1. Da "ordem natural" à pura racionalidade

Por volta dos cinquenta anos, a leitura dos textos do jovem Hume acordou Immanuel Kant do seu sono dogmático e o estimulou a desenvolver sofisticados raciocínios que defendessem a verdade e a moralidade das críticas de Hume. Melhor dizendo, Kant buscou defender apenas uma parte do conhecimento e das regras morais, já que ele reconhecia que Hume tinha razão no tocante ao conhecimento empírico baseado na indução.

Kant aprendeu com Hume que o método indutivo, fundado na generalização de observações empíricas, não conduz a uma verdade objetiva. Aprendeu também que a razão humana não pode reconhecer na natureza valores objetivamente morais. Porém, diferentemente de Hume, Kant não estava disposto a admitir que toda a verdade e toda a moralidade são apenas construções historicamente determinadas por certas tendências inatas do homem. Ele tentou defender o caráter objetivo de parte do conhecimento e da ética.

Kant buscava uma verdade que independesse do assentimento dos homens, mas não uma verdade que fosse independentemente do homem. Ele reconhecia que  o nosso conhecimento do mundo (físico ou moral) era decorrente dos modos humanos de perceber o mundo e, por isso, não seria possível obter um conhecimento direto e objetivo da ordem natural. Kant seguiu a tese de Hume de que a verdade era algo ligado ao homem, sendo descabido buscar valores e verdades absolutos em uma ordem natural exterior, tal como faziam os gregos e os medievais.

O próprio Hume também fez todos os esforços para evitar a conclusão de que  os valores morais seriam todos contingentes. Hume defendeu que os valores seriam artificiais, mas insistiu na tese tipicamente moderna de que existia uma natureza humana que condicionava as nossas conclusões de tal modo que certos valores decorreriam necessariamente de nossas formas de ver e de pensar o mundo. Kant desenvolve essa via que foi aberta por Hume, realizando uma reflexão acerca da racionalidade humana, voltada a compreender quais seriam os conteúdos necessários que decorreriam das formas humanas de sensibilidade e de cognição.

Hume entendia que apenas as formas eram definidas pela natureza humana, sendo contingentes todos os conteúdos valorativos da experiência social, de tal modo que as concepções de "bom" e de "justo" fatalmente seriam alteradas com o tempo. Somente as afirmações meramente formais, como as da lógica e da matemática (como "a = a" ou "3 > 1"), poderiam ser universalmente válidas. Ocorre que os juízos formais são universais e vazios, pois eles não nos ensinam nada sobre o mundo. Um enunciado como “as causas da guerra do Paraguai são as causas da guerra do Paraguai” é apenas uma das infinitas variações de “a=a” e, nessa medida, é uma expressão tão vazia quanto todas as outras que são verdadeiras apenas por causa de sua forma lógica.

Kant mais uma vez convergia com Hume, reconhecendo que um puro formalismo racionalista não seria capaz de conduzir ao conhecimento adequado sobre o mundo, fosse na ética, na física ou no direito. Já estava suficientemente claro que uma análise indutiva de fatos empíricos nos conduziria a enunciados sempre contingentes, sempre mutáveis, sempre influenciáveis por nossos conceitos e crenças. As trilhas abertas por Hume pareciam conduzir tanto o racionalismo como o empirismo aos becos sem saída das verdades tautológicas e das objetividades ilusórias.

Kant percebeu essa aporia e tentou criar uma alternativa: usar a racionalidade para observar a racionalidade. Inspirado por Hume, Kant fez a razão tentar olhar-se no espelho e tentar compreender-se de uma maneira inovadora. Ao dobrar a racionalidade sobre si mesma, ele buscou escapar das críticas de Hume ao conhecimento indutivo. Se o conhecimento empírico dos fenômenos é sempre falível, o conhecimento da própria racionalidade humana (nos termos de Kant, o conhecimento transcendental, ou metafísico) não compartilha essa mesma sina. Trata-se de um conhecimento direto da razão humana sobre si mesma, e esse é um tipo de conhecimento  puro, ou seja, purificado de todas as incertezas que provém da empiria.

Ao adotar como objeto de investigação a própria forma humana de conhecer, Kant escolhe um objeto peculiar: ele não é formal (porque tem um conteúdo) mas também não é empírico (porque não passa pelos sentidos).  Com isso, radicaliza-se a máxima socrática do conhece-te a ti mesmo, para chegar ao ponto de que não podemos conhecer, com objetividade, nada mais do que o nosso puro pensamento. Por isso mesmo é que Kant se propôs às explorar as possibilidades do pensamento puro, o que ele fez na Crítica da Razão Pura (referente à razão especulativa) e na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, que é uma espécie de introdução à razão pura prática, em que ele investiga o “princípio supremo da moralidade”(Kant 1996).

Kant pretende trazer de volta o bem em si do limbo ao qual a filosofia humeana o relegara. A busca kantiana é justamente de redefinir o bem em si, que já não pode mais ser considerado como um elemento da natureza a ser identificado pela razão humana, mas que precisa ser parte integrante da própria razão aplicada às questões do agir humano (a razão prática). Nesse ponto, ele se afasta profundamente de Hume: enquanto o filósofo escocês insistiu que a razão somente era competente para identificar meios, e não fins, o filósofo prussiano tentou estabelecer as condições em que certos fins pudessem ser considerados racionais.

Para Kant, entre todas as justificativas que nos movem, apenas uma tem valor moral: a obediência a um dever objetivamente válido. Mas quais são os deveres morais que devem guiar nossa vontade? Antes de mais nada, esses deveres precisam ser leis objetivamente válidas, o que exige que eles sejam praticáveis por todas as pessoas, independentemente das características que tornam cada indivíduo singular. Portanto, a justificativa que orienta uma conduta precisa ser universalizável, no sentido de que qualquer pessoa deveria poder desejá-la, independentemente de seus interesses, valores e idiossincrasias.

Esta é a forma racional dos deveres morais, dado que uma norma moral precisa sempre ser igualmente desejável por qualquer pessoa, sem o que ela não poderia ter validade objetiva. Purificado de todos os impulsos, o princípio da vontade racionalmente guiada somente pode ser o de uma lei universal cujo sentido é o de que cada um deve agir de tal forma que possa querer que a máxima que guia a sua ação se converta em lei universal. Esse princípio não é bom para a realização de certos fins ou interesses, mas ele é bom em si mesmo, na medida em que deriva da própria razão que deve guiar a nossa vontade. Esse motivo o faz Kant chamá-lo de imperativo categórico: um enunciado é imperativo (na medida em que impõem deveres) e é também categórico (porque esses deveres não admitem qualquer tipo de relativização).

Com isso, Kant oferece uma nova chave para a discussão moral: em vez de nos perguntarmos se um ato é virtuoso, bom ou justo, devemos nos perguntar se a máxima que o move é universalizável. Eu vou dizer ao professor que estive doente, para que ele me ofereça um prazo maior para entregar o trabalho. Eu não vou pagar uma dívida, pois pretendo usar esse dinheiro para viajar. Eu vou tomar para mim a caneta do meu vizinho, pois gostei dela. Eu vou furar a fila para comprar ingressos, pois gosto muito do cantor que se apresentará. Para Kant, nenhuma dessas máximas seria universalizável, pois todas elas envolvem a desconsideração de alguém e, portanto, elas não poderiam ser desejáveis simultaneamente por todas as pessoas. Portanto, nenhuma dessas ações poderia ser considerada ser moralmente corretas.

A mentira, o descumprimento das promessas, o furto, a agressão, todas essas práticas envolvem a desconsideração do outro, de tal forma que sua universalização seria inviável, pois esse outro não a poderia admitir. Por isso, Kant introduz esse elemento na própria formulação do imperativo categórico, que determina: age de tal modo que te relaciones com a humanidade, tanto em sua pessoa quanto na de qualquer outro, sempre como um fim, e não apenas como um meio. Isso significa que os desejos e valores de cada pessoa não podem ser tratados como elementos de um cálculo estratégico, pois a posição de cada uma das pessoas deve ser considerada.

O discurso kantiano exige uma igual consideração de todos os homens, pois a posição de cada um deles deve ser levada em conta para a definição da moralidade de uma ação. Não se trata apenas de fazer ao outro o que desejaria que fizessem a mim, pois isso significaria universalizar meus próprios desejos. Por mais que um europeu ou um chinês considere bom o seu modo de vida, esses padrões culturais não podem ser universalizados, pois implicariam a imposição dos valores de uma cultura sobre outra. Assim, a universalização kantiana estabelecer algo mais do que a regra de ouro cristã (não faça aos outros o que não desejaria que fizessem a ti), pois determina uma consideração da pluralidade dos interesses e dos valores em jogo.

Nessa medida, trata-se de um discurso bastante ligado ao ideal iluminista de racionalização das relações sociais e de uma garantia dos âmbitos de liberdade individual contra intervenções que o limitem. A exigência de universalização constitui uma barreira contra a justificação moral de privilégios e desigualdades, que não podem nunca passar nesse teste, na medida em que causam distorções que não seriam aceitas pelos envolvidos. A criação de desigualdades pode ser uma opção política, pode ser uma imposição jurídica, mas não pode ser justificada na forma de uma moral objetiva.

A crítica Kantiana desafia as formas tradicionais de moralidade e as justificativas tradicionais do poder político, que tendem a justificar os papéis sociais consagrados em uma tradição. Ele percebe, como Hume, que nós tendemos a naturalizar nossos preconceitos morais, e também como Hume Kant se coloca como um opositor ferrenho à ideia de que existe uma lei moral inscrita na ordem natural do mundo.

Kant é um dos grandes responsáveis por fecundar a filosofia continental europeia com as produtivas dúvidas de David Hume, estabelecendo que é descabido investigar o mundo com a finalidade de identificar uma ordem natural que deve ser adotada como modelo para a ordem social. Não encontraremos nada disso no mundo. O que nos resta é apenas observar nossa própria racionalidade e buscar extrair consequências práticas do modo como vemos o mundo.

Se existe uma ordem natural, ela não é externa ao homem, mas é interna a cada pessoa em particular. A herança kantiana não busca um conjunto de papéis sociais exteriores aos homens e que eles devem seguir. Ele não nos oferece uma metafísica da ordem cósmica, mas uma metafísica da razão: ele coloca a racionalidade humana no lugar que era ocupado pela ordem natural. Como afirma Marcus Faro:

Após a obra crítica de Kant, tornara-se quase impraticável sustentar uma ideia de ciência (Wissenshcaft) que fosse contaminada por especulações diversas (como ocorria no jusnaturalismo), ou sob a qual a ordem "racional" fosse considerada extrínseca ao objeto pensado, e não como um "sistema interno" ou ontologicamente constitutiva do sujeito. No contexto intelectual influenciado por Kant, o fato de que uma abordagem seja filolsófica passa a querer dizer que ela é "sistemática" nesse sentido.

Como quase tudo o que realizamos no mundo, o resultado alcançado por Kant não correspondeu completamente ao projeto, ainda mais quando se trata de uma tentativa de uma tentativa de avaliar a correção das próprias intuições. Kant se propôs a fazer uma análise da estrutura racional do conhecimento humano e a descobrir, por meio desse processo crítico-reflexivo, quais seriam as formas necessárias da moralidade e do direito. Porém, quando analisamos o resultado dessa empreitada, o nosso olhar contemporâneo ressalta que muito do que ele entendia encontrar na própria racionalidade não passava de um reflexo de sua própria cultura.

2. O sistema conceitual da metafísica dos costumes

Kant era um estudioso do direito e se propôs a escrever o que ele chamou de Metafísica dos Costumes: "um sistema de conhecimento a priori que consiste em conceitos puros" (Kant 1887), ou seja, conceitos que não passam por uma análise de dados empíricos, mas que são extraídos da própria estrutura racional da cognição. Esses conceitos deveriam ter sido descobertos por uma análise racional, o que significa que eles deveriam ter sido reconhecidos antes da experiência (a priori), inclusive porque eles deveriam servir como base para as análises empíricas.

Em seu livro Metafísica dos Costumes, Kant fez uma lista das categorias universais mais importantes para o conhecimento do direito e da ética. Um dos pontos que causa mais estranhamento para um olhar contemporâneo é que, nesses conceitos, simplesmente inexiste a categoria fundamental da teoria jurídica que nos foi legada  pelo século XX: a norma. No sistema kantiano, que é um desenvolvimento das categorias civilisas e jusracionalistas, a categoria central é não é a de norma, mas a categoria civilista de obrigação.

Kant define obrigação como uma "necessidade de uma ação livre quando vista em relação a um imperativo categórico da razão" (Kant 1897). Essa é uma noção central porque é ela que marca a distância entre Kant e Hume: enquanto Hume afirmará que as pessoas sentem-se obrigadas (reduzindo a obrigação a um sentimento), Kant busca esclarecer que a obrigação gera uma necessidade objetiva e que, portanto, ter um dever é diferente de sentir-se obrigado.

Para Kant, o dever não é gerado por uma crença ou sentimento, mas pelo reconhecimento racional de que é necessário agir de acordo com uma certa regra. Kant já havia reconhecido, na Fundamentação da metafísica dos costumes, que  a viabilidade de estabelecer uma obrigação objetiva estava na subordinação direta da vontade à razão (Kant 1996). Em Hume, essa subordinação se mostra impossível, pois ele entende que as escolhas humanas são manifestações de vontade e que razão é meramente calculadora: ela mostra meios, mas não escolhe os fins.

O centro da teoria moral de Kant está justamente na ideia de que, uma vez que a razão identifique um fim como racional, a racionalidade humana tornaria necessário que a pessoa reconhecesse a existência de uma obrigação. Uma vez definido esse caráter racional das obrigações, Kant passa a definir outras categorias fundamentais de sua teoria: dever, agente, pessoa, coisa e outros conceitos jurídicos relevantes, até chegar às categorias de lei e legislador.

Para Kant, a lei é uma proposição que contém um comando cuja obrigatoriedade é imposta por um legislador. Essa preponderância da figura do legislador não deixa espaço para uma lei impessoal, para uma lei válida em si, como posteriormente será teorizado por Kelsen. Nem mesmo as leis do direito natural, cuja validade seria reconhecida pela razão de maneira a priori, seriam impessoais: Kant indica que, nesses casos, devemos reconhecer a existência de um legislador divino, cuja vontade é a fonte de validade da lei natural. Já a lei positiva é aquela que estabelece deveres que são obrigatórios em função da decisão voluntária do legislador.

Depois de definir os conceitos gerais da moralidade (envolvendo ética e direito), Kant fez uma longa análise dos conceitos fundamentais do direito das coisas e do direito das obrigações, que considera racionais vários dos elementos que foram construídos por séculos de trabalho sobre o direito romano, especialmente pelos pós-glosadores. Porém, é no momento em que ele analisa o direito de família que se torna evidente o fracasso da tentativa kantiana de identificar as categorias a priori da racionalidade humana.

No título sobre A base natural do casamento, Kant indica que as relações domésticas são fundadas no casamento e o casamento é baseado na reciprocidade natural dos sexos, também chamada de comercium, sendo que relação sexual é o uso dos membros e habilidades sexuais de outras pessoas.

Esse uso  pode ser natural, quando seres humanos podem reproduzir, ou anti-natural, quando o uso se refere a uma pessoa do mesmo sexo ou a um animal de especie deversa da humana. Essa transgressão a todo direito, como 'crimina carnis contra naturam', não deve sequer ser nomeada; e enquanto violações contra toda a Humanidade, elas não podem ser eximidas, por qualquer limitação ou excepção, de uma total reprovação. [...]
Essa unidade natural dos sexos ocorre de acordo com a mera natureza animal (vaga libido, venus vultivaga, fornicatio) ou de acordo com o direito. Este é o casamento (matrimonium), que é a união de duas pessoas de diferente sexo para uma posse recíproca e vitalícia das suas faculdades sexuais. [...] Se um homem e uma mulher desejam entrar em uma fruição recíproca eles têm a necessidade de se casar, e essa necessidade está de acordo com as leis jurídicas da Razão Pura. (Kant 1897)

O discurso kantiano sobre a naturalidade do matrimônio, de seu caráter vitalício, da ilegitimidade das relações sexuais não-matrimoniais e do caráter criminoso das relações entre pessoas do mesmo sexo mostra claramente que a sua busca por identificar as categorias a priori do direito somente o conduziram a naturalizar sua própria cultura e a confirmar a validade de suas intuições morais.

O fracasso retumbante da tentativa kantiana de escapar dos diagnóstico de Hume somente confirma a correção da tese humeana de que todo valor social é criado artificialmente e que não é possível descobrir valores racionais.