utilizou a equal protection para avaliar a legitimidade das finalidades eleitas pelo legislador, tipo de julgamento que continuou sendo feito nos quadros do devido processo. A equal protection desempenhou, assim, um papel secundário durante a Era Lochner.

Nas palavras de Gerald Gunther, durante a Era Lochner, era normalmente o due process e não a equal protection que “provided the cutting edge[159], ou seja, que a intervenção da Corte no domínio econômico era feita preferencialmente com fundamento no devido processo, e não com base na equal protection[160]. Por isso, a equal protection era usualmente invocada apenas como um argumento acessório ou nos casos em que parecia impossível o acolhimento das razões fundadas no devido processo legal. E foi a constatação desse fato que levou Oliver Wendell Holmes, em 1927, a afirmar que a equal protection era “the usual last resort of constitutional arguments”[161].

a) Teste da razoabilidade mínima

A Suprema Corte, desde o fim do século passado, entende que a equal protection exige que as discriminações legislativas e administrativas sejam razoáveis. No início, o conceito de razoabilidade era muito estreito, exigindo apenas que os membros de determinado grupo fossem tratados de forma idêntica.[162] Esse posicionamento foi logo descartado porque estabelecia uma garantia meramente formal [empty of content], a qual era insuficiente porque, muitas vezes, não era a existência de uma discriminação desarrazoada, mas a falta de uma discriminação adequada, que caracterizava a violação da equal protection.[163] Passou-se, então, a entender que as cortes deveriam enfrentar o problema de fundo e avaliar se as classificações estabelecidas por uma lei eram razoáveis à luz das suas finalidades.[164]

The equal protection clause does not, of course, forbid all legal classifications. It forbids only that which is arbitrary and unreasonable. Classification in the law is not only constitutional, but desirable and necessary; it is almost impossible to conceive of a law which does not in some way employ it. But however necessary such classification and grouping is, it is a function which lends itself to abuse and it is this abuse which the equal protection clause seeks to prevent. What is arbitrary classification, or when does classification become discrimination? There is of course no concise and easy answer, but several general principles have been formulated by the Supreme Court which throw light upon the problem.[165]

In the first place, it is clear that if the law is to put people into different classes, the classes must differ from each other. There must in other words, be a basis of distinction. This may be age, sex, income or any one of many qualities or characteristics. The basis of classification in any law must have some rational connection with the purpose of the law. It is proper to classify people according to age with respect to the right to vote, to drive a car, or to attend the public schools; but to put people into age groups to determine who may own property or be liable to property taxes would be to use a basis of classification quite irrelevant to the purpose of any valid law.[166]

Quanto às discriminações em geral, a Corte exige apenas que tenham um mínimo de razoabilidade. A aplicação desse minimum rationality test normalmente é caracterizada por uma grande deferência à discricionariedade do legislador. Um dos melhores exemplos dessa deferência aconteceu no caso Kotch v. Board of River Port Pilot Commissioners[167], no qual se questionou a constitucionalidade de uma lei que exigia como requisito da licença para pilotar aviões um treinamento especial com um piloto, mas que permitia aos pilotos escolherem as pessoas que tomariam como aprendizes. Na prática, com raras exceções, os pilotos apenas ofereciam treinamento para seus familiares e amigos. Decidiu a Corte:

The practice of nepotism in appointing public servants has been a subject of controversy in this country throughout our history. Some states have adopted constitutional amendments25 or statutes,26 to prohibit it. These have reflected state policies to wipe out the practice. But Louisiana and most other states have adopted no such general policy. We can only assume that the Louisiana legislature weighed the obvious possibility of evil against whatever useful function a closely knit pilotage system may serve. Thus the advantages of early experience under friendly supervision in the locality of the pilot's training, the benefits to morale and esprit de corps which family and neighborly tradition might contribute, the close association in which pilots must work and live in their pilot communities and on the water, and the discipline and regulation which is imposed to assure the State competent pilot service after appointment, might have prompted the legislature to permit Louisiana pilot officers to select those which whom they would serve.[168]

b) Overinclusiveness e underinclusiveness

Uma violação à equal protection pode ocorrer de duas formas. Por um lado, um ato estatal pode instituir uma discriminação injustificada entre pessoas que deveriam ser tratadas igualmente. Como nesse caso a distinção é contida na própria norma, ele pode ser chamado de discriminação de jure. Em oposição, teríamos as discriminações de facto, quando o governo deixasse de estabelecer uma distinção necessária para garantir a equal protection.[169] Segundo Anatole France, essa era a qualidade magnânima da legislação francesa, que proibia igualmente os ricos e os pobres de dormirem sob as pontes de Paris.[170] Durante a Era Lochner, em deferência à discricionariedade do legislador — e às dificuldades inerentes à função legislativa —, a Corte construiu uma jurisprudência que admitia violações menores à regra de isonomia, mantendo a validade de decisões que, prima facie, seriam contrárias à equal protection. Podemos descrever essa linha jurisprudencial como a aceitação da underinclusiveness (ligada à desigualdade de direito) e overinclusiveness (ligada às discriminações de fato).

Na underinclusiveness, o conjunto de destinatários da norma não envolve alguma categoria que poderia ser por ela abrangida de forma justificável. Por exemplo, em Williamson v. Lee Optical Co.[171], a Corte manteve uma norma que estabelecia restrições aos optometristas e não oferecia nenhuma regulação aos vendedores de óculos prontos. Como justificativa, a Corte afirmou que os problemas de um mesmo campo podem ser de diferentes dimensões e, por isso, exigir diferentes soluções. Além disso, o legislador pode implementar passo a passo as reformas necessárias, voltando-se primeiramente às questões que considere mais graves[172].

Exigir que o Estado ataque todos os males ao mesmo tempo e com a mesma intensidade causaria, em última análise, uma paralisia total — causada pela impossibilidade prática desse objetivo. Os problemas do governo são concretos e a sua solução pode exigir uma acomodação de interesses que tenha resultados gerais satisfatórios, embora possa não ser plenamente adequada a alguns casos particulares: esse é um problema que enfrenta toda tentativa de estabelecer regras gerais para tratar de um problema com grande amplitude.

Outro argumento que possibilita alguma flexibilidade na avaliação da equal protection é a overinclusiveness. Enquanto o grande problema da underinclusiveness é a possibilidade de conferir privilégios para grupos politicamente influentes, o perigo ligado à overinclusiveness é a de não criar as exceções necessárias e, com isso, tratar minorias sem grande representação de forma mais grave que o necessário. Em New York Transit Authority v. Beazer[173], discutiu-se a proibição de contratar, para trabalhos relativos ao trânsito, usuários de droga que se encontrassem em tratamento. Beazer sustentou a inconstitucionalidade da norma quanto aos usuários de metadona, com base no argumento técnico de que 75% dos usuários dessa droga abandonam o vício passado um ano de tratamento. Portanto, violaria a equal protection clause tratá-los de forma idêntica aos outros usuários. No entanto, a Suprema Corte não acolheu esse argumento, deixando transparecer o entendimento de que a legislação estaria promovendo uma medida profilática e que é preciso respeitar as limitações inerentes à atividade de elaborar regras gerais, pois a necessidade de estabelecer limites precisos leva necessariamente a um tratamento problemático dos casos de fronteira.

De toda forma, a jurisprudência que aceita a underinclusiveness e a overinclusiveness como inerentes à atividade legislativa pode ser caracterizada como uma expressão de self-restraint, pois seria juridicamente possível que a Corte interviesse nos casos problemáticos para resolver as dificuldades específicas de cada um. Assim, o critério para a adequação à equal protection era uma relação de razoabilidade entre a discriminação estabelecida e as finalidades da norma. Teoricamente, também havia a necessidade de que a finalidade eleita pelo legislador fosse legítima, mas como esse teste era aplicado de forma muito flexível, essa exigência não impunha uma carga muito grande sobre a atividade legislativa.

2. A nova equal protection na Corte Warren

Desde muito cedo, a Suprema Corte afirmou o entendimento de que há direitos constitucionais mais importantes que outros, o que justifica um tratamento jurisprudencial diferenciado. Essa visão foi consolidada na Corte Warren, quando a equal protection passou a ser encarada de uma forma dúplice. A alguns direitos deveria ser aplicado o teste da racionalidade mínima, tal como desenvolvido no início do século. Em uma espécie de reação contra a jurisprudência da Era Lochner, eram tratadas com esse teste — marcado pela deferência à discricionariedade do legislativo — as intervenções estatais relativas aos direitos econômicos e trabalhistas. Outros direitos, contudo, mereceriam um exame mais cuidadoso, com a utilização de critérios mais rigorosos, que normalmente é chamado de strict scrutiny [escrutínio estrito].

No entanto, há limites para a admissão de underinclusiveness. No caso Smith v. Cahoon, por exemplo, discutiu-se a validade de uma norma que estabeleceu um privilégio para os transportadores de produtos agrícolas, eximindo-os do cumprimento de uma regulamentação sobre as comanhias de transporte. A Corte poderia ter mantido a lei sob o argumento de que a racionalidade estava na garantia de um subsídio para a agricultura.

Um dos precursores da idéia do strict scrutiny para alguns casos especiais foi Justice Stone, ainda na década de 20. Na famosa nota n° 4 de United States v. Carolene Products Co., ele defende um controle rigoroso que a avaliação das leis que prima facie estabelecem obrigações incompatíveis com proibições específicas constantes do Bill of Rights ou da 14a Emenda.

It is unnecessary to consider now whether legislation which restricts those political processes which can ordinarily be expected to bring about repeal of undesirable legislation, is to be subjected to more exacting judicial scrutiny under the general prohibitions of the 14th Amendment than are most other types of legislation. [...]

Nor need we inquire whether similar considerations enter into the review of statutes directed at particular religious [...] or racial minorities [...]; whether prejudice against discrete and insular minorities may be a special condition, which tends seriously to curtail the operation of those political processes ordinarily to be relied upon to protect minorities, and which may call for a correspondingly more searching judicial inquiry.[174]

A jurisprudência da Corte Warren terminou por consolidar essa teoria dualista, mas não promoveu uma expansão dos objetos possíveis da equal protection, que continuou limitada aos clássicos campos do direito ao voto, procedimento criminal e direito a liberdade de trânsito entre os estados. Quanto a esses objetos razoavelmente limitados, as exigências da equal protection se tornaram muito mais rigorosas. Enquanto a antiga equal protection exigia apenas uma relação razoável entre meios e fins, a nova equal protection exigia que a discriminação fosse absolutamente necessária para que se alcançassem os objetivos da norma — algo próximo ao requisito da necessidade na moderna teoria alemã da proporcionalidade. Além disso, as próprias finalidades da norma precisavam ser não apenas objetivos legítimos da atividade estatal, mas que houvesse um interesse público que exigisse a discriminação [a compelling state interest].[175] Essa avaliação era feita com critérios tão rigorosos que Gunther chega a afirmar que:

A Corte Warren adotou uma teoria rigidamente bipartida [a rigid two-tier attitude]. Algumas situações evocavam a agressiva new equal protection, com um escrutínio que era estrito em teoria e fatal na prática; em outros contextos, a deferente old equal protection reinava, com escrutínio mínimo na teoria e virtualmente nenhum na prática.[176]

Um dos grandes problemas para a aplicação da nova equal protection é a dificuldade de estabelecer critérios objetivos para a definição de qual o teste aplicável: minimal rationality ou strict scrutiny. Essa é uma questão delicada, que até hoje não recebeu uma solução definitiva por parte da Suprema Corte. A resposta oferecida pela Corte Warren a tal problema foi a seguinte: aplica-se o strict scrutiny quando houver uma classificação suspeita [suspect classification] ou quando a discriminação atingir interesses ou direitos fundamentais.[177] Todavia, a dificuldade continua: o que é uma classificação suspeita e quais são os interesses fundamentais que podem ser defendidos com base na cláusula da equal protection.

Algumas questões foram consideradas suspeitas desde o início: discriminações fundadas na cor, na raça, no sexo, na preferência religiosa etc. Outras foram reconhecidas como suspeitas no correr do tempo, como por exemplo, discriminações contra imigrantes e contra os pobres. Normalmente, são distinções sujeitas a strict scrutiny aquelas que resultam em prejuízo para grupos sociais tradicionalmente discriminados e cujos interesses raramente são vitoriosos no processo político ordinário. Normalmente, trata-se de discriminações ligadas a problemas raciais, ao sexo, à religião ou à origem (no caso de imigrantes). Na linguagem utilizada pela jurisprudência, esses grupos são considerados classes suspeitas [suspect classes], pois um tratamento diferenciado quanto a elas [suspect classification] levanta uma forte suspeita de discriminação inconstitucional.

Mas o grande avanço procedido pela Corte Warren, como já dissemos, não se deu na amplitude da equal protection, que continuou limitada. A diferença se deu no grau de intervenção que a Corte operou com base nessa cláusula, sendo que a decisão mais importante do período foi Brown v. Board of Education, que tratava da clássica discriminação contra os negros, mas orientada por um ativismo judicial que deu origem a intervenções do Judiciário na vida política do país em um grau que até então não se conhecia. Até então, era vigente a jurisprudência do separate but equal [separados mas iguais], fixada pelo holding de Plessy v. Fergusson[178], no qual a Corte afirmou a constitucionalidade de uma lei da Louisiana, de 1890, que requeria iguais mas separadas acomodações para brancos e negros. A maioria, em decisão redigida pelo Justice Brown, afirmou:

The object of the 14th Amendment was undoubtedly to enforce the absolute equality of the two races before the law, but in the nature of things it could not have been intended to abolish distinctions based upon color, or to enforce social, as distinguished from political equality, or a commingling of the two races upon terms unsatisfactory to either. Laws [requiring] their separation in places where they are liable to be brought into contact do not necessarily imply the inferiority of either race to the other, and have been generally, if not universally, recognized as within the competency of the state legislatures in the exercise of their police power. The most common instance of this is connected with the establishment of separate schools for white and colored children, which have been [upheld] even by courts of States where the political rights of the colored race have been longest and most earnestly enforced. [Laws] forbidding the intermarriage of the two races may be said in a technical sense to interfere with the freedom of contract, and yet have been universally recognized as within the police power of the state. [The] distinction between laws interfering with the political equality of the negro and those requiring the separation of the two races in schools, theaters, and railway carriages has been frequently drawn by this Court. [...]

[It is suggested] that the same argument that will justify the state legislature in requiring railways to provide separate accommodations for the two races will also authorize them to require separate cars to be provided for people whose hair is of a certain color, or who are aliens, or who belong to certain nationalities, or to enact laws requiring colored people to walk upon one side of the street, and white people on the other, or requiring white men’s houses to be painted white, and colored men’s black, or theirs vehicles or business signs to be of different colors, upon the theory that one side of the street is as good as the other, or that a house or vehicle of one color is as good as one of another color. The reply to all this is that every exercise of the police power must be reasonable, and extend only to such laws as are enacted in good faith for the promotion of the public good, and not for the annoyance of oppression of a particular class. [In] determining the question of reasonableness, [the legislature] is at liberty to act with reference to the established usages, customs, and traditions of the people, and with a view to the promotion of their comfort, and the preservation of the public peace and good order. Gauged by this standard, we cannot say that [this law] is unreasonable, or more obnoxious to the [14th Amendment] than the [laws] requiring separate schools for colored children, [the] constitutionality of which does not seem to have been [questioned]

We consider the underlying fallacy of the plaintiff’s argument to consist in the assumption that the enforced separation of the two races stamps the colored race with a badge of inferiority. If this be so, it is not by reason of anything found in the act, but solely because the colored race chooses to put that construction upon it. [The argument] assumes that social prejudices may be overcome by legislation, and that equal rights cannot be secured to the negro except by an enforced commingling of the two races. [...] If the civil and political rights of both races be equal, one cannot be inferior to the other civilly or politically. If one race be inferior to the other socially, the [Constitution] cannot put them upon the same plane.[179]

Essa teoria, que foi dominante durante mais de meio século — de 1896 a 1954 —, somente foi completamente rejeitada com o histórico julgamento de Brown v. Board of Education of Topeka[180]. Mudanças, contudo, já se anunciavam quinze anos antes, quando a Suprema Corte julgou Missouri ex rel. Gaines v. Canada[181], no qual se apreciou o caso de um estudante negro cuja matrícula tinha sido negada na Faculdade de Direito da Universidade do Missouri em virtude da sua raça. O estado defendeu-se argumentando que não havia universidades para negros mas que ele daria a Gaines uma bolsa para que ele estudasse em uma universidade fora do Missouri. A maioria da Corte deu ganho de causa ao estudante, afirmando o dever do Estado de garantir aos negros “within its borders facilities for legal education substantially equal to those which the State there offered for persons of the white race, whether or not other negroes sought the same opportunity”[182]. Esse movimento de garantia de tratamento isonômico aos negros culminou em Brown v. Board of Education, no qual a Corte assim se pronunciou:

These cases come to us from the States of Kansas, South Carolina, Virginia, and Delaware. [In] each of the cases, minors of the Negro race [seek] the aid of the courts in obtaining admission to the public schools of their community on a nonsegregated basis. In each instance, they had been denied admission to schools attended by white children under laws requiring or permitting segregation according to race. [...]

In the first cases in this Court construing the 14th Amendment, decided shortly after its adoption, the Court interpreted it as proscribing all state-imposed discriminations against the Negro race. The doctrine of “separate but equal” did not make its appearance in this Court until 1896 in [Plessy], involving not education but transportation. [...]

We come then to the question presented: Does segregation of children in public schools solely on the basis of race, even though the physical facilities and other “tangible” factors may be equal, deprive the children of the minority group of equal educational opportunities? We believe that it does. [...] To separate them from others of similar age and qualifications solely because of their race generates a feeling of inferiority as to their status in the community that may affect their hearts and minds in a way unlikely ever to be undone. [...]

We conclude that in the field of public education the doctrine of “separate but equal” has no place. Separated educational facilities are inherently unequal. Therefore, we hold that the plaintiffs and others similarly situated for whom the actions have been brought are, by reason of the segregation complained of, deprived of [equal protection]. This disposition makes unnecessary any discussion whether such segregation also violates [due process].[183]

3. Jurisprudência pós-Warren

Quando Warren Burger[184] assumiu o cargo de Chief Justice, a Corte não estava mais disposta a continuar o caminho de tornar mais rígidos os critérios da equal protection, mas também não optou por restringir drasticamente os standards consolidados na Corte Warren. Os problemas da bipartição da equal protection entre razoabilidade mínima e escrutínio estrito causavam uma crescente reação a essa divisão. Dessa forma, a Corte Burger continuou a utilizar a equal protection como um instrumento de intervenção, mas apenas “thus far and no further” [até este ponto e não além][185]. Há também um abandono gradual da linguagem do strict scrutiny, o que na prática tem levado a Corte a enrijecer os critérios de racionalidade mínima.[186]

Desde o início da década de 70, alguns movimentos buscam reduzir as diferenças entre os extremos da teoria bipartida consolidada da Corte Warren. O Justice Thurgood Marshall, por exemplo, afirmava já em 1973 que, embora a Corte utilize apenas duas classes na teoria, a prática demonstra que o que se faz é pesar cada um dos direitos em jogo, o que leva a uma gradação muito ampla, que vai do mínimo de racionalidade até o escrutínio mais estrito: “esse espectro claramente compreende variações de grau de rigor com que a Corte avaliará classificações particulares, dependendo, eu creio, da importância constitucional e social do interesse afetado [...].”[187] Movimentando-se nesse sentido, a Corte já admitiu em alguns casos que utiliza critérios cujo rigor se situa entre os dois extremos. Em Craig v. Boren decidiu-se que “classifications by gender must serve important governmental objectives and must be substantially related to achievement of those objectives”[188], criando um grau intermediário, que não exige mais um compelling public interest nem uma relação de necessidade entre meios e fins. Passa-se a exigir apenas um interesse público relevante (e não compelling) e uma relação substancial (e não necessária) entre meios e fins.

Vemos, assim, que o que marca a Corte Burger, tanto no tratamento do devido processo como da equal protection, não é uma tendência de enrijecer os critérios de aplicação dessas cláusulas, mas de ampliar os seus campos de aplicação. Foi o que aconteceu com o devido processo legal, que foi reconhecido como uma garantia de vários direitos constitucionais não escritos, como o direito à privacidade — elevado ao extremo em Roe v. Wade. Foi também o caso da equal protection, que teve seu âmbito de aplicação alargado. Um dos casos limite da aplicação dessa teoria foi Plyler v. Doe[189], no qual a Corte julgou inconstitucional uma lei do Texas que vedava aos filhos de imigrantes ilegais o acesso às escolas públicas. O fundamento da decisão foi que, embora o grupo dos imigrantes ilegais não configurasse propriamente uma suspect class e o direito à educação não fosse um direito fundamental garantido pela constituição, a educação também não era um simples benefício governamental. Assim, a Corte entendeu que impossibilitar o acesso ao sistema de ensino teria conseqüências tão graves que seria impossível conciliá-los com o princípio da equal protection. Com isso, a Suprema Corte reconheceu que, além dos direitos fundamentais expressamente previstos na constituição, a equal protection serve como garantia de direitos constitucionais não escritos mas que deveriam ser garantidos a toda a população — e cuja violação pode dar ensejo a um strict scrutiny.

Equal protection continues to be in flux. Clearly, it has come a long way from being the ‘last resort of constitutional arguments’; instead, it is a prolific source of modern constitutional litigation. The Warren Court created a relatively clear, if not always well explained and justified, two-tiered approach. The gropings for new formulations by all wings of the post-Warren Court made for less clear doctrine: two tiered analyses were not formally abandoned, but the intensity of review under the lower tier was occasionally sharpened, and varieties of intermediate levels of scrutiny surfaced. At the end of the 1970s, the Court seemed to be retreating toward great deference for most varieties of economic and social legislation [...], yet with the 1980s and 1990s, there remained ample bases for the widespread charge that the modern Court exercise of equal protection review has been erratic.[190]

E é nesse ponto que se encontra a atual discussão norte-americana sobre a equal protection. Um gradual abandono da doutrina clara — mas que dá margem a uma prática inconsistente — que utilizava apenas duas distinções radicalmente opostas e a busca, por diversas frentes, de uma teoria que ofereça melhores resultados práticos — mesmo que às custas da sua coerência interna. Todavia, a postura de self-restraint dominante na atual composição da Suprema Corte não traz qualquer indício de que o ativismo judicial das Cortes Warren e Burger será retomado, ao menos a curto prazo[191].

D - Equal protection v. Due process of law

No início dos anos 60, Herman Pritchett afirmou que enquanto o devido processo exigia standards mínimos que deveriam ser observados, a equal protection insistiria apenas em que esses standards fossem aplicados de maneira uniforme, sem discriminação.[192] Todavia, recusamos uma distinção absoluta como essa, por não nos parecer possível estabelecer limites precisos entre a equal protection e o devido processo legal, pois esses dois conceitos se superpõem — ao menos parcialmente. A Corte Warren afirmou, em Bolling v. Sharpe[193] :

The concepts of equal protection and due process, both stemming from our American ideal of fairness, are not mutually exclusive. The “equal protection of the laws” is a more explicit safeguard of prohibited unfairness than “due process of law”, and, therefore, we do not imply that the two are always interchangeable phrases. But, as this court has recognized, discrimination may be so unjustifiable as to be violative of due process.[194]

Todavia, cremos que é possível avançar ainda mais nessa crítica. A partir das descrições que fizemos do devido processo legal e da equal protection, podemos perceber alternância dos critérios preferenciais de defesa dos direitos individuais pela Suprema Corte. Até o final do século passado, o principal argumento na defesa dos direitos individuais contra a intervenção estatal era a cláusula dos privilégios e imunidades. Todavia, no julgamento dos Slaughterhouse Cases, a Corte conferiu uma interpretação tão restritiva a essa disposição que não encontramos nenhuma tentativa posterior de desenvolvimento jurisprudencial nesse sentido. Ainda nesse caso, o voto dissidente de Bradley anteviu as duas grandes possibilidades que se abriam à Corte naquele momento: o desenvolvimento do devido processo legal e da equal protection.

Em um primeiro momento, a Corte optou por utilizar o due process como principal instrumento de intervenção judicial, especialmente na avaliação da legitimidade dos fins eleitos pelos legisladores. Essa opção pelo due process, contudo, tornou-se inviável no início dos anos 40 por causa da rejeição da jurisprudência da Era Lochner sobre o substantive due process — argumento que ocupou uma posição secundária até a sua retomada pela Corte Burger, já na década de 70. Durante esses trinta anos, a Corte utilizou preferencialmente o argumento da equal protection — tendo também operado desenvolvimentos em outras previsões constitucionais, como a cláusula comercial [commerce clause]. Desde a Corte Burger, não se pode observar uma preponderância absoluta por parte de um desses argumentos — ambos tendo conservado parte dos desenvolvimentos que foram operados nos primeiros três quartos do século.

Esse histórico simplificado é suficiente para mostrar que não se pode buscar definir um conteúdo imutável para as garantias constitucionais. Não há alguma coisa como o verdadeiro significado da equal protection ou do devido processo legal. O conteúdo que é reconhecido às garantias constitucionais precisa obedecer alguns limites, mas o contexto social e político tem uma grande influência sobre as escolhas da Corte quanto aos argumentos jurídicos mais adequados a fornecer soluções aceitáveis. A linha que divide os campos de aplicação desses dois institutos é historicamente mutável e, mesmo em um momento definido, bastante fluida. Em momentos de indefinição, podemos mesmo identificar que ambos os argumentos são levantados pelos cidadãos que apelam à Corte: isso aconteceu tanto nos Slaughterhouse Cases como em Brown v. Board of Education, por exemplo.

Essa indefinição ocorre porque, em seu conteúdo substantivo, ambos exigem uma adequação entre meios e fins, bem como a legitimidade das finalidades eleitas pelo legislador. Na Era Lochner, o devido processo legal obscureceu a equal protection porque os critérios de razoabilidade que lhe eram reconhecidos pela Corte eram muito mais rígidos — portanto, era muito mais fácil que as partes tivessem sucesso em um processo quando seus argumentos fossem calcados nessa cláusula. Com a retração do devido processo, os critérios oferecidos pela equal protection tornaram-se o instrumento mais poderoso de controle da legitimidade dos atos estatais — e daí o seu florescimento na Corte Warren. Todavia, os excessos cometidos nesse período levaram a uma limitação dos critérios da equal protection, que terminaram por equilibrá-los em relação ao devido processo.

A partir de então, a escolha sobre que argumento utilizar ao fundamentar um pedido de controle de constitucionalidade depende de critérios mais flexíveis — pois a aplicação de ambos os institutos tenderia a conduzir a resultados muito semelhantes. Eleva-se, nesse momento, a importância do critério histórico — que nunca desapareceu, mas que era obliterado pela diferença dos prováveis resultados da utilização de cada um desses institutos, seja na Era Lochner ou na Corte Warren.

Nas questões relativas a procedimentos, mesmo quando necessária uma avaliação substantiva, o devido processo legal normalmente é o argumento utilizado. Por seu lado, devido à própria origem histórica da cláusula da equal protection, a sua aplicação sempre foi preferida quando se trata de arbitrariedades ligadas a discriminações em desfavor dos negros. No caso Norris v. Alabama[195], que envolvia ambos os problemas — a falta de representatividade da comunidade negra na composição dos júris —, a Corte preferiu utilizar a equal protection. Clarence Norris foi condenado, juntamente com oito rapazes negros, por um estupro que ocorreu no condado de Jackson, Alabama, no início da década de 30. Esses julgamentos foram anulados pela Suprema Corte com base no due process of law, pelo fato de não ter sido garantido o direito de defesa dos réus. Os casos foram julgados novamente — dessa vez no condado de Morgan, Alabama — e Norris foi condenado à morte. Essa decisão foi impugnada, sob o argumento de que as pessoas da raça negra eram excluídas do serviço de jurado de uma forma continuada, sistemática e arbitrária. A Corte julgou o caso da seguinte forma:

The population of Morgan County, where the trial was had [...] in 1930 was 46,176, and of this number 8.311 were negroes. Within the memory of witnesses, long resident there, no negro had ever served on a jury in that county or had been called for such service. Some of these witnesses were over fifty years of age and had always lived in Morgan County. Their testimony was not contradicted. A clerk of the circuit court, who had resided in the county for thirty years, and who had been in office for over four years, testified that during his official term approximately 2.500 persons had been called for jury service and that not one of them was a negro; that he did not recall “ever seeing any single person of the colored race serve o any jury in Morgan County. There was abundant evidence that there were a large number of negroes in the county who were qualified for jury service. [...]

The evidence that for many years no negro had been called for jury service itself tended to show the absence of the names of negroes from the jury rolls, and the State made no effort to prove their presence [...] That showing as to the long-continued exclusion of negroes from jury service, and as to the many negroes qualified for that service, could not be met by mere generalities. If, in the presence of such testimony as defendant adduced, the mere general assertions by officials of their performance of duty were to be accepted as an adequate justification for the complete exclusion of negroes from jury service, the constitutional provision — adopted with special reference to their protection — would be but a vain and illusory requirement.[196]

Na busca de se aproveitar do precedente estabelecido nesse caso, outros questionamentos sobre a composição dos júris foram feitos com base nos critérios de igualdade — o que contribuiu para ampliar o âmbito de aplicação da equal protection, mesmo dentro de questões que envolvem procedimentos judiciais.

The equal protection clause has tended to be ignored in favor of the due process clause in reviewing state criminal proceedings, except in cases challenging the composition of the juries. A recent case, however, suggests that equal protection may achieve wider scope. Some states, Illinois among them, require payment for a transcript of the trial record, without which a full review by the appellate court was impossible. In Griffin v. Illinois, 351 US 12 (1956), the Court held that where appeals were generally available, p3verty should not disqualify a defendant form obtaining a transcript necessary for review. An extreme extension of this principle of equality would, of course, produce major changes in state systems of criminal justice.[197]

Em geral, o argumento da equal protection é preferido nos casos em que a arbitrariedade é fruto de alguma espécie de preconceito contra uma classe de pessoas: negros, mulheres, hispânicos, pobres etc. Mas essa é uma questão muito subjetiva, e em casos de fronteira a escolha somente não será dramática porque os resultados a que conduzem são muito próximos. Como exemplo, podemos citar a delicada questão das discriminações contra o pobres. Por outro lado, encontramos defesas veementes da abolição de qualquer discriminação baseada no patrimônio, como a afirmação do Justice Jackson em Edwards v. California[198]:

We should say now, and in no uncertain terms that a man’s mere property status, without more, cannot be used by a state to test, qualify, or limit his rights as a citizen of the United States. [...] The mere state of being without funds is a neutral fact — constitutionally an irrelevance, like race, creed, or color. [199]

Em sentido contrário, podemos citar o posicionamento do Justice Harlan em Boddie v. Connecticut[200], onde se discute a possibilidade de cobrança de taxas judiciárias para o processo de divórcio. O posicionamento da Corte foi que:

[G]iven the basic position of the marriage relationship in this society’s hierarchy of values and the concomitant state monopolization of the means for legally dissolving this relationship, due process does prohibit a state from denying, solely because of inability to pay, access to its courts to individuals who seek judicial dissolution of their marriages.[201]

Nesse caso, a Corte tanto poderia ter optado por afirmar que as pessoas mais pobres tinham a sua liberdade limitada sem o devido processo legal quanto que os sacrifícios impostos aos mais pobres violavam a equal protection clause. Entretanto, Justice Harlan sempre preferiu extrair a proteção constitucional aos pobres do devido processo. O problema que aponta na utilização da equal protection é que não há um princípio objetivo que possibilite distingir o acesso à justiça, a universidades públicas ou a uma mera licença para pesca. Com isso, se a Corte admite que discriminações contra a classe dos pobres é vedada pela equal protection, haveria riscos de que as suas decisões fossem inconsistentes. A utilização do devido processo, por outro lado, seria mais adequada para a avaliação dos problemas particulares de cada caso — o que permitiria manter a distribuição geral de renda intacta, corrigindo apenas as injustiças mais severas. A argumentação de Harlan é baseada em argumentos estratégicos, promovendo uma fundamentação externa, mas sem nada contribuir para uma fundamentação interna (dogmática). Trata-se de uma escolha jurídica fundamental, que justamente por isso, é fundada em valores meta-jurídicos — valores extremamente importantes para o Direito, mas que não se deixam circunscrever por uma argumentação dogmática.

Além disso, podemos identificar exemplos em que não há problemas de preconceito. Em Morey v. Doud[202], por exemplo, a Corte declarou inconstitucional uma lei que estabelecia tratamento diferenciado para a American Express Company, sob o argumento de que era irracional a concessão de privilégios para uma empresa particular e não para uma categoria genérica. Quando a Corte reconheceu que o meio empregado era irracional, poderia ter enquadrado o caso tanto no devido processo como na equal protection — visto que ambos encerram um controle de razoabilidade.

Por fim, temos um exemplo em que fica clara a íntima relação entre due process e equal protection. O caso mais célebre da aplicação da regra de isonomia foi Brown v. Board of Education, que marcou o fim da tolerância estatal frente a discriminações contra os negros, com a declaração da inconstitucionalidade da manutenção pelo Estado de escolas diferentes para brancos e negros. Todavia, a equal protection ingressou na Constituição por meio da 14a Emenda, que cria obrigações apenas para os estados — e não para a federação. Criou-se, assim, uma grande dificuldade dogmática: como tratar o caso do Distrito de Columbia — o correspondente norte-americano do nosso Distrito Federal — onde a jurisdição é federal? Convém lembrar que, no julgamento de Brown v. Board of Education, a Corte absteve-se de examinar o problema sob o enfoque do due process of law. Mas, em Bolling v. Sharpe[203], que tratou do caso do Distrito de Columbia, como não se podia exigir dos Estados Unidos a observância da equal protection, a Corte optou pela seguinte justificativa:

The concepts of equal protection and due process, both stemming from our American ideal of fairness, are not mutually exclusive. The “equal protection of the laws” is a more explicit safeguard of prohibited unfairness than “due process of law”, and, therefore, we do not imply that the two are always interchangeable phrases. But, as this Court has recognized, discrimination may be so unjustifiable as to be violative of due process. Classifications based solely upon race must be scrutinized with particular care, since they are contrary to our traditions and hence constitutionally suspect.[204].

Com base nesse argumento, a Corte deixou claro que a segregação nas escolas era inconstitucional tanto com base na equal protection como no due processo of law. Segundo Lawrence Tribe, esse não foi um caso isolado:

The due process clause held to yield norms of equal treatment indistinguishable from those of the equal protection clause. Although most of this chapter is couched in terms of the equal protection clause of the fourteenth amendment, it is worth stressing that no single clause or provision is the exclusive fount of doctrine in this area, and that principles of equal treatment have emerged in ways fairly independent of particular constitutional phrases.[205]

Com tudo isso, não queremos demonstrar que a equal protection pode ser reduzida ao due process — o que seria claramente falso. Mesmo que construíssemos um quadro teórico em que tratássemos a equal protection como um caso especial de due process, tratar-se-ia apenas de uma proposição teórica em desacordo com os fatos e a jurisprudência. Mas deixemos para discutir esse ponto após uma ligeira exposição da teoria alemã da proporcionalidade.

Capítulo III - O princípio da proporcionalidade no Tribunal Constitucional Federal alemão

Descreveremos, neste ponto, o instituto que a Jurisprudência alemã chama de princípio da proporcionalidade [Verhältnismässigkeit] ou princípio da proibição do excesso [Übermassverbot][206]. No capítulo anterior, vimos que o due process of law é um controle que se processa em duas frentes: controle da legitimidade das finalidades eleitas pelos agentes do Estado e controle de adequação racional entre os meios instituídos pela norma e aqueles objetivos de interesse público. Vimos também que isso acontece, em grande parte, porque o devido processo é a ponte que possibilita submeter os governos estaduais às imposições do Bill of Rights[207]. Na Alemanha, assim como no Brasil, o controle de legitimidade é feito de maneira direta, por meio de um cotejo imediato das finalidades do ato estatal frente aos princípios constitucionais. Quando as conseqüências jurídicas desse ato aparentemente violam um princípio fundamental da constituição, identificamos uma colisão de direitos — que não pode ser resolvida pela mera exclusão de um dos pólos, mas exige uma ponderação dos interesses em jogo.

Para explicar essa situação é bastante adequado o conceito de direito prima facie. Os direitos são prima facie, e não definitivos, na medida em que a sua definição depende da ponderação subjetiva face a determinadas circunstâncias. O domínio normativo de um direito é sempre potencial, sendo necessário avaliar algumas circunstâncias concretas para que se delimite o seu domínio atual[208]. Assim, quando existe um conflito entre direitos ou princípios, é necessária uma ponderação de valores, observadas as circunstâncias do caso concreto, para avaliar a razoabilidade das diversas possibilidades de interação entre esses. Sobre as dificuldades inerentes a essa operação, afirmou Canotilho:

Como se deduz das considerações do texto, as normas dos direitos fundamentais são entendidas como exigências ou imperativos de optimização que devem ser realizadas, na melhor medida possível, de acordo com o contexto jurídico e respectiva situação fáctica. Não existe, porém, um padrão ou critério de soluções de conflitos de direitos válido em termos gerais e abstractos. A “ponderação” e/ou harmonização no caso concreto é, apesar da perigosa vizinhança de posições decisionistas (F. Müller), uma necessidade ineliminável. Isto não invalida a utilidade de critérios metódicos abstractos que orientem, precisamente, a tarefa da ponderação e/ou harmonização concretas: “princípio da concordância prática”(Hesse); “ideia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes”(Lerche).[209]

A necessidade de resolver colisões de direitos não é nova, tampouco a idéia de que a solução adequada a esses conflitos deve ser proporcional — no sentido de que a solução justa deve respeitar o peso que deve ser reconhecido a cada princípio em um caso concreto. A concepção de que existe uma íntima relação entre justiça e proporcionalidade remonta, ao menos, à antigüidade grega e encontra uma expressão clara na Ética a Nicômacos de Aristóteles, quando ele afirma sobre a justiça em sentido estrito: “o justo, nesta acepção, é portanto o proporcional, e o injusto é o que viola a proporcionalidade”[210]. Nesse campo, o que há de novo é a tentativa de estabelecer critérios de avaliação que orientem o juiz na dificílima tarefa de identificar, no caso concreto, o que é proporcional ou desproporcional. Chega a ser trivial a afirmação de que proporcional é a decisão que respeite ao máximo os valores em jogo e que busque equilibrá-los da melhor forma possível. A grande dificuldade não está na descrição teórica do problema, mas na elaboração de uma metodologia adequada para a sua aplicação prática: e é esse o papel que o princípio da proporcionalidade busca desempenhar. Na elaboração desse instituto, uma função muito importante foi desenvolvida pelo Tribunal Constitucional Federal, na medida em que tal princípio foi construído paulatinamente pela jurisprudência desta Corte e foi nela que se consolidou a sua conformação atual.

Embora o objeto mais característico do princípio da proporcionalidade sejam as leis restritivas de direito, esse modelo não se aplica apenas a elas. Trata-se de uma teoria cuja grande virtude é oferecer um procedimento razoavelmente objetivo e controlável para orientar a busca da justa medida quando há uma colisão de princípios, direitos ou interesses — as quais não podem ser resolvidas pela mera exclusão de um dos pólos. Segundo Canas, “o princípio da proporcionalidade é utilizado para resolver colisões de direitos subjectivos fundamentais e interesses públicos constitucionalmente previstos”[211].

A - Definição do princípio da proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade[212], na sua forma atual, é normalmente descrito pela doutrina alemã como um conjunto de três subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Com base em Pieroth e Schlink[213], Gilmar Ferreira Mendes assim descreve o princípio da proporcionalidade:

A doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade.

Essa nova orientação, que permitiu converter o princípio da reserva legal (Gesetzesvorbehalt) no princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt des verhältnismässigen Gesetzes), pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para consecução dos objetivos pretendidos (Geeignetheit) e a necessidade de sua utilização (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit). Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade ou razoabilidade em sentido estrito).

O pressuposto da adequação (Geeignetheit) exige que as medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos. O requisito da necessidade ou da exigibilidade (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos. Assim, apenas o que é adequado pode ser necessário, mas o que é necessário não pode ser inadequado.[214]

Nesse trecho, mostra-se claramente a distinção entre o controle de legalidade (definição do quadro dentro do qual um ato discricionário, no caso uma restrição a direitos, pode ser válido) e o controle de legitimidade, que tem a ver com a legitimidade das escolhas valorativa dos agentes estatais. É essa mesma diferença que Gilmar Mendes opera com base nos conceitos de princípio da reserva legal e princípio da reserva legal proporcional — não basta definir um campo dentro do qual o agente pode exercer sua discricionariedade, mas é também necessário oferecer critérios para a avaliação da própria decisão discricionária.

Na doutrina alemã, três foram os critérios que se consolidaram: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A terminologia utilizada para se referir a esses elementos que compõem o princípio da proporcionalidade é variável. No trecho acima, Gilmar Mendes chama esses critérios de pressupostos ou requisitos. Como veremos a seguir, Alexy os chamará de máximas. Já Canotilho se refere a eles como subprincípios constitutivos. Embora sejam diversas as terminologias, há um consenso entre esses autores em admitir que o princípio da proporcionalidade é formado pela combinação dos três elementos citados. Analisemos, pois, cada um deles em particular.

1. Elementos do princípio da proporcionalidade

a) Adequação

O primeiro subprincípio estabelece a exigência da conformidade ou adequação entre meios e fins, segundo a qual o ato deve ser apropriado para a realização das finalidades a ele subjacentes. Como exemplo para ilustrar esse elemento, podemos citar o célebre Caso das Farmácias, julgado pelo Tribunal Constitucional Federal em 1958[215]. Tratava-se de uma lei da Bavária que restringia o número de farmácias em uma comunidade, condicionando a concessão de licenças para a abertura de novas farmácias à demonstração de que elas seriam comercialmente viáveis e que não causariam problemas econômicos para os competidores da região. Essa lei foi invocada em 1955, para impedir que um farmacêutico recentemente imigrado da Alemanha Oriental pudesse estabelecer seu negócio. Tendo o seu pedido de licença negado pela administração local, o farmacêutico dirigiu ao BVerfG uma reclamação constitucional[216], argüindo a inconstitucionalidade da lei em que ela se baseava, pois ela feria o direito constitucional de livre iniciativa.[217] No acórdão que decidiu o caso, o Tribunal afirmou:

The choice of an occupation is an act of self-determination, of the free will of the individual; it must be protected as much as possible from state encroachment. In practicing an occupation, however, the individual immediately affects the life of society; this aspect of [vocational activity] is subject to regulation in the interest of others and of society.

The legislature is thus empowered to make regulations affecting either the choice or the practice of a profession. The more a regulatory power is directed to the choice of a profession, the narrower are its limits; the more it is directed to the practice of a profession, the broader are its limits [...]

The general principles governing the regulation of vocational activity may be summarized as follows: the practice of an occupation may be restricted by reasonable regulations predicated on considerations of the common good. The freedom to choose an occupation, however, may be restricted only for the sake of a compelling public interest; that is, if, after careful deliberation, the legislature determines that a common interest must be protected, then it may impose restrictions in order to protect that interest — but only to the extent that the protection cannot be accomplished by a lesser restriction on freedom of choice. In the event that an encroachment on freedom of occupational choice is unavoidable, lawmakers must always employ the regulative means least restrictive of the basic right.

A graduated scale of possible restrictions governs the legislature’s authority to regulate vocational activity. Lawmakers are freest when they regulate the practice of an occupation. In regulating such practice, they may broadly consider calculations of utility. Lawmakers may impose limitations on the right to practice a profession so as to prevent detriment and danger to the general public; they may also do so to promote an occupation for the purpose of achieving greater total performance within society. Here the Constitution protects the individual only against excessively onerous and unreasonable encroachments. Apart from these exceptions, such restrictions on the freedom of occupation do not greatly affect the citizen since he already has an occupation and [the statutory restrictions] leave the right to exercise an occupation inviolate.

On the other hand, if [the legislature] conditions the right to take up an occupational activity on the fulfillment of certain requirements, thus impinging on the choice of an occupation, then regulations for the public good are legitimate only when such action is absolutely necessary to protect particularly important community interests; in all such cases the restrictive measures selected must entail the least possible interference. But the nature of a regulation prescribing conditions for admission to a profession depends on whether the legislation deals with individual conditions, such as those of educational background and training, or with objective conditions irrelevant to one’s personal qualifications and over which one exercises no control.[218]

The regulation of individual (subjective) conditions [for admission to an occupation] is a legitimate exercise of legislative authority. Only those applicants possessing the proper qualifications, determined in accordance with preestablished formal criteria, will be admitted to a trade or profession. Many occupations require knowledge and skills that can be acquired only through theoretical and practical schooling. Without such preparation the practice of such occupations would be impossible or deficient and perhaps even dangerous to the general public. [...] Thus the limits on freedom of choice here are needed to safeguard the public against certain liabilities and hazards. Such limits are reasonable because applicants for various professions know well in advance of their choice whether or not they have the proper qualifications. The principle of proportionality governs here; any requirements laid down must bear a reasonable relationship to the end pursued [i.e., the safe and orderly practice of a profession].

The situation is different, however, when the state proceeds to control the objective conditions of admission. Here the matter is simply out of the individual’s hand. Such restrictions contradict the spirit and purpose of the basic right because even one whom the state has permitted to make his choice by meeting the requirements of admission may nevertheless be barred from an occupation. [...]

Public health is doubtless an important community interest [whose] protection may justify encroachments on the freedom of the individual. Additionally, there is no doubt that an orderly supply of drugs is crucial for the protection of public health. “Orderly” in this context means that needed drugs will be available to the general public and that their distribution will also be controlled. [...] The Bavarian legislature presumably had these objectives in mind, but between the lines of the legislation we can also discern the political aims of a pharmacy profession at work to protect it’s [narrow] interests and the traditional concept of the “apothecary”.

The decisive question before us is whether the absence of this restriction on the establishment of new pharmacies would [...] in all probability disrupt the orderly supply of drugs in such a way as to endanger public health.

We are not convinced that this danger is impending.[219] [grifos nossos]

Percebe-se, dessa forma, que a lei que restringia a possibilidade de estabelecimento de novas farmácias foi considerada inconstitucional porque a restrição que ela impunha no direito fundamental da livre iniciativa não era adequada à garantia do interesse público ligado ao caso — a defesa da saúde pública.

b) Necessidade

O segundo subprincípio é o da exigibilidade ou necessidade, que traduz o direito do cidadão à menor restrição possível ao seu direito. Esse critério foi primeiramente distinguido pelo BVerfG no Caso das Farmácias, já tratado no ponto anterior, quando se afirmou que, “if, after careful deliberation, the legislature determines that a common interest must be protected, then it may impose restrictions in order to protect that interest — but only to the extent that the protection cannot be accomplished by a lesser restriction on freedom of choice.”[220]. E, logo em seguida, o Tribunal afirma que “regulations for the public good are legitimate only when such action is absolutely necessary to protect particularly important community interests”[221].

Como exemplo da sua aplicação podemos citar o Caso dos Confeitos de Chocolate[222] [Chocolate Candy Case], no qual se discute a constitucionalidade da lei que proibiu a fabricação de doces que podiam ser confundidos com confeitos chocolate. O objetivo da lei era evitar que os consumidores se enganassem pela aparência ou pela embalagem e comprassem um produto diverso do que eles desejavam. Essa lei foi invocada com sucesso contra um produtor que fazia doces de flocos de arroz [puffed rice] cobertos com chocolate.[223] O Tribunal resolveu o caso utilizando os seguintes argumentos:

Statutes like those involved here are designed to protect the consumer from confusion when purchasing food and from threats to his health [...] Section 14 (2) of the Chocolate Products Act is designed to protect the consumer from deception. This protection is undoubtedly in the public interest and justifies restrictions on the practice of a trade.

To achieve this purpose the legislature has not only required proper labeling but also prohibited the sale of the product. Prohibiting [the sale of a product], however, is one of the most drastic means imaginable of protecting the consumer form confusion and deceptive trade practices. [The regulator] can ordinarily avert these threats to the public interest just as effectively and efficiently by mandating proper labeling.

In the instant case [...] no justifiable grounds exist for [imposing] a broader restriction than is needed to safeguard the consumer from false labeling. Thus, [the regulation] should take only [those] measures which are necessary for the protection of the consumer. To accomplish this end, it would have been enough to require proper labeling.[224]

Percebemos que, nesse caso, o BVerfG declarou a inconstitucionalidade da disposição impugnada a partir do seguinte raciocínio: se era claramente possível que as finalidades da norma fossem alcançadas por um meio menos gravoso, o legislador não tem a possibilidade de escolher um que implique maior restrição à liberdade dos cidadãos. Podemos, então, descrever o critério da necessidade como a exigência de que, entre as diversas soluções possíveis — de acordo com o critério da adequação — o Estado tem o dever de escolher aquela que traga menor desvantagem para os titulares dos direitos atingidos. Como bem observa Canotilho, esse princípio normalmente não coloca em questão a necessidade de se adotar alguma medida para a efetivação do interesse público (necessidade absoluta), mas a necessidade relativa, ou seja, se era possível adotar outro meio eficaz embora menos gravoso. A diferença entre os critérios de adequação e necessidade foi bem definida pelo BVerfG quando, em um caso sobre armazenagem de petróleo julgado em 1971, afirmou que:

O meio empregado pelo legislador deve ser adequado e necessário para alcançar o objetivo procurado. O meio é adequado quando com seu auxílio se pode alcançar o resultado desejado; é necessário quando o legislador não poderia ter escolhido um outro meio, igualmente eficiente, mas que não limitasse ou limitasse de maneira menos sensível o direito fundamental.[225]

c) Proporcionalidade em sentido estrito

O terceiro subprincípio é o da justa medida ou da proporcionalidade em sentido estrito. Como exemplo da utilização jurisprudencial desse critério, podemos citar o Caso Lebach[226]. Lebach participou de um assalto a um quartel das forças armadas alemãs, no qual vários dos soldados que estavam de guarda foram mortos ou feridos. Por esse crime, ele foi condenado a 6 anos de prisão, em um julgamento que atraiu bastante a opinião pública. Alguns anos depois, às vésperas da sua liberação, uma rede de televisão planejou gravar um documentário baseado no crime. O programa usaria a fotografia de Lebach, seu nome e faria referência a sua tendências homossexuais. Sabendo disso, Lebach tentou impedir judicialmente a transmissão do programa, mas a decisão do Tribunal de Apelação de Koblenz não lhe foi favorável. Recorreu, então, ao Tribunal Constitucional Federal que resolveu a questão utilizando os seguintes argumentos:

A televised broadcast of the kind at issue concerning the origin, execution, and detection of a crime which mentions the name of the criminal and contains a representation of his likeness necessarily touches the area of his fundamental rights guaranteed by Article 2 (1) in conjunction with Article 1 (I) of the Basic Law. The rights to the free development of one’s personality and human dignity secure for everyone an autonomous sphere in which to shape one’s private live by developing and protecting one’s individuality. This includes the right to remain alone, to be oneself within this sphere, and to exclude the intrusion of or the inspection by others. It also encompasses the right to one’s own likeness and utterances, especially the right to decide what to do with pictures of oneself. In principle, everyone has the right to determine for himself whether and to what extent others may make public an account of either certain incidents from his life or his entire life story. [...]

In resolving the conflict [between freedom to broadcast and the right of personality, one] must remember that [...] both constitutional concerns are essential aspects of the free democratic order of the Basic Law, the result being that neither can claim precedence in principle. [...] In case of conflict [the court] must adjust both constitutional values, if possible; if this cannot be achieved, [the court] must determine which interest will defer to the other in the light of the nature of the case and [its] special circumstances. In doing so, the [court] must consider both constitutional values in their relation to human dignity as the nucleus of the Constitution’s value system. Accordingly, the freedom to broadcast may have the effect of restricting claims based on the right to personality; however, any damage to “personality” resulting from a public broadcast may not be disproportionate to the significance of the publication to free communication. [...] [The court must also consider] the extent to which the [legitimate] interest served by the broadcast can be satisfied without such a far-reaching invasion of the intimate sphere [...]

In balancing these interests, [...] the public interest in receiving information must generally prevail when current crimes are being reported. If someone breaches the peace by attacking or injuring fellow citizens or the legally protected interests of the community, he must not only suffer the criminal punishment provided by the law; he must also accept, as a matter of principle, that in a community committed to freedom of communication the public has an interest in receiving information through normal channels about a [criminal] act he himself caused.

However, the interest in receiving information is not absolute. The central importance of the right to personality requires not only vigilance on behalf of the inviolable, innermost personal sphere [of the accused] but also a strict regard for the principle of proportionality. The invasion of the personal sphere is limited to the need to satisfy adequately the [public’s] interest in receiving information, while the harm inflicted upon the accused must be proportional to the seriousness of the offense or to it’s importance otherwise for the public. Consequently, it is not always permissible to disclose the name, release a picture, or use some other means of identifying the perpetrator. [...] In any case, a televised report concerning a serious crime that is no longer justified by the public’s interest in receiving information about current events may not be rebroadcast if it endangers the social rehabilitation of the criminal. The criminal’s vital interest in being reintegrated into society and the interest of the community in restoring him to his social position must generally have precedence over the public’s interest in a further discussion of the crime.[227] [grifos nossos]

Se já é complexa a aplicação desse critério a atos que, prima facie, violam direitos fundamentais, a sua aplicação a atos normativos apresenta ainda mais dificuldades. Vejamos, por exemplo, o julgamento do Caso das Universidades, no qual se discutiu a possibilidade da participação de estudantes e funcionários na composição dos órgãos colegiados das universidades. Na Baixa Saxônia, uma lei estadual estabeleceu que o conselho universitário das grandes instituições seria composto por 24 professores titulares, 24 professores assistentes, 24 estudantes e 16 funcionários administrativos e que os outros órgãos colegiados teriam composição semelhante. Quase 400 professores titulares, além da associação de reitores, ofereceram reclamações constitucionais à Corte, sustentando que essas regras violavam a liberdade de pesquisa e ensino garantida pelo artigo 5, (3) da Lei Fundamental[228] e que a inclusão de pessoal não qualificado ameaçava a qualidade da educação. O BVerfG assim se posicionou:

The right contained in the article 5 (3) to engage freely in scholarly activity is a right that the state is bound to respect [...] Everyone engaged in science, research and teaching [...] enjoys a defensive right against every state encroachment upon the discovery and dissemination of knowledge [...]

The fundamental rights provisions of the Basic Law also incorporate an objective order of values. [...] Article 5 (3) contains one such value decision. Its key function is to guarantee free scholarly activity both in the interest of the individual scholar’s self-realization and for the benefit of the entire society. [...] The state is therefore obliged as a civilized nation to defend a system of free scholarly inquiry and to affirmatively provide for an institutional framework in which such inquiry can be carried out [...]

This does not mean, however, that academic freedom can be achieved only at German universities of a traditional nature or that [the Constitution] prescribes how scholarly activity in universities is to be organized. The legislature has the discretion, within certain limits, to organize universities in conformity with today’s social and sociological realities. [...]

Thus, in the area of university organization, the legislature enjoys considerable leeway in shaping university policy. This discretion, however, is driven and limited by the right to freedom secured by Article 5 (3) and the value judgment contained therein. [...]

[T]o allow all members of the university to say [in its affairs] does not necessarily lead to procedures or policies in opposition to freedom of research and teaching. Such a system may serve as a [proper] instrument for the resolution of group conflict in the university and also as a means for mobilizing the expertise of individual groups for the purpose of reaching better decisions in the administration of the university. Whether this system is the most useful form of university organization is not a matter for the Federal Constitutional Court to decide.

The right of academic assistants to a voice in [university] affairs needs no further justification; they are as much entitled to the rights secured by Article 5 (3) with reference to their research activities as university professors. Whether students are constitutionally entitled to participate in academic self-governance need not to be decided here. There is, however, no constitutional objection to their having a say in academic administration so long as and to the extent that they are participating in research and teaching. Even though only a relatively small percentage of students may reach a level of active participation in the research process, study at a university is itself nevertheless understood to include such participation. [...]

Neither does the involvement of nonacademic staff in university self-governance conflict basically with the constitutional pledge of academic freedom. [...] This group includes experts whose practical experience can be particularly beneficial in the administrative area of universities. Academic activity at universities is coming to depend on these experts in increasing measure. They create the technical and administrative conditions which make teaching and research possible and carry corresponding responsibility. [...]

University professors, however, enjoy a special position in research and teaching. [...] By virtue of their office and commitment they bear a particular heavy responsibility for the smooth running and academic status of the university. [...] In view of the current structure of the university they hold a key position in academic life. [...]

The state is obliged to keep this special position [of the professorate] in mind when it shapes the organization of academic administration. [...] The legislature is thus required to confer on the professorate [that degree of authority and responsibility necessary] to fulfill their scholarly mission in light of the function of the university. It must ensure an organizational framework that does not allow [...] others groups to hinder or interfere with their free scholarly activity. [...]

Given all of these considerations, [we] cannot deduce that the representatives of university teachers are constitutionally entitled to a “clear majority” on university governing boards. In view of the aforementioned constitutional considerations, [we] see no justification for this limitation of the legislature’s creative freedom. [...] Professors, students, and staff are all entitled to representation in university governance proportionate to the importance of their respective roles within the university. [...]

[Teaching] Where teaching is concerned, it is not only the university teachers who fulfill essential functions but also teaching and research assistants. Granted, their participation in discharging tasks in the modern mass university is not always the same when compared on divisional, departmental, and sectional levels, but their share is nevertheless quantitatively significant and qualitatively important. When dealing with decisions directly affecting teaching, they posses the kind of factual knowledge and interest that readily justifies their rights to codetermination.

Teaching matters also directly affect the interests of students. Moreover, appropriate decisions can often be reached only if the experiences and arguments of both teachers and learners are taken into consideration and settled. There are [thus] no constitutional objections to the participation of student representatives when deciding such issues.

However, the unrestricted participation of nonresearch and nonteaching administrative personnel in decisions pertaining to teaching cannot be justified by any of the aforementioned considerations (i.e., qualifications, functions, responsibilities, and involvement).

The legislature must guarantee within this framework university teachers retain the degree of influence corresponding to their position in the area of teaching.

[Research] One must employ stricter criteria when determining the extent of codetermination by various groups in matters pertaining directly to research. Research decisions presuppose the ability to assess the current status of research in a given field and the urgency of an individual research project in the light of social needs, as well as to understand clearly the technical, financial, and personnel possibilities in individual areas of research. The responsibility which issues from such decision becomes particularly clear when large amounts of money are needed for expensive special facilities required by modern research, or when research facilities are established or expanded. Research assistants cannot be denied the right to cooperate with specialists in making such decisions. As a rule, nonresearch personnel do not possess such qualifications. Neither will the large majority of students posses de qualifications necessary for participation in research decisions. Yet, based on their level of education and qualifications, one cannot completely rule out the fact that students contribute to some extent to these decisions. In view of these circumstances there are therefore no constitutional objections against allowing students a certain degree of codetermination, particularly because decisions affecting research may also have an eventual effect on teaching. Yet the value judgment of the Article 5 (3) in conjunction with Article 3 (1) of the Basic Law demands that university teachers retain the privilege of having a decisive influence in decisions pertaining directly research. Because of their qualifications, functions, and responsibilities, university teachers must be able to prevail against other groups in this special area. [229] [grifos nossos]

Mesmo que se trate de uma decisão bastante extensa, julgamos conveniente essa transcrição de boa parte do acórdão por dois motivos. Em primeiro lugar, a decisão transcrita é um bom exemplo do estilo argumentativo do BVerfG. Trata-se de um discurso dogmático, em que a preocupação maior não está em convencer os interlocutores — ou seja, a sociedade — dos méritos da decisão tomada, mas simplesmente em expor a opinião da Corte sobre o assunto. Embora sejam explicitadas as escolhas valorativas do Tribunal, não há uma argumentação desenvolvida no sentido de persuadir o interlocutor de que essas opções são adequadas. Transparece, desse modo, que a validade dessas opções deriva mais da autoridade do BVerfG que da consistência e aceitabilidade social dos argumentos utilizados.

Além disso, trata-se de um exemplo bastante interessante de ativismo judicial. No presente caso, a partir de uma norma que simplesmente garantia a liberdade do ensino e da pesquisa científica (como uma das facetas da liberdade de expressão), a Corte concluiu que o valor da autoridade dos professores titulares tinha status constitucional e que o legislador precisava respeitar essa autoridade. Com base nessa postura — que é uma evidente expressão dos valores dos membros do Tribunal, ainda que se possa defender que tais valores também sejam compartilhados pela sociedade —, a Corte declarou inconstitucional uma lei que estabelecia uma composição razoavelmente paritária entre professores titulares, assistentes de pesquisas, estudantes e funcionários administrativos, por ser essa uma regra que não respeitaria a autoridade dos professores titulares na definição das políticas internas da universidade.

No início da sua argumentação, o Tribunal reconheceu que era adequada e necessária a participação de todos os seguimentos da universidade na administração da instituição. Passou, então, a enfrentar o problema da proporcionalidade em sentido estrito, que envolve ponderações sobre se os benefícios que provavelmente seriam obtidos com a medida merecem uma valoração tão grande que justifique arcar-se com as dificuldades que possivelmente adviriam da nova situação. Trata-se da exigência de uma justa medida entre as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.[230] A Corte concluiu que uma excessiva abertura no tocante à participação de professores adjuntos, estudantes e servidores nos conselhos universitários (meio), ao invés de aumentar a qualidade da instituição (fim presumido), acarretaria uma perda da autoridade dos professores titulares na determinação das políticas universitárias, o que provavelmente levaria a uma queda na qualidade do ensino e da pesquisa (resultado previsto). Assim, o nível de abertura que a Corte considerou constitucional significava, na prática, uma mera permissão para que todos os seguimentos universitários apresentassem seus argumentos, sem que o poder efetivo de tomar as decisões saísse das mãos dos professores titulares — postura essa que indica um grande apego aos valores tradicionais da universidade alemã, em que todas as decisões eram tomadas por esses professores.

O Tribunal decidiu que, nos conselhos universitários ligados ao ensino, a constituição garantia aos professores titulares o direito a um mínimo de 50% dos votos. Já nos conselhos relacionados à pesquisa, a sua influência deveria ser decisiva, o que significa que esses professores teriam direito a uma participação substancialmente maior que 50%, para impedir que os outros grupos pudessem combinar suas forças em oposição à opinião dominante entre os professores titulares. E o mais impressionante é que, segundo o BVerfG, todas essas regras estão implícitas na simples garantia da liberdade de ensino e pesquisa. Embora tenha admitido que o modo tradicional de gestão universitária não era a única forma legítima de organização, o Tribunal terminou por concluir, na prática, que a Lei Fundamental impede uma ruptura desse modelo tradicional. Após uma extensa argumentação sobre a possibilidade de participação dos assistentes de pesquisa, estudantes e funcionários na gestão da universidade, a Corte conclui que essa participação somente é constitucional quando não coloca em risco hegemonia dos professores titulares. E, curiosamente, tomou essa decisão pouco após afirmar que não cabe ao Tribunal Constitucional Federal decidir qual o sistema mais útil de organização universitária.

Nesse caso, a Corte extrai de um comando extremamente geral uma regulamentação muito particular. Não se trata, pois, de uma mera operação dedutiva, mas de uma determinação, pelos julgadores, do sentido da Lei Fundamental. Devemos ressaltar que essa mediação entre o geral e o particular foi feita com base na referência a uma ordem objetiva de valores subjacente à Constituição: o BVerfG não entende a Lei Fundamental apenas como um conjunto de normas, mas considera possível extrair das normas escritas uma ordem hierárquica de valores à qual reconhece força normativa. Assim, um ato estatal pode ser inconstitucional tanto por violar as normas e princípios constitucionais como por violar os valores implícitos nessas normas — e que são identificados pela própria Corte[231].

2. Máxima ou princípio da proporcionalidade

Robert Alexy critica a terminologia princípio da proporcionalidade, chamando atenção para o fato de que esse instituto não é um princípio propriamente dito, mas uma máxima (ou regra). A cultura jurídica alemã, assim como a brasileira, não utiliza o termo princípio de forma unívoca. É usual que chamemos de princípio qualquer norma desde que ela seja ou muito importante ou de aplicação muito geral — e Alexy critica duramente essa tendência a chamar de princípios todas as regras que tenham um alto grau de generalidade. Embora uma distinção precisa entre regras e princípios não faça parte do senso comum dos juristas, tem-se tornado cada vez mais aceita dentro da ciência do direito atual a necessidade de estabelecer um conceito técnico de princípio, sendo duas as teorias mais importantes sobre o tema na atual ciência jurídica: a concepção deontológica de Ronald Dworkin e a concepção axiológica de Robert Alexy.

Ambos concordam que normas devem ser divididas em duas categorias: as regras e os princípios. As primeiras são caracterizadas pelo fato de que não se admite que duas regras atribuam a um mesmo fato conseqüências incompatíveis. Assim, quando duas normas colidem, é necessário afastar a aplicabilidade de uma delas, o que normalmente se faz aplicando-se três critérios clássicos: hierarquia, anterioridade e especialidade — a regra superior derroga a inferior, a regra posterior derroga a anterior, a regra especial prevalece sobre a geral. Ambos concordam que os princípios operam de forma diferente das regras, mas identificam nessa especificidade características diversas. Segundo Dworkin, as regras diferem dos princípios porque somente estes possuem a dimensão do peso. Quando dois ou mais princípios atribuem conseqüências diversas a um mesmo fato, a sua prevalência dependerá do seu peso relativo no caso concreto[232]. Entretanto, isso não faz com que o princípio de menor peso perca sua validade nem sua aplicabilidade a outros casos. Quando o princípio da liberdade de expressão cede frente ao direito de privacidade, isso não significa uma negação da validade do primeiro princípio — apenas uma limitação das suas conseqüências em um caso concreto.

Alexy propõe uma concepção diversa: para ele, os princípios não são normas dotadas de peso, mas mandados de otimização de um determinado valor. Enquanto uma norma atribui uma conseqüência jurídica objetiva a uma determinada situação, um princípio exige que esse fato seja tratado juridicamente de maneira a garantir, da melhor forma possível, a adequação ao valor inscrito no princípio. Assim, os princípios da liberdade de expressão e da garantia da privacidade seriam equivalentes a mandados no sentido de que, havendo várias interpretações possíveis quanto à aplicação dos princípios, deveria ser adotada aquela que melhor garantisse a liberdade e a privacidade. E, havendo uma colisão entre ambos, nenhum deles deveria ser anulado em favor do outro, mas deveria ser escolhida a interpretação que desse a maior efetividade possível a ambos os valores ao mesmo tempo.

Na medida em que visualiza nos princípios um mandado de otimização de valores, a teoria de Alexy pode ser chamada de axiológica. Na medida em que atribui aos princípios características estritamente normativas, podemos caracterizar a teoria de Dworkin como deontológica. Não nos cumpre, neste trabalho, optar por uma dessas definições. O importante é caracterizar que o princípio da proporcionalidade não é uma norma com dimensão de peso nem um mandamento de otimização: ele é um conjunto de três critérios distintos que estabelecem requisitos objetivos de validade para os atos estatais. É por esse motivo que Alexy recusa o termo princípio da proporcionalidade e propõe o termo máxima de proporcionalidade.

Alexy sustenta essa posição afirmando que o instituto que a jurisprudência alemã chama de princípio da proporcionalidade não passa de uma regra complexa, constituída pela combinação de três regras menores. Em parte, cremos que ele tem razão. Os chamados subprincípios da adequação e da necessidade aparentemente não passam de regras: uma exigência é adequada ou não, é necessária ou não — não há possibilidade de gradação, relativizações ou ponderação. Parecem ser critérios razoavelmente objetivos e que possibilitam uma aplicação metodologicamente controlável, principalmente em virtude de ambos envolverem raciocínios de probabilidade em relação a conseqüências fáticas. Com isso, torna-se razoável a pretensão de que os interlocutores concordem com o resultado, apesar das suas diferenças ideológicas.

No Caso das Farmácias, a Corte afirmou que a limitação imposta à abertura de novas farmácias não teria efeitos danosos à saúde, na medida em que seria irrelevante a sua influência no sistema de distribuição dos medicamentos. Observe-se que, com essa decisão, o Tribunal afirmou que os prognósticos feitos pelo legislador eram equivocados e afirmou o seu próprio juízo de probabilidade sobre o futuro. Essa operação parece ser útil principalmente em dois casos. O primeiro é o do erro evidente nas previsões do legislador sobre as conseqüências da norma. O segundo poderia ser chamado de desvio de finalidade legislativa, em analogia ao Direito Administrativo. Quando um legislador cria uma norma com finalidades contrárias à constituição (como a reserva de mercado para os farmacêuticos de uma certa região), é comum que esse objetivo permaneça implícito e que outras razões sejam explicitadas (como a intervenção na esfera econômica para garantir que a livre concorrência não tenha resultados contrários ao interesse público). Como o objetivo expresso é plausível — embora não seja sincero —, torna-se muito difícil ao Judiciário encontrar argumentos dogmaticamente aceitáveis para declarar a inconstitucionalidade da norma. No entanto, ao afirmar que o legislador errou no seu juízo de probabilidade, abre-se à Corte uma saída mais simples: afirmar que não há uma relação adequada entre meios e fins (ainda que o objetivo levado em conta seja mera ficção). De qualquer forma, esse critério não avalia se os meios eleitos pelo legislador são os mais eficazes, mas apenas se eram idôneos para cumprir o seu objetivo. Trata-se, pois, de uma regra e não de um princípio, na medida em que a controvérsia limita-se à seguinte questão: os meios eleitos pelo legislador são adequados ou não para alcançar as finalidades subjacentes à lei? E as respostas possíveis são apenas sim e não.

O mesmo ocorre quanto ao critério da necessidade. Admitido que muito raramente se pode afirmar que há apenas um meio idôneo para a consecução de uma certa finalidade, a garantia do direito de liberdade dos cidadãos exige que o Estado opte pelo meio menos gravoso. Aparentemente, estamos diante de uma regra que estabelece: o Estado tem a obrigação de optar pelo meio menos gravoso. Trata-se de mais um critério bastante claro na teoria mas que apresenta dificuldades enormes na aplicação aos casos concretos. Se o Governo decide aumentar os juros para 60% ao ano, mas o Tribunal considera que um aumento para apenas 50% é suficiente, estaríamos frente a uma violação do critério da necessidade? E se o Tribunal considerasse que o aumento dos juros é mais lesivo que a desvalorização do câmbio? Dificuldades como essa indicam que uma enunciação tão abstrata desse critério não seria compatível com a sua aplicação prática. O que pudemos observar no Caso dos Confeitos de Chocolate? Não se tratava propriamente da exigência da menor ingerência possível. Quando a Corte foi capaz de identificar que havia uma opção claramente adequada e muito menos limitadora dos direitos dos cidadãos, houve um argumento suficientemente forte para afirmar a ilegitimidade da escolha dos meios mais gravosos. Se entendêssemos o critério da necessidade como significando que apenas pode ser válida a opção menos lesiva, estaríamos frente a uma regra. Todavia, não parece ser esse o critério aplicado pela jurisprudência da Corte. Se entendêssemos que o critério é o de que o Estado deve, na medida do possível, preferir as soluções menos gravosas, estaríamos frente a um princípio — e parece ser esse o caso. Admite-se que há uma obrigação genérica de evitar ingerências desnecessárias, mas o ato estatal somente é invalidado quando a Corte percebe que houve uma opção pela intervenção excessiva, especialmente quando o Tribunal pode indicar uma alternativa menos gravosa e igualmente adequada.

Quanto ao subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, não vemos qualquer possibilidade de considerá-lo como uma regra. A afirmação de que somente são válidas as restrições que obedecem a proporcionalidade tem a mesma estrutura da proposição de que todos os atos devem observar a igualdade. Em ambos os exemplos, aplicando esses critérios às situações concretas não teríamos respostas binárias (proporcional-desproporcional), mas respostas que admitiriam gradações: encontraríamos soluções mais proporcionais que outras, assim como opções mais igualitárias que outras. O limite mínimo aceitável de proporcionalidade — assim como de igualdade — não pode ser definido, a priori, pela própria norma. Como todo princípio, o seu domínio normativo atual somente é definido a partir da avaliação da situação particular, em um juízo de concretização. Embora não possamos ter a pretensão de fazer uma afirmação geral sobre a jurisprudência alemã — e nem é esse o objetivo do trabalho —, encontramos algumas decisões sobremaneira importantes, que lidam com a ponderação de interesses nos casos concretos, e em nenhuma delas o princípio da proporcionalidade em sentido estrito parece ter oferecido qualquer orientação metodológica que as diferenciasse das considerações mais genéricas oferecidas pelo STF ou pela Suprema Corte norte-americana. Já citamos os casos Lebach e das Universidades da Saxônia, mas convém ampliar um pouco os nossos exemplos.

Um julgamento que ilustra bem esse fenômeno — e que também oferece uma interessante possibilidade de comparação entre os pensamentos norte-americano e germânico — é o Caso do Aborto, julgado na República Federal Alemã, em 1975[233]. Até 1974, o aborto era terminantemente proibido e sua prática era considerada crime. Nesse ano, a Alemanha Ocidental promulgou uma lei que deixava de punir penalmente o aborto nos casos de gravidez (1) resultante de estupro ou incesto, (2) praticada até a 13a semana de gravidez, (3) quando havia risco à vida ou à saúde da mulher grávida e (4) quando havia risco de haver danos irreversíveis à criança. A Corte alemã decidiu da seguinte forma:

It should be emphasized that, in any case, the sense and purpose of this provision of the Basic Law [Artigo 2, Parágrafo 2, Sentença 1: Todos terão direito à vida e à inviolabilidade de sua pessoa] require that the protection of life should also be extended to the life developing itself. The security of human existence against encroachments by the state would be incomplete if it did not also embrace the prior step of “completed life”, unborn life.

This extensive interpretation corresponds to the principle established in the opinions of the Federal Constitutional Court, “according to which, in doubtful cases, that interpretation is to be selected which develops to the highest degree the judicial effectiveness of the fundamental legal norm” [...]

Were the embryo to be considered only as a part of the maternal organism, the interruption of pregnancy would remain in the area of the private structuring of one’s life, where the legislature is forbidden to encroach. [...] Since, however, the one about to be born is an independent human being who stands under the protection of the constitution, there is a social dimension to the interruption of pregnancy which makes it amenable to and in need of regulation by the state. The right of the woman to the free development of her personality, which has as its content the freedom of behavior in a comprehensive sense and accordingly embraces the personal responsibility of the woman to decide against parenthood and the responsibilities flowing from it, can also, it is true, likewise demand recognition and protection. This right, however, is not guaranteed without limits — the rights of others, the constitutional order, and the moral law limit it. A priori, this right can never include the authorization to intrude upon the protected sphere of right of another without justifying reason or much less to destroy that sphere along with the life itself; this is even less so, if, according to the nature of the case, a special responsibility exists precisely for this life.

A compromise which guarantees the protection of the life of the one about to be born and permits the pregnant woman the freedom of abortion is not possible since the interruption of pregnancy always means the destruction of the unborn life. In the required balancing, “both constitutional values re to be viewed in their relationship to human dignity, the center of the value system of the constitution”. [...] A decision oriented to Article 1, Paragraph 1, of the Basic Law must come down in favor of the precedence of the protection of life for the child en ventre sa mere over right of the pregnante woman to self determination. Regarding many opportunities for development of personality, she can be adversely affected through pregnancy, birth and the education of her children. On the other hand, the unborn life is destroyed through the interruption of pregnancy. According to the principle of the balance which preserves most of competing constitutionally protected positions in view of the fundamental idea of Article 19, Paragraph 2, of the Basic Law; precedence must be given to the protection of the life of the child about to be born. This precedence exists as a matter of principle for the entire duration of pregnancy. and may not be placed in question for any particular time. The opinion expressed in the Federal Parliament during the third deliberation on the Statute to Reform the Penal Law, the effect of which is to propose the precedence for a particular time “of the right to self-determination of the woman, which flows from human dignity vis-a-vis all others, including the child’s right to life” [...] is not reconcilable with the value ordering of the Basic Law. [...]

The task of the penal law from the beginning has been to protect the elementary values of community life. [...] From this point of view, the employment of penal law for the requital of “acts of abortion” is to be seen as legitimate without a doubt [...] Punishment, however, can never be an end in itself. Its employment is in principle subject to the decision of the legislature. [...] In the extreme case, namely, if the protection required by the constitution can be achieved in no other way, the lawgiver can be obligated to employ the means of the penal law for the protection of developing life. The penal norm represents, to a certain extent, the “ultimate reason” in the armory of the legislature. According to the principle of proportionality, a principle of the just state, which prevails for the whole of the public law, including constitutional law, the legislature may make use of this means only cautiously and with restraint. However, this final means must also be employed, if an effective protection of life cannot be achieved in other ways. [...]

In summary [...] that interruptions of pregnancy are neither legally condemned nor subject to punishment is not compatible with the duty incumbent upon the legislature to protect life, if the interruptions are the result of reasons which are not recognized in the value order of the Basic Law. Indeed, the limiting of punishability would not be constitutionally objectionable if it were combined with other measures which would be able to compensate, at least in their effect, for the disappearance of penal protection This is however — as shown — obviously not the case. [...]

Underlying the Basic Law are principles for the structuring of the sate that may be understood only in light of the historical experience and the spiritual-moral confrontation with the previous system of National Socialism. In opposition to the omnipotence of the totalitarian state which claimed for itself limitless dominion over all areas of social life and to which, in the prosecution of its goals of state, consideration for the life of the individual fundamentally meant nothing, the Basic Law of the Federal Republic of Germany has erected an order bound together by values which places the individual human being and his dignity at the focal point of all of its ordinances. [...]

Even a general change of the viewpoints dominant in the populace on this subject — if such a change could be established at all — would change nothing. The Federal Constitutional Court, which is charged by the constitution with overseeing the observance of its fundamental principles by all organs of the state and, if necessary, with giving them effect, can orient its decisions only on those principles to the development of which this Court has decisively contributed in its judicial utterances.[234]

Um caso dessa natureza seria tratado, nos Estados Unidos, a partir do modelo do due process of law, tal como foi feito com Roe v. Wade. Já o enfoque adotado pela Corte alemã não apenas se refere diretamente aos princípios constitucionais, mas a uma ordem de valores subjacente à constituição e que precisa ser observada pelo legislador. Com base nessa ordem de valores, o Tribunal Constitucional Federal rejeitou a validade da decisão do legislador e afirmou a necessidade de que haja uma lei penal que criminalize o aborto — substituindo claramente a discricionariedade do legislador pela do Tribunal, em um ativismo judicial bastante acentuado. Fica claro que a Corte pressupõe a existência de uma ordem objetiva de valores, ou seja, de valores organizados de uma forma hierárquica e, principalmente, que cabe à Corte definir essa hierarquia — e não ao legislador. O último parágrafo da citação traz alguma luz ao motivo desse ativismo: a necessidade de impor os valores constitucionais a uma sociedade ainda ressentida da experiência nacional-socialista e o receio de admitir qualquer norma que signifique uma desconsideração do direito à vida.

Observemos que, em um primeiro momento, a Corte descreve o caso como uma colisão de direitos: o direito à autodeterminação da mãe versus o direito à vida do embrião. É interessante notar que não se fala no interesse social em preservar a vida do embrião, tal como em Roe v. Wade, mas no próprio direito à vida pré-natal. Identificada a colisão, o Tribunal admite a necessidade de preservar, ao máximo, os interesses colidentes — o que naturalmente deveria conduzir a uma aplicação do princípio da proporcionalidade. No entanto, o direito à vida do embrião foi considerado, a priori, superior a todos os outros direitos e interesses em jogo, e essa superioridade absoluta impedia qualquer relativização. Não havendo relativização possível, não caberia fazer uma ponderação de bens e, com isso, não se aplicou propriamente qualquer das três regras do princípio da proporcionalidade. De toda forma, é interessante notar que houve uma menção subsidiária ao princípio, mas apenas para afirmar que o legislador deveria observá-lo na elaboração das normas penais. Se levarmos essa afirmação às últimas conseqüências, concluiríamos que que a Corte entendeu que o legislador que descriminalizou o aborto teria ofendido o princípio da proporcionalidade na medida em que não tomou a única decisão proporcional (em sentido estrito).

Todavia, a análise da decisão mostra que o Tribunal identificou e resolveu a colisão de princípios sem fazer qualquer referência aos subprincípios da proporcionalidade. Podemos dizer que ela aplicou o princípio da proporcionalidade, nesse caso? Se entendermos que sim, teríamos que considerar que a solução de toda e qualquer colisão de direitos ou interesses representa uma aplicação do princípio — confundiríamos, assim, a própria ponderação com uma regra que deveria orientá-la. Ao mesmo tempo, não reconheceríamos nenhum conteúdo específico à regra da proporcionalidade em sentido estrito — pois a identificaríamos com uma exigência geral de proporcionalidade que sempre foi parte da nossa concepção de justiça. Dessa forma, não consideramos adequado identificar nessa decisão uma aplicação efetiva do princípio da proporcionalidade.

A grande vantagem do princípio da proporcionalidade é distinguir da avaliação geral de razoabilidade dois elementos específicos: a adequação e a necessidade. Por um lado, desenvolveram-se instrumentos conceituais mais refinados para lidar com esses dois casos, que foram transformados em topoi jurídicos autônomos. Além disso, esses dois critérios tornaram-se testes preliminares, sem os quais não seria possível a avaliação da proporcionalidade em sentido estrito — uma operação tanto mais delicada quanto menos controlável metodologicamente. Em suma, admitimos que pode haver uma vantagem metodológica em isolar a adequação e a necessidade e em torná-las testes preliminares à avaliação de proporcionalidade propriamente dita. No entanto, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito não nos oferece qualquer orientação metodológica mais adequada que a referência genérica ao ideal de proporcionalidade como parte da idéia de justiça. Os casos Lebach, do Aborto e das Universidades não oferecem argumentos mais objetivos nem raciocínios mais controláveis que Roe v. Wade[235] ou que o caso dos botijões de gás[236], julgado pelo STF.

Esse fenômeno também é claro com a avaliação da razoabilidade das decisões judiciais, como podemos ver no Caso Lüth[237] no qual se discute a constitucionalidade do estímulo a um boicote. Veit Harlan, diretor de cinema que se tornou conhecido durante a época nazista pelo filme anti-semita Jud Süss, lançou um novo filme em 1950. Embora Harlan tivesse sido absolvido da acusação de ter cometidos crimes nazistas, Erich Lüth, membro ativo de um grupo que tinha como finalidade “curar a ferida entre cristãos e judeus”, liderou um movimento de boicote ao novo filme de Harlan. O diretor levou o caso ao Judiciário e obteve a condenação de Lüth com base na regra geral de responsabilidade, contida no art. 826 do Código Civil Alemão, segundo o qual toda pessoa que cause dano a outra intencionalmente e de maneira ofensiva à moral é obrigado a indenizar os prejuízos causados[238]. Lüth recorreu, levando o caso ao BVerfG, que tomou a seguinte decisão:

The basic right to freedom of opinion is the most immediate expression of the human personality [living] in society and, as such, one of the noblest of human rights. [...]

[Courts] must evaluate the effect of general laws which would limit the basic right in the light of the importance of the basic right. [They] must interpret these laws so as to preserve the significance of the basic right; in a free democracy this process [of interpretation] must assume that fundamentally of freedom of speech in all spheres, particularly in public life. [...]

The complainant fears that any restriction upon freedom of speech might excessively limit a citizen’s chance to influence public opinion and thus [would] no longer guarantee the indispensable freedom to discuss important issues publicly. [...]

The complainant’s statements must be seen within the context of his general political and cultural efforts. He was moved by the apprehension that Harlan’s reappearance might — especially in foreign countries — be interpreted to mean that nothing had changed in German cultural life since the National Socialist period. [...] Because of his especially close personal relation to all that concerned the German-Jewish relationship, the complainant was within his rights to state his view in public. [...]

The demand that under these circumstances the complainant should nevertheless have refrained from expressing his opinion out of regard for Harlan’s professional interests and the economic interests of the film companies employing him [...] is unjustified.[239]

Percebe-se que, nesse processo, o BVerfG enfrenta um conflito entre o direito fundamental de liberdade de expressão e direitos patrimoniais individuais. Após pesar os interesses em conflito, termina por conceder prevalência à liberdade de expressão sobre o direito a indenização por prejuízos causados voluntariamente. Quais são os critérios expostos pela Corte alemã? Parece claro que ela poderia ter decidido tanto em um sentido como em outro — pois ambas as soluções seriam plausíveis frente à Lei Fundamental. Assim, a decisão de que um princípio prevalece sobre outro é menos uma emanação de uma ordem concreta de valores implícita na Constituição que uma contribuição para a estratificação de uma hierarquia entre os princípios constitucionais — que é um dos contributos próprios da jurisprudência. Enfrentaremos esse problema de forma mais aprofundada quando tratarmos da jurisprudência dos valores[240].

O direito alemão possui um princípio equivalente ao devido processo procedimental. “Trata-se do faires Verfahren, ou direito a um procedimento honesto ou justo, fundamentado constitucionalmente no princípio do Estado de Direito [...], o qual exige, no âmbito jurisdicional, um processo guiado pelos postulados da justiça e eqüidade”[241]. O conteúdo desse princípio é similar ao procedural due process americano: garantia do juiz natural, direito ao contraditório, publicidade, presunção de inocência, entre outros[242].

Assim, o faires Verfahren é considerado um princípio fundamental, segundo o qual o processo deve ser estabelecido e desenvolvido, no caso concreto, de forma adequada às exigências do Estado de Direito, regendo a atuação dos órgãos estatais responsáveis pelo encadeamento normativo processual, especialmente quanto ao estabelecimento de autolimitação aos instrumentos de poder, que deverá fazer-se de forma não só correta, mas também justa.[243]

Enfim, o direito a um faires Verfahren é no direito alemão, a cláusula não-escrita do due process of law americano, sob a matiz procedimental.[244]

Já os casos que o direito norte-americano enfrenta utilizando o substantive due process of law são normalmente tratados pela jurisprudência alemã nos quadros do princípio da proporcionalidade — o que possibilita fazer uma aproximação entre os dois institutos. Em primeiro lugar, o due process contém uma exigência básica de adequação entre meios e fins que corresponde ao primeiro subprincípio da proporcionalidade. Quanto ao subprincípio da necessidade, o due process apresenta-se bipartido. O teste de racionalidade mínima exige apenas a adequação, sendo um critério mais limitado que o subprincípio da necessidade. Todavia, o strict scrutiny estabelece a exigência de um compelling public interest, que funciona como um critério mais restrito que a exigência de necessidade. Tem razão, portanto, Kommers quando afirma sobre o segundo subprincípio que “this test is applied flexibly and must meet the standard of rationality. As applied by the Constitutional Court, it is less than the strict scrutiny and more than the minimum rationality test of American constitutional law”[245].

Já a exigência norte-americana de que os fins da norma sejam legítimos parece ter seu correspondente no subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito. Percebe-se, aqui, a grande diferença de enfoque entre a teoria alemã e a americana. Enquanto esta centra-se em questões primordialmente políticas, com a busca de um equilíbrio de interesses que possa garantir a legitimidade das decisões, aquela manifesta preocupações semelhantes por meio de uma linguagem de teoria dos sistemas, buscando um equilíbrio de valores jurídicos — não de interesses políticos — que garanta a consistência do sistema jurídico, mais que a sua representatividade. Enquanto a aceitabilidade de uma restrição, para a Suprema Corte, está vinculada à sua adequação aos valores previstos na constituição porque dominantes na sociedade, parece que a principal preocupação do BVerfG é a manutenção da harmonia intra-sistêmica.

B - Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal

1. Histórico do princípio da proporcionalidade

Os antecedentes do princípio da proporcionalidade na cultura jurídica européia já foram tratados no primeiro capítulo[246], no qual descrevemos em linhas gerais a evolução do controle de razoabilidade. Dissemos, então, como a experiência da II Guerra Mundial contribuiu para o rompimento do dogma da intangibilidade do legislador e da forma como a jurisprudência européia do pós-guerra iniciou um movimento no sentido de controlar a razoabilidade dos atos legislativos. Desde o início das suas atividades, o Tribunal Constitucional Federal buscou elaborar métodos de controle de razoabilidade, cuja expressão mais desenvolvida é o denominado princípio da proporcionalidade. Embora referências à necessidade e mesmo à proporcionalidade seja anterior à própria instituição do BVerfG, a consolidação dos três subprincípios constitutivos[247] sob a denominação de princípio da proporcionalidade remonta apenas ao final da década de 50. Antes disso, é possível identificar na jurisprudência apenas uma “[...] idéia mais ou menos difusa de proporção, de repulsa pelo excesso, ou de necessidade. Com efeito, muito antes de se suspeitar sequer que iria haver um princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade já era possível vislumbrar sinais de uma idéia de proibição do excesso ou de proporção”[248].

Somente a série de circunstâncias que se somaram no segundo pós-guerra tornou possível a construção de um princípio autônomo e com o seu atual conteúdo. Entre esses elementos podemos citar o trauma da experiência nazista, que no âmbito jurídico significou uma revisão do positivismo até então dominante e uma retomada de idéias jusnaturalistas até então abandonadas. Chaïm Perelman observara no início da década de 70 que a Constituição alemã — tal como interpretada pelo BVerfG — permite aos juízes controlar a conformidade das leis não apenas frente às normas constitucionais, mas “à idéia de direito, reencarnação moderna do direito natural”[249]. Essa recuperação das idéias jusnaturalistas possibilitou o desenvolvimento, no BVerfG, da doutrina dos valores. Segundo o BVerfG, a constituição não é apenas um conjunto de normas, mas envolve também uma ordem hierárquica e objetiva de valores.

Uma das expressões dessa doutrina é justamente o entendimento — manifestado pelo BVerfG e defendido por Alexy na ciência do direito — dos princípios como mandados de otimização, postura que possibilita o controle dos atos estatais não apenas frente às normas constitucionais, mas também aos valores cuja efetividade esses princípios buscam maximizar. Dentro desse quadro, tornou-se bastante aceitável que fossem desenvolvidos critérios para avaliar a adequação entre o conteúdo dos atos estatais e o valor fundamental de justiça — traduzido pela exigência de proporcionalidade e proibição do excesso. A aplicação do princípio da proporcionalidade envolve um alto grau de intervenção judicial na atividade legislativa e administrativa que somente passou a ser aceito pela comunidade jurídica européia a partir do pós-guerra — ressalvado que essa aceitação não é unânime nem homogênea em todos os países europeus.

Antes dos anos 50, o conceito de proporcionalidade já estava presente na teoria jurídica alemã, mas abrangia apenas aquilo que atualmente se designa por necessidade, a exigência de que o Estado utilize os meios mais suaves para atingir seus fins — que atualmente é vista como apenas um dos componentes do principio da proporcionalidade.[250] Note-se, contudo, que a exigência de necessidade já pressupunha a de adequação — como ressaltam Alexy[251] e Canas[252].

A clarificação dos desdobramentos internos é da responsabilidade conjunta do legislador, da jurisprudência e da doutrina. Em alguma legislação do começo da década [de 50], o legislador distingue inequivocamente necessidade (com adequação implícita) e proporcionalidade em sentido estrito, embora sem os baptizar. Esta evolução é acompanhada pela doutrina e pelo BverfG que, em 1958, na Apothekenurteil [decisão sobre as farmácias], distingue a necessidade (Eforderlichkeit) e a adequação (Geeignetheit), da proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit).[253]

Não seria razoável, contudo, considerar que desde o início o BVerfG estabelecia essas distinções com clareza. Como toda construção jurisprudencial, inicialmente os critérios de proporcionalidade eram aplicado de forma mais ou menos coerente. Nas decisões do início da década de 50, o Tribunal Constitucional Federal aplica-os “hesitantemente e sem conseqüências sistemáticas claras”. Foi apenas depois do Caso das Farmácias, em 1958, que o recurso ao princípio se tornou cada vez mais freqüente.[254] Como afirmou Eberhard Grabitz, no início da década de 70:

Pertence o princípio da proporcionalidade àqueles princípios da Constituição que desempenham um notável e destacado papel na judicatura da Corte Constitucional. De início, o Tribunal o empregou apenas de forma hesitante e casual, sem conseqüência sistemática evidente; desde o “Apotheken-Urteil” [Caso das Farmácias], porém, ele o tem utilizado de maneira cada vez mais reiterada e em campos sempre mais largos do Direito Constitucional como matéria de aferição da constitucionalidade dos atos do Estado. Sua principal função, o princípio da proporcionalidade a exercita na esfera dos direitos fundamentais; aqui serve ele antes de mais nada (e não somente para isto) à atualização e efetivação da proteção da liberdade aos direitos fundamentais.[255]

Como resultado da evolução aqui apontada, no início da década de 60, o princípio da proporcionalidade consolidou-se na sua conformação atual[256]: exigindo que toda restrição de direitos precisa ser adequada, necessária e proporcional, no sentido que deve ser apropriada para a consecução dos fins da norma, deve limitar os direitos o menos possível e deve traduzir uma justa medida entre o interesse público e o direito limitado.[257]

2. Jurisprudência dos valores

a) Ordem objetiva de valores

Um dos principais conceitos que orientam a atuação do BVerfG é a de que a Lei Fundamental não é formada apenas por regras e princípios, mas que subjaz ao sistema de normas uma ordem objetiva de valores, uma ordem hierárquica definida de valores constitucionais, uma concepção que é afirmada de forma explícita pelo BVerfG no Caso Lüth:

This section on basic rights establishes an objective order of values, and this order strongly reinforces the effective power of basic rights. This value system, which centers upon dignity of the human personality developing freely within the social community, must be looked upon as a fundamental constitutional decision affecting all spheres of law [public and private]. It serves as a yardstick for measuring and assessing all actions in the areas of legislation, public administration, and adjudication.[258]

Donald Kommers faz uma interessante descrição da teoria germânica construída sobre a noção de que existe uma tal ordem objetiva:

There is no debate in German, however, as there is in the United States, over whether the Constitution is primarily procedural or value oriented. Germans no longer understand their constitution as the simple expression of an existential order of power. They commonly agree that the Basic Law is fundamentally a normative constitution embracing values, rights, and duties. That the Basic Law is a value-oriented document — indeed, one that establishes a hierarchical value order — is a familiar refrain, as we shall see, in German constitutional case law.[259]

In short, the social Rechtsstaat is not only governed by law; it is also perceived as a substantive charter of justice. All positive law must conform to the Basic Law’s order of values — as distinguished from guaranteed individual rights — informing the Constitution as a whole.[260]

In its search for constitutional first principles, the Constitutional Court has seen fit to interpret the Basic Law in terms of its overall structural unity. Perhaps “ideological unity” would be the more accurate term, for the Constitutional Court envisions the Basic Law as a unified structure of substantive values. The centerpiece of this interpretive strategy is the concept of an objective order of values, a concept that derives from the gloss the Federal Constitutional Court has put on the text of the Basic Law. According to this concept, the Constitution incorporates the basic value decisions of the founders, the most basic of which is their choice of a free democratic basic order — a liberal, representative, federal, parliamentary democracy — buttressed and reinforced by basic rights and liberties. These basic values are objective because they are said to have an independent reality under the Constitution, imposing on all organs of government an affirmative duty to see that they are realized in practice. The notion of an objective value order may be stated in another way. Every basic right in the Constitution — for example, freedom of speech, press, religion, association, and the right to property or the right to choose one’s profession or occupation — has a corresponding value. A basic right is a negative right against the state, but this right also represents a value, and as a value it imposes a positive obligation on the state to ensure that it becomes an integral part of the general legal order. One example may suffice: The right to freedom of the press protects a newspaper against any action of the state that would encroach on its independence, but as an objective value applicable to society as a whole, the state is duty bound to create the conditions that make freedom of the press both possible and effective. In practice, this means that the state may have to regulate the press to promote the value of democracy; for example, by enacting legislation to prevent the press from becoming the captive of any dominant group or interest.

This view of the Constitution as a hierarchical value system commands the general support of German constitutional theorists, notwithstanding intense controversy on and off the bench over the application of the theory to specific situations. From some jurisprudential perspectives this theory allows the court to engage in open ended-decision making while appearing to be text-bound. It is an ingenious — some critics would say disingenuous — judicial methodology. [...] In short, it satisfies the traditional German yearning for objectivity in the sense of separating law from politics yet tolerates the search for purpose in constitutional law. [261] [grifos nossos]

b) Crítica à jurisprudência dos valores: Jürgen Habermas

Percebe-se, dessa forma, que a jurisprudência do BVerfG considera que os valores que compõem essa ordem hierárquica podem ser utilizados como parâmetros para o controle de constitucionalidade. Essa postura — chamada de Jurisprudência dos Valores — vem sofrendo críticas bastante ácidas, especialmente pelo grande risco de que o Tribunal revista suas próprias decisões valorativas com o manto de um procedimento racionalmente orientado, o que aumenta a capacidade de persuasão das decisões sem aumentar o seu grau de racionalidade. Habermas critica a jurisprudência dos valores porque considera que essa redução dos princípios a valores conduz a uma argumentação jurídica inconsistente. Na medida em que os princípios têm um caráter deontológico[262] e os valores um caráter teleológico[263], os argumentos fundados em princípios não têm a mesma função e a mesma estrutura dos argumentos fundados em valores. Por esses motivos, Habermas conclui que:

The conceptual transformation of basic rights into basic goods means that rights have been masked by teleology, concealing the fact that in context of justification norms and values take on different roles in the logic of argumentation.[264] [Grifos no original]

Because norms and principles, in virtue of their deontological character, can claim to be universally binding and not just specially preferred, they posses a greater justificative force than values. Values must be brought into a transitive order with other values from case to case. Because there are no rational standards for this, weighting takes place either arbitrarily or unreflectively, according to customary standards and hierarchies.

Insofar as a constitutional court adopts the doctrine of an objective order of values and bases its decision making on a kind of moral realism or moral conventionalism, the danger of irrational rulings increases, because functionalist arguments then gain the upper hand over normative ones. Certainly, there are a number of ‘principles’ or collective goods that represent perspectives which arguments can be introduced into a legal discourse in cases of norm collision: [...] But arguments based on such collective goods and values ‘count’ only as much as the very norms and principles by which these goals can in turn be justified. In the final instance, only rights can be trump in the argumentation game. [...] An adjudication oriented by principles has to decide which claim and which action in a given conflict is right — and not how to balance interests or relate values. [...] The legal validity of the judgement has the deontological character of a command, and not the teleological character of a desirable good that we can achieve to a certain degree.[265]

Percebemos, assim, que Habermas contesta uma das idéias básicas da jurisprudência dos valores que é a concepção germânica de que os princípios constitucionais são máximas de otimização, cujo mais célebre teórico é Robert Alexy. Contra essa visão, Habermas invoca a teoria de Dworkin, que entende os princípios como proposições propriamente deontológicas, embora dotados de uma dimensão de peso. Outra distinção feita por Dworkin e que é importante para a compreensão dessa questão é a diferença ente princípios e programas[266] [principles and policies]. Dworkin utiliza o termo princípios em dois sentidos, um geral e um específico. No sentido geral, princípio é qualquer standard que não seja uma regra[267], o que incluiria especialmente os programas e os princípios em sentido estrito.

I call a ‘policy’ that kind of standard that sets out a goal to be reached, generally an improvement in some economic, political, or social feature of the community (though some goals are negative, in that they stipulate some present feature is to be protected from adverse change). I call a ‘principle’ the standard that is to be observed, not because it will advance or secure an economic, political, or social situation deemed desirable, but because it is a requirement of justice or fairness or some other dimension of morality. Thus the standard that automobile accidents are to be decreased is a policy, and the standard that no man may profit his own wrong is a principle.[268]

Os princípios têm um caráter deontológico, pois são imperativos derivados de uma norma moral, enquanto os programas têm um caráter teleológico, na medida em que estabelecem finalidades a serem alcançadas. Feita essa diferença, a concepção de princípio proposta por Alexy seria melhor enquadrada na categoria de programa que na de princípio em sentido estrito. Como afirmou o próprio Dworkin:

The distinction can be collapsed by construing a principle as stating a social goal (i.e., the goal of society in which no man profits by his own wrong), or by construing a policy as stating a principle (i.e., the principle that the goal the policy embraces is a worthy one) or by adopting the utilitarian thesis that principles of justice are disguised statements of goals (securing the greatest happiness of the greatest number).[269]

A importância dessa caracterização vem do fato de que Dworkin nega aos programas uma função relevante dentro da argumentação jurídica, mesmo em se tratando de hard cases:

Arguments of policy justify a political decision by showing that the decision advances or protects some collective goal of the community as a whole. The argument in favor of a subsidy for aircraft manufacturers, that the subsidy will protect national defense, is an argument of policy. Arguments of principle justify a political decision by showing that the decision respects or secures some individual or group right. The argument in favor of anti-discrimination statutes, that a minority has a right to equal respect and concern, is an argument of principle. These two sorts of argument do not exhaust political argument. Sometimes, for example, a political decision, like the decision to allow extra income tax exemptions for the blind, may be defended as an act of public generosity or virtue rather than on grounds of either policy or principle. But principle and policy are the major grounds of political justification. [...]

[I]f the case is a hard case, when no settled rule dictates a decision either way, then it might seem that a proper decision could be generated by either policy or principle. [...] I propose, nevertheless, the thesis that judicial decisions in civil cases, even in hard cases [...], characteristically are and should be generated by principle not policy.[270]

Com isso, Dworkin recusaria como juridicamente inadequados vários dos argumentos utilizados em operações de controle de razoabilidade. Em especial, ele nega a possibilidade de se ponderarem valores — pois esses standards teleológicos seriam adequados apenas para fundamentar decisões políticas, mas nunca as jurisdicionais.

c) Revisão da diferença tradicional entre regras e princípios: Aulis Aarnio

No entanto, acreditamos que Habermas não constrói sua crítica em um território seguro. Quando Dworkin admite que os princípios — mesmo os princípios em sentido estrito — têm uma dimensão de peso, ele reconhece que é possível fazer uma ponderação sobre qual a norma aplicável ao caso concreto. Ora, qual é a diferença entre pesar princípios e pesar valores? Enquanto Alexy reduz os princípios a valores para possibilitar a sua pesagem, Dworkin oferece a saída de que os princípios mesmos devam ser os objetos de uma ponderação frente ao caso concreto[271]. E, se admitirmos tal como Aulis Aarnio que não há uma distinção rígida entre regras e princípios, até aos direitos subjetivos previstos constitucionalmente poderemos reconhecer uma dimensão de peso. Afirmou Aarnio[272]:

Las reglas y los principios forman, de alguna manera, una escala que puede dividirse en cuatro partes a los efectos de una mayor claridad. Hay reglas (R) características como, por ejemplo, la prohibición de robar en el derecho penal. Además, el orden jurídico reconoce principios que son como reglas (PR) como, por ejemplo, el principio de libertad de expresión y el principio, utilizado por Dworkin, que establece que nadie puede beneficiarse de su proprio delito. Estos pueden considerarse principios pero, como normas, pertenecen, indudablemente, en respectos importantes, a la categoría de reglas. O se siguen o no se siguen. A su vez, algunas normas son reglas que son como principios (RP). Ejemplos son aquellas reglas jurídicas flexibles que tienen un ámbito de aplicación cognitiva o valorativamente abierto, de la misma forma como lo es el ámbito de los principios valorativos. Finalmente, hay principios (P) característicos, tales como el principio de igualdad y de libertad u otros principios valorativos o de finalidad.

En lo que sigue trataré de demonstrar que no hay límites simples entre los subgrupos de estas cuatro categorías (R, PR, RP, P). Por el contrario, podemos hablar de una gradación de un a outro. Una norma puede ser más como-una-regla que como-un-principio, y viceversa.[273]

Ao admitir que não há compartimentos estanques, mas uma gradação que envolve todas as normas, podemos admitir que todas elas possuem uma dimensão de peso — mais acentuada em uma e menos em outras — que permite a ponderação entre elas sem a necessidade de reduzir as normas a valores. Parece-nos que essa pode ser uma alternativa consistente à jurisprudência dos valores, que permite tratar devidamente as ponderações necessárias à resolução de colisões de princípios, ao mesmo tempo que evita a mera redução dos princípios a valores. No entanto, devemos admitir que os valores desempenham um papel muito importante na argumentação jurídica e que, mesmo que seja reconhecido que os princípios possuem uma dimensão de peso, são os valores que orientarão o processo de pesagem dos princípios. Assim, mesmo que recusemos a redução dos princípios a valores, não podemos recusar a importância dos valores no processo de ponderação de princípios.

d) Circularidade da argumentação

Não obstante, o perigo apontado por Habermas de decisões arbitrárias revestidas por um falso manto de racionalidade e objetividade é bastante presente. E essa visão é corroborada pela sustentação de Schreckenberger de que a argumentação do Tribunal é circular:

Una importancia central tiene el esquema de la proporcionalidad como principio. El tribunal emprende diferentes intentos para definir de una manera semántica general la deseada proporcionalidad entre medio y fin. Así, el Tribunal exige una relación “razonable”, “correcta” o “adecuada”. También habla de que el medio no debe ser desproporcionado con respecto al fin que se persigue y que una medida de control tiene que ser “adecuada” a la situación. Para medidas dentro del marco de un procedimiento penal, se requiere una “adecuada” relación entre la gravedad del hecho y la fuerza de la sospecha del acto. También aquí las medidas se encuentran bajo el postulado del Estado de derecho de la “proporcionalidad”. Como puede verse facilmente, la mayoría de las reglas utilizam expresiones formadas circularmente, que, como es sabido, carecen de valor informativo semántico. En ele caso de esquemas tales como “correcto”, “razonable” o “adecuado”, podemos partir del hecho de que, tal como lo ha mostrado la forma similar de hablar con respecto al uso del principio de igualdade, se trata de signos operativos sin sentido semántico. Por ello, su función retórica puede ser obtenida sólo de las reglas que el Tribunal presupone en la respectiva argumentación.

A argumentação do Tribunal é circular na medida em que impõe a adequação[274] como um critério de validade dos atos estatais, mas a definição do que é adequado ou não é feita pelo próprio Tribunal. Com isso, ocorre um curto-circuito entre a exigência de observação de um subprincípio constitutivo do princípio da proporcionalidade — construção essa que é retoricamente persuasiva na medida em que dá uma aparência de objetividade às apreciações valorativas — e a mera imposição dos valores elegidos pelos membros do BVerfG. Os resultados de uma argumentação desse tipo somente podem ser considerados legítimos quando forem legítimos os valores utilizados como base da argumentação — ou, nas palavras de Schreckenberger, as regras que o Tribunal pressupõe na sua argumentação.

É bastante óbvio o perigo de que os valores relevantes para a resolução de um caso concreto possam ser definidos ad hoc, de acordo com a apreciação pessoal dos membros da Corte. Por um lado, o fato de se tratarem de decisões pessoais é em boa parte mascarado pela afirmação de que se observa um processo definido de avaliação — o princípio da proporcionalidade, em seus três elementos. Por mais que os membros da Corte se esforcem para identificar os interesses coletivos, os valores do povo — ou qualquer outro conceito que designe os valores dominantes na sociedade em um dado momento histórico — , não é razoável pressupor-se que esse esforço terá sucesso na prática, especialmente porque os membros das cortes constitucionais tendem a pertencer ao mesmo grupo social e a reproduzir os valores desse grupo, muitas vezes confundidos com os valores do povo ou da nação. Esse tipo de argumentação somente é capaz de gerar decisões legítimas quando os valores utilizados pelos membros do tribunal efetivamente representam os valores da sociedade — ou ao menos são socialmente aceitáveis.

e) Jurisprudência dos valores e o problema da legitimidade: o Caso dos Crucifixos

Por bastante tempo, as decisões do BVerfG pareceram aceitáveis por parte da população, o que garantiu um respeito especial à decisões desse Tribunal. Entretanto, essa situação começou a mudar, o que pode exigir uma mudança também no estilo de argumentação da Corte: de uma pressuposta representação dos valores sociais, pode-se passar a uma argumentação mais cuidadosa para conquistar a efetiva aceitação por parte da sociedade — tal como vem ocorrendo na jurisprudência norte-americana atual.

Foi apenas na última década que o BVerfG começou a enfrentar uma reação social adversa às suas posições valorativas, especialmente no Caso dos Crucifixos, no qual o BVerfG decidiu, com base em uma ponderação de valores, que era inconstitucional a presença de cruzes nas salas de aula. Embora o princípio invocado como orientador dessa operação não tenha sido o da proporcionalidade, mas o da concordância prática [praktische Konkordanz] — que requer a conciliação dos valores conflitantes —, podemos identificar esse princípio com o terceiro subprincípio: a proporcionalidade em sentido estrito[275]. É perceptível o cuidado com que a Corte pesou os interesses em jogo:

The basic right to religious freedom is unconditionally guaranteed, but this guarantee does not imply that there is no limitation on this right. Any limitation, however, must be rooted in the Constitution. Legislatures are not free to restrict [religious] liberty in the absence of such limiting provisions in the Basic Law itself. [...] In resolving the inevitable tension between the negative and positive aspects of religious freedom, and in seeking to promote the tolerance that the Basic Law mandates, the State, in forming the public will, must strive to bring out an acceptable compromise. [...] The display of crosses in classrooms, however, exceeds [these guidelines and constitutional limits].[276]

The cross is the symbol of a particular religious conviction, and not merely an expression of cultural values that have been influenced by Christianity.[277] [F]ar from being a mere symbol of Western culture, it symbolizes the core of the Christian faith, one that has admittedly shaped the Western world in multiple ways but which is not commonly shared by all members of society [...] The display of the cross in public compulsory schools thus violates Article 4 (1) of the Basic Law.[278]

A reação popular a essa decisão foi muito forte, como era de se esperar em um país onde a fé cristã tem uma influência muito grande. Essa situação foi bem descrita por Donald Kommers:

[O Caso dos Crucifixos] triggered a storm of protest throughout Germany. Chancellor Helmut Kohl called the decision “incomprehensible”. Conservative newspapers bashed the Constitutional Court for overriding the uniformly condemned decision, calling it a threat to German’s Christian culture. Many constitutional lawyers, including a former president of the Constitutional Court, chastised the justices for their infirm reasoning. The decision produced the strongest denunciation in Bavaria. Holding crucifixes aloft, demonstrators in Munich and other communities marched in defiance of the Karlsruhe court as their political leaders called on state officials not to enforce the decision. It was the most negative reaction to a judicial decision in the history of the Federal Republic and the only instance of clear and open defiance of a ruling by the Federal Constitutional Court. [279]

Os protestos contra a decisão do BVerfG atingiram tal intensidade que o Poder Judiciário chegou a temer que a recusa em obedecer a decisão da Corte pudesse levar a um enfraquecimento do Estado de Direito e colocar em risco a própria República Federal da Alemanha. A situação chegou a tal ponto que um dos juízes do BVerfG publicou uma carta em um jornal entitulada Por que uma decisão judicial merece respeito, na qual afirmava que uma decisão da Corte Constitucional não pode ser saudada sempre com uma aprovação universal. “Criticism of such decisions is normal and in the interest of the court’s own reflections about its role as the final arbiter of the Constitution; indeed, such criticism is necessary. Disagreement with a decision, however, does not relieve the critic of the duty to comply with it.”[280] Todavia, mesmo após essa reação da Corte na defesa da sua autoridade, ela viu-se forçada a voltar atrás na sua própria decisão, tendo o BVerfG publicado uma nota em que deu a entender que os crucifixos somente precisariam ser retirados se algum estudante, por motivos religiosos, fizesse objeções à sua exibição.[281]

Analisando essa situação, Ulrich Haltern constatou que após décadas de reconhecimento passivo de que o BVerfG tinha legitimidade para impor valores à sociedade — tempo em que o Tribunal chegou a ser tido como a instituição que gozava da melhor reputação frente ao povo — após o Caso dos Crucifixos várias foram as vozes que se levantaram contra a Corte e surgiu um movimento de revisão do papel do BVerfG que tem grandes chances de ter como resultado uma redução do ativismo judicial da Corte[282]. Identificamos aqui um fenômeno semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos frente ao caso Roe v. Wade, que provocou reações de tal magnitude que a Suprema Corte viu-se forçada a assumir uma postura de maior self-restraint. Todavia, esse processo de retração do ativismo é lento, pois depende em grande parte da substituição dos membros da Corte. A ascensão do Justice Rehnquist à presidência da Suprema Corte, que marcou o fim da era de grande ativismo judicial das Cortes Warren e Burger, ocorreu apenas em 1986 — mais de dez anos após a decisão de Roe v. Wade, que foi julgado em 1973.

3. O princípio da proporcionalidade na doutrina e na jurisprudência

É interessante observar que parece haver um certo descompasso entre a doutrina alemã sobre a proporcionalidade e a prática do Tribunal Constitucional Federal. Os teóricos alemães apontam a diferenciação dos três subprincípios como uma fórmula tão estratificada no direito da Alemanha que parece razoável esperar que as decisões da Corte Constitucional utilizassem essas três regras de forma diferenciada nas suas decisões. Entretanto, isso parece não ocorrer. É certo que, em alguns julgamentos, é reconhecida a diferença entre os conceitos de necessidade e adequação e de necessidade e proporcionalidade. No entanto, a função da teoria do princípio da proporcionalidade nos parece ser a de orientar a redescrição dos julgamentos e o seu enquadramento em um sistema teórico coerente, e não a de efetivamente orientar o Tribunal na resolução dos casos concretos.

Tanto no Caso Lebach como no Caso das Universidades, não identificamos qualquer referência a um subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, sendo que neste último não há sequer referência ao princípio da proporcionalidade. No Caso dos Confeitos de Chocolate há uma referência expressa à proporcionalidade, afirma-se a necessidade como um dos elementos desse princípio, mas não se fala da proporcionalidade em sentido estrito. Tampouco há referências expressas a esses conceitos nos outros casos que analisamos — e que serão tratados a seguir. Não parece, pois, que a jurisprudência do BVerfG utilize a tripartição consolidada na doutrina. Isso indica que a teoria do princípio da proporcionalidade como uma combinação de três máximas ou subprincípios deve ser vista mais como uma redescrição teórica das atividades da Corte que como uma descrição do modo com o BVerfG argumenta nas suas decisões. Em outras palavras, essa teoria não parece ser uma construção dogmática operada pela jurisprudência[283], mas uma concepção teórica formulada pela doutrina para descrever as atividades do Tribunal Constitucional Federal.

Essa conclusão é corroborada pelas informações constantes da página na Internet da Universidade de Saarbrücken, que criou um site para a divulgação da teoria jurídica alemã e que contém resumos traduzidos para o inglês dos principais julgamentos do BVerfG realizados nesta década[284]. Com exceção dos casos relativos à integração européia — cuja importância deriva do alcance político da decisão —, todos os outros posicionamentos que foram considerados relevantes podem ser redescritos a partir da utilização dos subprincípios da proporcionalidade. Todavia, embora haja em quase todos referências à noção de proporcionalidade, não há menções expressas ao princípio da proporcionalidade ou os subprincípios que o compõem.

Um caso interessante para ilustrar essa afirmação é o Caso dos Guardas de Fronteira, de 1996. Após a reunificação, três ex-membros do conselho de segurança nacional da antiga Alemanha Oriental e um guarda de fronteira foram processados por homicídio de refugiados na antiga fronteira entre as duas Alemanhas e condenados pelo Bundesgerichtshof, a corte de cassação da Alemanha reunificada, equivalente ao nosso Superior Tribunal de Justiça[285]. O caso foi levado ao Tribunal Constitucional Federal, sob a alegação de inconstitucionalidade frente ao artigo 103 (2) da Lei Fundamental que, recusando a possibilidade de leis incriminadoras retroativas, dispõe que um ato é punível apenas quando configurava um crime no momento em que foi praticado. Entretanto, a Corte conferiu uma interpretação restritiva a essa regra, afirmando que ela somente é plenamente válida quando se trata de legislação elaborada nos quadros da própria Lei Fundamental. Assim, justifica o entendimento de que a vedação da retroatividade pode ser limitada no tocante às leis da antiga Alemanha Oriental.

The grounds for confidence which the norm protects cease to exist when the other State excludes criminal liability for the most serious criminal injustices through grounds of justification in national regulations, which support and favor such injustice as to seriously flout human rights generally recognized by the international community. [...] The applicants' argument that the right to life and free movement were not unconditionally guaranteed by the International Covenant on Civil and Political Rights was also unsuccessful. It was true that western democratic States under the rule of law did permit the use of firearms, in particular for the pursuit and capture of criminals, and that East Germany's statutory regulations on the use of firearms at the border at that time did conform with those in force in West Germany. However, the Berlin LG and the BGH had established that the statutory situation was eclipsed by commands given. The use of firearms was in no way restricted by the principle of proportionality: border guards were ordered that anyone breaching the border should be “destroyed” if they could not be prevented with other means. Subordinating the right of life of individuals to the interests of the State was a most serious injustice. [...]

The conviction of the border guard did not infringe the constitutional principle of “no penalty without guilt”. The criminal courts excluded the excuse of “acting on orders”, because it was clear from the circumstances for the border guard that the use of firearms at the border was unlawful. However, the courts had not discussed the effect on soldiers recognizing the unlawfulness of the act, which resulted from the grounds of justification being given the authority of the state. In such a case, it is not necessarily the case that the average soldier will recognize the unlawfulness of an act objectively considered as a serious breach of human rights; this must be considered in the light of the individual soldier's upbringing, indoctrination and other relevant circumstances. The courts nevertheless rightly considered that killing unarmed refugees through continuous fire in the established circumstances was such a terrible act denying any possible justification, that it was clear and obvious to even an indoctrinated person that this was disproportional and unlawful.[286]

Outro exemplo interessante é o Caso dos Advogados que analisou o problema das limitações ao exercício da advocacia Com a reunificação, os advogados atuantes nos estados que pertenciam à antiga Alemanha Oriental ficaram em uma situação de desvantagem frente aos dos estados ocidentais — em virtude da grande mudança no campo jurídico daqueles estados. Para evitar que houvesse uma competição desigual, uma lei de 1995 estabeleceu que os advogados somente poderiam atuar dentro dos tribunais estaduais do estado em que fossem licenciados. Em 2000, essa barreira deixaria de existir nos antigos estados federados (os estados pertencentes à antiga Alemanha ocidental), enquanto nos novos estados ela permaneceria vigente até 2005. Essa diferença foi justificada pelo temor de que houvesse uma evasão em massa dos advogados dos novos estados, ao mesmo tempo que os protegeria de uma competição desigual por parte dos antigos estados. A Corte, embora reconhecesse que esses objetivos visavam ao bem comum e eram adequados, reconheceu que “essas finalidades poderiam ser alcançadas por meios mais igualitários”[287]. Assim, a Primeira Câmara decidiu que a distinção era inconstitucional e, com isso, manteve a atual situação até 2005, quando se considera que as situações dos advogados dos novos e antigos estados serão equivalentes.[288]

Também trata dos limites da liberdade profissional o Caso das Breves Reportagens [Brief-report Case], julgado pela Primeira Câmara julgou em 1998, no qual se resolveu uma colisão entre o direito de acesso a informações e o direito de exercer uma profissão e ser remunerado pelas suas atividades[289]. Devido à atual tendência de que as emissoras de televisão adquiram direitos exclusivos sobre a transmissão de um determinado evento — especialmente no caso dos esportes —, os estados decidiram criar métodos que ampliassem o acesso dos telespectadores às informações. A solução encontrada foi dar a todas as emissoras de TV o direito de fazer, gratuitamente, breves reportagens sobre os eventos de transmissão exclusiva. O governo federal, utilizando o controle abstrato, impugnou a referida norma argüindo sua inconstitucionalidade, especialmente frente às disposições que garantem a liberdade de iniciativa e o direito de propriedade. O Tribunal Constitucional Federal resolveu a questão da seguinte forma:

[T]he challenged regulation does disproportionately restrict the freedom of profession, in that the right to make brief reports at professionally arranged events can be exercised without making any payment.

Unlike other obligations imposed on the exercise of a profession, s.3a WDR-G requires the professional performance of the event organizer to serve not only the general public, but also the competitors of the television station to whom it has contractually assigned exclusive rights. The duty to allow brief television reports by other stations is not proportional to the regulation’s aim, because it places too great a burden on the organizer. It is reasonable to expect some payment from the television stations benefiting from the right to make brief reports. The determination of this payment should not be left at the discretion of the organizer, but should be decided by the legislature to balance the needs of accessibility with the organizer’s work.[290]

A referência à proporcionalidade, neste caso, é tão genérica como as que são comumente feitas pelo nosso Supremo Tribunal Federal — como veremos no capítulo seguinte. Se é possível construir a teoria do princípio da proporcionalidade, tal como exposta pela doutrina, é a partir da redescrição dos fatos por um modelo teórico coerente, e não pela simples constatação de que o Tribunal Constitucional Federal utiliza aquele princípio como instrumento dogmático para suas decisões. Toda corte constitucional vê-se constantemente frente à necessidade de resolver colisões de princípios e de valores, e para isso tende a buscar orientação nas idéias de justiça, proporcionalidade e razoabilidade. O que se espera do princípio da proporcionalidade não é simplesmente que ele desempenhe o papel de um topos ao qual as cortes devem se referir, mas que ele ofereça uma metodologia controlável e minimamente objetiva para orientar a delicada operação de ponderação de valores. Tal como descrito pela doutrina alemã, era de se esperar que ele funcionasse como argumento dogmático válido, e não apenas como diretriz para a redescrição teórica dos casos.

C - Princípio da igualdade na Alemanha

Desde o início da atividade do Tribunal Constitucional Federal, a jurisprudência entende que o mandamento de que todas as pessoas são iguais perante a lei não se referia apenas à aplicação das leis (o que equivaleria a uma igualdade meramente formal) mas também ao próprio legislador.[291] Com isso, fica reconhecida a necessidade de garantir que as leis tratem de forma igualitária a as pessoas que se encontram em situações idênticas, o que implica tratar desigualmente os desiguais.

La igualdad material conduce, pues, necesariamente a la cuestión de la valoración correcta y, con ello, a la cuestión de qué es una legislación correcta, razonable o justa. Esto pone claramente de manifiesto el problema central de la máxima general de la igualdad. Puede ser formulado en dos cuestiones estrechamente vinculadas entre sí, es decir, primero, si y en qué medida es posible fundamentar racionalmente los judicios de valor necesarios dentro del marco de la máxima de la igualdad y, segundo, quién ha de tener en el sistema jurídico la competencia para formular, en última instancia y con carácter vinculante, aquellos juicios de valor: el legislador o el Tribunal Constitucional.[292]

Para definir quais são as leis contrárias ao princípio da igualdade, o Tribunal Constitucional Federal utiliza o conceito de arbitrariedade[293] — que é o mesmo conceito utilizado no caso do princípio da proporcionalidade —, e tal como se observou no tocante à proporcionalidade, para fins de controle judicial, a noção de arbitrário é equivalente à de irrazoável: o que torna o controle de igualdade também um controle de razoabilidade. Segundo Alexy, as duas Câmaras do BVerfG tratam o problema da isonomia de forma diversa. Em uma interpretação mais tradicional, a Primeira Câmara entende que somente é aplicável a exigência da igualdade quando existe um par de comparação, ou seja, quando se avalie o tratamento desigual de dois grupos determinados. Já na Segunda Câmara, a máxima geral de igualdade é reduzida a uma proibição geral de arbitrariedade — não sendo a desigualdade em si, mas a razoabilidade em abstrato, o objeto do controle.[294] Alexy, contudo, rejeita esta segunda interpretação, utilizando para tanto os argumentos de Geiger[295]:

El examen de igualdad no sería ya lo que indica su nombre: un examen de igualdad. Del hecho de que en el marco de un examen de igualdad haya que realizar una prueba de arbitrariedad no se sigue que la máxima de igualdad exija llevar a cabo también exámenes de arbitrariedad independientemente de los exámenes de igualdad.[296]

A regra de isonomia é violada quando existe um tratamento desigual que não pode ser justificado por argumento razoável e que seja cognoscível de alguma forma. Após discutir algumas enunciações possíveis desse princípio, Alexy propõe como sendo a mais exata: o essencialmente igual não deve ser tratado de forma desigual, o que equivale a dizer que estão proibidos os tratamentos arbitrariamente desiguais.[297]

No entanto, a questão mais delicada a ser respondida não é a da correta enunciação do princípio, mas da definição dos critérios que devem ser utilizados para caracterizar um ato estatal como arbitrário. Como uma definição dessa natureza é extremamente difícil — para não dizer impossível —, é um bom começo oferecer critérios sobre o que não é uma ação arbitrária. O primeiro deles é que um tratamento desigual não precisa ser o mais justo possível para que seja aceitável (não-arbitrário): basta que haja razões plausíveis para a sua permissão.[298] Todavia, essa conclusão termina por nos levar a um raciocínio circular, pois “una razón es suficiente para la permisión de un tratamiento desigual si, en virtud de esta razón, el tratamiento desigual no es arbitrario”[299].

Com isso conclui-se que a resposta continua insuficiente, pois apenas se afirmou que o legislador tem uma margem de ação, sem contudo definir essa margem. Alexy, então, vê-se levado a admitir que, na apreciação dos casos concretos, é a opção valorativa dos juízes que vai determinar os limites da discricionariedade dos legisladores e que isso, em certa medida, significa que se dará preferência à valoração dos juízes frente à do legislador.[300]

Na interpretação da Segunda Câmara do Tribunal Constitucional Federal, referida por Robert Alexy, parece haver uma identificação entre esses dois princípios ou, mais propriamente, uma redução da igualdade à proporcionalidade. Isso acontece porque o objeto da avaliação da proporcionalidade é a arbitrariedade da decisão estatal, e na medida em que se identifica na igualdade um controle abstrato de arbitrariedade, não nos parece possível fazer uma distinção adequada entre esses dois conceitos.

Já na distinção proposta por Alexy, a diferença ocorreria na exigência de que a igualdade trate de casos em que não se discuta a arbitrariedade do ato estatal em abstrato, mas a arbitrariedade de uma discriminação contida em um ato estatal. Todavia, essa posição de Alexy parece tratar a igualdade como um caso especial de proporcionalidade. Isso aconteceria porque, mesmo que se faça uma distinção clara dos objetos, os processos de decisão seriam muito próximos.

Todavia, não encontramos indícios de que a teoria alemã dominante aceite essa relação gênero-espécie. Para explicar esse fato, é ao menos plausível supor que ocorre na Alemanha de hoje um fenômeno semelhante ao da Era Lochner nos Estados Unidos. O princípio da proporcionalidade, devido ao desenvolvimento da doutrina e da jurisprudência, adquiriu contornos mais precisos que o princípio geral de igualdade, o que pode levar a uma preferência por aquele conceito. No entanto, a escolha entre os argumentos jurídicos derivados de um modelo ou de outro é sujeito a uma série de outras variáveis, especialmente dos usos jurisprudenciais. Vejamos, por exemplo, o seguinte julgamento sobre direito eleitoral, chamado de Caso da Cláusula do Mandato Básico.

A lei eleitoral alemã estabelece que apenas podem ter assento no Bundestag[301] os partidos que tenham alcançado um mínimo de 5% dos votos proporcionais em toda a Alemanha (barreira dos 5%) ou aqueles que tenham elegidos três ou mais deputados pelo sistema majoritário (cláusula do mandato básico). Nas eleições de 1990, o Partido do Socialismo Democrático – PDS (sucessor do Partido Socialista Unitário da Alemanha, o antigo partido comunista na Alemanha Oriental) conseguiu representação no parlamento apenas porque a barreira dos 5% vigorou separadamente para os territórios dos novos e dos antigos estados[302]. No entanto, nas eleições de 1994, com a regularização do sistema eleitoral, o PDS não conseguiu cumprir qualquer dos dois requisitos da lei eleitoral e, com isso, não obteve representação proporcional no parlamento e, por isso, contestou a constitucionalidade desses requisitos perante o Tribunal Constitucional Federal[303]. Os argumentos utilizados foram que essa cláusula infringia a igualdade da lei eleitoral [art. 38 (1) da Lei Fundamental] e a igualdade de oportunidades para os partidos políticos [artigos 38 (1) 1 e 21 (1) da Lei fundamental]. A Corte, no entanto, entendeu que existe uma desigualdade, mas que a diferenciação é justificada.

The aim of proportional representation, to ensure that the membership of a parliament reflects as closely as possible the political will of the electorate, can lead to the representation of many small groups, which could prevent the formation of a stable majority. The legislature may therefore place different weightings on the second votes by means of blocking clauses, such as the well known 5% hurdle. These clauses are not restricted to the 5% hurdle and may include alternatives such as the basic mandate clause, which can be justified by the need to elect a parliament which can function effectively.

The basic mandate clause serves this legitimate need, and the legislator is not merely restricted to limiting the success of a party in proportional representation by use of the 5% hurdle. The number of successful constituency candidates can also be a measure for the party’s political support, as the clause provides for, to ensure that the parliament is not splintered into small groups.[304]

Percebemos, assim, que o Tribunal Constitucional Federal procede a uma ponderação de valores — resolvendo uma colisão entre os valores de igualdade e governabilidade —, e o faz dentro dos quadros do princípio da igualdade, e não do da proporcionalidade. Se a discussão fosse centrada na limitação em si, é provável que se utilizasse a referência à proporcionalidade. No entanto, como o problema não é o das limitações em abstrato, mas das suas conseqüências na representação — que se entende deveria ser igualitária —, o Tribunal optou por utilizar os quadros do princípio da isonomia.

D - Relações entre igualdade e proporcionalidade

Na comparação entre equal protection e due process of law, na teoria jurídica norte-americana, e entre os princípios da igualdade e da proporcionalidade, seus correspondentes na teoria jurídica européia em geral — e alemã em especial —, percebemos que entre essas duas categorias[305] há uma série de pontos em comum, ao menos pontos de convergência. A principal ligação entre esses dois institutos está no fato de que ambos tem como objetivo controlar a legitimidade dos atos estatais e que, para poder efetuar essa operação, traduzem o conceito político de legitimidade pelo conceito jurídico de razoabilidade. Ambos propõem, assim, critérios de razoabilidade que todo ato estatal precisa observar para que seja válido.

Ambos esses princípios têm origem em uma garantia formal que, com o tempo, mostrou-se insuficiente para defender os direitos individuais frente à autoridade estatal. No plano meramente forma, não há uma identificação entre os institutos: garantia de um procedimento adequado e existência de um direito uniforme. Contudo, o desenvolvimento de um controle substantivo envolve a avaliação da legitimidade das normas, o que levou os juristas a desenvolverem ambas as garantias como uma espécie de controle de legitimidade. Talvez uma descrição mais adequada para esse processo seja a de que se tornou politicamente desejável que o Judiciário controlasse a legitimidade dos atos estatais, o que levou os juristas a introduzirem nas antigas garantias formais um conteúdo substancial.

Nesse contexto de mudanças, não podemos deixar de observar que a escolha dos argumentos judiciais mais aceitáveis para a defesa dos direitos individuais depende, em grande medida, das condições históricas e sociais. Já mostramos como a jurisprudência americana oscilou entre os privilégios e imunidades, o devido processo substancial e a equal protection, e que terminou por praticamente igualar os critérios de controle ligados aos dois últimos institutos. Parece-nos claro, assim, que as diferenças entre esses dois conceitos, bem como a abrangência dos controles de legitimidade por eles estabelecidos, são bastante mutáveis e dependentes das condições históricas — em especial dos valores dominantes dentro deu uma sociedade.

De qualquer forma, esses conceitos somente entram em evidência quando o Judiciário adota uma postura ativa frente aos outros poderes. Em um país no qual o senso comum dos juristas — ao menos os valores dominantes na corte constitucional — tenha o judicial self-restraint como um valor a ser mantido, não parece possível um controle de legitimidade rígido e constante. Aparentemente, esse é o caso no Brasil. Para verificar se essa intuição corresponde aos fatos, passemos à análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Brasileiro.

Fontes bibliográficas

Aarnio, Aulis. Lo racional como razonable: un tratado sobre la justificación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991.

Aarnio, Aulis e outros (organizadores). La normatividad del derecho. Barcelona: Gedisa, 1997

Alexy, Robert. Teoría de la Argumentación Jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989.

____ . Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.

____ . Problemas da teoria do discurso. Revista Notícia do Direito Brasileiro, Nova Série, n° 1. Brasília: UnB, Faculdade de Direito: LTR, 1996, pp. 244-259.

Apel, Karl-Otto. Estudos de Moral Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 1994.

Apostolova, Bistra Stefanova. Poder Judiciário: do moderno ao contemporâneo. Porto Alegre: Fabris, 1998.

Aquino, Tomás de. Suma Teológica. Vol. II. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980.

Aristóteles. Ética a Nicômacos. Brasília: UnB, 2a ed., 1992.

Baleeiro, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 242, pp. 5-15, abr/jun 1973.

Bandeira de Mello, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 3a ed., 1993.

Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 9a ed., 1998.

Barret Jr., Edward L., Bruton, Paul W. e Honnold, John. Constitutional Law: Cases and Materials. Brooklyn: The Foundation Press (University Casebook Series), 1959.

Barros, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996.

Barroso, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2a ed., 1998.

Bitar, Orlando. Obras completas de Orlando Bitar, vol. III. Brasília: Conselho Federal de Cultura e Departamento de Assuntos Culturais, 1978.

Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 7a ed., 1997.

Cambridge International Dictionary of English. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

Canas, Vitalino. O princípio da proibição do excesso na Constituição: arqueologia e aplicações. In: Miranda, Jorge (org.). Perspectivas Constitucionais: nos 20 anos da Constituição de 1976, vol. II. Coimbra: Coimbra, 1997.

Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2a ed., 1998.

Capela, Juan-Ramon. El derecho como lenguaje: un análisis lógico. Barcelona: Ariel, 1968.

Casamiglia, A. Ensayo sobre Dworkin. In: Dworkin, R. Los Derechos en Serio. Barcelona: Ariel, 1984.

Castro, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989.

Chevalier, Jean-Jacques. As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias. Rio de Janeiro: Agir, 2ª ed., 1966.

Corwin, Edward. Liberty against Government. Louisiana State University Press, 1948.

Cushman, Robert E. e Cushman, Robert F. Cases in Constitutional Law. New York: Appleton-Century-Crofts, 1958.

Dworkin, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978.

____ . A matter of principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985.

____ . Freedom’s law: a moral reading of the American Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996.

Ely, John Hart. Democracy and Distrust: a theory of judicial review. Cambridge: Harvard University Press, 1995.

García Amado, Juan Antonio. Teorías de la tópica jurídica. Madrid: Civitas, 1988.

Glendon, Mary Ann e outros. Comparative Legal Traditions : Text, Materials, and Cases on the Civil and Common Law Traditions, With Special Reference to French, German, English. Cambridge: Harvard University Press, 2a ed., 1994.

Gunther, Gerald e Sullivan, Kathleen M. Constitutional Law. New York: The Foundation Press (University Casebook Series), 13a ed., 1997.

Guerra Filho, Willis Santiago. Os princípios da isonomia e proporcionalidade como garantias fundamentais. Ciência Jurídica, vol. 68, mar/abr de 1996.

Habermas, Jürgen. Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and democracy. Cambridge: MIT, 1996.

____ . Moral consciousness and communicative action. Cambridge: MIT, 1990.

Hart, H. L. A. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2a ed., 1994.

Haltern, Ulrich R. High time for a check-up: progressivism, populism, and constitutional review in Germany. Harvard Law Scholl Home Page, 1996.

Hobbes, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Nova Cultural, 1997.

Kelsen, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Fabris, 1986.

____ . Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1991

Kommers, Donald. The Constitutional jurisprudence of the Federal Republic of Germany. Durham: Duke University Press, 2a ed., 1997.

Larenz, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2a ed., 1982.

Leal, Victor Nunes. Problemas de Direito público e outros problemas, vol. 1. Brasília: Ministério da Justiça (Série Arquivos do Ministério da Justiça), 1997. [Republicação da obra Leal, Victor Nunes. Problemas de Direito público. Rio de Janeiro: Forense, 1960]

____ . Problemas de Direito público e outros problemas, vol. 2. Brasília: Ministério da Justiça (Série Arquivos do Ministério da Justiça), 1997.

Lima, Maria Rosynete Oliveira. Devido processo legal. Porto Alegre: Fabris, 1999. [Baseado em dissertação de mestrado defendida perante a Universidade de Brasília em 1997.]

Linares, Juan Francisco. Razonabilidad de las leyes: el “debido proceso”como garantía inominada en la Constitución Argentina. Buenos Aires: Astrea, 2a ed. (atualizada), 1989.

Locke, John. Segundo tratado sobre o governo civil. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

Mason, Alpheus Thomas e Beaney, William M. American Constitutional Law: introductory essays & selected cases. Princeton: Prentice-Hall, 2a ed., 1963.

Meirelles, Hely Lopes (atualizado por Azevedo, E. de A. e outros). Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 23a ed., 1998.

Mendes, Gilmar Ferreira Mendes. A proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. IOB, dez/1994, pp. 475-469.

Perelman, Chaïm. L’interpretation juridique. In: Archives de Philosophie du Droit. Paris: Sirey, 1972 (L’interpretation dans le droit), p. 32. [Esse artigo encontra-se traduzido para o português na obra Perelman, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 621-632.

____ . Lógica Jurídica: Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

____ . Le raisonnable e le déraisonnable en droit. In: Archives de Philosophie du Droit. Paris: Sirey, 1978. Tome 23. [Esse artigo encontra-se traduzido para o português na obra Perelman, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 427-437.]

Perelman, Chaïm e Olbrechts-Tyteca, Lucie. Tratado da Argumentação Jurídica: A Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Popper, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1996.

Pritchett, C. Herman. American Constitutional Law. New York: McGraw-Hill, 2a ed., 1962.

____ . The American Constitution. New York: McGraw-Hill, 2a ed., 1968.

____. The American Constitution System. New York: McGraw-Hill, 3a ed., 1971.

Radbruch, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Arménio Amado, 1997.

Reale, Giovanni e Antiseri, Dario. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1990.

Recaséns Siches, Luis. Jusnaturalismos actuales comparados (cursillo profesado en la Facultad de Derecho de la Universidad de Madrid, diciembre de 1969). Madrid: Universidad de Madrid, 1970.

República Federal da Alemanha. Perfil da Alemanha. Frankfurt am Main: Societäs-Verlag, 1992.

República Federal da Alemanha. Lei fundamental de República Federal da Alemanha. Bonn: Departamento de Imprensa e Informação, 1986.

Rousseau, J.-J. Du contrat social. Paris: Union Générale d’Éditions, 1963.

Schreckenberger, Waldemar. Semiótica del discurso jurídico: análisis retórico de textos constitucionales y judiciales de la República Federal de Alemania. México: Universidad Nacional Autónoma, 1987.

Schwartz, Bernard. Constitutional Law: a textbook. New York: Macmillan, 2a ed., 1979.

____. Decision: how the Supreme Court decide cases. New York e Oxford: Oxford University Press, 1996.

Spicer, George W. The Supreme Court and Fundamental Freedoms. New York: Taylor Cole (Current Political Problems), 1959.

Stumm, Raquel Denise. Princípio da proporcionalidade no Direito Constitucional brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995.

Tolstoy, León. War and Peace. Hertfordshire: Wordsworth, 1993.

Tribe, Lawrence H. American Constitutional Law. Mineola: The Foundation Press, 2a ed., 1988.

Wade, E.C.S e Bradley, A. W. Constitutional and administrative law. London e New York: Longman, 11a ed., 1993.


Também não precisamos inquirir se considerações similares são aplicáveis ao controle de constitucionalidade de leis dirigidas a minorias religiosas [...] ou raciais [...] se o preconceito contra minorias insulares e discretas pode ser uma condição especial, que tende seriamente a restringir a operação daqueles processos políticos nos quais normalmente confiamos para proteger as minorias, e que podem exigir um exame judicial correspondentemente mais cuidadoso.”

A questão decisiva perante a Corte é se a ausência dessa restrição sobre o estabelecimento de farmácias provavelmente causaria uma desordem na oferta de medicamentos de modo a causar perigo à saúde pública.

Nós não estamos convencidos que esse perigo é provável.”


  1. Apostolova, Poder Judiciário, pp. 83-87, comentando o pensamento de Max Weber. “No âmbito do pensamento weberiano, a evolução religiosa teve como resultado final o “desencantamento do mundo”, enquanto a evolução histórica levou à pluralização na esfera dos valores expressa na diferenciação social, na quebra da unidade valorativa e na existência independente de vários espaços axiológicos não mais unificados por um único valor – a idéia de Bem.” [Apostolova, Poder Judiciário, pp. 86-87] ↩︎

  2. “Como diz Agostinho, não é considerado lei o que não for justo. [...] Ora, na ordem das cousas humanas, chama-se justo o que é recto segundo a regra da razão. E como da razão a primeira regra é a lei da natureza, conforme do sobredito resulta, toda lei estabelecida pelo homem tem natureza de lei na medida em que deriva da lei da natureza. Se, pois, discordar em alguma cousa, da lei natural, já não será lei, mas corrupção dela.” [Aquino, Suma Teológica, Q. XCV, art. II, Solução]. E, para São Tomás, a lei natural é a participação dos homens na lei eterna por meio da racionalidade. A razão humana nos permitiria vislumbrar parte da lei eterna — que é a razão divina — e as normas assim identificadas seriam os mandamentos da lei natural [Aquino, Suma Teológica, Q. XCI, art. II, Solução]. ↩︎

  3. Hobbes, Leviatã, cap. XIII, § 3º. ↩︎

  4. Rousseau, Du contrat social, liv. I, cap. I, p. 50. “O homem nasceu livre e, não obstante, está acorrentado por toda parte. Julga-se senhor dos demais seres sem deixar de ser tão escravo como eles. Como se realizou essa mutação? Eu o ignoro. Que pode legitimá-la? Creio poder responder a esta questão.” ↩︎

  5. Rousseau, Du contrat social, liv. II, cap. V, p. 73. “Segue-se do que foi dito que a vontade geral é sempre reta e tende sempre à utilidade pública: mas não se segue que as deliberações do povo têm sempre a mesma retitude. [...] Há constantemente uma diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; ela não visa senão o interesse comum; a outra visa ao interesse privado e não é mais que uma soma de vontades particulares.” ↩︎

  6. Rousseau, Du contrat social, liv. II, cap. V, p. 73. “Se, quando o povo suficientemente informado delibera, os cidadãos não têm nenhuma comunicação entre eles, do grande número de pequenas diferenças resultará sempre a vontade geral, e a deliberação será boa.” ↩︎

  7. Rousseau, Du contrat social, nota ao liv. II, cap. II, p. 189. “Para que uma vontade seja geral, não é sempre necessário que ela seja unânime, mas é necessário que todas as vozes sejam contadas; toda exclusão formal rompe a generalidade.” ↩︎

  8. Habermas, Moral consciousness and communicative action. ↩︎

  9. Tanto a eficácia como a legitimidade são considerados critérios juridicamente irrelevantes. ↩︎

  10. A idéia de que as opções políticas do Estado podem restringir o direito de liberdade pressupõe a existência de uma liberdade metaestatal (pré- ou supra-estatal) — o que seria inadmissível dentro de uma teoria positivista. Mesmo uma suposição bem mais fraca, que não postulasse a existência de uma liberdade metaestatal, mas apenas de critérios valorativos metaestatais (que criassem obrigações para os legisladores, mesmo os constituintes). seria recusada pelo positivismo jurídico. Embora não se afirme que exista um direito de liberdade anterior ao Estado, mas apenas de valores sociais que precisam ser observados pelo Estado para que suas ações sejam legítimas, essa versão mais fraca seria incompatível com os cânones positivistas, os quais não admitem a problematização da legitimidade. ↩︎

  11. Hart, O conceito de Direito, p. 335. ↩︎

  12. Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 364. ↩︎

  13. Habermas, Between facts and norms, p. 447. ↩︎

  14. Reale*,* Lições preliminares de Direito, p. 105. ↩︎

  15. “Las doctrinas positivistas más desarrolladas han utilizado como criterio de identificación del sistema jurídico una norma clave. Tal es el caso de la norma fundamental de Kelsen o la regla de reconocimiento de Hart. La regla de reconocimiento de Hart consiste en una práctica social que establece que las normas que satisfacem ciertas condiciones son válidas. Cada sistema normativo tiene su propia regla de reconocimiento y su contenido varía y es una cuestión empirica. Hay sistemas normativos que reconocem como fuente del derecho un libro sagrado, o la ley, o las costumbres, o varias fuentes a la vez. La regra de reconocimiento es el criterio que utiliza Hart para identificar un sistema jurídico y fundamenta la validez de todas las normas derivadas de ella.” [Casamiglia, Ensayo sobre Dworkin, p. 9] Kelsen enfrentou esse problema (delimitação do ordenamento jurídico) utilizando o conceito de norma fundamental, uma norma hipotética cuja função é atribuir juridicidade à constituição positiva e, dessa forma, instaurar um critério de reconhecimento das normas jurídicas: são jurídicas as normas que obedeçam aos parâmetros definidos na constituição. [Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 9.] ↩︎

  16. No sentido tomista do termo, explicitado no item em que tratamos da definição do marco teórico. ↩︎

  17. E quanto a isso é interessante lembrar que o intuito inicial de Perelman era desenvolver uma lógica formal dos juízos de valor. [Perelman, Lógica Jurídica, p. 138] ↩︎

  18. Habermas, Between facts and norms, p. 447. ↩︎

  19. Recusamos, assim, a idéia da justificação apenas pelo procedimento. ↩︎

  20. E também as outras experiências ditatoriais do entre guerras. ↩︎

  21. Devemos ressaltar um controle dessa natureza existia nos Estados Unidos desde o início do século XIX, visto que a célebre decisão de Marbury v. Madison ocorreu em 1803. Todavia, um controle material das decisões do legislador somente veio a se impor com Lochner v. New York, no início do presente século. No Brasil, o controle de constitucionalidade das leis existe desde o final do século passado, com a primeira constituição republicana — mesmo que devamos admitir que tal controle tenha sido tímido durante muito tempo, especialmente pela predominância do Poder Executivo no contexto político nacional. De toda forma, as Américas conheceram a possibilidade de controle judicial da atividade política bem antes que a Europa. ↩︎

  22. Esse não é um artifício novo. Ao analisar a questão da justiça, Aristóteles se vê forçado a admitir que se trata de um termo polissêmico e que dificilmente se chegaria a uma definição de justiça consensual. Afirma, contudo, que há um certo consenso sobre as definições de injustiça, que podem ser reduzidas à idéia de ilegal e iníquo. Então, a sua definição de justiça (em sentido estrito) é feita a partir da negação da noção comum de injustiça. Repetimos aqui, pois, a mesma operação de Aristóteles — especialmente porque a legitimidade está profundamente ligada à idéia de justiça. Embora julguemos não ser possível estabelecer uma definição geral de legitimidade, parece-nos que há um certo consenso na qualificação de alguns atos como ilegítimos, já que não parece razoável afirmar que os atos arbitrários podem ser legítimos. Então, caracterizamos a legitimidade em oposição à arbitrariedade — dando um conceito que pode ser limitado, mas que ao menos tem como base uma noção aceitável dentro da sociedade. ↩︎

  23. Perelman, Le raisonable et le déraisonable en droit, p. 36. “Todo poder será censurado se ele se exerce de um modo irrazoável, e portanto inaceitável. Esse uso inadmissível do direito será qualificado tecnicamente de diversas maneiras: como abuso de direito, excesso ou desvio de poder, como iniqüidade ou má fé, como aplicação ridícula ou imprópria de disposições legais, como contrária aos princípios gerais de direito comuns a todos os povos civilizados. Pouco importam as categorias jurídicas invocadas.” ↩︎

  24. Castro, O devido processo legal..., p. 380. ↩︎

  25. Perelman, Le raisonable et le déraisonable en droit, p. 42. “Nós percebemos, assim, que, em todas as disciplinas [en toute matière], o inaceitável, o irrazoável constitui um limite a todo formalismo em matéria de Direito. A idéia do razoável, vaga mas indispensável, não pode ser precisada independentemente do meio [social] e daquilo que este considera como inaceitável. Enquanto, em Direito, as idéias de razão e de racionalidade foram ligadas, de uma parte, a um modelo divino e, de outra, à lógica e à técnica eficaz, as idéias do razoável e de seu oposto, o irrazoável, são ligadas às reações do meio social e à sua evolução. Enquanto as noções de razão e racionalidade se ligam a critérios bem conhecidos da tradição filosófica, tais como a idéia de verdade, de coerência e de eficácia, o razoável e o irrazoável são ligados a uma margem de apreciação admissível e àquilo que, excedendo os limites permitidos, parece socialmente inaceitável. Todo direito, todo poder legalmente protegido, é pactuado em vista de uma certa finalidade: o detentor desse direito tem um poder de apreciação quanto à maneira que ele o exerce. Mas nenhum direito pode ser exercido de um modo irrazoável, porque aquilo que é irrazoável não é direito. O limite assim traçado me parece definir [cerner] melhor o funcionamento das instituições jurídicas que a idéia de justiça ou de eqüidade, ligada à uma certa igualdade ou a uma certa proporcionalidade, porque, como nós vimos por vários exemplos, o irrazoável pode resultar do ridículo ou do impróprio e não apenas do iníquo ou do desigual. Introduzindo a categoria do razoável em uma reflexão filosófica sobre o direito, cremos esclarecer de forma útil toda a filosofia prática, há tanto tempo dominada pelas idéias de razão e racionalidade.” ↩︎

  26. Que serve como fundamento de validade da constituição positiva. ↩︎

  27. Na medida em que reconhecemos que os argumentos jurídicos devem observar as regras da lógica formal. ↩︎

  28. Como conceito oposto ao de ato discricionário, temos o de ato vinculado, que é aquele no qual o agente estatal procede apenas à uma conclusão, aplicando normas gerais a fatos concretos por meio de uma simples operação de dedução. ↩︎

  29. Entendido aqui o termo lei em sentido amplo, abrangendo não apenas as disposições do poder legislativo, mas qualquer norma geral e abstrata imposta pelo Estado. ↩︎

  30. Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, pp. 266-267. ↩︎

  31. Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p. 267. ↩︎

  32. Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, p. 105. ↩︎

  33. Wade e Bradley, Constitutional and administrative law, p. 676. “Uma corte somente pode interferir no exercício da discricionariedade quando a autoridade chegar a uma conclusão tão irrazoável que nenhuma autoridade razoável poderia ter chegado a ela.” ↩︎

  34. Wade e Bradley, Constitutional and administrative law, p. 676. “Conduta que nenhuma autoridade sensata, atuando com a devida apreciação de suas responsabilidades, teria decidido adotar.” ↩︎

  35. Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p. 66. ↩︎

  36. Citado no parágrafo anterior. ↩︎

  37. Wade e Bradley, Constitutional and administrative law, p. 676. “[...] a formula which seems very likely to give rise to conflicting interpretations”. ↩︎

  38. Dworkin, Taking rights seriously, p. 24. “A diferença entre princípios e regras é uma distinção lógica. Ambos os conjuntos de standards, dadas certas circunstâncias, apontam para decisões particulares sobre obrigações jurídicas, mas eles diferem no caráter da orientação que eles proporcionam. Regras são aplicáveis de uma forma tudo-ou-nada [all-or-nothing fashion]. Se ocorrem os fatos previstos na regra, então essa regra é válida, caso em que a resposta que ela oferece deve ser aceita, ou ela é inválida, caso em que ela não contribui para a decisão.” ↩︎

  39. Dworkin, Taking rights seriously, p. 25. “Mas esse não é o meio pelo qual operam os princípios. Mesmo aqueles que mais se aproximam das regras não estabelecem conseqüências jurídicas que se operam automaticamente quando ocorrem as condições previstas. Afirmamos que nosso direito respeita o princípio de que ninguém deve beneficiar-se da própria torpeza, mas não queremos dizer com isso que a lei nunca permite que um homem possa tirar vantagem dos atos ilícitos que ele comete. De fato, as pessoas se beneficiam, de forma perfeitamente legal, das ilegalidades que comentem. O caso mais notório é a adverse possession [equivalente à nossa servidão de passagem] — se eu atravesso a sua terra durante bastante tempo, algum dia eu ganharei o direito de cruzá-la quando eu assim desejar.” ↩︎

  40. Dworkin, Taking rights seriously, p. 27. “A primeira diferença entre regras e princípios gera outra. Os princípios têm uma dimensão que falta às regras — a dimensão de peso ou importância. Quando princípios colidem (a política de proteger os consumidores de automóveis colidindo com o princípio de liberdade de contrato, por exemplo), alguém que deve resolver o conflito precisa levar em consideração o peso relativo de cada um. Não é possível, certamente, uma medida exata, e o julgamento de que um princípio ou política particular é mais importante que outra pode muitas vezes ser bastante controvertido. No entanto, é uma parte integrante do conceito de princípio que ele tem essa dimensão, que faz sentido perguntar quão importante ou pesado ele é. Regras não têm essa dimensão.” ↩︎

  41. Sobre esse assunto, vide Farias, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos (a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação). Porto Alegre: Fabris, 1997. [Obra baseada em dissertação de mestrado defendida perante a UnB em 1995]. ↩︎

  42. Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 417. ↩︎

  43. Seria possível desenvolver o trabalho sem nenhuma referência expressa ao conceito de discricionariedade. Poderíamos ter optado, por exemplo, por falar — com inspiração em Kelsen — apenas em uma indeterminação necessária na passagem das normas superiores para as inferiores. Todavia, o conceito de discricionariedade é bem conhecido e consideramos esclarecedora a sua extensão à questão legislativa. De toda forma, quando falarmos de discricionariedade, estaremos tratando justamente dessa indeterminação de que falava Kelsen, dessa faculdade dos agentes públicos de escolherem uma das diversas soluções juridicamente possíveis, segundo critérios que extrapolam as meras referências ao direito positivo. Outro caminho possível seria utilizar a distinção entre casos rotineiros e casos difíceis (hard cases), típica da tradição do common law. Ronald Dworkin, ao analisar se há uma resposta jurídica para as questões jurídicas, concentra seus questionamentos nos hard cases, ou seja, nos casos em que há mais de uma interpretação plausível do direito positivo [Dworkin, Is there really no right answer in hard cases? Em: A matter of principle.]. Essa mesma diferenciação é retomada pelo finlandês Aulis Aarnio que afirma: “No quiero subestimar las decisiones rutinarias. Por el contrario: forman parte de la vida cotidiana. Sin ellas, la vida en sociedad serái simplemente impossible. Sin embargo, desde el punto de vista de la intepretación del derecho, las decisiones rutinarias tienen poco interés. En realidad, no presentan en absoluto aquellos rasgos que generalmente son considerados como característicos de la decisión jurídica. Las decisiones rutinarias son mecánicas. No permiten discrecionalidad entre las alternativas. [...] A fin de distinguirlo de las decisiones rutinarias, este tipo de decisión pode ser llamado decisión discrecional. Un rasgo típico es que más de una norma jurídica puede se aplicada al mismo conjunto de hechos o la misma norma jurídica permite más de una interpretación." [Aarnio, Lo racional como razonable, pp. 24-25] Assim, vemos que Aarnio qualifica como decisões discricionárias aquelas tomadas nos casos difíceis, e esta é a mesma idéia que propomos. Entender que nos casos difíceis — casos nos quais há, prima facie, várias interpretações possíveis — o direito positivo estabelece uma moldura, um campo de decisões possíveis entre as quais o intérprete pode optar. Todavia, de forma contrária ao positivismo kelseniano, concordamos com Perelman (que é uma das influências mais importantes de Aarnio) que é possível estabelecer critérios jurídicos que orientem a escolha discricionária do intérprete. ↩︎

  44. Embora todos os atos legislativos sejam discricionários, as opções que o legislador pode adotar são limitadas pela Constituição, que estabelece uma moldura dentro da qual a atividade legislativa pode se desenvolver de forma válida. Os atos legislativos, portanto, podem ser avaliados segundo um critério dúplice. Por um lado, temos um controle formal de vinculação aos limites impostos pela Constituição. Por outro, temos um controle de razoabilidade, no qual se avalia a legitimidade das opções valorativas efetuadas pelo legislador. ↩︎

  45. Aristóteles, Ética a Nicômacos, 1137b. ↩︎

  46. Quanto à questão das lacunas, consulte-se a excelente obra Perelman, Chaïm (org). Le problème des lacunes en droit. Travaux du Centre national de recherches en logique. Bruxelles: Émille Bruylant. ↩︎

  47. Vide Capela, El derecho como lenguaje, p. 248. ↩︎

  48. Kelsen, Teoria pura do direito, p. 364. ↩︎

  49. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 387. ↩︎

  50. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 390. ↩︎

  51. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 414. ↩︎

  52. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 418. ↩︎

  53. Barros, O princípio da proporcionalidade..., p. 68. ↩︎

  54. Gustav Radbruch chega a definir o Direito como “a realidade que possui o sentido de estar aos serviço do valor jurídico, da Ideia de direito”, e essa idéia de Direito é a Justiça. [Radbruch, Filosofia do Direito, p. 86] ↩︎

  55. Barros, O princípio da proporcionalidade..., pp. 37-41; Canotilho, Direito Constitucional, p. 261. ↩︎

  56. Literalmente: razoabilidade. ↩︎

  57. Canotilho, Direito Constitucional, p. 260. ↩︎

  58. A tradução literal de standards seria padrões. No entanto, o termo jurídico de significado mais próximo seria critérios, pois se trata de critérios de razoabilidade que se exige dos atos estatais. No entanto, quando nos referirmos expressamente ao direito norte-americano, utilizaremos o termo standard — que é a palavra usada na jurisprudência dos Estados Unidos e que tem uso corrente na teoria jurídica de outros países. ↩︎

  59. Sobre esse tema, vide Capítulo II - A - ↩︎

  60. Barros, O princípio da proporcionalidade...pp. 37-41. ↩︎

  61. Embora tenha dado alguns passos nesse sentido durante as últimas décadas. ↩︎

  62. Perelman, L’interpretation juridique, p. 32. ↩︎

  63. Categoria jurídica utilizada pela Corte Constitucional Alemã para proceder ao controle de razoabilidade. ↩︎

  64. Barros, O princípio da proporcionalidade..., p. 43. ↩︎

  65. Canotilho, Direito Constitucional, p. 417. ↩︎

  66. Schwartz, Constitutional Law, p. 204. “Ato arbitrário é sinônimo de ato irrazoável e [por isso] o devido processo torna-se um teste de razoabilidade.” ↩︎

  67. Joint Anti-Fascist Refugee Committee v. McGrath (1951). Citado por Pritchett, The American Constitution, p. 589. “O devido processo, ao contrário de alguma regras, não é uma concepção técnica com um conteúdo fixado e desligado to tempo, espaço e circunstâncias. Expressando, em última análise, uma imposição de que a lei respeite aquele sentimento de justiça ou de justo tratamento que tem sido desenvolvida durante séculos de história constitucional e civilização anglo-americana, o devido processo não pode ser aprisionado nos traiçoeiros limites de qualquer fórmula. Representando uma profunda atitude de justiça entre homem e homem, e mais particularmente entre indivíduo e governo, o devido processo é composto por história, razão, o conjunto das decisões passadas e uma grande confiança na força da fé democrática que professamos. O devido processo não é um instrumento mecânico. Não é um critério. É um processo.” ↩︎

  68. Uma das citações comuns ao se tratar dos standards do due process é a de Orlando Bitar, quando afirma — com base em Laferrière, Lambert, Kelly e Mathews [Laferrière, Julien. Les cas insulaires. Paris: Giard & Brière, 1907. Lambert, Édouard. Le gouvernment des juges et la lutte contre la législation sociale aux États Unis. Paris: Marcel Giard, 1921. Kelly, Alfred H. e Harbison, Winfred A. The American Constitution, its origins and development. Nova York: W. W. Norton, 1948. Mathews, John Marbry. The American constitutional system. Nova York e Londres: Mc Graw Hill, 2a ed, 1940]— que os seguintes standards foram desenvolvidos durante a Era Lochner: 1. rule of expediency: exigência de que o ato seja necessário para a garantia do interesse público; balance of convenience: “exigência de uma proporção eqüitativa entre o grau de intervenção da lei nos direitos dos particulares e a vantagem coletiva superveniente” ; 2. rule of reasonableness: exigência de que as limitações sejam razoáveis; 3. rule of certainty: exigência de que as leis restritivas de direitos devem ser claras nas suas permissões, proibições e sanções. [Bitar, Obras Completas, p. 115] Essa diferenciação, contudo, não parece adequada. Em primeiro lugar, nem a doutrina nem a jurisprudência norte-americana fazem clara distinção entre esses elementos, muito menos consideram que essas são as regras que compõem o due process. A divisão de princípios em subprincípios — que devem formar um todo sistemático com pretensões de completude e consistência — é um método típico da tradição romanista, em especial da tradição germânica. O common law trabalha normalmente com definições mais fluidas — e a própria opção de desenvolver o instituto do devido processo deveu-se, em grande parte, do fato da imprecisão desse conceito. Além disso, a descrição de Orlando Bitar refere-se apenas a um período da jurisprudência norte-americana: a Era Lochner, que terminou em 1937 — justamente a época em que o devido processo foi utilizada com mais alto grau de intervencionismo. Essa tentativa de visualizar uma sistematização onde ela não existe e a limitação das observações a um período ultrapassado da jurisprudência da Suprema Corte, fazem com que a divisão proposta por Bitar não seja uma descrição adequada do problema, além de não servir como base sólida para observações sobre a situação atual. ↩︎

  69. Vide Capítulo III - A - 1. ↩︎

  70. 481 U.S. 279 (1987). http://laws.findlaw.com/US/481/279.html. “Nós permanecemos aprisionados ao passado enquanto negamos a sua influência sobre o presente.” ↩︎

  71. Lochner v. New York. 198 U.S. 45 (1905). http://laws.findlaw.com/US/198/45.html. “A lei deve ter uma relação direta entre meios e fins, e a finalidade mesma precisa ser apropriada e legítima.” ↩︎

  72. 198 U.S. 45 (1905). Vide Capítulo II - B - 3. c) . ↩︎

  73. Legislativa, executiva e judiciária. ↩︎

  74. Corwin, Liberty against Government, p. 358. ↩︎

  75. Schwartz, Constitutional Law, p. 203. “Due process of law, in this sense, denotes proper procedure, and it was the meaning primarily intended by the men who drafted the Bill of Rights.” ↩︎

  76. Utilizaremos o termo União para referir-nos aos United States, que é a forma como os juristas norte-americanos designam a federação, em oposição aos estados-membros. ↩︎

  77. Em verdade, a utilização do devido processo legal substantivo já havia sido feita muito tempo antes, no caso Dred Scott, que é descrito no ponto 6.4. Todavia, como esse caso teve conseqüências políticas desastrosas, a doutrina por ele proposta terminou por ser abandonada durante décadas. ↩︎

  78. Tribe, American Constitutional Law, p. 550. ↩︎

  79. 83 U.S. (16 Wall) 36 (1873). As referências a esse caso têm como base a transcrição do acórdão constante à http://laws.findlaw.com/US/83/36.html. ↩︎

  80. Barret, Constitutional Law, p. 583. ↩︎

  81. Os principais trechos do acórdão encontram-se transcritos no Apêndice. ↩︎

  82. Uma maioria, aliás, muito estreita. Dos nove Justices, quatro dissentiram. ↩︎

  83. “Nós demos todas as oportunidades para que as partes fossem ouvidas; discutimos livremente e comparamos os nossos pontos de vista; tomamos o tempo necessário para uma deliberação cuidadosa e agora anunciamos os juízos que formamos sobre a interpretação daqueles artigos, até o ponto em que consideramos necessário para a decisão dos presentes casos, e além desse ponto não temos a pretensão nem o direito de avançar.” ↩︎

  84. “O primeiro desses parágrafos [que prevê a cláusula do devido processo legal] está presente na Constituição desde a adoção da 5a Emenda como um limite ao poder federal. Ela também é expressa de alguma forma nas constituições de quase todos os estados, como uma limitação aos poderes dos estados. Essa norma tem sido praticamente a mesma durante a existência do governo, com a exceção de que a nova emenda coloca a restrição aos poderes dos estados nas mãos do governo federal. Há, dessa forma, interpretações determinando o significado da cláusula, tanto no âmbito estatal como federal. E é suficiente dizer que nenhuma das interpretações que conhecemos, ou que consideramos admissíveis, sobre essa previsão permite que a restrição imposta pelo estado da Louisiana ao exercício da profissão de açougueiro em Nova Orleans possa ser entendida como uma privação da propriedade, dentro do sentido dessa disposição.” ↩︎

  85. Barret, Constitutional Law, p. 587. ↩︎

  86. 94 U.S. 113 (1877) ↩︎

  87. Essa diferenciação entre o âmbito estatal e o federal era de fundamental importância nos Estados Unidos do século passado, pois se trata de um Estado federativo constituído por agregação, no qual a extensão dos poderes reservados aos estados membros era muito grande, sendo-lhes inclusive reconhecida uma espécie de soberania limitada. Tal distinção conserva sua importância, mas em menor escala porque se consolidaram várias formas de intervenção do governo federal no poder dos estados. Essa intervenção somente começou a ocorrer no início do século, quando se consolidou na Corte a teoria do devido processo substancial. ↩︎

  88. Fairman, Charles. Mr. Justice Miller and the Supreme Court, 1962-1890, pp. 373-374. Citado por Mason, American Constitutional Law, p. 387. “É vão lutar contra juízes que, por quarenta anos, foram advogados de companhias ferroviárias e outras sociedades comerciais, quando eles são chamados a decidir casos em que estão envolvidos interesses como esse [imposição estatal de direitos trabalhistas]. Todo o seu treinamento, todos os seus sentimentos encontram-se, desde o início, a favor daqueles que não precisam dessa influência.” ↩︎

  89. Gunther, Constitutional Law, p. 431. ↩︎

  90. Corwin, Liberty against Government, p. 91. “Ninguém será detido, preso, despojado ou privado de sua propriedade, imunidades ou privilégios, posto fora da proteção do direito, exilado ou privado de sua vida, liberdade ou patrimônio, exceto pelo julgamento de seus pares ou pelo direito costumeiro local [law of the land]”. ↩︎

  91. Corwin, Liberty against Government, p. 91. “Nenhum homem, independentemente de sua origem ou condição, será despojado de suas terras e edifícios, nem detido, nem preso, nem deserdado, nem condenado à morte, sem que ele seja chamado a defender-se de acordo com o devido processo legal”. ↩︎

  92. Corwin, Liberty against Government, p. 90. “A corte afirmou claramente, na sua opinião no caso Charles River Bridge, que, à parte da cláusula da ‘obrigação dos contratos’, a Constituição dos Estados Unidos não continha qualquer disposição que protegesse os direitos individuais [vested rights] contra o poder legislativo estadual. Então, tornou-se cada vez mais evidente que a doutrina dos direitos individuais, para sobreviver, deveria ser ancorada em alguma das cláusulas contidas pelas várias constituições estaduais. Uma cláusula com essas características já havia, antes de 1837, sido sugerida na jurisdição da Carolina do Norte, exatamente com esse objetivo: a cláusula do ‘direito local’ [law of the land clause] da Constituição Estadual; e a contrapartida histórica dessa cláusula, a cláusula do devido processo legal — que ingressou no constitucionalismo norte-americano na declaração nacional de direitos [Bill of Rights] em 1791 — foi naquela época utilizada com um papel similar pela influente jurisdição de Nova York. Ambas as cláusulas possuíam a vantagem de que a precisa significação histórica dos termos law of the land e due process of law era coberta por um considerável mistério, mas a cláusula do devido processo legal finalmente prevaleceu porque ela continha as palavras, ao mesmo tempo abrangentes e sucintas [compendious], ‘liberdade’ e ‘propriedade’.” ↩︎

  93. Justices Bradley, Field, Chase e Swayne. ↩︎

  94. Voto dissidente de Field “[The] question presented [is] one of the gravest [importance]. It is nothing less than the question whether the recent [Amendments] protect the citizens of the United States against the deprivation of their common rights by State legislation. In my judgment the fourteenth amendment does afford such [protection]. The amendment does not attempt to confer any new privileges of immunities upon citizens, or to enumerate or define those already existing. It assumes that there are such privileges and immunities which belong of right to citizens as such, and ordains that they shall no be abridged by State legislation. If this inhibition has no reference to privileges and immunities of this character, but only refers, as held by [the majority], to such privileges and immunities as were before its adoption specifically designated in the Constitution or necessarily implied as belonging to citizens of the United States, it was a vain and idle enactment, which accomplished nothing. With privileges and immunities thus designated or implied no State could ever have interfered by its laws, and no new constitutional provision was required to inhibit such interference. [But] if the amendment refers to the natural and inalienable rights which belong to all citizens, the inhibition has a profound [significance].” [16 Wall. (83 U.S.) 36 (1873), em Gunther, Constitutional Law, p. 427] “A questão apresentada é da maior importância. Não é nada menos que a questão sobre se as recentes emendas protegem os cidadãos dos Estados Unidos contra a privação dos seus direitos comuns pelos estados. Na minha opinião, a 14a Emenda estabelece essa proteção. A Emenda não tenta conferir novos privilégios ou imunidades aos cidadãos, nem a enumerar e definir as que já existem. Ela assume que há privilégios e imunidades que pertencem ao direito dos cidadãos como tais, e ordena que elas não sejam restringidas pelos estados. Se essa proteção não se refere a privilégios ou imunidades deste caráter, mas, como sustenta a maioria, refere-se apenas aos privilégios e imunidades que, antes da adoção da emenda, foram expressamente reconhecidos pela Constituição ou nela estão implícitos como pertencentes a todos os cidadãos dos Estados Unidos, então essa seria uma disposição vã e inútil. Nenhum estado poderia interferir em privilégios e imunidades expressos ou implícitos, e não era necessária qualquer emenda constitucional para proibir tal interferência. Mas se a emenda refere-se aos direitos naturais e inalienáveis que pertencem aos cidadãos, a proibição seria de profunda importância.” ↩︎

  95. 16 Wall. (83 U.S.) 36 (1873). Gunther, Constitutional Law, pp. 428-429. “Em meu juízo, era a intenção do povo desse país ao adotar a 14a Emenda, prover uma segurança nacional contra violações, pelos estados, dos direitos fundamentais dos cidadãos. A norma que estabelece um monopólio, priva uma grande classe de cidadãos do privilégio de perseguir uma profissão lícita. Segundo meu ponto de vista, uma lei que proíbe uma grande classe de cidadãos de adotar uma profissão lícita, ou de continuar a exercer uma profissão anteriormente escolhida, priva-os de liberdade, bem como de propriedade, sem o devido processo legal. O seu direito de escolha é uma parte da sua liberdade e a sua ocupação [profissional] é parte da sua propriedade. Uma tal lei também priva esses cidadãos da igual proteção do Direito, contrariamente à última cláusula da seção. É fútil argumentar que a Emenda apenas pretendeu beneficiar as pessoas da raça africana. Eles podem ter sido a causa primária da Emenda, mas a sua linguagem é geral, abrangendo todos os cidadãos, e creio que de forma intencional.” ↩︎

  96. Davidson v. New Orleans, 96 U.S. 97 (1877). Gunther, Constitutional Law, pp. 457-458. “Essa corte está repleta de casos em que se pede que afirmemos que as cortes e assembléias legislativas estaduais privaram seus cidadãos da vida, de liberdade ou propriedade sem devido processo legal. Há abundante evidência de que existe uma estranha falta de compreensão sobre o escopo dessa disposição, tal como expressa pela 14a Emenda. De fato, pareceria que a cláusula em consideração é vista como um meio de trazer à avaliação desta Corte as opiniões abstratas de todo litigante sem sucesso nas cortes estaduais sobre a justiça da decisão promulgada contra eles e sobre os méritos da legislação em que tal decisão é fundamentada.” ↩︎

  97. 123 U.S. 632 ↩︎

  98. 198 U.S. 45 (1905). ↩︎

  99. Tribe, American Constitutional Law, p. 568. ↩︎

  100. http://laws.findlaw.com/US/198/45.html. “A disposição da lei ‘não se poder requerer ou permitir que um empregado trabalhe [mais que 10 horas]’ é o equivalente substancial à disposição de que ‘nenhum empregado pode estabelecer contrato’ pelo qual se obrigue a trabalhar mais que dez horas por dia; e, como não há qualquer previsão para emergências especiais, a lei é aplicável a todos os casos. Não se trata de uma lei meramente fixando o número de horas que deve constituir a jornada diária, mas uma proibição absoluta ao empregador de ter, sob quaisquer circunstâncias, mais que dez horas prestadas no seu estabelecimento. O empregado pode desejar ganhar dinheiro extra que adviria do seu trabalho além do tempo previsto, mas essa lei proíbe o empregador de permitir ao empregado esse ganho. A lei necessariamente interfere com o direito de contrato entre o empregador e os empregados, quanto ao número de horas que este pode trabalhar na padaria do empregador. O direito geral de fazer um contrato em relação ao próprio negócio é parte da liberdade do indivíduo protegida pela 14a Emenda à Constituição Federal. [...] O direito de comprar ou vender trabalho é parte da liberdade protegida por essa emenda, a menos que haja circunstâncias que excluam o direito. [...] Tanto a propriedade como a liberdade podem ser restringidas por condições razoáveis que podem ser impostas pelos governos dos estados. [...] Essa Corte reconheceu a existência e considerou válido o exercício dos poderes de polícia [police powers] em muitos casos que certamente poderiam ser considerados casos de fronteira [...] Deve ser reconhecido, é claro, que existe um limite ao válido exercício do poder de polícia pelo estado. Não há controvérsia sobre essa disposição geral. [...] [Quanto a esses casos, é sempre possível questionar:] É justo, razoável e apropriado exercício do poder de polícia do estado, ou é irrazoável, desnecessária e arbitrária interferência no direito do indivíduo à sua liberdade pessoal a estabelecer contratos em relação ao trabalho que lhe possam parecer apropriados ou necessários para o seu sustento ou de sua família? É claro que a liberdade de contrato relacionada ao trabalho envolve as duas partes. Uma tem tanto direito de comprar trabalho quanto a outra tem de o vender. Essa não é uma questão de substituir o julgamento do legislativo pelo da Corte. Se a lei estiver dentro do poder do estado ela é válida, embora o julgamento da corte possa ser totalmente oposto ao estabelecimento de tal lei. Mas a questão permanece: está dentro do poder de polícia do estado? e essa questão deve ser respondida pela corte. [...] Esta é uma questão sobre qual de dois poderes ou direitos deve prevalecer — o poder do estado de legislar ou o direito do indivíduo à liberdade pessoal e de contrato. A simples afirmação de que o objeto tem relação, embora em um grau remoto, com a saúde pública, não torna a lei necessariamente válida. A lei deve ter uma relação mais direta entre meios e fins, e a finalidade mesma precisa ser apropriada e legítima, antes que possa ser considerada válida uma lei que interfira com o direito geral de um indivíduo de ser livre em sua pessoa e em seu poder de contratar quanto ao seu próprio trabalho. [...] Nós acreditamos que o limite ao poder de polícia foi alcançado e ultrapassado nesse caso. [...] Pensamos que não há qualquer dúvida razoável de que a profissão de padeiro, em si própria, não é prejudicial à saúde [unhealthy] a um tal grau que autorizaria o legislador a interferir no direito ao trabalho e no direito à liberdade de contrato dos indivíduos, seja na qualidade de empregador ou de empregado.” ↩︎

  101. Spicer, The Supreme Court and Fundamental Freedoms, p. 12. “Segundo essa interpretação, a substância ou conteúdo [substance or content] do direito estadual precisa ser razoável para que seja constitucional. Mas a doutrina foi primeiramente aplicada para salvaguardar os direitos de propriedade e a liberdade de contratar, primordialmente das corporações, frente ao poder de polícia dos estados, que se mostrava na forma de legislação social, e [tal doutrina] foi rejeitada como base para a proteção das liberdades civis contra os estados por mais um quarto de século. Isso é irônico quando lembramos que a intenção original da 14a Emenda era salvaguardar os direitos individuais dos negros que haviam sido libertados da escravidão pela 13a Emenda.” ↩︎

  102. 198 U.S. 45 (1905). ↩︎

  103. Caso que estabelece as bases de um posicionamento jurisprudencial, funcionando como precedente mais importante quanto a uma matéria. ↩︎

  104. Schwartz, Constitutional Law, p. 205. “Ao afirmar a invalidade da lei, a Corte substituiu o julgamento do legislador pelo seu próprio e decidiu por si mesma que a lei não era razoavelmente relacionada a nenhuma das finalidades sociais para as quais o poder de polícia podia ser validamente exercido.” ↩︎

  105. Schwartz, Constitutional Law, p. 205. “A Corte, ao aplicar o devido processo dessa maneira, chegou perto de exercer as funções de um ‘super-legislador’, colocando-se como um virtual supremo censor da sabedoria da legislação.” ↩︎

  106. Gunther, Constitutional Law, p. 465. “Este caso foi decidido foi decidido com base em uma teoria econômica que uma grande parte do país não compartilha. Se a questão fosse definir se eu concordo ou não com essa teoria, eu desejaria estudá-la longa e aprofundadamente antes de tomar uma posição. Mas eu não entendo ser esse o meu dever, porque acredito firmemente que minha concordância ou discordância não tem nada a ver com o direito da maioria de impor suas opiniões por meio de leis. Várias decisões desta Corte admitem que leis estaduais podem estabelecer regulações que, se fôssemos legisladores, poderíamos considerar tão irrazoáveis [injudicious] ou tão tirânicas como esta, e que igualmente interferem na liberdade de contratar. [...] Algumas dessas leis traduzem convicções ou preconceitos que nós juízes normalmente partilhamos. Algumas não. Mas não se pretende que uma constituição imponha uma teoria econômica particular, seja a do paternalismo e da relação orgânica entre o cidadão e o Estado, seja o laisser-faire. Ela é feita por pessoas com visões fundamentalmente diferentes, e a contingência de considerarmos certas opiniões naturais e familiares ou novas, e até mesmo chocantes, não deveria influenciar nosso julgamento sobre se as leis que nelas se inspiram estão em conflito com a Constituição. Creio que a palavra liberdade, na 14a Emenda, é pervertida quando ela é utilizada para evitar a natural imposição da opinião dominante, a menos que possa ser dito que um homem racional e justo [rational and fair] necessariamente iria admitir que a lei proposta infringiria princípios fundamentais, como tal entendidos pelas tradições de nosso povo e de nosso Direito. Não é necessária pesquisa para mostrar-nos que uma tal condenação absoluta não pode ser feita à lei em questão. Um homem razoável pode considerará-la um meio adequado para garantir a saúde. Homens que eu não poderia considerar irrazoáveis a entenderiam como um primeiro passo para uma regulação geral das jornadas de trabalho.” ↩︎

  107. Schwartz, Constitutional Law, p. 206. “Poderiam legisladores racionais ter entendido a lei como um método razoável de garantir a saúde, segurança, moral e bem estar da população?” ↩︎

  108. Barret, Constitutional Law, p. 974. ↩︎

  109. 249 U.S. 47 (1919). “A questão em todo caso é se as palavras utilizadas foram usadas em circunstâncias tais e são de tal natureza a criar um perigo real e iminente [clear and present danger].” ↩︎

  110. Abrams v. U.S, 250 U.S. 616 (1919). ↩︎

  111. Gunther, Constitutional Law, p. 1041. “Creio que devemos ser eternamente vigilantes contra as tentativas de avaliar a expressão de opiniões que odiamos e acreditamos serem mortíferas [believe to be fraught with death], a menos que elas ameacem interferir imediatamente em objetivos lícitos e urgentes do direito de forma tão iminente que uma reação imediata seja necessária para salvar o país.” ↩︎

  112. Spicer, The Supreme Court and Fundamental Freedoms, p. 12. “O direito estadual de regulamentar um serviço público abrange o poder de impor todas as restrições que um legislativo tenha uma “base racional” para adotar, desde que seja respeitado o devido processo [so far as the due process test is concerned]. Mas as liberdades de expressão e de imprensa, de assembléia e de credo religioso não podem ser limitadas com esses escassos argumentos [on such slender grounds]. Elas são suscetíveis de restrição apenas para prevenir perigos graves e imediatos a interesses que o estado pode licitamente.” ↩︎

  113. Tribe, American Constitutional Law, p. 568. ↩︎

  114. 208 U.S. 412 (1908). ↩︎

  115. Tribe, American Constitutional Law, p. 569. “Lochner mesmo oferece o melhor exemplo de uma avaliação estrita e cética entre meios e fins. [...] Ainda que consideráveis evidências, discutidas a fundo pelo Justice Harlan em voto dissidente, sugerissem que limitar a jornada de trabalho tal como fez Nova York melhoraria a saúde dos padeiros, cujas condições de trabalho aparentemente acarretavam significantes ameaças à sua saúde e bem-estar.” ↩︎

  116. 169 U.S. 366 (1898). ↩︎

  117. Tribe, American Constitutional Law, p. 571. ↩︎

  118. Tribe, American Constitutional Law, p. 573. ↩︎

  119. Plano de recuperação econômica dos Estados Unidos — em resposta aos problemas causados pela crise financeira de 1929 — que foi a promessa de campanha que levou Franklin Roosevelt à presidência. ↩︎

  120. Barret, Constitutional Law, p. 211. “Um vigor mental e físico diminuído leva os homens a evitar o exame de condições complicadas e cambiantes. Pouco a pouco, novos fatos tornam-se borrados [blurred] pelos velhos óculos adaptados às necessidades de outra geração; homens mais velhos, assumindo que a situação é a mesma que existia no passado, deixam de explorar ou inquirir sobre o presente e o futuro.” ↩︎

  121. Inclusive no Brasil, especialmente com a elaboração da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, de 1943. ↩︎

  122. Tribe, American Constitutional Law, p. 568. “Muitos observadores têm argumentado que as decisões da Suprema Corte durante a Era Lochner foram motivadas pela ideologia econômica conservadora da maioria e pela sua hostilidade frente à regulação do trabalho. Qualquer que seja a validade dessas sugestões, é claro que não eram poucos os americanos que [more than a few Americans] compartilhavam as crenças conservadoras sustentadas por alguns dos membros da Corte. Muitas assembléias estaduais e cortes resistiram ao movimento progressista, e é claro que os pontos de vista da Suprema Corte ecoaram uma poderosa corrente no pensamento e política do início do século XX. Por exemplo, Charles Warren notou que o número de comentadores contemporâneos que aprovaram a decisão de Lochner v. New York ao menos igualava o número dos que a atacaram [Warren, C. The Supreme Court in United States History 435-36 n° 1 (1922)]. A inclinação da Corte na Era Lochner [...] não estava na vanguarda do pensamento social e econômico, mas ao menos até os anos 30, elas estavam longe de ser aberrantes ou particularmente retrógradas.” ↩︎

  123. Gunther, Constitutional Law, p. 453. ↩︎

  124. Artigo I, § 10: “No State shall [...] pass any...Law impairing the Obligation of Contracts” [Nenhum estado estabelecerá leis que limitem a obrigação de cumprir os contratos]. ↩︎

  125. 14a Emenda, § 1: “No State shall...deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws” [Nenhum estado poderá negar a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção das leis]. ↩︎

  126. Equivalente ao de presidente da Corte. Mas devemos ressaltar que as funções do Chief Justice são bem mais amplas que a do Presidente do STF, pois além de presidir as seções, cabe ao Chief Justice escolher quem vai escrever a opinião da Corte nos casos em que ele fizer parte da maioria — podendo reservar para si a elaboração das opiniões mais importantes. Além disso, trata-se de um cargo vitalício. A influência dos Chief Justice nas orientações da Suprema Corte é tamanha que a sua história é dividida em períodos relativos à direção de cada um dos Chief Justice: Corte Warren, Corte Burger, Corte Marshall etc. ↩︎

  127. 348 U.S. 483. ↩︎

  128. Gunther, Constitutional Law, pp. 481-482. “A lei [de Oklahoma] pode fazer exigências inúteis e dispensáveis em muitos casos. Mas cabe ao legislativo, e não às cortes, ponderar as vantagens e desvantagens da nova exigência. Parece que, em muitos casos, o oculista pode facilmente suprir novas armações ou novas lentes sem referência à prescrição anteriormente escrita. Também parece que muitas prescrições escritas não contêm informações sobre a adaptação dos óculos à face. Mas, em alguns casos, as orientações contidas nas prescrições são essenciais para que os óculos sejam adaptados de forma a corrigir os defeitos particulares de visão ou aliviar a condição oftalmológica. O legislador pode ter concluído que a freqüência de ocasiões em que a prescrição é necessária era suficiente para justificar essa regulação sobre a adaptação dos óculos. [...] Ou o legislador pode ter concluído que exames oftalmológicos eram tão importantes, não apenas para a correção da visão, mas também para a detecção de males ou doenças latentes[129], que cada mudança de armações e cada duplicação de lentes deveria ser acompanhado pela prescrição de um especialista médico. É suficiente que haja um mal a ser corrigido e que seja plausível que um meio legislativo particular seja um modo racional de corrigi-lo. É passada a época em que esta Corte usava a cláusula do devido processo legal para anular leis estaduais, reguladoras de condições comerciais [business] e industriais, porque elas eram consideradas insensatas [unwise], inoportunas [improvident] ou contrárias a uma particular escola de pensamento.” ↩︎

  129. Modificação exposta no ponto Capítulo II - B - 3. c) ↩︎

  130. 381 U.S. 479 (1965). ↩︎

  131. Gunther, Constitutional Law, pp. 518-527. “Encontramo-nos face a uma série de questões que envolvem a cláusula do Due Process da 14a Emenda. Alusões a alguns argumentos sugerem que [Lochner] deveria ser nosso guia. Mas nós declinamos tal convite como fizemos em [West Coast Hotel, Olsen v. Nebraska, Lincoln Union e Lee Optical]. Não nos sentamos como um super-legislador para determinar a sensatez, necessidade e propriedade das leis que tocam problemas econômicos, assuntos comerciais ou condições sociais. Essa lei, no entanto, opera diretamente em uma íntima relação de marido e mulher e o papel de seu médico em um aspecto dessa relação [...] Os casos anteriores sugerem que as garantias específicas do Bill of Rights apresentam penumbras, formadas pelas emanações daquelas garantias que ajudam a dar-lhe vida e substância. Várias garantias criam zonas de privacidade. [...] Recentemente nos referimos à 4a Emenda como criadora de um “direito à privacidade, não menos importante que qualquer direito cuidadosamente e particularmente reservado ao povo”. Também tivemos muitas controvérsias sobre esses “penumbrosos” [penumbral] direitos de “privacidade e repouso”. Esses casos são testemunhas de que o direito à privacidade que aqui clama por reconhecimento é legítimo. O presente caso, então, trata de uma relação que se encontra na zona de privacidade criada por diversas garantias constitucionais. É concernente a uma lei que, proibindo o uso de contraceptivos ao invés de regular sua fabricação ou venda, procura atingir seus objetivos por meios que têm um impacto destrutivo máximo sobre aquela relação. Tal lei não se sustenta em face ao familiar princípio de que uma “finalidade governamental de controlar ou prevenir atividades constitucionalmente sujeitas à regulação estadual não pode ser alcançada por meios de alcance desnecessariamente amplo e que, dessa forma, invadem a área de proteção das liberdades” NAACP [Associação Nacional para a Promoção de Pessoas de Cor] v. Alabama [357 U.S. 449 (1958)].” ↩︎

  132. Gunther, Constitutional Law, p. 520. “[Embora] não aceitemos a visão de que o devido processo, tal como usado na 14a Emenda, incorpora todas as primeiras oito emendas, concordo que o conceito de liberdade protege aqueles direitos pessoais que são fundamentais e não se confina aos termos específicos do Bill of Rights. Minha conclusão [de que a liberdade] abrange o direito marital de privacidade, embora aquele direito não seja mencionado explicitamente na constituição, é fundamentada por numerosas decisões [e] pela linguagem e história da 9a Emenda, [que] revela que os constituintes [acreditavam] que havia direitos fundamentais adicionais protegidos frente à ingerência governamental, que existem ao lado daqueles direitos fundamentais especificamente mencionados nas primeiras oito emendas.” ↩︎

  133. Como Pierce v. Society of Sisters, Meyer v. Nebraska, NAACP v. Alabama, NAACP v. Button. ↩︎

  134. O holding é a parte da decisão que forma o precedente que deverá ser observado nos casos futuros. Trata-se dos fundamentos jurídicos necessários para a conclusão da Corte. O conceito oposto a holding é o de obiter dicta, que são as idéias laterais que contribuem para a compreensão dos fatos e do direito aplicável, mas que não são fundamentos diretos da decisão — e que, portanto, não fazem parte do precedente. ↩︎

  135. O common law admite que os cidadãos e organizações interessadas em assunto que seja objeto de processo na Suprema Corte manifestem suas opiniões, apresentando memoriais com argumentos e fatos que apoiem quaisquer das teses. Essas pessoas, chamadas de amici curiae (plural de amicus curiae), não se tornam partes do processo, nem mesmo assistentes, pois têm apenas o direito de apresentar suas razões. Convém observar que o instituto do amicus curiae permite uma discussão bastante abrangente, na qual podem participar todos os interessados — ao contrário do que acontece no atual modelo brasileiro de controle de constitucionalidade, que reduz o debate às pessoas que figuram como partes no processo. Dessa forma, o julgamento da Suprema Corte passa a ser o resultado de um debate realmente amplo, o que confere à decisão um alto grau de legitimidade (no sentido de aceitabilidade social). Além disso, evita-se em grande medida um problema típico do controle de constitucionalidade. Em um modelo como o brasileiro, é bastante perigosa a declaração de constitucionalidade de uma norma, na medida em que o STF pode não perceber a incompatibilidade da lei impugnada frente a um dispositivo constitucional que não tenha sido invocado por qualquer das partes. E, como a declaração de constitucionalidade tem efeito vinculante, não seria provável a admissão posterior de uma argüição de inconstitucionalidade dessa norma, mesmo que baseada em novos fundamentos. Embora essa dificuldade não possa ser completamente afastada — exceto pela extinção do instituto da declaração de constitucionalidade — , ela pode ser minimizada na medida em haja uma abertura para a participação da sociedade civil no debate. Com isso, seria possível que os vários segmentos sociais levassem ao STF seus argumentos, o que daria ao Tribunal a possibilidade de estudar a questão sob os mais diversos enfoques, permitindo uma análise mais abrangente e profunda da situação. Nos Estados Unidos, essa questão é enfrentada a partir do instituto do amicus curiae. No Brasil, a discussão sobre o tema ainda é incipiente, mas já há uma iniciativa no sentido de garantir uma maior abertura nas discussões judiciais em sede de controle de constitucionalidade. Tramita hoje em dia no Congresso Nacional um projeto de lei apresentado pelo Presidente da República, no qual está prevista a possibilidade de que os interessados apresentem suas razões perante a o Supremo Tribunal Federal (art. 6o, 2o: “poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento dos interessados no processo”). ↩︎

  136. Gunther, Constitutional Law, pp. 530-538. “A Constituição não menciona explicitamente qualquer direito à privacidade. [Mas] a Corte reconheceu que um direito de privacidade pessoal, ou uma garantia a certas áreas ou zonas de privacidade, existe de acordo com a Constituição. [...] Esse direito à privacidade [...] é amplo o suficiente para abranger a decisão de uma mulher sobre terminar ou não sua gravidez. O prejuízo que o Estado imporia sobre a mulher grávida ao vedar completamente essa opção é claro [...] Os recorrentes e alguns amici[137] sustentam que o direito da mulher é absoluto e que ela pode terminar sua gravidez a qualquer tempo, de qualquer modo e oferecer qualquer razão que ela escolha. Com isso, nós não concordamos. [As] decisões da Corte reconhecendo o direito à privacidade também afirmam que alguma regulação estadual em áreas protegidas pelo direito é apropriada. [Um] estado pode legitimamente defender importantes interesses em salvaguardar a saúde, em manter padrões médicos e em proteger vidas potenciais. Em algum ponto da gravidez, esses interesses tornam-se suficientemente fortes [compelling] para justificar a regulação dos fatores que governam a decisão sobre o aborto. [...] Com respeito ao interesse na saúde da mãe, o ponto limite [compelling point], à luz do presente conhecimento médico, ocorre aproximadamente no fim do primeiro trimestre. Isso é assim em virtude do fato médico estabelecido de que, até o fim do primeiro trimestre, a mortalidade em abortos é menor que a mortalidade em partos normais. Portanto, desse ponto em diante, o Estado pode regular a realização de abortos, desde que a regulação seja razoavelmente relacionada com a preservação e proteção da saúde materna [...] A regulação protetiva da vida fetal após a viabilidade, então, tem justificativas tanto lógicas como biológicas. Se o Estado está interessado em proteger a vida fetal após a viabilidade, ele pode ir ao ponto de proscrever o aborto durante esse período, exceto quando é necessário para preservar a vida ou a saúde da mãe. Medido de acordo com esses padrões [standards], a lei texana tem um alcance excessivamente amplo e não pode sobreviver ao ataque constitucional feito sobre ela. Para resumir e repetir: uma lei criminal estadual sobre o aborto do tipo da atual lei do Texas, que excepciona da criminalidade apenas o procedimento que visa a salvar a vida da mãe, sem considerar o estágio da gravidez nem qualquer outro dos interesses envolvidos, viola o devido processo. (a) Após o primeiro trimestre, a decisão sobre o aborto e sua realização deve ser deixada ao julgamento do médico da mulher grávida. (b) Após o primeiro trimestre, o Estado, promovendo seu interesse na saúde da mãe, pode, se assim escolher, regular o procedimento de aborto de formas que sejam razoavelmente relacionadas à saúde da mãe. (c) A partir do estágio de viabilidade, o Estado, promovendo o interesse na potencialidade da vida humana, pode optar por regular, e mesmo proscrever, o aborto, exceto quando ele é necessário, segundo um julgamento médico apropriado, para a preservação da vida ou da saúde da mãe. Consideramos que esse holding é consistente com os pesos relativos dos respectivos interesses envolvidos, com as lições e exemplos da história médica e jurídica, com a tolerância do common law e com as demandas dos profundos problemas dos dias atuais.” ↩︎

  137. Spicer, The Supreme Court and Fundamental Freedoms, p. 12. ↩︎

  138. 262 U.S. 390 (1923) ↩︎

  139. Gunther, Constitutional Law, p. 466. “Ela [a Suprema Corte] deixou de aplicar um escrutínio minucioso à maior parte dos assuntos econômicos, mas aumentou a intervenção no tocante a interesses pessoais não-econômicos e não protegidos expressamente pela Constituição.” ↩︎

  140. Que não se mostrou tão conservador quanto era esperado pelo Presidente Nixon e que, além disso, não conseguiu catalisar um processo de retorno ao judicial restraint. ↩︎

  141. Que, embora indicado por Nixon, foi o relator da opinião da Corte em Roe v. Wade, a decisão de maior rejeição por parte dos conservadores norte-americanos. ↩︎

  142. A primeira mulher indicada para a Corte. Atualmente duas mulheres oficiam na Suprema Corte: Sandra O’Connor e Ruth Ginsburg ↩︎

  143. O primeiro Justice de ascendência italiana. ↩︎

  144. Que acompanhou Rehnquist em seu voto dissidente em Roe v. Wade. ↩︎

  145. Gunther, Constitutional Law, p. 75. ↩︎

  146. Dworkin, Freedom’s Law, p. 286. ↩︎

  147. Lembre-se que William Rehnquist fora nomeado Chief Justice em 1986, apenas um ano antes da rejeição de Bork. ↩︎

  148. Esse caso será descrito de acordo com a exposição feita por Bernard Schwartz, em seu livro Decision: how the Supreme Court decide cases [Decisão: como a Suprema Corte decide processos]. Essa é uma obra interessante, que de acordo com o próprio autor, “pode ser o último da sua espécie — ao menos por algum tempo. O tipo de acesso que eu tive aos Justices e seus papéis pode agora ser coisa do passado”[Schwartz, Decision, p. IX]. Para o devido entendimento dessa afirmação, cumpre conhecer um pouco do modo de operação da Suprema Corte. A apresentação de casos ao Tribunal é normalmente feita por meio de writs of certiorari, um tipo de processo cujo conhecimento pela Corte depende da vontade de no mínimo quatro Justices. Acontece que a apreciação dos writs of certiorari é secreta e a sua negação não precisa ser fundamentada, o que confere aos Justices liberdade ilimitada para decidirem o que a Suprema Corte irá julgar. Admitido o certiorari, abre-se uma audiência pública, na qual cada uma das partes tem trinta minutos para expor seus argumentos. É interessante observar que, ao contrário do que ocorre no Judiciário brasileiro, esse tempo não é utilizado para que as partes façam uma sustentação oral monológica. Atualmente, durante essa meia hora ocorre um verdadeiro diálogo entre os Justices e os advogados das partes (chamados de counsels), na qual o tempo é normalmente dividido pela metade — embora haja vezes em que a Corte deixa muito pouco tempo ao counsel. Houve mesmo uma vez em que o Chief Justice Rehnquist ironicamente agradeceu as palavras do orador afirmando: “Obrigado Mr. Foster, eu penso que o senhor saiu-se muito bem nos quatro minutos que a Corte lhe permitiu falar” [“Thank you, Mr. Foster, I think that you did very well in the four minutes that the Court allowed you”]. Embora essa audiência pública tenha uma grande importância simbólica, enquanto meio de mostrar à sociedade que as partes podem ser ouvidas, é após ela que começa o período em que a discussão realmente importante começa. Todas as sextas-feiras (e também às quartas, em uma época mais moderna), os membros da Corte fazem reuniões privativas em que apenas tomam parte os nove Justices, não sendo permitida sequer a presença de assessores ou secretários. É nessas reuniões — e nas discussões que a ela se seguem, normalmente pelo intercâmbio de mensagens escritas — que os processos são realmente decididos. O segredo que recobre essas reuniões e essas mensagens é raramente quebrado, sendo que a proximidade que Bernard Schwartz, um jurista de grande prestígio, desfrutava frente a alguns ex-membros do Tribunal foi o que possibilitou o seu acesso à boa parte do material que compõe o citado livro. É interessante observar que muitas das suas fontes são omitidas, pois os relatos lhe foram passados sob sigilo, e que essa ausência de possibilidade de conferência das informações foi bastante criticada por parte de alguns juristas americanos, que contestaram a cientificidade da obra. No entanto, devemos reconhecer que essa deficiência é inevitável e incontornável, pois dado o véu de segredo que recobre os assuntos tratados por Schwartz, não era possível uma outra espécie de abordagem. Resta, contudo, sempre aberto esse flanco para que seja questionada a confiabilidade das suas descrições. De toda forma, é a única obra disponível sobre o assunto e conta a seu favor o prestígio do seu autor, um dos juristas de maior prestígio nos EUA. [Schwartz, Decision, pp. V-13] ↩︎

  149. O que lhe valeu o apelido de dissidente solitário entre seus assessores. ↩︎

  150. Que redigiu a opinião da Corte em Roe v. Wade. ↩︎

  151. O primeiro Justice negro da história da Suprema Corte. ↩︎

  152. Schwartz, Decision, p. 27. “Eu não sou favorável a anular o precedente de Roe v. Wade, mas se isso deve ser feito eu preferiria ver a Corte dar ao caso um funeral decente a jogá-lo pela janela de um trem em alta velocidade.” ↩︎

  153. Indicado pelo republicano George Bush, assim, como Souter. ↩︎

  154. Schwartz, Decision, p. 35. “[...] tão segura, em um futuro próximo, quanto pode estar uma decisão a tal ponto controversa.” ↩︎

  155. 19 How. 393 (1857). ↩︎

  156. 14a Emenda, Seção 1. [...] “Nenhum estado editará ou aplicará leis que restrinjam os privilégios e imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem privarão qualquer pessoa de sua vida, liberdade ou propriedade sem um devido processo legal; nem negarão a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção das leis.” “No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws.” [Gunther, Constitutional Law, p. A-11.] ↩︎

  157. Slaughterhouse cases, 16 Wall. (83 U.S.) 36, em Gunther, Constitutional Law, p. 427. [Na tradução desse ponto, invertemos a ordem de vários períodos com o objetivo de tornar o texto mais claro] “À luz da história dessas emendas e de sua finalidade, não é difícil atribuir um sentido a essa cláusula. O mal a ser remediado por essa disposição era a existência de leis que, naqueles estados onde residiam os negros recém emancipados, discriminavam a classe dos negros com grande injustiça e lhe causavam muito sofrimento; e é por meio [dessa disposição] que tais leis são proibidas. [...] Duvidamos que algum dia se venha a considerar que essa disposição possa abranger um ato estadual que não tenha como finalidade discriminar a classe dos negros em virtude de sua raça.” ↩︎

  158. Gunther, Constitutional Law, p. 429. “É fútil argumentar que a Emenda apenas pretendeu beneficiar as pessoas da raça africana. Eles podem ter sido a causa primária da Emenda, mas a sua linguagem é geral, abrangendo todos os cidadãos, e creio que de forma intencional.” ↩︎

  159. Literalmente: dava o fio cortante [da lâmina] utilizada pela Corte na sua intervenção. ↩︎

  160. Gunther, Constitutional Law, p. 629. ↩︎

  161. Buck v. Bell, 274 U.S. 200 (1927). “[A equal protection era], usualmente, o último recurso entre os argumentos constitucionais”. ↩︎

  162. Powel v. Pennsylvania, 127 U.S. 678, 687 (1888). ↩︎

  163. Tribe, American Constitutional Law, p. 1440. ↩︎

  164. McLaughlin v. Yeager, 384 U.S. 305, 308-9 (1966). ↩︎

  165. Cushman, Cases in Constitutional Law, p. 768. “A cláusula da equal protection, com certeza, não proíbe todas as classificações legais. Ela proíbe apenas aquelas que são arbitrárias e irrazoáveis. A classificação pela lei não é apenas constitucional, mas desejável e necessária; é quase impossível conceber uma lei que não a emprega de alguma forma. Mas, não obstante quão necessária seja tal classificação, é uma função que se presta a abusos e é esse abuso que a equal protection clause busca prevenir. O que é classificação arbitrária, ou quando uma classificação se torna discriminação? Não há, é claro, uma resposta fácil e concisa, mas diveros princípios gerais foram formulados pela Suprema Corte, os quais jogam alguma luz sobre o problema.” ↩︎

  166. Cushman, Cases in Constitutional Law, p. 769. “Em primeiro lugar, é claro que se o direito coloca pessoas em classes diferentes, as classes precisam diferir umas das outras. Precisa haver, em outras palavras, uma base de distinção. Essa pode ser a idade, o sexo, a renda ou qualquer outra qualidade ou característica. A base de classificação em qualquer lei precisa ter uma conexão racional com os objetivos da lei. É adequado classificar pessoas de acordo com a idade a respeito do direito a votar, a dirigir um carro ou a freqüentar escolas públicas; mas colocar pessoas em grupos de idade para determinar quem pode ter propriedade ou ser responsável por taxas relativas à propriedade seria usar uma base de classificação por demais irrelevante para o objetivo de qualquer direito válido.” ↩︎

  167. 330 U.S. 552 (1959). ↩︎

  168. http://laws.findlaw.com/US/330/552.html. “A prática do nepotismo na indicação de servidores públicos tem sido objeto de controvérsia nesse país durante toda a nossa história. Alguns estados adotaram emendas constitucionais ou leis que a proíbem. Essas normas refletem a política desses estados para abolir essa prática. Todavia, a Louisiana e a maioria dos outros estados não adotaram essa política. Nós podemos apenas supor que a assembléia legislativa da Louisiana pesou a óbvia possibilidade de danos a qualquer função que pode ser cumprida por um sistema de pilotagem formado por pessoas intimamente ligadas umas das outras [closely knit]. Então, as vantagens de uma experiência anterior sob amistosa supervisão no local do treinamento de pilotos, os benefícios para o moral e espírito de corpo para os quais podem contribuir a tradição de família e vizinhança, a associação íntima em que os pilotos devem trabalhar e viver nas suas comunidades de pilotos [...], e a disciplina e regulação que é imposta para assegurar ao estado um competente serviço de pilotagem após a indicação, podem ter levado a assembléia legislativa a permitir que os responsáveis pelo serviço de pilotagem escolhessem aqueles com quem eles gostariam de trabalhar.” ↩︎

  169. Tribe, American Constitutional Law, p. 1439. ↩︎

  170. Tribe, American Constitutional Law, p. 1438. ↩︎

  171. 348 U.S. 483 (1955). ↩︎

  172. 348 U.S. 489 (1955). ↩︎

  173. 440 U.S. 568 (1979). ↩︎

  174. 304 U.S. 144 (1938), em Gunther, Constitutional Law, p. 484. “É desnecessário considerar se a legislação que restringe os processos políticos dos quais ordinariamente se pode esperar uma repulsa à legislação indesejável, é sujeito a um escrutínio judicial mais estrito. [Stone então cita alguns casos em que a Corte aplicou um controle mais exigente: direito ao voto, limites à liberdade de imprensa, interferência em organizações políticas, proibição de assembléias pacíficas etc.] ↩︎

  175. Gunther, Constitutional Law, p. 630. ↩︎

  176. Gunther, G. Foreword: In Search of Involving doctrine on a Changing Court: a model for a newer equal protection. 86, Harv.L.Rev. 1 (1972). Citado por Gunther, Constitutional Law, p. 630. ↩︎

  177. Gunther, Constitutional Law, p. 630. ↩︎

  178. 163 U.S. 537. ↩︎

  179. Gunther, American Constitutional Law, pp. 671-672. “Indubitavelmente, o objeto da 14a Emenda foi implementar a absoluta igualdade [perante a lei] entre as duas raças. Mas, em virtude da natureza das coisas, ela não pode ter pretendido abolir as distinções baseadas na cor ou implementar uma igualdade social (entendida esta em oposição a uma igualdade política) ou uma união das duas raças em termos insatisfatórios para ambas. Leis que exigem a separação das raças em lugares onde elas podem entrar em contato não implicam necessariamente a inferioridade de qualquer delas, e [tais leis] têm sido reconhecidas geralmente, se não universalmente, como abrangidas pela competência das assembléias estaduais, no exercício do seu poder de polícia. O exemplo mais comum dessa realidade está ligado ao estabelecimento de escolas separadas para crianças brancas e de cor, [separação esta] que tem sido admitida mesmo pelas Cortes dos estados nos quais os direitos políticos das pessoas de cor foram reconhecidos há mais tempo e de forma mais séria. Podemos dizer, de forma técnica, que as [leis] proibindo o casamento inter-racial interferem na liberdade de contratar, e ainda assim há um reconhecimento universal de que a possibilidade de estabelecer essa proibição está contida no poder de polícia dos estados. A distinção entre leis que interferem na igualdade política do negro e aquelas que requerem separação das duas raças nas escolas, teatros e vagões de trem tem sido freqüentemente reconhecida por esta Corte. Sugere-se que a mesma justificativa que possibilita aos estados obrigar as empresas de transporte ferroviário a prover acomodações separadas para as duas raças também poderia autorizar os estados a exigir carros separados para pessoas que têm certa cor de cabelo ou que são estrangeiros ou que têm certas nacionalidades, ou a expedir leis dispondo que as pessoas negras andem de um determinado lado das ruas e as brancas do outro ou determinando que as casas das pessoas brancas devem ser pintadas de branco e as das pessoas de cor pintadas de preto, ou que os seus veículos ou símbolos comerciais devem ter cores diferentes, tudo isso justificado pela a teoria de que um lado da rua é tão bom como o outro, que uma casa ou um veículo de uma cor é tão bom como o de outra. A resposta a isso tudo é que todo exercício do poder de polícia deve ser razoável, e exercido sempre por meio de leis editadas, de boa fé, com vistas à promoção do interesse público, e não apenas à criação de incômodo ou opressão para uma classe particular. Ao determinar a questão da razoabilidade, a assembléia tem liberdade de tomar como referência os usos comuns e as tradições do povo e deve ter sempre como finalidade a promoção do seu conforto e a preservação da paz e ordem públicas. Medido por esse padrão, não podemos dizer que essa lei é irrazoável ou que é mais odiosa frente à 14a Emenda que as leis que exigem escolas separadas para crianças de cor, cuja constitucionalidade nunca parece ter sido questionada. Consideramos que a falácia subjacente ao argumento do autor consiste na pressuposição de que a separação forçada entre as duas raças implica uma afirmação da inferioridade da raça negra [stamps the colored race with a badge of inferiority]. [Contudo,] essa interpretação não encontra justificativa no texto da lei, mas apenas no fato de a raça negra ter optado por colocar o problema nesses termos. [Essa interpretação] parte do pressuposto de que preconceitos sociais podem ser superados por via legislativa e que direitos iguais não podem ser assegurados ao negro exceto por uma união forçada entre as duas raças. [...] [Todavia], se os direitos civis e políticos das duas raças são iguais, nenhuma pode ser inferior à outra, seja civilmente ou politicamente. Se uma raça é socialmente inferior à outra, a Constituição não pode colocá-las no mesmo plano.” [A tradução do segundo e do terceiro parágrafos fugiu um pouco à literalidade para tornar o conteúdo mais claro em português.] ↩︎

  180. 347 U.S. 483 (1954). ↩︎

  181. 305 U.S. 337 (1938). ↩︎

  182. Gunther, Constitutional Law, p. 673. “[...] dentro das suas fronteiras, serviços de educação jurídica substancialmente iguais aos que ele oferecia para pessoas de raça branca, busquem ou não os negros a mesma oportunidade” ↩︎

  183. Gunther, Constitutional Law, pp. 675-677. “Esses casos provêm dos estados do Kansas, Carolina do Sul, Virgínia e Delaware. Em cada um deles, menores da raça negra procuram socorro nas cortes para que sejam admitidos em escolas públicas da sua comunidade, sem qualquer segregação. Em cada instância, negou-se a eles a admissão em escolas públicas freqüentadas por crianças brancas em virtude da existência de leis que exigem ou permitem a segregação de acordo com a raça. [...] Nos primeiros casos em que este Tribunal interpretou a 14a Emenda, decididos pouco após a sua adoção, esta Corte entendeu que esta Emenda proscrevia todas as discriminações impostas pelo Estado contra a raça negra. A doutrina “separados mas iguais” não surgiu nesta Corte antes de 1896, em [Plessy v. Fergusson], envolvendo não educação, mas transporte. [...] Nós chegamos, então, à questão apresentada: a segregação de crianças em escolas públicas, com base na raça, mesmo que as instalações físicas e outros fatores “tangíveis” sejam iguais, priva as crianças do grupo minoritário de iguais oportunidades educacionais? Nós acreditamos que sim. [...] Separá-los de outras crianças de idade e qualificação similares, apenas por causa da sua raça, gera nelas um sentimento de inferioridade quanto ao seu status na comunidade que pode afetar seus corações e mentes de um modo dificilmente reversível. [...] Concluímos que no campo da educação pública, não tem lugar a doutrina “separados mas iguais”. Instalações educacionais separadas são intrinsecamente desiguais. Isto posto, consideramos que os recorrentes — bem como as pessoas que se encontram em situação semelhante —, em razão da segregação impugnada, foram privados da igual proteção das leis [deprived from equal protection].” ↩︎

  184. Convém, desde logo, evitar confundir Earl Warren, Chief Justice do período conhecido Corte Warren, e seu sucessor Chief Justice Warren Burger. ↩︎

  185. Gunther, Constitutional Law, p. 631. ↩︎

  186. Gunther, Constitutional Law, p. 632. ↩︎

  187. 411 U.S. 1 (1973). ↩︎

  188. 429 U.S. 190 (1976). Gunther, Constitutional Law, p. 686. “As classificações fundadas no sexo podem servir a importantes objetivos governamentais e devem ser substancialmente relacionados à efetivação desses objetivos” ↩︎

  189. 457 U.S. 202 (1982). ↩︎

  190. Gunther, Constitutional Law, p. 632. “A equal protection continua em desenvolvimento [in flux]. Claramente, ela percorreu um longo caminho desde que era o último recurso entre os argumentos constitucionais [the last resort of constitutional arguments]; pelo contrário, atualmente ela é uma fonte profícua de litigância constitucional. A Corte Warren criou uma teoria bipartida relativamente clara, embora nem sempre bem explicada e justificada. As tentativas de novas formulações por todas as vertentes [wings] pós-Warren buscaram uma teoria menos clara: análises bipartidas não foram formalmente abandonadas, mas foi ocasionalmente aumentada a intensidade do controle pelo critério mais fraco [racionalidade mínima], e variedades de níveis intermediários de escrutínio vieram à tona. No final dos anos 70, a Corte parecia estar retrocedendo para uma grande deferência na maioria dos casos relativos a legislação econômica e social [...]; mas com os anos 80 e 90, restaram amplas bases para a acusação generalizada de que o exercício do controle de constitucionalidade tem sido errática.” ↩︎

  191. Vide 0 ↩︎

  192. Pritchett, American Constitutional Law, p. 359. ↩︎

  193. 347 U.S. 497 (1954). ↩︎

  194. Gunther, Constitutional Law, p. 632. “Os conceitos de equal protection e de due process, ambos originados de nosso ideal americano de justiça, não são mutuamente exclusivos. A equal protection of the laws é uma salvaguarda mais explícita frente à discriminação [unfairness] proibida que o devido processo e, dessa forma, não sustentamos que essas duas frases são sempre intercambiáveis. Mas, como essa corte já reconheceu, uma discriminação pode ser tão injustificada ao ponto de violar o devido processo.” ↩︎

  195. 294 U.S. 587 (1935). ↩︎

  196. Cushman, Cases in Constitutional Law, p. 774. “A população do condado de Morgan, onde aconteceu o julgamento, [...] em 1930 era de 46.176 pessoas, e desse número 8.311 eram negras. Tanto quanto podiam lembrar as testemunhas, que há muito residem no local, nenhum negro havia efetivamente servido em um júri naquele condado ou sequer tinha sido convocado para tanto. Algumas dessas testemunhas tinham mais de cinqüenta anos e sempre viveram em Morgan. O seu testemunho não foi contestado. Um funcionário que residia no condado há 30 anos e que oficiou na corte por mais de quatro anos testemunhou que, durante seu tempo de serviço, aproximadamente 2.500 pessoas haviam sido convocadas para servir como juradas e que nenhuma delas era negra; ele não se lembrava “de ter visto sequer uma pessoa da raça negra participando de qualquer júri no condado de Morgan”. Há abundante evidência de que havia um grande número de negros no condado que eram qualificados para participar do júri. [...] A prova de que por muitos anos nenhum negro foi convocado para a função de jurado, em si própria, já indica a ausência de nomes de negros nas listas de possíveis jurados, e o estado não fez qualquer esforço para demonstrar a sua presença. [...] Essa demonstração da continuada exclusão de negros do serviço do júri, embora houvesse muitos negros qualificados para essa função, não pode ser contestada por meras generalidades. Se, na presença dos testemunhos apresentados pelo réu, fossem aceitas como uma justificação adequada para a completa exclusão de negros do serviço no júri as meras afirmações gerais dos oficiais públicos, a disposição constitucional [da equal protection] — adotada com especial referência à proteção dos negros — seria apenas uma exigência vã e ilusória.” ↩︎

  197. Mason, American Constitutional Law, p. 465. “A cláusula da equal protection tende a ser ignorada em favor da cláusula do due process na revisão de processos criminais, exceto nos casos em que se ataca a composição dos júris. Um caso recente, contudo, sugere que a equal protection pode ter um escopo mais amplo. Alguns estados, entre eles o Illinois, exigem pagamento em troca da transcrição da gravação dos julgamentos, sem o qual uma revisão completa pela corte de apelação seria impossível. Em Griffin v. Illinois, 351 U.S. 12 (1956), a Corte sustentou que onde as apelações eram viáveis, a pobreza não poderia impossibilitar um réu de obter a transcrição necessária para o recurso. Uma extensão desse princípio de igualdade certamente produziria transformações profundas nos sistemas estaduais de justiça penal.” ↩︎

  198. 314 U.S. 160 (1941) ↩︎

  199. http://laws.findlaw.com/US/314/160.html.“Deveríamos dizer agora, e em termos precisos, que o mero status econômico de um homem, sem mais, não pode ser usado pelo Estado para testar, qualificar ou limitar os seus direitos enquanto cidadão dos Estados Unidos. [...] O mero estado de não ter fundos é um fato neutro — constitucionalmente, trata-se de um fato irrelevante, como a raça, o credo ou a cor.” ↩︎

  200. 400 U.S. 374 (1971). ↩︎

  201. Gunther, Constitutional Law, p. 632. “[D]ada a posição fundamental da relação matrimonial na hierarquia de valores de nossa sociedade e a concomitante monopolização pelo Estado dos meios para dissolver legalmente essa relação, o devido processo proíbe um estado de negar acesso o às cortes para indivíduos que buscam a dissolução de seus casamentos, apenas porque eles não têm como pagar.” ↩︎

  202. 354 U.S. 457 (1957). ↩︎

  203. 347 U.S. 497 (1954). ↩︎

  204. Bolling v. Sharpe, 347 U.S 497 (1954). Gunther, Constitutional Law, p. 677. “Os conceitos de equal protection e de due process, ambos fundados no ideal americano de justiça [fairness], não são mutuamente excludentes. A equal protection of laws é uma salvaguarda mais explícita contra injustiças proibidas [prohibited unfairness], e, por isso, não sustentamos que ambos sejam termos sempre intercambiáveis. Mas, como esta Corte já reconheceu, uma discriminação pode ser tão injustificável ao ponto de violar o devido processo. Classificações baseadas apenas na raça devem ser avaliadas com particular atenção, pois elas são contrárias às nossas tradições e, por isso, constitucionalmente suspeitas.” ↩︎

  205. Tribe, American Constitutional Law, p. 1437. “A cláusula do devido processo produz normas de igual tratamento indistinguíveis daquelas extraídas da cláusula da equal protection. Embora a maioria deste capítulo assente-se em termos da cláusula da equal protection da 14a Emenda, convém ressaltar que nenhuma cláusula ou disposição individual é a fonte exclusiva da doutrina nessa área e que princípios de igual tratamento emergiram de modos bastante diferentes, independentemente de frases específicas da Constituição.” ↩︎

  206. Ressalvando desde logo que o conceito germânico não pode ser simplesmente estendido ao Direito brasileiro. O que o nosso Supremo Tribunal Federal chama de princípio da proporcionalidade pode ser muito diverso do conceito atribuído a esse termo pelo Tribunal Constitucional Federal alemão. ↩︎

  207. Embora, com o tempo, o due process of law tenha adquirido um conteúdo específico — e não apenas essa função instrumental de servir como ponte entre as garantias da constituição federal e os estados. ↩︎

  208. Canotilho, Direito Constitucional., p. 1139. ↩︎

  209. Canotilho, Direito Constitucional., p. 1141. ↩︎

  210. Aristóteles, Ética a Nicômacos, 1131b. ↩︎

  211. Canas, O princípio da proibição do excesso na Constituição, p. 335. ↩︎

  212. Que é chamado por alguns autores de princípio da proibição do excesso. ↩︎

  213. Pieroth e Schlink. Staatsrecht II – Grundrechte. Heidelberg, 1988, pp. 70-74. ↩︎

  214. Mendes, A Proporcionalidade na Jurisprudência do STF, p. 475. ↩︎

  215. 7 BVerfGE 377 (1958). Utilizaremos aqui o modelo norte-americano de citação de jurisprudência, no qual o algarismo que antecede a abreviação do título da revista representa o número da publicação, o que o sucede indica a página em que pode ser encontrada a decisão e o número entre parênteses indica o ano em que ocorreu o julgamento. BVerfGE é a abreviatura de Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts [Acórdãos do Tribunal Constitucional Federal], que é o título da revista que publica as decisões do Tribunal. No caso acima, trata-se de um julgamento de 1958, publicado no número 7, página 377. ↩︎

  216. A reclamação constitucional [Verfassungsbeschwerde] é um instrumento processual por meio do qual qualquer cidadão pode impugnar, perante o BverfG, atos praticados por autoridades publicas que caracterizem violação a direitos fundamentais, desde que não haja outra via processual possível para esse fim. [http://www.jura.uni-sb.de/english/Publications/bverfg.html] ↩︎

  217. Kommers, The Constitutional jurisprudence..., p. 274. ↩︎

  218. Kommers, The Constitutional jurisprudence..., pp. 275-276. “A escolha de uma profissão é um ato de autodeterminação, do livre arbítrio de um indivíduo; ela deve ser protegida tanto quanto possível contra a intervenção estatal. Todavia, na prática de uma profissão, o indivíduo afeta imediatamente a vida da sociedade; esse aspecto da sua atividade é sujeito à regulação no interesse de terceiros e da sociedade. Por isso, o legislativo é competente para regular tanto a escolha de uma profissão quanto a sua prática. Quanto mais o poder de regulamentar é dirigido à escolha da profissão, mais estreitos são os seus limites; quanto mais ele é dirigido à prática da profissão, mais amplos esses limites [...] Os princípios gerais que governam a regulação de atividades profissionais podem ser assim resumidos: a prática de uma profissão pode ser restringida por regulações razoáveis, estabelecidas tendo em consideração o bem comum. No entanto, a liberdade de escolha de uma profissão somente pode sofrer restrições quando houver um interesse público que o exija [compelling public interest]; isso é: se, após uma deliberação cuidadosa, o legislativo conclui que um interesse público deve ser protegido, então ele pode impor restrições voltadas a proteger esse interesse — mas apenas na medida em que a proteção não pode ser alcançada por uma menor restrição na liberdade de escolha. Caso seja inevitável a interferência estatal na liberdade de escolha da atividade profissional, os legisladores precisam empregar os meios reguladores menos restritivos para os direitos fundamentais. [...] Uma escala graduada de possíveis restrições governa a autoridade do legislativo para regular a atividade de escolha de uma profissão [vocational activity]. Os legisladores têm maior liberdade quando regulam a prática de uma profissão. Ao regular essa prática, eles podem, de forma ampla, tomar em consideração cálculos de utilidade. Legisladores podem impor limitações ao direito de praticar uma profissão para prevenir prejuízos e perigos para o público em geral; eles também podem fazê-lo para promover uma ocupação com vistas a atingir um melhor desempenho global na sociedade [greater total permformance within society]. Nesse ponto, a Constituição protege o indivíduo apenas contra limitações excessivamente onerosas e irrazoáveis. Fora essas exceções, as restrições à livre iniciativa não afetam pesadamente [greatly] o cidadão, desde que ele já tenha uma profissão e [a regulamentação legal] não viole o direito ao seu exercício. Por outro lado, se se condiciona o direito a optar por uma profissão ao preenchimento de alguns requisitos, limitando assim a escolha da ocupação, as regulações para o bem comum são legítimas apenas quando são absolutamente necessárias para proteger interesses particularmente importantes da comunidade. Mas a validade de tais requisitos depende do fato da legislação tratar ou não de condições subjetivas, tais como formação acadêmica e treinamento, ou de condições objetivas irrelevantes para a qualificação pessoal do indivíduo e sobre as quais ninguém tem qualquer controle.” ↩︎

  219. Idem, pp. 277-8. Continuação do texto iniciado na nota anterior. Dividimos o texto em duas notas diversas para facilitar o cotejo do texto original e da tradução. “A regulação de condições subjetivas é um exercício legítimo da autoridade legislativa. Apenas os candidatos que possuem as qualificações necessárias, determinadas de acordo com critérios formais preestabelecidos, serão admitidos em um ofício ou profissão. Muitas ocupações exigem conhecimento e habilidades que somente podem ser adquiridos mediante ensino teórico e prático. Sem essa preparação, a prática dessas profissões seria impossível ou deficiente, e talvez mesmo perigosa para o público em geral [...] Então, nesses casos, as limitações impostas sobre a liberdade de escolha são necessárias para salvaguardar o público contra certos riscos e perigos [liabilities and hazards]. Tais limitações são razoáveis porque os candidatos para as várias profissões sabem com antecedência se eles têm ou não as qualificações necessárias. O princípio da proporcionalidade aplica-se a esses casos; qualquer exigência estabelecida precisa ter uma relação razoável com o fim perseguido [p.e., a prática segura e ordenada de uma profissão]. No entanto, a situação é diferente quando o estado estabelece condições objetivas para a admissão. Nesse caso o problema simplesmente não está nas mãos do indivíduo. Tais restrições contradizem o espírito e finalidade do direito fundamental porque mesmo aquelas pessoas que satisfazem os critérios [subjetivos] estabelecidos pelo Estado podem, mesmo assim, ser impedidas de exercer a profissão. [...] A saúde pública é sem dúvida um interesse importante da comunidade, cuja proteção pode justificar limites à liberdade individual. Adicionalmente, não há dúvida de que uma oferta ordenada de medicamentos é crucial para a proteção da saúde pública. “Ordenada”, nesse contexto, significa que os medicamentos necessários estarão disponíveis ao público e que sua distribuição será também controlada. Podemos presumir que os legisladores da Bavária tinham esses objetivos em mente, mas nas entrelinhas da legislação nós podemos também discernir as finalidades políticas dos farmacêuticos na defesa de seus próprios interesses [...]. ↩︎

  220. Kommers, The Constitutional jurisprudence..., p. 276. “[S]e, após uma deliberação cuidadosa, o legislador determina que o interesse comum precisa ser preservado, então ele pode impor restrições com o objetivo de protegê-lo — mas apenas na medida em que a proteção não possa ser conseguida por meio de uma redução mais leve à liberdade de escolha.” ↩︎

  221. Kommers, The Constitutional jurisprudence..., p. 276. “As regulações para o bem comum são legítimas apenas quando são absolutamente necessárias para proteger interesses da comunidade que sejam particularmente importantes.” ↩︎

  222. 53 BVerfGE 135 (1980) ↩︎

  223. Kommers, The Constitutional jurisprudence..., p. 279. ↩︎

  224. Kommers, The Constitutional jurisprudence..., p. 280. “Leis como a envolvida aqui são elaboradas para proteger o consumidor de confusão quando da compra de comida e de ameaças à sua saúde. [...] A seção 14 (2) da Lei dos Produtos de Chocolate foi criada para proteger o consumidor de decepções. Essa proteção foi constituída, sem dúvida, no interesse público e justifica a restrição de práticas de comércio. Para realizar esse objetivo, o legislativo não apenas exigiu um rótulo adequado, mas proibiu a venda do produto. Proibir, no entanto, é um dos mais drásticos meios imagináveis para proteger o consumidor de confusões e práticas comerciais enganadoras. O regulador pode prevenir essas ameaças ao interesse público de forma eficaz e eficiente pela simples exigência de um rótulo adequado. No caso em exame, não há justificativa aceitável para impor uma restrição mais ampla do que seria necessário para proteger o consumidor de falsos rótulos. Então, a regulação deveria tomar apenas as medidas necessárias para a proteção do consumidor. Para alcançar esse fim, seria suficiente exigir uma rotulação adequada.” ↩︎

  225. 30 BVerfGE 292 (1971) apud Ress, George. Der Grundstaz des Verhältnismässigkeit in europäischen Rechts-Ordnungen. Heidelberg, 1985, p. 13. Citado por Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. 372. ↩︎

  226. 35 BVerfGE 202 (1973) ↩︎

  227. Kommers, The Constitutional jurisprudence..., p. 417. “[Um] programa de televisão sobre a origem, execução e investigação de um crime que menciona o nome de um criminoso e contém uma representação de suas feições necessariamente toca a área dos seus direitos fundamentais garantidos pelo artigo 2 (1) em conjunção com o artigo 1 (1) da Lei Fundamental[229]. Os direitos ao livre desenvolvimento da personalidade e da dignidade humana asseguram para qualquer pessoa uma esfera autônoma para o desenvolvimento de sua vida privada e proteção da sua individualidade. Isso inclui o direito a permanecer sozinho, de preservar sua individualidade dentro dessa esfera e de excluir a intrusão e a inspeção de outros. Isso também engloba o direito sobre a própria figura e opiniões, especialmente o direito de decidir o que fazer com retratos seus. Em princípio, todos têm o direito de determinar até que ponto outros podem tornar públicos certos incidentes ou toda a história de sua vida. [...] Na resolução do conflito [entre a liberdade de imprensa e o direito de personalidade], deve-se lembrar que [...] ambas as previsões constitucionais são aspectos essenciais da livre ordem democrática da Lei Fundamental, nenhum pode pretender precedência em princípio. [...] Em caso de conflito, deve-se harmonizar os valores constitucionais, se possível; se isso não puder ser feito, deve-se determinar qual interesse cederá frente ao outro, à luz da natureza do caso e suas circunstâncias especiais. E ao fazê-lo, devem-se considerar ambos os valores constitucionais na sua relação com a dignidade humana, enquanto núcleo do sistema de valores da Constituição. Conseqüentemente, a liberdade de imprensa pode ter o efeito de restringir as pretensões baseadas no direito de personalidade; no entanto, qualquer dano à “personalidade” resultante de uma transmissão pública não pode ser desproporcional à significação da publicação para a livre comunicação. [...] Deve-se considerar até que ponto o legítimo interesse a que serve a transmissão pode ser satisfeito sem uma invasão na esfera íntima de outras pessoas. [...] Na harmonização de interesses [...] o interesse público em receber informações geralmente prevalece quando crimes atuais estão sendo noticiados. Se alguém quebra a paz ao atacar e ferir outros cidadãos ou os interesses públicos legalmente protegidos, ele não deve apenas sofrer a punição criminal estabelecida em lei; ele também precisa aceitar, por uma questão de princípio, que em uma comunidade que adere ao princípio de liberdade de comunicação, o público tem interesse em receber informações, através dos canais normais, sobre um ato criminoso que ele próprio tenha causado. No entanto, o interesse em receber informações não é absoluto. A importância central do direito de personalidade exige não apenas a proteção da íntima e inviolável esfera pessoal [do acusado], mas também uma estrita observância do princípio da proporcionalidade. A invasão da esfera pessoal é limitada pela necessidade de satisfazer adequadamente o interesse público de receber informações, enquanto o mal infligido ao acusado deve ser proporcional à gravidade da ofensa ou à sua importância para o público. Conseqüentemente, não é sempre permitido revelar o nome, publicar uma foto ou usar algum meio de identificar o autor [da ofensa]. [...] De qualquer forma, um programa de televisão sobre um grave crime que não é mais justificado pelo interesse do público em receber informação sobre eventos correntes pode não ser retransmitido se ele coloca em perigo a reabilitação social do criminoso. O interesse vital do criminoso a ser reintegrado à sociedade e o interesse da comunidade em reconduzi-lo a sua posição social original devem geralmente ter precedência frente ao interesse público em uma discussão posterior sobre o crime.” ↩︎

  228. Artigo 5 (3): Arte e ciência, pesquisa e ensino são livres. A liberdade de ensino não dispensa da fidelidade à Constituição. [Lei Fundamental da República Federal da Alemanha ↩︎

  229. Kommers, The Constitutional jurisprudence..., pp. 437-442. “O direito, previsto no artigo 5 (3), ao livre engajamento à atividade docente é um direito que o Estado deve respeitar. [...] As pessoas ligadas a ciência, pesquisa e ensino [...] gozam de um direito defensivo contra toda intervenção estatal quanto à descoberta e disseminação de conhecimento. [...] Os direitos fundamentais previstos na Lei Fundamental também incorporam uma ordem objetiva de valores. [...] O Artigo 5 (3) contém uma decisão valorativa desse tipo. Sua principal função é garantir a livre atividade acadêmica tanto pelo interesse da realização pessoal do indivíduo [pesquisador ou professor] como para o benefício de toda a sociedade. [...] Conseqüentemente, o Estado, enquanto uma nação civilizada, é obrigado a defender um sistema de livre investigação acadêmica e a estabelecer um quadro institucional no qual tais pesquisas possam ser [livremente] desenvolvidas. [...] Isso não significa, contudo, que a liberdade acadêmica somente pode ser atingida em universidades alemãs de natureza tradicional nem que a Constituição determina o modo como a atividade acadêmica deve ser organizada dentro das universidades. O legislador tem a discricionariedade, dentro de certos limites, para organizar as universidades em conformidade com a atual realidade social e tecnológica. [...] Então, no campo da organização da universidade, o legislador goza de considerável liberdade para definir a política universitária. No entanto, essa discricionariedade é limitada pelo direito de liberdade assegurado pelo artigo 5 (3) e pelo julgamento de valor nele contido. [...] Permitir que todos os membros da universidade participem não conduz necessariamente a procedimentos ou políticas que se opõem à liberdade de pesquisa e ensino. Um tal sistema pode servir como instrumento [adequado] para a resolução dos conflitos entre os grupos [que compõem] uma universidade e também como um meio para mobilizar os conhecimentos dos grupos individuais para o fim de alcançar melhores decisões na administração da universidade. Se esse sistema é ou não a forma mais útil de organização universitária não é uma questão que o Tribunal Constitucional Federal tem competência para decidir. O direito dos assistentes acadêmicos a ter voz nos assuntos universitários não precisa de justificação mais aprofundada; eles também são titulares do direito assegurado pelo artigo 5 (3) com referência às suas atividades de pesquisa enquanto professores universitários. Não é necessário decidir aqui se a participação dos estudantes na autogestão acadêmica é constitucionalmente garantida. Contudo, não há qualquer objeção constitucional ao fato de eles terem voz na administração acadêmica, na medida em que participam na pesquisa e no ensino. Mesmo que apenas uma pequena percentagem dos estudantes tenha participação ativa no processo de pesquisa, [o simples fato de] estudar em uma universidade deve ser entendido, em si mesmo, como uma espécie de participação. [...] Também não é contrária à liberdade acadêmica constitucionalmente garantida o envolvimento de pessoal não-acadêmico na administração. [...] Esse grupo contém especialistas cuja experiência prática pode ser particularmente benéfica na área administrativa das universidades. A atividade acadêmica cada vez mais depende desses especialistas. Eles criam as condições técnicas e administrativas que fazem possível o ensino e a pesquisa e devem ter uma responsabilidade correspondente [a essas atividades]. [...] Os professores universitários, contudo, gozam de uma posição especial na pesquisa e no ensino. [...] Em virtude de seu ofício e comprometimento, eles têm uma responsabilidade particularmente pesada para o devido funcionamento e para o caráter acadêmico da universidade. [...] Em vista da atual estrutura da universidade, eles ocupam uma posição chave na vida acadêmica. [...] O Estado é obrigado a ter em mente essa posição especial quando determina a organização da administração acadêmica. [...] Exige-se, então, do legislador, que confira ao professorado [um grau de autoridade e responsabilidade necessário] para cumprir sua missão acadêmica à luz da sua função na universidade. Deve-se garantir um modelo organizacional que não permita [...] que outros grupos impeçam ou interfiram na livre atividade acadêmica. [...] A partir dessas considerações, não se pode concluir que os representantes dos professores universitários tenham direito a uma “clara maioria” nos órgãos de administração da universidade. Em vista das considerações constitucionais mencionadas, não há justificação para essa limitação à liberdade de criação do legislador. [...] Professores, estudantes e pessoal administrativo têm direito a uma representação na administração universitária proporcional à importância de seus papéis na universidade [...] [Ensino] No que toca ao ensino, não são apenas os professores titulares que exercem funções essenciais, mas também os assistentes de pesquisa. É certo que sua participação na execução das tarefas em uma moderna universidade de massa não é a mesma avaliada em nível de divisões, departamentos ou seções, mas sua parte é quantitativamente significante e qualitativamente importante. Ao se lidar com decisões que afetam o ensino, eles possuem o tipo de conhecimento factual e interesse que prontamente justifica seus direitos à codeterminação. Problemas de ensino também afetam os interesses dos estudantes. Além disso, normalmente decisões apropriadas somente podem ser alcançadas se as experiência e os argumentos tanto dos professores como dos estudantes são levados em consideração. Não há, pois, objeções constitucionais à participação de representantes dos estudantes na decisão de tais problemas. No entanto, a participação irrestrita de pessoal administrativo alheio à pesquisa e ao ensino, em decisões pertinentes ao ensino, não pode ser justificada por qualquer das considerações mencionadas. (p.e., qualificações, funções, responsabilidades e envolvimento). O legislador pode garantir, dentro desse quadro, que os professores universitários retenham o grau de influência correspondente à sua posição na área de ensino. [Pesquisa] Deve-se empregar critérios mais estritos ao determinar a amplitude da participação dos vários grupos no tocante aos assuntos diretamente ligados à pesquisa. Decisões sobre pesquisa pressupõem a habilidade de avaliar o presente status da pesquisa em um determinado campo e a urgência de um projeto de pesquisa individual à luz das necessidades sociais, bem como entender claramente as possibilidades técnicas, financeiras e relativas a pessoal de cada área de pesquisa. A responsabilidade ligada a tal decisão torna-se particularmente clara quando grandes quantidades de dinheiro são necessários para dispendiosas instalações exigidas pela pesquisa moderna, ou quando as instalações de pesquisa são criadas ou expandidas. Aos assistentes de pesquisa não se pode negar o direito de cooperar com os especialistas na tomada dessas decisões. Como regra, a grande maioria do pessoal não ligado à pesquisa não possui essas qualificações. Também a maioria dos estudantes não possui as qualificações necessárias para a participação nas decisões referentes a pesquisa. Todavia, com base no seu nível de educação e qualificações, não se pode negar o fato de que os estudantes podem contribuir até certo ponto para essas decisões. Em vista dessas circunstâncias, não há objeções constitucionais à permissão de que os estudantes tenham alguma participação, particularmente porque decisões que afetam a pesquisa podem ter eventuais efeitos no ensino. Entretanto, o julgamento de valor do artigo 5 (3), em conjunção com o artigo 3 (1) da Lei fundamental exige que os professores universitários mantenham o privilégio de terem uma influência decisiva nas decisões diretamente relacionadas à pesquisa. Por causa das suas qualificações, funções e responsabilidades, os professores universitários precisam prevalecer contra todos os outros grupos nessa área especial.” ↩︎

  230. Canotilho, Direito Constitucional, pp. 262-263 e 417. ↩︎

  231. A discussão sobre essa ordem objetiva de valores será feita no ponto Capítulo III - B - 2. a) ↩︎

  232. Dworkin, Taking rights seriously, p. 26. ↩︎

  233. 39 BVerfGE 1 (1975). ↩︎

  234. A tradução aqui utilizada foi publicada originalmente no John Marshall Journal of Practice and Procedure 605-84 (1776) e republicado em Glendon, Comparative Legal Traditions, pp. 96-117. Uma outra tradução para o inglês, mas em versão um pouco mais resumida, pode ser encontrada em Kommers, The Constitutional jurisprudence..., pp. 349-355. “Deve ser enfatizado que o sentido e finalidade dessa disposição da Lei Fundamental [Artigo 2, Parágrafo 2, Sentença 1: Todos terão direito à vida e à inviolabilidade de sua pessoa] requer que a proteção da vida seja estendida à vida em desenvolvimento. A segurança da existência humana contra intervenções do Estado seria incompleta se não abrangesse também o passo anterior à “vida completa”, a vida pré-natal. Essa interpretação extensiva corresponde ao princípio estabelecido nas opiniões do Tribunal Constitucional Federal, “segundo o qual, em casos duvidosos, deve ser escolhida a interpretação que desenvolve ao máximo a eficácia judicial da norma jurídica fundamental”. [...] Se o embrião fosse considerado uma parte do organismo materno, a interrupção da gravidez permaneceria na área da decisão privada de uma pessoa sobre sua própria vida [in the area of the private structuring of one’s life], a qual o legislador é proibido de invadir. [...] Todavia, desde que aquele que está para nascer é um ser humano independente que se encontra sob a proteção da constituição, há uma dimensão social na interrupção da gravidez que torna a intervenção estatal possível [amenable] e necessária. O direito da mulher ao livre desenvolvimento de sua personalidade, que tem como conteúdo a liberdade de comportamento em um sentido amplo e, dessa forma, abrange a responsabilidade pessoal da mulher de decidir contra a maternidade e as responsabilidades que dela advêm, pode também, é verdade, demandar reconhecimento e proteção. Esse direito, contudo, não é garantido sem limites — o direito de outros, a ordem constitucional e a lei moral o limitam. A priori, esse direito não pode nunca incluir a autorização para intervir na esfera protegida de outro sem razão que o justifique ou muito menos destruir aquela esfera e a própria vida; menos ainda se, de acordo com a natureza do caso, uma responsabilidade especial existe por essa mesma vida. Um compromisso que garanta a proteção da vida de alguém prestes a nascer e permite à mulher grávida a liberdade de aborto não é possível na medida em que a interrupção da gravidez sempre significa destruição de vida pré-natal. Na necessária ponderação, “ambos os valores constitucionais devem ser vistos em sua relação com a dignidade humana, o centro do sistema de valores da constituição” [...] Uma decisão orientada ao Artigo 1, Parágrafo 1 da Lei Fundamental precisa ser a favor da precedência da proteção da vida da criança no ventre da mãe sobre o direito da mulher grávida à autodeterminação. Por outro lado, a vida pré-natal é destruída por meio da interrupção da gravidez. De acordo com o princípio da ponderação que preserva a maioria das posições constitucionais colidentes [...] precedência deve ser dada à proteção da vida da criança prestes a nascer. Essa preeminência existe, como questão de princípio, durante toda a duração da gravidez e não pode ser colocada em questão em um tempo determinado. A opinião expressada pelo Parlamento Federal durante a deliberação sobre a Lei de Reforma do Código Penal, a partir da qual se propôs a precedência durante um certo tempo “do direito à autodeterminação da mulher, que se impõe a partir da dignidade humana frente a todos os outros, inclusive ao direito da criança à vida” [...] não é conciliável com o ordenamento de valores da Lei fundamental [...] O objetivo do direito penal foi, desde o princípio, proteger os valores elementares da vida em comunidade. [...] Desse ponto de vista, a utilização do direito penal para a punição de “atos de aborto” deve ser considerada indubitavelmente legítima [...] A punição, contudo, nunca pode ser um fim em si mesma. Seu emprego é, em princípio, sujeito à decisão do legislativo. [...] Em caso extremo, ou seja, se a proteção requerida pela constituição não pode ser alcançada de outro modo, o legislador pode ser obrigado a empregar os meios da lei penal para proteger a vida em desenvolvimento. A norma penal representa, até certo ponto, a “última razão” no arsenal do legislativo. De acordo com o princípio da proporcionalidade, um princípio do Estado justo, que prevalece em todo o direito público, inclusive no direito constitucional, o legislador pode fazer uso desses meios apenas cautelosamente e com reserva. No entanto, esse último meio precisa ser empregado, caso a efetiva proteção da vida não possa ser alcançado de outra forma. [...] Em suma. [...] que as interrupções da gravidez não sejam legalmente condenadas nem sujeitas a uma punição não é compatível com o dever que incumbe ao legislador de proteger a vida, se a interrupção é o resultado de razões que não são reconhecidas na ordem de valores da Lei Fundamental. Em verdade, a limitação da punibilidade não seria constitucionalmente objetável se ela fosse combinada com outros meios que poderiam ser capazes de compensar, ao menos em seus efeitos, o desaparecimento da proteção penal. Isso, contudo — como foi demonstrado —, obviamente não é o caso. [...] Subjacentes à Lei Fundamental há princípios que estruturam o Estado e que precisam ser entendidos à luz da experiência histórica, no confronto espiritual-moral com o prévio sistema do nacional-socialismo. Em oposição à onipotência do Estado totalitarista que pretendia para si domínio ilimitado sobre todas as áreas da vida social e para o qual, na perseguição de seus objetivos de Estado, considerações sobre a vida do indivíduo fundamentalmente nada significavam, a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha ergueu uma ordem estruturada por valores que colocam o ser humano individual e sua dignidade no ponto focal de todas as suas disposições. [...] Mesmo uma mudança geral nos pontos de vista dominantes na população sobre esse assunto — se é que uma mudança como essa poderia ser estabelecida — nada mudaria. O Tribunal Constitucional Federal, órgão ao qual a Constituição atribuiu o dever de vigiar a observância de seus princípios fundamentais por todos os órgãos do Estado e, quando necessário, assegurar o seu cumprimento, somente pode orientar suas decisões a partir dos princípios estabelecidos na própria Constituição [...].” ↩︎

  235. Vide Capítulo II - B - 5. ↩︎

  236. Vide ADInMC 855, no Capítulo IV - B - 2. ↩︎

  237. 7 BVerfGE 198 (1958) ↩︎

  238. Kommers, The Constitutional jurisprudence..., p. 362. ↩︎

  239. Kommers, The Constitutional jurisprudence..., p. 365-367. “O direito fundamental à liberdade de opinião é a expressão mais imediata da personalidade do homem em uma sociedade e, como tal, um dos mais nobres direitos humanos [...] Os tribunais precisam avaliar os efeitos de leis gerais que limitam direitos fundamentais à luz da importância do direito fundamental envolvido. Eles devem interpretar essas leis de forma a preservar o significado do direito fundamental; em uma democracia livre, esse processo de interpretação deve pressupor que a liberdade de expressão é fundamental em todas as esferas, especialmente na vida pública. [...] O Autor [Lüth] teme que qualquer restrição sobre a liberdade de expressão possa limitar excessivamente a sua possibilidade de influir na opinião pública e assim não mais garantir a indispensável liberdade para discutir assuntos importantes publicamente. [...] As opiniões do Autor devem ser avaliadas no contexto dos seus esforços políticos e culturais. Ele foi movido pela apreensão de que a reaparição de Harlan — especialmente em países estrangeiros — fosse interpretada como significando que nada havia mudado na vida cultural alemã desde o período Nacional socialista. [...] Por causa da sua íntima relação com todos aqueles ligados à relação entre alemães e judeus, o autor tinha o direito de afirmar isso em público [...] A exigência de que, nessas circunstâncias, o autor deveria ter-se abstido de expressar sua opinião, independentemente dos interesses profissionais de Harlan e dos interesses econômicos das companhias que o empregam, [...] é injustificado.” ↩︎

  240. Vide Capítulo III - B - 2. ↩︎

  241. Lima, Devido processo legal, p. 48. ↩︎

  242. Para uma descrição pormenorizada desses aspectos, ver Lima, Devido, pp. 33-37. ↩︎

  243. Lima, Devido processo legal, p. 49. ↩︎

  244. Lima, Devido processo legal, p. 54. ↩︎

  245. Kommers, The Constitutional jurisprudence..., p. 46. “Esse teste é aplicado flexivelmente e deve observar o standard de racionalidade. Tal como é aplicado pela Corte Constitucional, ele é menos que o escrutínio estrito e mais que o teste de razoabilidade mínima do direito constitucional norte-americano.” ↩︎

  246. Vide Capítulo I - D - 2. ↩︎

  247. Essa é a denominação utilizada por Canotilho para designar a adequação, necessidade e proporcionalidade. ↩︎

  248. Canas, O princípio da proibição do excesso na Constituição, p. 325 ↩︎

  249. Perelman, L’interpretation juridique, p. 32. ↩︎

  250. Canas, O princípio da proibição do excesso na Constituição, p. 330. ↩︎

  251. Alexy, Teoría de los Derechos Fundamentales, pp. 111-112. ↩︎

  252. Canas, O princípio da proibição do excesso na Constituição, p. 328. ↩︎

  253. Canas, O princípio da proibição do excesso na Constituição, p. 331. ↩︎

  254. Canas, O princípio da proibição do excesso na Constituição, p. 331, nota 29. ↩︎

  255. Grabitz, Eberhard. Der Grundsatz der Verhältnismässigkeit in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts. Aör, 1973/4 98, pp. 569-570. Citado por Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. 359. ↩︎

  256. Canas, O princípio da proibição do excesso na Constituição, p. 332. ↩︎

  257. Canotilho, Direito Constitucional, p. 417. ↩︎

  258. Kommers, The Constitutional jurisprudence..., p. 363. “A seção de direitos humanos estabelece uma ordem objetiva de valores e essa ordem reforça bastante o poder dos direitos fundamentais. Esse sistema de valores, que se centra na dignidade da personalidade humana em livre desenvolvimento dentro da comunidade social, precisa ser entendido como uma decisão constitucional fundamental, que afeta todas as esferas do Direito. Ele serve como critério para medir e avaliar todas as ações legislativas, administrativas e judiciais.” ↩︎

  259. Kommers, The Constitutional jurisprudence..., p. 32. “Não há qualquer debate na Alemanha, como há nos Estados Unidos, sobre se a Constituição fixa primordialmente procedimentos ou valores. Os alemães não mais entendem sua constituição como uma simples expressão de uma ordem real de poder. Eles normalmente concordam que a Lei Básica é fundamentalmente uma constituição normativa que abrange valores, direitos e deveres. Como veremos, a admissão de que a Lei Fundamental é um documento orientado a valores — em verdade, um documento que estabelece uma ordem hierárquica de valores — é uma idéia familiar à jurisprudência constitucional alemã.” ↩︎

  260. Kommers, The Constitutional jurisprudence..., p. 37. “Em suma, o Estado de Direito social não é governado apenas pelo Direito; ele também é entendido como um código substantivo [substantive charter] de justiça. Todo o direito positivo deve guardar conformidade com a ordem de valores da Lei Fundamental — enquanto diversa dos direitos e garantias individuais —, que informa a Constituição como um todo.” ↩︎

  261. Kommers, The Constitutional Jurisprudence..., p. 47. “Na busca pelos princípios constitucionais mais importantes, a Corte Constitucional entendeu adequado interpretar a Lei Fundamental em termos de sua unidade estrutural. Talvez “unidade ideológica” seria o termo mais adequado, porque a Corte Constitucional entende a Lei Fundamental como uma estrutura unificada de valores substantivos. A peça central dessa estratégia interpretativa é o conceito de uma ordem objetiva de valores, um conceito que deriva das glosas apostas pela Corte Constitucional ao texto da Lei fundamental. De acordo com esse conceito, a Constituição incorpora as decisões valorativas fundamentais dos constituintes, sendo que a mais fundamental é a escolha de uma ordem democrática — uma democracia liberal, representativa, federal e parlamentar — sustentada e reforçada pelos direitos e liberdades fundamentais. Esses valores fundamentais são objetivos porque se considera que ele têm uma realidade independente na Constituição, impondo a todos os órgãos de governo a obrigação de realizá-los na prática. A noção de uma ordem objetiva de valores pode ser colocada de outra forma. Todo direito fundamental na Constituição — por exemplo, liberdade de expressão, imprensa, associação e o direito à propriedade ou o direito a escolher uma profissão ou ocupação — tem um valor correspondente. Um direito fundamental é um direito negativo contra o Estado, mas esse direito também representa um valor, e enquanto valor impõe ao Estado uma obrigação positiva de assegurar que ele se torne uma parte integrante do ordenamento jurídico. Um exemplo pode ser suficiente: o direito à liberdade de imprensa protege um jornal contra qualquer ação do Estado que limitasse sua independência, mas enquanto um valor objetivo aplicável à sociedade como um todo, o Estado tem o dever de criar as condições que tornam possível e efetiva a liberdade de imprensa. Na prática, isso significa que o Estado pode ter que regular a imprensa para promover o valor da democracia; por exemplo, editando uma legislação para evitar que a imprensa como um todo caia nas mãos de qualquer grupo de interesse. Esse entendimento da Constituição como um sistema hierárquico de valores conta com o apoio geral dos constitucionalistas alemães, apesar da intensa controvérsia dentro e fora dos tribunais sobre a aplicação da teoria a casos particulares. Segundo algumas perspectivas jurisprudenciais, essa teoria permite à Corte um engajamento em um processo de decisão que permite a livre escolha das finalidades a serem atingidas, mantendo ao mesmo tempo a aparência de ser um processo limitado pelo texto das leis. E uma engenhosa alguns críticos diriam maliciosa — metodologia judicial. [...] Em suma, ela satisfaz a tradicional exigência germânica de objetividade no sentido de separar Direito e Política, mas tolera a busca de um sentido [político] no Direito Constitucional.” ↩︎

  262. No sentido de que estabelecem normas a serem obedecidas. ↩︎

  263. No sentido de que estabelecem fins a serem perseguidos. ↩︎

  264. Habermas, Between facts and norms, p. 257. “A transformação conceitual de direitos fundamentais em bens fundamentais significa que direitos foram mascarados pela teleologia, escondendo o fato de que em um contexto de justificação, normas e valores têm diferentes papéis na lógica da argumentação.” ↩︎

  265. Habermas, Between facts and norms, pp. 259-261. “Porque normas e princípios, em virtude do seu caráter deontológico, podem pretender ser universalmente obrigatórios e não apenas especialmente preferíveis, eles possuem uma maior força de justificação que os valores. Valores devem ser postos em uma ordem transitiva com outros valores, caso a caso. Como não há padrões racionais para isso, esse sopesamento acontece arbitrariamente ou sem maior reflexão, de acordo com os padrões e hierarquias costumeiras. A partir do momento em que uma corte constitucional adota a doutrina de uma ordem objetiva de valores e fundamenta seu processo de decisão em uma forma de realismo ou convencionalismo moral, o perigo de decisões irracionais cresce, porque os argumentos funcionais ganham precedência sobre os normativos. Certamente, há vários princípios ou bens coletivos que representam perspectivas cujos argumentos podem ser introduzidos em um discurso jurídico em casos de colisão de normas [...]. Mas argumentos baseados em tais bens e valores coletivos apenas contam na mesma medida que as normas e princípios pelas quais esses objetivos podem, a seu turno, ser justificados. Em última instância, apenas direitos podem ser invocados em um jogo argumentativo. [...] Um julgamento orientado por princípios precisa decidir qual pretensão e qual ação em um dado conflito é correta — e não como ponderar interesses ou relacionar valores. [...] A validade jurídica do julgamento tem o caráter deontológico de um comando, e não o caráter teleológico de um bem desejável que nós podemos alcançar até um certo nível.” ↩︎

  266. O termo inglês policy refere-se a um conjunto de idéias ou um plano, oficialmente aceitos por um grupo de pessoas, organização epresarial, governo ou partido político, que versem sobre o que fazer em determinadas situações. [Cambridge International Dictionary of English, verbete policy. “a set of ideas or a plan of what to do in particular situations that has been agreed officially by a group of people, a business organization, a government or a political party.”] Esse termo normalmente é traduzido para o português como política, mas essa escolha coloca sérios entraves à tradução da expressão political policies — que literalmente deveria ser traduzido como políticas políticas, o que nada significaria, sendo melhor traduzi-lo como programas políticos. Dessa forma, vemos que policy significa política apenas quando esse termo é utilizado como sinônimo de programa ou estratégia, quando se trata de uma política e não da Política. Para evitar essa ambigüidade, optamos pela tradução de policy como programa. ↩︎

  267. “Logo acima eu falei de 'princípios, políticas e outros standards’. Normalmente usarei o termo ‘princípio’ genericamente, para referir-me a todo o conjunto de standards diversos das regras; ocasionalmente, contudo, posso ser mais preciso e distinguir princípios de políticas”. Dworkin, Taking rights seriously, p.22. “I just spoke of ‘principles, policies, and other sorts of standards’. Most often I shall use the term ‘principle’ generically, to refer to the whole set of these standards other than rules; occasionally, however, I shall be more precise, and distinguish between principles and policies.” ↩︎

  268. Dworkin, Taking rights seriously, p.26. “Chamo de ‘programa’ aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, geralmente a melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (embora alguns objetivos sejam negativos, no sentido de que eles estipulam que algum aspecto presente deve ser protegido de mudanças adversas). Chamo de ‘princípio’ o standard que deve ser observado, não porque virá a promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência da justiça ou imparcialidade [justice or fairness]ou alguma outra dimensão da moralidade. Então, o standard de que deve-se diminuir o número de acidentes de trânsito é um programa e o standard de que ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza é um princípio.” ↩︎

  269. Dworkin, Taking rights seriously, pp. 22-23. “A distinção [entre princípios e programas] é arruinada quando entendemos que um princípio enuncia um objetivo social (p.e., o objetivo social de que ninguém seja beneficiado pela própria torpeza), ou ao entendermos que um programa enuncia um princípio (p.e., o princípio de que a finalidade buscada pelo programa é valiosa) ou ao adotar a tese utilitarista de que princípios de justiça são enunciados de finalidades disfarçados (assegurando a maior felicidade para o maior número [de pessoas]).” ↩︎

  270. Dworkin, Taking rights seriously, pp. 82-84. “Argumentos fundados em programas justificam uma decisão política na medida em que mostram que a decisão promove ou protege a comunidade como um todo. O argumento, em favor de um subsídio para os fabricantes de aeronaves, de que o subsídio protegerá a segurança nacional, é um argumento fundado em programas. Argumentos fundados em princípios justificam uma decisão política na medida em que mostram que uma decisão respeita ou assegura algum direito individual ou coletivo. O argumento, em favor das leis anti-discriminatórias, de que uma minoria tem direito a igual respeito e atenção, é um argumento de princípio. Esses dois tipos de argumentos não esgotam a argumentação política. Algumas vezes, uma decisão política, como a decisão de permitir isenções fiscais para os cegos, podem ser defendidas apenas como um ato de generosidade pública ou uma virtude, mais que em nível de programas ou princípios. Entretanto, programas e princípios são os mais importantes fundamentos da justificação política. [...] Se o caso em questão é um hard case, no qual nenhuma regra define a decisão a ser tomada, então pode parecer que uma decisão adequada pode ser feita tanto com base em programas como em princípios. [...] Eu proponho, contudo, a tese de que as decisões judiciais em ações civis, mesmo em hard cases [...], caracteristicamente são e deveriam ser tomadas com base em princípios, e não em programas.” ↩︎

  271. Dworkin, Taking rights seriously, p. 26. ↩︎

  272. Em um texto adequadamente chamado pelo autor de Taking Rules Seriously, [Levando as regras a sério] um jogo de palavras sobre o título da obra principal de Dworkin, Taking Rights Seriously[Levando os direitos a sério]. A tradução para o Espanhol manteve o jogo de palavras, conferindo ao texto o título de Las reglas en serio, pois a obra de Dworkin foi traduzida para o espanhol como Los derechos en serio. ↩︎

  273. Aarnio, La normatividad del derecho, p. 23. ↩︎

  274. E outros critérios de aplicação do princípio da proporcionalidade. ↩︎

  275. Kommers, The Constitutional Jurisprudence..., p. 476. ↩︎

  276. Kommers, The Constitutional Jurisprudence..., p. 475-478. “O direito fundamental à liberdade religiosa é garantido incondicionalmente, mas essa garantia não implica que não há limites a esse direito. Toda limitação, contudo, deve ser baseada na Constituição. Os legisladores não são livres para restringir a liberdade religiosa na falta de limitações constantes em dispositivos da própria Lei Fundamental. [...] Ao resolver a inevitável tensão entre os aspectos positivos e negativos da liberdade de religião, e buscando promover a tolerância que a Lei Fundamental prescreve, o Estado, ao formar o interesse coletivo, deve esforçar-se para produzir um compromisso aceitável. [...] A exposição de cruzes em salas de aula, no entanto, excede [essas orientações e limites constitucionais]” ↩︎

  277. Kommers, The Constitutional Jurisprudence..., p. 475. “A cruz é o símbolo de uma convicção religiosa particular e não apenas uma mera expressão de valores culturais que foram influenciados pela cristandade.” ↩︎

  278. Kommers, The Constitutional Jurisprudence..., p. 478. “[L]onge de ser um mero símbolo da cultura ocidental, ela simboliza o coração da fé cristã, que sem dúvida moldou o mundo ocidental em vários sentidos, mas que não é compartilhada por todos os membros da sociedade. [...] Dessa forma, a exposição da cruz nas escolas públicas obrigatórias viola o artigo 4 (I) da Lei Fundamental.” ↩︎

  279. Kommers, The Constitutional Jurisprudence..., pp. 482-483. “[O Caso dos Crucifixos] detonou uma tempestade de protestos através da Alemanha. O primeiro ministro Helmut Kohl chamou a decisão de “incompreensível”. Jornais conservadores atacaram a Corte Constitucional por repudiarem a decisão uniformemente condenada, chamando-a de ameaça à cultura cristã dos alemães. Muitos constitucionalistas, inclusive um ex-presidente da Corte Constitucional, criticaram os juízes pelo seu julgamento inconsistente. A decisão produziu a mais forte rejeição na Bavaria. Segurando crucifixos, manifestantes em Munique e outras comunidades marcharam em desafio à Corte de Karlsruhe enquanto seus líderes políticos conclamavam os agentes do estado a não respeitarem a decisão. Essa foi a reação mais negativa a uma decisão judicial na história da República Federal e a única demonstração de claro desafio à um posicionamento do Tribunal Constitucional Federal.” ↩︎

  280. Kommers, The Constitutional Jurisprudence..., p. 483. “A crítica às decisões é normal e de interesse para as próprias reflexões da Corte sobre o seu papel como árbitro final da Constituição; em verdade, a crítica é necessária. No entanto, a discordância frente a uma decisão não exime o crítico do dever de cumpri-la.” ↩︎

  281. Kommers, The Constitutional Jurisprudence..., p. 483. ↩︎

  282. Haltern, High time for a check-up. ↩︎

  283. Como é o caso do due process of law, instituto cujo conteúdo foi definido pela jurisprudência da Suprema Corte. ↩︎

  284. http://www.jura.uni-sb.de/Entscheidungen/abstracts/entsch-e.html. ↩︎

  285. http://www.jura.uni-sb.de/Entscheidungen/abstracts/wall.html. ↩︎

  286. http://www.jura.uni-sb.de/Entscheidungen/abstracts/wall.html. “A confiança que essa norma protege deixa de existir quando outro estado exclui a responsabilidade criminal das mais sérias injustiças criminosas, com justificativa em regulamentos nacionais, que admitem e apoiam tal injustiça de modo a zombar seriamente dos direitos humanos geralmente reconhecidos pela comunidade internacional. [...] Os julgamentos impugnados são adequados a esses princípios de direito constitucional, e em particular o Tribunal Constitucional Federal concorda com o julgamento do Bundesgerichtshof. O Bundesgerichtshof declarou que justificativas para o homicídio intencional de pessoas desarmadas que apenas tentavam cruzar a fronteira, eram inúteis porque se trata de uma óbvia violação aos direitos humanos protegidos internacionalmente. A violação era tão séria que ia contra todas as idéias de valor e dignidade humanos reconhecidos por todas as nações. Em um caso como esse, o direito positivo precisa ceder à justiça. O Tribunal Constitucional Federal confirma essa avaliação do Bundesgerichtshof. [...] O argumento dos recorrentes de que o direito à vida e à livre movimentação não eram garantidos incondicionalmente pela Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos também não teve sucesso. Era verdade que mesmo os Estados democráticos de direito permitiam o uso de armas de fogo, em particular para a perseguição e captura de criminosos, e que a legislação da Alemanha Oriental sobre o uso de armas de fogo na fronteira, àquele tempo, era correspondente à às leis da Alemanha Ocidental. No entanto, o Tribunal Estadual de Berlim e o Bundesgerichtshof reconheceram que essa situação legislativa era eclipsada pelos comandos efetivamente dados. O uso de armas de fogo não era restrito pelo princípio da proporcionalidade: os guardas de fronteira recebiam ordens de que qualquer pessoa atravessando a fronteira deveria ser “destruída” se ela não pudesse ser detida por outros meios. Subordinar o direito à vida dos indivíduos aos interesses do Estado era uma grave injustiça. [...] A condenação do guarda de fronteira não infringe o princípio de que “não há pena sem culpa”. As cortes criminais recusaram a desculpa de que o agente apenas cumpria ordens, porque, a partir das circunstâncias, era claro para o guarda de fronteira que o uso de armas de fogo na fronteira era ilegal. Entretanto, as cortes não discutiram as possíveis conseqüências que o fato de tais ações terem sido justificadas na autoridade do Estado poderia causar na capacidade dos soldados de reconhecer a ilegalidade desses atos. Nesse caso, não é necessário que o soldado médio reconheça a ilegalidade de um ato objetivamente considerado uma grave violação aos direitos humanos; é preciso avaliar esse fato à luz da situação de cada soldado individual: sua educação, doutrinação e outras circunstâncias relevantes. As cortes, no entanto, consideraram corretamente que o homicídio de refugiados desarmados por meio de um fogo contínuo nas condições estabelecidas era um ato tão terrível que negava qualquer justificação possível, que era claro e óbvio até mesmo a uma pessoa sem instrução que isso era desproporcional e ilegal.” ↩︎

  287. http://www.jura.uni-sb.de/Entscheidungen/abstracts/profs.html. ↩︎

  288. http://www.jura.uni-sb.de/Entscheidungen/abstracts/profs.html. “The Federal Constitutional Court's first Senate has now decided the question which it had at first tabled in its December 7, 1994 decision. The problem is that while under the Revised Legal Occupation Law for Lawyers and Patent Lawyers (which went into effect on January 1, 1995) all lawyers are limited to practicing law in the Landgericht where they are licensed, this bar is lifted in the old “Bundeslaender” on January 1, 2000, whereas lawyers in the former GDR must wait until 2005 before the liberalization goes into effect there. Previously, lawyers in the new “Bundeslaender” could represent clients anywhere in the former GDR, and were not limited to their own Landgericht. The Court found that the constitutional rights of lawyers in the new “Bundeslaender” laid out in Article 12(1) of the “Grundgesetz” were being injured through the restriction per §(1-2) ZPO a.F. Though the reasons behind this distinction were based on an attempt to further the common good, by preventing lawyers in the new “Bundeslaender” from leaving en masse, while protecting them for a time from the stronger competition from the old “Bundeslaender,” the Court felt that this goal could also be reached through other more egalitarian means. To prevent the lawyers in the new “Bundeslaender” from being subjected to such a change twice in ten years (one can lose a lot of clients and connections in that time), the Senate ordered that the current legal situation should be allowed to continue until December 31, 2004. This ensures that they remain protected from the lawyers from the West until 2005, when the situation for both groups of lawyers will become the same.” ↩︎

  289. http://www.jura.uni-sb.de/Entscheidungen/abstracts/tvreports.html. ↩︎

  290. “[A] regulação impugnada restringe desproporcionalmente a liberdade de profissão, na medida em que o direito de fazer breves reportagens sobre eventos organizados profissionalmente pode ser exercido sem qualquer tipo de pagamento. Ao contrário de outras obrigações impostas sobre o exercício de uma profissão, [o dispositivo impugnado] exige que a atividade profissional do organizador do evento sirva não apenas ao púbico em geral, mas também aos competidores da emissora de televisão com quem foi assinado o contrato de direitos exclusivos. O dever de permitir breves reportagens televisivas por outras estações não é proporcional à finalidade da regulação, porque ela coloca um fardo demasiadamente grande nas costas do organizador. É razoável esperar algum pagamento das emissoras que se beneficiam do direito de fazer breves reportagens. A fixação desse não deve ser deixada à discricionariedade do organizador, mas deve ser decidida pelo legislador de modo a harmonizar as necessidades de acesso [às informações] e o trabalho do organizador.” ↩︎

  291. Alexy, Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 383. ↩︎

  292. Alexy, Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 388. ↩︎

  293. Alexy, Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 389. ↩︎

  294. Alexy, Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 389. ↩︎

  295. 42 BVerfGE, 79 ss. ↩︎

  296. Alexy, Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 389. ↩︎

  297. Alexy, Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 399. ↩︎

  298. Alexy, Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 400 [citando Leibholz ↩︎

  299. Alexy, Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 400. ↩︎

  300. Alexy, Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 401. ↩︎

  301. O poder legislativo federal alemão é dividido em duas casas: Bundestag (Parlamento Federal) e Bundesrat (Conselho Federal ou Senado). O Bundesrat representa os 16 estados-membros e — ao contrário do que ocorre nas federações brasileira, norte-americana ou suíça — não é composto por representantes eleitos pelo voto popular, mas por membros indicados pelos governos estaduais. Cada estado tem direito a um certo número de cadeiras — que varia de 3 a 6, conforme a sua população —, sendo que seus votos somente podem ser dados por unanimidade [Perfil da Alemanha, p. 129]. Já o Bundestag — correspondente à Câmara dos Deputados brasileira — é composto por 656 membros, eleitos diretamente pelo voto popular, a partir de um sistema bastante complexo. Metade dos deputados (328) é eleita pelo sistema majoritário e metade pelo sistema proporcional e, por isso, cada cidadão tem direito a dois votos separados. O país é dividido em distritos eleitorais, cada qual tendo o direito de eleger um deputado, e no seu primeiro voto o eleitor escolhe um dos candidatos do seu distrito. A eleição nos distritos é majoritária, ou seja, vence o candidato que receber o maior número de votos brutos. O eleitor tem também um segundo voto, no qual não escolhe um candidato pessoalmente, mas um partido — mais especificamente, a lista de candidatos oferecida pelo partido. O número de cadeiras que cada estado tem direito a ocupar — pelo voto proporcional — no Bundestag é proporcional à sua população e elas são divididas entre os partidos proporcionalmente ao número de votos recebidos pelas suas listas, utilizando o seguinte método: (1) inicialmente, o número total de votos de cada partido é multiplicado pelo número de cadeiras a serem preenchidas pelo estado; (2) em seguida, esse total é dividido pelo número total de votos no estado (3) as vagas restantes serão distribuídas em ordem decrescente das frações decimais resultantes do cálculo anterior. Essa descrição do método — que é a feita pela lei eleitoral — dificulta um pouco a percepção do seu objetivo, mas em realidade trata-se do mesmo sistema adotado pelo Brasil quanto aos votos proporcionais (com a exceção de que a lista não é oferecida previamente pelos partidos, mas construída a partir do número de votos recebidos pelos candidatos). O que a lei germânica equivale à seguinte operação: dividir-se o número de votos de cada partido pelo número total de votos, e o resultado dessa operação é definir a percentagem de votos obtidos por cada partido. Em seguida, multiplica-se essa percentagem pelo número de vagas, o que define a percentagem de vagas que caberá a cada partido. Como o resultado do cálculo raramente será um número inteiro, normalmente restarão algumas cadeiras a ser distribuídas — em um número necessariamente menor que o dos partidos. E preciso, então, estabelecer um método para a distribuição das cadeiras restantes: a prioridade é dada aos partidos com maior o número fracionário resultante do cálculo, ou seja, aos que necessitam de menor número de votos necessários para completar o quociente eleitoral (número de votos necessários para eleger um candidato). Todavia, a lei eleitoral alemã estabelece [art. 6 (6)] uma limitação ao acesso às cadeiras do Bundestag que é totalmente estranha à legislação eleitoral brasileira: somente podem participar da divisão proporcional dos votos os partidos que (1) alcancem 5% dos segundos votos em toda o país ou (2) que conquistem ao menos três cadeiras, pelo voto majoritário. Além disso, o Tribunal Constitucional Federal interpreta que os partidos que não elejam ao menos três deputados pelo voto majoritário, ainda que vençam a barreira dos 5%, não têm direito à distribuição das vagas proporcionais. O objetivo dessa norma é evitar a existência de partidos muito pequenos, sem força considerável, o que poderia causar dificuldades para formação de maiorias dentro do congresso e, conseqüentemente, para a consolidação de um governo estável. [http://iecl.iuscomp.org/gla/ - Lei Eleitoral Alemã e Introduction to the German Federal Election System] ↩︎

  302. Perfil da Alemanha, pp. 140-143. ↩︎

  303. Esse caso é descrito conforme o resumo constante à http://www.jura.uni-sb.de/Entscheidungen/abstracts/entsch-e.htmlhttp://www.jura.uni-sb.de/Entscheidungen/abstracts/entsch-e.htmlhttp://www.jura.uni-sb.de/Entscheidungen/abstracts/entsch-e.html, Basic Mandate Clause is Constitutional. ↩︎

  304. “O objetivo da representação proporcional — assegurar que a composição de um parlamento reflita da melhor forma possível as intenções do eleitorado — pode levar à representação de vários pequenos grupos, que poderiam impedir a formação de uma maioria estável. O legislativo pode, assim, colocar diferentes pesos nos segundos votos por meio de cláusulas limitadoras, como a conhecida barreira dos 5%. Essas cláusulas não são restritas à barreira dos 5% e podem incluir alternativas como a cláusula do mandato básico, que pode ser justificada pela necessidade de eleger um parlamento que possa funcionar efetivamente. A cláusula do mandato básico serve essa necessidade legítima, e o legislador não é meramente restrito à limitar o sucesso de um partido na representação proporcional pelo uso da barreira dos 5%. O numero de candidatos vitoriosos nos distritos também pose ser uma medida para o apoio político do partido, como o que a cláusula promove, para garantir que o parlamento não seja estilhaçado em pequenos grupos.” ↩︎

  305. Para a finalidade dessa comparação, devido processo e princípio da proporcionalidade podem ser considerados equivalentes, bem como equal protection e princípio da igualdade. ↩︎