Filosofia e sociedade

1. Filosofia e crítica social

1.1 Linguagem e sociedade

Os debates sobre o mundo tipicamente não são debates sobre as percepções que temos de um objeto determinado, mas sobre as maneiras corretas de descrever e de classificar um conjunto de fenômenos. Quando começa a vida? Quais são os efeitos colaterais de um medicamento? Qual é o candidato com mais chances de ganhar uma eleição? Perguntas como essas não envolvem a descrição de um fenômeno particular, mas a análise de um grande número de fatos, cuja observação conjunta permite formular os padrões explicativos que chamamos de conhecimento.

Enquanto esses debates estão apenas no plano categorial, poucas pessoas se interessam por eles. Qual o conceito jurídico de pessoa? Quais são os tipos de sentenças judiciais? Todo ato que encerra um processo deve ser chamado de sentença? Nesse plano abstrato, tais discussões podem parecer um exercício burocrático de erudição, uma filigrana acadêmica.

Mas acontece que os resultados desses debates podem ter implicações práticas imensas. Uma transição no que se chama de pessoa pode mudar o estatuto jurídico dos fetos (com reflexos na regulação jurídica do aborto) ou dos animais (que podem vir a ser protegidos contra o sofrimento, tornando-se até mesmo sujeitos de direitos próprios). Quando um biólogo sugere que certos traços culturais têm base genética, é comum que um antropólogo rebata que esses comportamentos precisam ser explicados como elementos de uma cultura. Uma mudança em nossa compreensão sobre a genética pode impactar nos modos como a medicina, o direito e a psicologia lidam com identidades de gênero ou orientação sexual.

Todos esses debates impactam nossa vida justamente porque a nossas interações sociais são mediadas por esses tipos de categorias. Há outras espécies de animais que dependem de laços sociais, mas é entre os Homo sapiens que a estrutura dos grupos pode ser profundamente impactada por alterações no significado de certas categorias linguísticas: mulher, liberdade, pecado, culpa, responsabilidade, tolerância. Muitas espécies dependem pouco de laços sociais, visto que sua interação com o ambiente se dá sem essa mediação por um sistema social que cria o nicho ecológico no qual o indivíduo se insere. Já a sobrevivência dos seres humanos depende da capacidade dos indivíduos de realizar esforços coordenados. Não somos os animais mais fortes, nem mais rápidos, mas somos aqueles cuja capacidade de coordenação social permitiu que a convergência de muitos esforços gerasse resultados altamente eficazes.

Aparentemente, nós não extinguimos os neandertais por eles serem mais fracos ou menos inteligentes, mas porque eles não eram capazes de coordenar esforços para além nos seus núcleos familiares estendidos, numa etapa evolutiva na qual os Homo sapiens já conseguiam formar sociedades clânicas, baseadas na cooperação de múltiplas linhagens familiares (Flannery e Marcus, 2012). Enquanto nossas sociedades também eram limitadas à família estendida, coexistimos (e convivemos e reproduzimos) com os Neandertais, até que essa espécie se extinguiu, há cerca de 28.000 anos, durante a chamada Idade do Gelo.

Como é possível essa organização social em larga escala dos Homo sapiens? A resposta está em nosso amplo repertório cultural, possibilitado pelo desenvolvimento de uma linguagem abstrata. Flannery e Marcus (2012)afirmam, com precisão, que nós nascemos em famílias, mas que somos iniciados nos clãs (ou em sociedades maiores), nas quais o indivíduo se torna parte integrante do corpo social mediante processos de aprendizagem e ritos de iniciação. A socialização produz seres humanos capazes de atuar de forma coordenada, e para isso é fundamental que eles sejam incorporados a uma cultura: um conjunto de comportamentos, de rituais, de conhecimentos, de valores. Esse conjunto de elementos simbólicos define padrões de interação social que, uma vez praticados simultaneamente por vários integrantes do grupo, permitem uma ação coordenada.

A cultura de uma comunidade é uma mescla de padrões que são repetidos pelos seus membros, o que envolve padrões de comportamentos (modos de vestir, modos de se alimentar, modos de cuidar das crianças, etc.) e também padrões discursivos (narrativas, explicações que descrevem o mundo, enunciação de deveres e de punições). Esses padrões discursivos podem ser entendidos como comportamentos linguísticos, visto a comunicação ser uma interação na qual as pessoas agem. Apesar disso, vamos diferenciar categorialmente esses padrões discursivos (ou seja, a linguagem), porque o agir comunicativo tem características bastante peculiares.

A cultura é o nosso grande desenvolvimento, pois ela molda nossa subjetividade e nos oferece um repertório de conhecimentos que permitem a cada pessoa lidar com a multiplicidade do mundo e a complexidade das possíveis interações sociais. Cada cultura nos oferece uma explicação para o mundo, uma espécie de mapa que simplifica a multiplicidade dos fenômenos observáveis e, com isso, permite que a realidade caiba dentro de nossas capacidades cognitivas. Ao definir um certo horizonte de compreensão, ao estabelecer conjuntos de valores e ao determinar uma série de deveres, a cultura propicia que cada indivíduo desenvolva padrões de interação social relativamente estáveis e que podem ser transmitidos intergeracionalmente.

Outras espécies também são capazes de aprender, mas aparentemente é somente o grupo dos Homo sapiens que desenvolveu disposições e habilidades específicas para ensinar, o que é fundamental para que seja possível transmitir um repertório de comportamentos e percepções tão complexo como as culturas humanas. Somos uma espécie constituída em torno de tradições, de repertórios culturais transmitidos de geração em geração, o que permite níveis de acumulação cultural que são a marca particular da nossa espécie.

O fato de que os seres humanos desenvolveram uma linguagem abstrata e que somos imersos desde o nascimento em um ambiente de interações linguísticas constantes e intensas faz com que cada membro de uma comunidade cultural seja exposto a uma série de narrativas, explicações, interdições e comandos que terminam conformando uma espécie de conhecimento compartilhado sobre o que é o mundo, sobre o que são as pessoas e sobre o que podemos ou devemos fazer.

O senso comum pode ser descrito como um conjunto de informações que se caracterizam apenas pelo fato de serem compartilhadas, sendo que nada garante a sua veracidade ou validade objetivas. Não obstante, dentro de uma perspectiva histórica, o fato de certas informações (e não outras) integrarem esse repertório comum de conhecimentos sugere que tais conhecimentos são bem adaptados o contexto interno (ou seja, da relação entre os membros) e externo (ou seja, da relação com o ambiente) de uma comunidade.

O senso comum é composto por uma série de informações que se caracterizam por serem compartilhadas em uma determinada comunidade, e uma comunidade pode incorporar conhecimentos a partir de fontes muito variadas. Tradições religiosas, mitos, notícias, discursos de autoridade, livros didáticos, canções famosas, programas de TV, grupos de WhatsApp, tiktoks e tuítes viralizantes: não existe uma fonte unificada de conhecimentos sociais, não existem critérios de incorporação de novas informações e, principalmente, não existe uma decisão acerca do que vai ingressar ou não no senso comum.

Além disso, conhecimento comum não significa conhecimento unânime. Muitas pessoas podem desconhecer parte desse repertório geral de informações (porque são jovens, porque ingressaram tardiamente na comunidade, porque são velhos e não acompanharam os novos movimentos, etc.) e, o que é mais relevante, pode haver discordância de parcelas da sociedade acerca de conhecimentos bastante consolidados, como demonstra o atual movimento terraplanista.

Esse conhecimento comum não é um conhecimento alicerçado sobre uma teoria. Ele usa conceitos, mas os conceitos são imprecisos. Muitas vezes coexistem noções contraditórias: a ideia de que os juízes são imparciais coexiste com a percepção de que "de cabeça de juiz e de bunda de neném ninguém sabe o que vem". Certas afirmações claramente falsas, mesmo absurdas, continuam a ser veiculadas regularmente, como a noção de que usamos somente 10% do nosso cérebro.

Essa heterogeneidade, essa mistura de verdades e falsidades, essa falta de critérios e de precisão, todo esse caldo é de uma riqueza ímpar para os escritores, para os poetas, para os diretores de cinema. Além disso, o senso comum é extremamente útil: as verdades compartilhadas são tipicamente capazes de orientar o comportamento das pessoas de forma eficiente porque possibilitam grandes acertos com pouco exercício cognitivo e poucas informações.

Os conhecimentos comuns não estão aí por acaso, mas são o resultado de anos (ou séculos, em alguns casos de milênios) de experiência, e a capacidade humana de manter a integridade de padrões culturais constituídos (ou ao menos reforçados) por discursos compartilhados é um dos segredos do sucesso evolutivo de nossa espécie. Nossa dependência da cultura é tanta que se chega a falar que ela representa uma natureza substituta, pois ela é a nossa própria realidade. Não lidamos nunca com fatos brutos da percepção, pois a nossa percepção é sempre modelada pelo nosso horizonte de compreensão e pelos nossos valores, pois essa é a forma específica de funcionamento do nosso sistema nervoso.

A neurociência atual identificou em nós uma série de modos de processamento de informação que faz com que a nossa percepção do mundo dependa da nossa percepção do mundo, em uma relação de feedback que a filosofia chama de círculo hermenêutico. O sentido do todo é dado pelas partes, mas o sentido das partes é definido pelo todo, de tal forma que toda nova informação interfere no modo como ela própria é interpretada. Não existe um lugar neutro de observação (e, portanto, não existe conhecimento objetivo dos fatos) porque todo o nosso aparato cerebral não é capaz de construir uma representação fiel dos fatos, mas somente a de reorganizar as nossas percepções segundo os padrões de atuação cerebral que chamamos de cognição.

Com isso, nunca analisamos fatos brutos, tanto porque a nossa percepção é modelada pelos nossos sentidos quanto porque o significado simbólico dos fatos interfere tanto na percepção quanto na compreensão das implicações de uma nova informação. Parecem-nos mais prováveis as consequências que são mais familiares. Parecem-nos mais convincentes argumentos que confirmam nossas intuições. Nós tendemos a avaliar de que as escolhas que fizemos (ter filhos, votar em certos candidatos, investir em certas ações) são melhores do que as alternativas que tínhamos. Não temos como escapar dessa operação circular da racionalidade. Resta-nos conhecer suas implicações e desenvolver estratégia para lidar com ela.

Em termos formais, essa operação circular faz com que o conjunto dos nossos conhecimentos tenha como elementos várias informações individuais, mas também vários conjuntos de informações e, inclusive, o conjunto integrado de todas as informações das quais dispomos, que é justamente o nosso próprio conhecimento. Com isso, o nosso conhecimento é um conjunto que contém a si mesmo, e essa configuração autorreferente é uma máquina de gerar paradoxos. O primeiro deles é o fato de que o nosso conhecimento se contém a si mesmo.

Conhecer o que já conhecemos parece algo que não poderia nos trazer nenhum benefício, pois aquilo que sabemos, nós já sabemos. Não obstante, sabemos que conhecer os nossos conhecimentos é algo difícil e que nos agrega muito. Mas isso só acontece porque, ao conhecer o nosso conhecimento, aprendemos tantas coisas que o nosso próprio conhecimento é substancialmente alterado. Opera aqui uma espécie de princípio da incerteza: não é possível conhecer a nós mesmos sem nos alterar. A nossa ação de conhecer altera substancialmente o objeto conhecido, de tal maneira que tudo o que falamos de nós mesmos é imediatamente falso, pois se refere a um eu transformado pelos atos de conhecer e de enunciar.

Esse caráter fugidio do autoconhecimento, que nunca pode operar sem gerar paradoxos, está na base da filosofia e da religiosidade. Nós somos parte da natureza e, com isso, falar da natureza é de alguma forma falar de nós mesmos. No nosso discurso sobre a natureza opera a mesma circularidade, embora de forma menos evidente e talvez menos intensa. Todo questionamento filosófico tem como raiz a percepção dos paradoxos gerados pelo conhecimento do mundo que se apresenta como sólido, absoluto, objetivo, mas que é tecido com um conjunto de categorias e percepções que são altamente dependentes do horizonte de compreensão do falante.

O fato de que vivemos imersos em uma realidade simbólica (que é aquilo que Freud chama de Realidade, ao reconhecer que o mundo real é uma atribuição de sentido e não apenas uma percepção de objetos) curiosamente nos torna pouco capazes de perceber o caráter simbólico da Realidade. Isso acontece justamente porque a função estabilizadora da cultura se realiza na medida em que ela não se afirma como cultura, como um determinado mapa do mundo, mas como uma descrição objetiva de como as coisas são. Nenhuma religião se afirma como um resultado de desenvolvimentos culturais, mas como uma percepção imediata de uma realidade que extrapola as nossas percepções sensíveis.

As culturas, as religiões, as ciências e os sistemas jurídicos (e todos os sistemas simbólicos em geral) somente são capazes de operar na medida em que se apresentam como um repertório de conhecimentos objetivamente verdadeiros. A única forma de escapar dos paradoxos do conhecimento objetivo sobre o mundo (essa noção completamente sem sentido) é fazer com que esses discursos falem do mundo, sem falar de si mesmos.

As abordagens filosóficas contemporâneas são baseadas especificamente na ruptura dessa vedação, e todas elas implicam alguma forma de reflexividade cuja admissão explícita impede a pretensão de objetividade. Não parece possível manter, ao mesmo tempo, reflexividade e objetividade como elementos de uma mesma visão de mundo, e o reconhecimento dessa impossibilidade é aquilo que Albert Camus chamava de sentimento do absurdo: vivemos em um mundo que não comporta sentidos objetivos e, portanto, no qual não há verdades nem valores objetivamente válidos (Camus, 2019).

E como as coisas impossíveis são as que mais desejamos, o Santo Graal da filosofia moderna é o desenvolvimento de uma teoria que permita falar do mundo ao mesmo tempo com objetividade e com reflexividade. Ao longo do livro, abordaremos algumas das tentativas de enfrentar essa questão espinhosa, que muitas vezes é enfrentada a partir de uma afirmação de que é preciso promover um renascimento de abordagens capazes oferecer um sentido objetivo para o mundo e valores objetivos capazes de organizar as relações humanas. De fato, o fortalecimento das perspectivas tradicionais é um dos movimentos relevantes do mundo atual, o que reforça a relevância do estudo contemporâneo da filosofia.

O reconhecimento racional de que inexiste sentido objetivo em um mundo cultural construído com base em contingências históricas representou uma fonte de sofrimento psíquico intenso para as primeiras gerações que precisaram lidar com esse fato. Quando Darwin assinalou o caráter histórico da espécie humana, sua teoria foi rejeitada por muitas pessoas em função das suas consequências morais (e não de sua inconsistência científica). Quando Nietzsche anunciou a morte dos valores absolutos, essa notícia não foi recebida com alegria. Quando Marx assinalou o caráter histórico (e, portanto, relativo) do direito de propriedade e quando Freud assinalou o caráter fugidio da consciência e da racionalidade, eles tampouco tiveram uma recepção calorosa. Todos eles colocaram em risco as percepções comuns da nossa cultura porque questionaram alguns dos pressupostos básicos das visões tradicionais de mundo: a existência de uma ordem objetiva e de um sujeito objetivo capaz de observá-la.

1.2 Filosofia e crítica

A inexistência de valores e verdades objetivas deixa sem chão pessoas que, durante séculos, viveram dentro de culturas que fornecem uma descrição da realidade que se apresenta como um conjunto de afirmações verdadeiras sobre a natureza e os papéis sociais dos homens. O pressuposto implícito das perspectivas tradicionais é o de que existe uma ordem natural subjacente, que pode ser apreendida pelos homens de alguma forma (investigação, revelação, intuição): a existência de uma ordem objetiva no mundo (Tao, Dharma, Cosmos, Nomos) exige que uma descrição objetivada ordem seja possível. Existe uma grande variação entre as diversas tradições culturais com relação à confiança de que a investigação racional seja capaz de conhecer a ordem natural, mas existe pouca variação com relação ao fato de que essa ordem natural exista e pode ser conhecida.

Ocorre que, atualmente, é muito difícil simplesmente ignorar as várias teorias que abordam a natureza e a sociedade a partir de uma perspectiva histórica. Ao longo do último século, essas abordagens ganharam espaço e produziram resultados bastante expressivos tanto na ciência como na filosofia e na técnica. Ocorre, porém, que essas abordagens contrastam de forma muito gritante com a percepção compartilhada pela direita e pela esquerda de que existe um conjunto de direitos humanos objetivamente válidos, sejam eles os direitos liberais (de liberdade, propriedade e tolerância religiosa), os direitos sociais (de justiça social, de acesso à educação e à saúde) ou os direitos identitários (ligados aos direitos de minorias discriminadas). Não parece muito congruente defender a validade objetiva dos nossos valores e a validade relativa dos valores dos outros: é muito difícil reconhecer a relatividade dos valores que nos são tão caros que os tratamos como se fossem sagrados (no sentido de que nos permite caracterizar como má uma pessoa que questiona a sua validade). Nesse embate entre historicidade e sacralidade, que valores devem prevalecer?

Algumas pessoas enfrentaram esse dilema por meio de uma revisão de suas visões de mundo, incorporando nelas os paradoxos, a relatividade e a historicidade. Para estes, a relatividade do mundo é uma verdade desconcertante, que inicialmente gerou um sentimento de luto pelas tradições que tanto nos eram caras (deuses, direitos naturais, valores morais), mas que deveria ser superado com o tempo, por meio do desenvolvimento de teorias que incorporem os paradoxos da reflexividade (e que são chamadas tipicamente pelo nome cunhado por Lyotard: narrativas pós-modernas) (Lyotard, 2009).

Outras pessoas reagem a essa incongruência mediante a tentativa de redimensionar as teorias de modo que seja mantido ao menos um certo espaço para as verdades objetivas e os valores absolutos. Quando Lyotard afirmou na década de 1970 que já era passada a hora de superar o luto (2009), ele certamente foi muito otimista, tendo em vista que a maioria das pessoas parece mais propensa a reforçar sua visão de mundo contra os desafios da historicidade do que a desenvolver uma visão de mundo que incorpore uma historicização de sua própria experiência.

Para estas pessoas, os relativismos pós-modernos devem ser abandonados, cabendo reforçar os valores objetivos que estruturam as visões tradicionais. Não vivemos hoje uma onda de historicização da cultura, mas um conflito crescente entre esse movimento de historicização e um renascimento das visões tradicionais: um retorno ao mito da ordem e da sensação de segurança promovida por uma concepção de mundo que se apresenta como objetiva na medida em que nos possibilita justamente o conforto emocional de equilibrar nossas intuições (de que deve existir um sentido objetivo para o mundo) com nossos conhecimentos (que devem nos oferecer uma explicação objetiva para um mundo dotado de valores e fatos objetivos).

Trata-se, pois, de uma época barroca, em que muitas pessoas se sentem divididas entre o reconhecimento do caráter histórico do mundo e o sentimento de que é imperativo reconhecer alguns pontos imutáveis, que permitam um julgamento moral objetivo. Para as pessoas em geral, é desafiador viver em uma era na qual não estão claros os parâmetros adequados para conferir sentido à nossa existência. Para a filosofia, esse é um momento de peculiar relevância, pois, como afirma Richard Rorty, as pessoas parecem ouvir os filósofos somente quando o mundo está desmoronando e, com isso, a cartografia oferecida pelo senso comum não é percebida como um guia adequado (2005).

Nos momentos em que estamos dispostos a rever a nossa cartografia, a filosofia ganha espaço social, justamente porque uma de suas atividades mais recorrentes é justamente a de realizar uma reflexão detida sobre os limites do nosso conhecimento comum do mundo e sobre as possibilidades de desenvolver um entendimento mais adequado da realidade. Como sintetiza Kwame Appiah, a filosofia parte de uma “reflexão sistemática sobre crenças pré-reflexivas muito difundidas acerca da natureza da humanidade, de nossos objetivos e de nosso conhecimento sobre o cosmo e sobre nosso lugar nele” (Appiah, 1997, p. 129). E são justamente essas crenças que começam a gerar problemas nos momentos de crise, quando os resultados obtidos pela aplicação dos conhecimentos compartilhados discrepam muito dos resultados esperados.

O papel típico da filosofia não é aprimorar o senso comum, mas oferecer uma alternativa a tais formas de ver o mundo. Enquanto os sábios estão comprometidos em aprimorar os conhecimentos tradicionais, fazendo pequenas reformas e adaptações, a filosofia tende a desenvolver outras formas de ver o mundo, que poderiam substituir as perspectivas tradicionais.

Em toda sociedade é possível identificar um sistema de conceitos, ou, mais precisamente, um conjunto de sistemas conceituais interligados, que organizam a compreensão de mundo e a interação social dos membros dessa comunidade. Esse conjunto de concepções muitas vezes é chamado de filosofia, e é nesse sentido que normalmente se fala de uma filosofia oriental ou de uma filosofia ameríndia. Exemplo desse uso foi uma obra de Placide Tempels, de 1945, chamada A filosofia Bantu (Tempels, 2006). Tempels era um missionário franciscano belga que viveu no Congo Belga entre 1932 e 1962 e que, ao refletir sobre os motivos pelos quais o povo bantu impermeáveis à conversão ao cristianismo, concluiu que isso decorria do fato de que eles tinham uma filosofia própria, com um sistema conceitual muito diferente do europeu.

A abordagem de Tempels partia do pressuposto de que “todo comportamento humano depende de um sistema de princípios”, mas afirmava que os próprios bantu ainda não eram capazes de identificar claramente o conjunto de princípios nos quais eles estavam imersos Bantu (Tempels, 2006). Como os bantu não tinham uma descrição sistemática dos seus próprios conceitos, Tempels assumiu a tarefa de realizar tal sistematização, utilizando como base o repertório conceitual da filosofia europeia, especialmente a noção de ontologia.

Esse desafio partia da abordagem antropológica da etnografia, entendida então como uma disciplina voltada a descrever as culturas de povos primitivos, mas dava um passo além ao tentar compreender o pensamento subjacente às práticas sociais dos povos analisados. Por esse motivo, essa forma de abordagem foi chamada criticamente por Paulin Hountondji de etnofilosofia (Appiah, 1997).

A abordagem de Tempels teve sucesso ao contestar a noção vigente de que os povos considerados primitivos não tinham um pensamento abstrato, e contribuiu decisivamente para sedimentar a noção de que os povos africanos tinham uma ontologia própria, baseada na ideia de uma “força vital” inerente a cada objeto. Esse interesse nos repertórios conceituais de culturas não-europeias é visível em várias abordagens jurídicas contemporâneas, especialmente no comprometimento do novo constitucionalismo latino-americano no sentido de desenvolver sistemas constitucionais que incorporem elementos das cosmovisões indígenas, especialmente uma noção de Bem Viver (Sumak Kawsay) identificada “con la armonía con el entorno social (la comunidad), con el entorno ecológico (la naturaleza) y con el entorno sobrenatural (los Apus o Achachilas y demás espíritus de un mundo encantado)” (Recasens, 2014).

Embora as perspectivas contemporâneas incorporem uma tentativa explícita (e legítima) de superar o eurocentrismo reinante na filosofia e nas ciências sociais, existe um debate aceso acerca do que devemos chamar de filosofia no contexto atual. Para muitos, inclusive para Hountoudji e Appiah, a etnofilosofia não é propriamente uma atividade filosófica, mas antropológica: compreender os sistemas de pensamento de certas sociedades é uma atividade relevante, mas a atividade própria da filosofia não é a de descrever sistemas de pensamento, mas a de operar uma análise crítica desses sistemas, explorando os seus paradoxos, suas potencialidades e seus limites.

A filosofia não tem uma abordagem descritiva, nem mesmo compreensiva, e sim uma abordagem crítica. Ela desconstrói sistemas de pensamento e propõe alternativas categoriais que deveriam ser capazes de superar as dificuldades diagnosticadas pelo filósofo. Embora boa parte dos filósofos passe sua vida discutindo sobre os pensamentos de outros filósofos (em uma autorreferência filosófica que pode gerar um pensamento esotérico), os filósofos tendem a preocupar-se também com as categorias socialmente hegemônicas, o que faz com que eles sejam um dos grupos que mais criticam as pseudoverdades da tradição e o senso comum de uma comunidade.

Essa postura crítica faz com que os filósofos muitas vezes questionem os dogmas que uma sociedade pretende que não sejam questionados, o que os coloca muitas vezes em uma tensão muito grande com as instituições sociais legitimadas pela cultura e responsáveis pela reprodução dos valores hegemônicos. Não é por acaso que os filósofos não costumam gozar de uma imagem muito boa em uma sociedade que busca proteger suas tradições e reproduzir uma determinada ordem social. Nesse contexto, não causa estranhamento o fato de que a tradição apresente sérias ressalvas (para dizer o mínimo) quanto a um tipo de discurso que questiona frontalmente a sua autoridade. Numa sociedade patriarcal e conservadora, a resposta com relação ao questionamento da autoridade tende a ser violenta.

Desde Sócrates, os filósofos sofrem simultaneamente duas acusações: de um lado, são vistos como pessoas que vivem nas nuvens, pensando em coisas inúteis, sem dar atenção suficiente aos problemas efetivamente vividos pelas pessoas; de outro, são considerados perigosos para a ordem social. Com isso, as tradições hegemônicas e os governos que as corporificam muitas vezes tratam o filósofo como um inútil subversivo, o que os coloca no grupo de pessoas que não cabe tolerar, mas combater.

Talvez essa acusação seja até merecida, considerando que é muito parecida com a condenação que Platão fazia aos artistas: sua arte não deveria ter lugar na porque cria versões falsas da realidade (e vejam que fake news é uma categoria nova para lidar com um problema velho...) e, com isso, contribuem para a propagação de mitos e falsidades. Ocorre que, cada um a sua maneira, os filósofos e os artistas partem de interpretações das interações humanas que eles observam e as descrições que eles fazem da realidade recorrentemente se opõem às descrições hegemônicas de uma tradição cultural. O mérito das obras filosóficas, assim como das obras artísticas, muitas vezes está na originalidade com a qual elas percebem os paradoxos das nossas formas de organização social, mostrando que a realidade que vivemos difere bastante de nossas formas comuns de descrever essa realidade.

Em ambos os casos, a inutilidade é uma acusação peculiar. Artistas e filósofos são de fato inúteis porque não contribuem para a produção de bens econômicos. Entretanto, os produtos de seus trabalhos interferem diretamente nas formas de sociabilidade, pois eles são alguns dos principais elementos envolvidos na forma como uma sociedade constantemente transforma suas formas de autocompreensão. A cigarra pode não produzir comida, mas pode aumentar a coesão social ou inspirar revoluções.

Alguns filósofos específicos fazem certas afirmações que inspiram revoluções de grande escala. A maior parte dos filósofos é esquecida ao longo do tempo, pois eles oferecem alternativas que não se tornam hegemônicas. Porém, alguns deles são lembrados pelo fato de que foram capazes de compreender os limites do seu tempo e de oferecer instrumentos conceituais capazes de superá-los. Daqui a mil anos, quando o mundo contemporâneo já for antigo, imagino que os historiadores ensinarão que, no século XX, uma filósofa francesa fez uma afirmação paradoxal para a sua época, mas que desestabilizou definitivamente uma das noções que não foram problematizadas por milênios de pensadores homens. Em 1949, quando Simone de Beauvoir publicou uma obra em que refletia sobre a condição feminina e sobre o fato de que as mulheres estavam em pleno processo de destronar o mito da feminilidade, ela fez sua afirmação mais conhecida: On ne naît pas femme : on le devient, que podemos traduzir como “Não se nasce mulher: torna-se” (Beauvoir, 1949).

Essa pequena frase, em sua concisão e elegância, introduz uma série de fraturas no pensamento filosófico de sua época. O uso do pronome impessoal “on” sugere que aquele sujeito que nasce não é nem mulher nem homem, e que o transformar-se em mulher é um processo que ocorre ao longo da vida de um ser. Beauvoir bem poderia ter dito que as mulheres não nascem mulheres, mas isso a colocaria como uma observadora externa de sua condição, e não na posição reflexiva de quem fala da própria condição. De fato, esta seria uma construção mais próxima da frase de Erasmo que parece tê-la inspirado: “l'homme ne naît pas homme, il le devient”, ou seja, “o homem não nasce homem, ele se o torna”. (Mann e Ferrari, 2017).  A escolha do sujeito impessoal aumenta a tensão da frase porque uma filosofia que tende a falar do lugar falsamente impessoal do masculino, como nas célebres frases “o homem é um animal social”, “o homem é o lobo do homem”.

A afirmação de que não se nasce mulher, cria-se o estranhamento que ocorreria ao afirmar que “não se nasce filha” ou “não se nasce professora”, em vez de falar que não se nasce filho ou professor. Esse estranhamento é contido em certas traduções brasileiras que usam o “Ninguém nasce mulher” (Beauvoir, 2009), pois esse “ninguém” pode ser ouvido sem estranhamento pelos leitores homens que, evidentemente, não nasceram mulheres. Essa fratura do caráter impessoal do masculino é acentuada pela sugestão de que qualquer ser humano que nasce possa se tornar mulher, desestabilizando a noção essencialista e fatalista de que “a pessoa é para o que nasce” (Berliner e Domingues, 2003).

O deslocamento mais importante da frase de Beauvoir está no fato de que ela coloca em xeque séculos de utilização da distinção entre masculino e feminino como se essa divisão se tratasse de uma diferença natural. É claro que certos seres humanos nascem com a carga genética XX, em vez de XY, mas não é essa a questão que Simone de Beauvoir pretende assinalar. Quando ela afirma categoricamente que mulher é uma categoria usada para designar um estado que é adquirido, ela abriu espaço para uma distinção que se consolidou nos anos 1980 a partir da diferenciação entre o sexo (biológico) e o gênero (cultural).

“Gênero” é uma categoria artificial, socialmente construída, de forma que não faz sentido algum buscar o significado natural de ser mulher, ou de ser homem. Toda categoria construída pode ser desconstruída, pode ser politicamente reconfigurada, sem que isso constitua alguma forma de desvio contra a natureza. Numa tradição filosófica que identifica o bem com o natural, ela opera uma distinção conceitual que até hoje não foi bem digerida pela parte da sociedade que chama essa divisão categorial de ideologia de gênero.

Se o gênero é uma construção social, podemos multiplicar o número de gêneroso quanto quisermos, pois não há limites para a nossa capacidade de criar novas categorias. Além disso, é preciso desligar a questão do gênero de outra que normalmente vinha agregada a ela, que é a do desejo sexual. No fim do parágrafo citado, Simone de Beauvoir já afirmava que:

Até os 12 anos a menina é tão robusta quanto os irmãos e manifesta as mesmas capacidades intelectuais; não há terreno em que lhe seja proibido rivalizar com eles. Se, bem antes da puberdade e, às vezes, mesmo desde a primeira infância, ela já se apresenta como sexualmente especificada, não é porque misteriosos instintos a destinem imediatamente à passividade, ao coquetismo, à maternidade: é porque a intervenção de outrem na vida da criança é quase original e desde seus primeiros anos sua vocação lhe é imperiosamente insuflada. (Beauvoir, 2009)

Simone de Beauvoir não formulou os conceitos que são usados no debate atual, mas abriu espaço relevante para que certas distinções fossem percebidas e, posteriormente, designadas por categorias autônomas. Ela reconheceu a incapacidade do repertório conceitual de sua época para compreender a complexidade da identidade feminina e buscou caminhos alternativos para descrever o processo de tornar-se mulher. A partir de um olhar contemporâneo, é evidente a pobreza do repertório categorial da nossa tradição cultural para lidar com o complexo fenômeno da sexualidade, que não cabe no binômio homem/mulher. Essas categorias naturalizam o que não é natural, não permitem lidar com a identidade de gênero das crianças e não oferecem um lugar adequado para acomodar uma intersexualidade que desafia o binarismo da distinção sexual padrão.

Essas tensões entre a realidade descrita e os conceitos usados para a descrição nos acompanham desde que temos uma linguagem abstrata e elas são os elementos motivadores do labor filosófico, mas também do labor científico. Tanto cientistas como filósofos, analisando os modelos conceituais disponíveis e as consequências de sua aplicação, propuseram modelos conceituais alternativos, por meio de estratégias de distinção (criando novos conceitos onde as categorias existentes falhavam por tratar fenômenos diversos a partir do mesmo conceito), de fusão (abandonando distinções conceituais que não faziam sentido) e de redimensionamento (alterando as fronteiras dos conceitos para que eles se acoplassem melhor à realidade).

Quando os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela propuseram uma definição alternativa de vida (1995), eles atuaram como biólogos ou como filósofos? Quando Einstein propôs a ideia de que a gravidade não é uma força, mas uma distorção no espaço tempo, como devemos classificar essa contribuição? Filosófica ou científica? Esse problema acentua o fato de que o conceito não é uma propriedade dos filósofos. Os filósofos não são os formuladores dos conceitos, não são os únicos inventores de novas categorias, que são formuladas em todas as atividades humanas mediadas por interações linguísticas: as artes, as ciências, as religiões, a política, em todas essas áreas podem surgir novas categorias.

Entre os antigos, de fato, não é possível oferecer uma distinção clara entre ciência e filosofia, pois a perspectiva antiga entendia que os filósofos deveriam oferecer categorias que refletissem a realidade do mundo, e é isso que os cientistas normalmente fazem. Na modernidade, a filosofia passou a ter um objeto diferente das ciências, por se concentrar em questões de ordem metafísica, enquanto as ciências se concentravam em questões de natureza empírica. Porém, a ideia de que os conceitos deveriam espelhar a realidade era compartilhada por esses discursos.

É apenas na contemporaneidade que fazemos uma releitura linguística dessas relações, identificando que os filósofos se debruçavam (conscientemente ou não) sobre os limites dos próprios conceitos, concentrando-se nas interações conceituais (dos conceitos entre si) e não nas interações entre os conceitos e o mundo. Os cientistas estudam a empiria e criam sistemas conceituais que tentam ser capazes de descrever e explicar o mundo. Os filósofos contemporâneos não estudam diretamente a empiria, mas analisam diretamente os sistemas conceituais, o que faz com que eles possam estudar os discursos científicos, sem serem eles próprios cientistas. Mas as inovações, que interessam muitíssimo a todos, podem vir de qualquer lugar: da ciência, da filosofia, das artes, da política, da propaganda. Não há um lugar específico para a criatividade e para a originalidade.

Não precisamos desenvolver ainda mais esse problema porque, de fato, tampouco precisamos defender um lugar autônomo para a filosofia. Podemos deixar a filosofia como o nome de um estilo, de um enfoque, mas não de uma disciplina autônoma, definida por uma forma específica de analisar um objeto. De certo modo, esse é o ganho da categoria socrática de filosofia, de um amor pelo conhecimento que não exige o seu domínio. Caracterizar essa abordagem como uma filia, e não como uma sophia, era e continua sendo revolucionário. Não nos importa quem cria os conceitos, quem os inventa. Pode ser o artista, o político, mesmo o filósofo. Mas é tipicamente o filósofo que submete os modelos conceituais a um teste de consistência, avaliando em que medida eles contribuem para o nosso esforço reflexivo contemporâneo.

Por isso, nem as crenças compartilhadas nem os sistemas formulados pelos filósofos anteriores são o ponto de chegada da filosofia. Eles são objetos acerca dos quais o filósofo reflete, servindo antes como ponto de partida. Isso acontece justamente porque o trabalho filosófico não é voltado meramente à descrição dos sistemas de pensamento culturalmente hegemônicos, envolvendo também uma tentativa de os superar por meio do desenvolvimento de formas alternativas de entender o mundo.

A postura crítica dos filósofos e dos cientistas não deve representar uma desvalorização das tradições, especialmente de sua fundamental importância histórica: a filosofia e a ciência, em sua imensa capacidade de contestar as tradições (e de renová-las), somente existem hoje porque em outros momentos houve tradições culturais estáveis, capazes de estimular uma atuação coordenada de seres humanos em formações sociais cuja manutenção exigia respeito a uma série de leis que não eram justificadas argumentativamente, mas transmitidas socialmente por mecanismos consuetudinários.

A cultura é plástica, e essa maleabilidade permite que os seres humanos se adaptem a uma infinidade de contextos de maneira bastante rápida. Mas a cultura é também estável, permitindo que os padrões que garantiram essa adaptação ao ambiente se projetem no tempo. Por dependermos simultaneamente de plasticidade e estabilidade, a cultura que desenvolvemos está em um constante processo de transformação, cujo segredo está no seu ritmo: uma transformação rápida o suficiente para que seja possível desenvolver configurações mais eficientes, mas lenta o suficiente para garantir que as mudanças não dissolvam as estruturas sociais que garantiram a sobrevivência da comunidade.

Esse mesmo ritmo também pode ser percebido na estrutura básica de todos os seres vivos da terra: um código genético que se transforma de modo lento (por meio de mutações e de cruzamentos), em mudanças bastante discretas, que permitem uma transformação constante das populações, mudanças essas que se perpetuam (ou não) por meio do lento processo de seleção natural. A seleção natural é o processo pelo qual os indivíduos discretamente diversos de seus pais sobrevivem (ou não) ao ambiente em que estão inseridos e, com isso, toram-se capazes de gerar descendentes e, com isso, alterar a composição média da população que constitui uma espécie.

No caso das configurações sociais, não existe propriamente um código genético transmitido entre gerações, mas existem vários elementos que possibilitam a manutenção de padrões culturais. Essa multiplicidade de mecanismos possibilita que a cultura tenha elementos com diversos graus de plasticidade: certas partes da cultura podem ser alteradas de modo mais rápido (como hábitos alimentares ou modos de vestir ou de falar), mas outras partes são dotadas de mecanismos mais fortes de garantia de estabilidade. Não existe apenas um ritmo controlado na variação cultural, mas podem coexistir vários ritmos de variação, além de vários níveis de tolerância à diferença.

Isso acontece não apenas com as sociedades humanas, mas com várias outras espécies, cujas configurações culturais são muito relevantes para a interação dos indivíduos e para os seus comportamentos. No caso dos humanos, contudo, a existência da linguagem abstrata e de uma série de vínculos simbólicos viabilizou um grau de plasticidade comportamental muito maior do que em outras espécies, bem como uma velocidade de mudança extremamente alta. Essa velocidade tem seus custos: a possibilidade de introduzir modificações adaptativas também é uma abertura para introduzir modificações que levam à rápida extinção de certas comunidades.

Essa situação faz com que a filosofia tenha um papel importante para a sobrevivência da espécie: ao representar uma paradoxal instância reflexiva sobre os sistemas de categorias da própria cultura, a filosofia permite simultaneamente uma maior abertura para a mudança e um maior controle das mudanças, visto que todo sistema alternativo de conceitos será submetido a uma análise minuciosa e a uma crítica sistemática. Uma sociedade com filosofia aumenta o seu grau de criticidade. Um direito com filosofia, terá instrumentos mais adequados para selecionar as categorias mais adequadas, entre as várias inovações teóricas produzidas por políticos, juízes e advogados.

Uma cultura jurídica com uma filosofia forte dificilmente será tomada de assalto por um populismo jurídico, por categorias autoritárias, por discursos que apelam para nossos sentimentos de esperança e de medo, mas que não oferecem sistemas conceituais capazes de lidar com a complexidade do mundo contemporâneo. Em um ambiente político marcado por simplificações atrozes e por um discurso emocional pouco argumentativo, o estudo da filosofia contribui para que os juristas tenham um maior grau de exigência com relação ao repertório conceitual construído pela dogmática, especialmente pelas inovações conceituais recentes: princípio da proporcionalidade, responsabilidade penal das pessoas jurídicas, personalidade jurídica de entidades não-humanas, integridade como critério de interpretação, autonomia sistêmica como um bem a ser buscado.

Essas propostas nem sempre vêm dos filósofos. Mas refletir sobre elas é um papel da filosofia jurídica contemporânea, e uma análise adequada dessas inovações somente é possível a partir de um estudo histórico sobre os padrões argumentativos que já foram utilizados e sobre as funções historicamente desempenhadas pelo direito.

2. A dúvida filosófica

2.1 As perguntas da filosofia

Como disse Rorty, a importância da filosofia tende a ser reconhecida “quando as coisas parecem estar desmoronando” (Rorty, 2005, p. 247). Em tempos de relativa estabilidade social, quando não existem muitas dúvidas sobre o caminho correto a seguir, o filósofo se torna uma figura marginal, como aconteceu em boa parte do século XIX, época em que o iluminismo se tornou uma espécie de tradição hegemônica.

Porém, quando uma pandemia gera um contexto que desafia nossas estratégias usuais, precisamos refletir sobre uma série de questões que não eram problematizadas no contexto anterior: pode um governador declarar lockdown de uma cidade inteira? Quando a China isolou a cidade de Wuhan, o mundo ficou perplexo e muitos imaginamos que isso somente seria impossível nas democracias ocidentais. Quando a Itália isolou o país inteiro, essa medida parecia insólita, e logo se tornou normal. Um novo normal, como tem sido tão repetido ultimamente.

Nesse novo normal, será que devemos abdicar de nossas liberdades para que um Estado forte seja capaz de garantir nossa vida e nossa saúde? Será que o colapso hospitalar legitimaria a estatização dos hospitais ou a gestão pública das UTIs privadas? Pode um governo criar passes livres para as pessoas que já desenvolveram anticorpos? Deve ser considerado ilícito que empregadas domésticas fiquem isoladas nas casas de seus patrões? Como podemos gerir, de modo legítimo, a fila de UTIs durante um colapso hospitalar?

Essas são perguntas cruciais, mas não são perguntas da filosofia. São perguntas do Direito: que direitos e deveres nós temos nesse contexto atípico? Trata-se de questões que a filosofia não tem como nem por que responder. O que interessa de fato à filosofia é que as novas respostas a essas questões podem evidenciar mudanças importantes nas nossas formas de ver o mundo. Pode ser que as pessoas abandonem o conceito de emprego, que hoje é tão importante, mas que cem anos atrás era compreendido a partir do vínculo civil de prestação de serviço. Talvez perca relevância a noção de jornada de trabalho, como forma de medir a extensão dos serviços a serem prestados. Pode ser que a percepção social dos riscos sanitários altere nossas noções de liberdade. Mas também é possível a presente emergência sanitária não modifique substancialmente as categorias por meio das quais descrevemos e avaliamos o mundo.

A filosofia se interessa especialmente pelos modelos conceituais que utilizamos para explicar o mundo que nos cerca. Quando um sociólogo se pergunta “quais são as práticas sociais legítimas?”, ele normalmente quer saber quais são os padrões de comportamento efetivamente aceitos em uma certa comunidade. Quando um jurista faz a mesma pergunta, ele tipicamente deseja saber quais são os padrões obrigatórios de conduta dentro dessa comunidade. Já os filósofos contemporâneos tipicamente não buscam saber o que fazemos (tarefa que ficou a cargo dos cientistas), nem determinar o que devemos fazer (tarefa que ficou a cargo dos juristas), mas investigar com cuidado quais são os modos pelos quais explicamos discursivamente o mundo e justificamos retoricamente nossas decisões.

Os filósofos antigos não tinham essa preocupação concentrada nos discursos, que somente se tornaram o objeto principal da filosofia no início do século XX. Na antiguidade, os filósofos buscavam descobrir a verdade, por meio do uso criterioso da razão. Os antigos filósofos gregos identificaram que havia um descompasso entre as percepções hegemônicas e o conhecimento verdadeiro, sendo que muitas das opiniões socialmente compartilhadas não passavam de simulacros: de ideias falsas com aparência de verdade. As ideias absurdas não eram tão perigosas, porque elas eram facilmente detectáveis. Mas falsidades verossímeis podem conduzir uma comunidade ao desastre, na medida em que elas nos oferecem diagnósticos equivocados e terapêuticas inúteis ou mesmo nefastas.

O espetáculo midiático que envolve a presente pandemia parece corroborar a antiga tese de que vivemos imersos em sombras. A cada semana aparece um novo remédio milagroso, que logo se mostra ineficaz. A cada dia aparecem pesquisas científicas com conclusões inovadoras, mas que são refutadas por pesquisas mais sólidas realizadas na semana seguinte. Governos adotam políticas com base nas intuições dos governantes e nos seus interesses eleitorais, deixando de lado as poucas evidências que parecem sólidas. Lemos os jornais e não temos critérios adequados para diferenciar o que é verdade do que é fake news.

A Pandemia de Covid-19 nos deixou imersos em um grande sentimento de incerteza. Não sabemos diferenciar claramente o que é verdade e o que é simulacro. Não sabemos se o distanciamento social é a estratégia adequada. Não sabemos qual é a distância segura que devemos manter. Não sabemos com clareza quais são os riscos envolvidos na reabertura das escolas. Não temos certezas sobre os nossos mapas, sobre as nossas bússolas, sobre os nossos protocolos e procedimentos. Quando a incerteza chega a esse grau absurdo que enfrentamos no início de 2020 (e que continuamos enfrentando mais de dois anos depois...), resta clara a importância de nos voltar para a filosofia e para seu milenar exercício de separar as verdades dos simulacros.

No caso específico do direito, não sabemos como as instituições judiciárias deveriam reagir a esse momento de crise. Não temos certeza sobre a competência dos juízes para decretar medidas de isolamento, pela necessidade de proteger a vida e a saúde das pessoas. Tampouco sabemos se os magistrados deveriam se abster de avaliar as determinações de reabertura do comércio, em respeito à autonomia das autoridades eleitas.

Frente a essa multiplicidade de dúvidas severas sobre quais são as melhores formas de tomar decisões adequadas ao nosso tempo, pareceria razoável concluir que deveríamos nos dedicar com mais afinco ao estudo da filosofia do direito.

Entretanto, esse diagnóstico me parece equivocado, por estar ligado à concepção grega de filosofia, entendida como um caminho seguro para alcançar as mais fundamentais verdades. Minhas influências filosóficas estão ligadas ao historicismo e à filosofia da linguagem, o que me faz pensar que o filósofo não é o melhor profissional para ensinar aos juristas sobre as melhores formas de tomar decisões: sobre as melhores formas de governo, sobre as metodologias científicas mais adequadas, sobre os cânones hermenêuticos a serem adotados.

Creio que a inconsistência deste diagnóstico fica mais clara quando transitamos para o campo das artes. Não parece muito promissora a ideia de que um filósofo poderia ensinar a um artista sobre as melhores formas de compor músicas. Existe uma dúvida grande na sociedade contemporânea sobre o que deve ser considerado arte e, por isso, seria proveitoso convidar os filósofos para dialogar com os artistas sobre os critérios que deveríamos usar para diferenciar a arte da não-arte (artesanato, produções técnicas, entretenimento, propaganda, etc.). Porém, não parece que o estudo da filosofia da arte auxiliaria um artista a desenvolver melhores meios de expressão.

Isso não significa que a filosofia seria inútil para o artista, mas apenas que ela não auxiliaria diretamente um músico em seu processo criativo. A filosofia pode auxiliar um músico a avaliar a originalidade de sua produção e a compreender melhor o modo como ela dialoga com outras obras e outras linguagens. O desenvolvimento de uma consciência filosófica pode influir na produção musical, mas o conhecimento filosófico não é necessário para a atividade artística.

No campo do direito, ocorre um fenômeno semelhante. O estudo da filosofia pode auxiliar os juristas a compreenderem melhor o significado de sua própria atuação, de seus modos de conhecer, de suas estratégias retóricas. Porém, a filosofia não é capaz de nos ajudar a encontrara verdade objetiva, os padrões corretos, os valores naturais. Essa era a ilusão dos filósofos gregos, que achavam ser capazes de sair da caverna. Na contemporaneidade, é mais comum encontrarmos filósofos que consideram que a caverna não tem saída (não é possível olhar o mundo a partir de fora, porque fazemos parte dele), mas que é possível compreender melhor as nossas formas de perceber e descrever o mundo a partir de dentro da própria caverna labiríntica em que nos encontramos (Castoriadis, 1999).

2.2 Entre dúvidas e convicções

A filosofia pode impactar nas práticas sociais, mas isso não deve ser entendido como uma busca de descobrir as verdades inerentes à ordem natural do mundo. O estudo da filosofia da medicina pode fazer com que um médico passe a observar algumas dimensões da saúde que não lhe chamavam atenção, e essa mudança de perspectiva pode alterar o seu modo de diagnosticar doenças e de prescrever tratamentos. O estudo da filosofia do direito pode fazer com que um juiz seja mais consciente do modo como sua visão de mundo interfere em suas decisões, e essa reflexividade pode interferir no seu modo de tomar decisões.

Se a filosofia tem essa potencialidade transformadora, não é pelo fato de que ela nos ajuda a gerir um excesso de incertezas, e sim pelo fato de que temos pouca incerteza sobre nossas formas de ver o mundo. Temos dúvidas, muitas dúvidas, sobre como o mundo é, sobre as consequências prováveis de uma decisão, sobre as melhores estratégias argumentativas. Mas essas são dúvidas com relação ao próprio mundo, não são incertezas relativas a nossa capacidade de conhecer. Para enfrentar esse tipo de incerteza sobre fatos, o mais adequado é estudar uma ciência que realize estudos empíricos (psicologia, sociologia, economia) ou estudar uma teoria dogmática que desenvolva protocolos de decisão (como as teorias jurídicas ligadas a cada ramo do direito).

A dúvida que a filosofia nos ajuda a enfrentar tem outro objeto: trata-se da incerteza sobre os modelos que utilizamos para explicar a realidade. Desde o início do século XX, a filosofia adota tipicamente a uma visão historicista radical, negando a existência de uma ordem objetiva de valores que possa ser descoberta por meio de uma reflexão racional. Essa perspectiva apresenta todas as nossas concepções como modelos de compreensão por meio do qual construímos discursos que explicam o mundo por meio da linguagem.

A filosofia não é um espelho da natureza(Rorty, 1995), que reflete as verdades, mas é uma lente que construímos para criar os mapas que chamamos de realidade. As incertezas que a filosofia nos ajuda a gerir não são nossas dúvidas sobre como o mundo é, mas nossas dúvidas acerca de nossa capacidade de compreender o mundo. E me parece que a maioria das pessoas não tem muitas dúvidas acerca de seus próprios modelos. De fato, a maioria das pessoas sequer trabalha com a ideia de que ela utiliza modelos cognitivos contingentes, valores historicamente determinados, conceitos fabricados em contextos socais específicos. Persiste no senso comum a ideia de que existe uma ordem natural, composta de valores naturais e verdades objetivas, e de que deveríamos dispor de metodologias capazes de desvendar todos esses padrões invisíveis.

Se existe um motivo pelo qual os estudantes de direito de hoje (e não apenas de hoje...) deveriam cursar uma matéria de filosofia do direito, é justamente o fato de que não temos dúvidas suficientes para enfrentar os desafios contemporâneos. A dúvida estimula o diálogo, a investigação, a busca de novos caminhos. Se os estudantes de direito tivessem um excesso de dúvidas, a estratégia mais adequada para lidar com esse transbordamento de incertezas não seria inserir no currículo disciplinas de caráter filosófico. Pelo contrário, seria mais adequado que cada disciplina jurídica gerenciasse as dúvidas teóricas que fazem parte do seu campo. As teorias do direito comercial, do direito constitucional ou do direito penal têm plena capacidade para organizar as perplexidades que temos sobre cada um desses âmbitos e a desenvolver categorias teóricas mais adequadas para enfrentar o grande desafio dos juristas: decidir adequadamente em um cenário de dúvidas insanáveis e informações limitadas.

Nesse contexto de excesso de dúvidas, questões mais gerais sobre o direito poderiam ser tratadas de forma satisfatória nos cursos introdutórios, como aliás ocorre em várias áreas do conhecimento. Afinal de contas, o direito é uma disciplina técnica que forma pessoas para exercer uma atividade profissional. Inserir filosofia do direito nos cursos jurídicos é semelhante a tornar obrigatório para os músicos o estudo da filosofia da música, ou para os médicos da filosofia da medicina. Na UnB, por exemplo, não há disciplinas filosóficas no currículo de Música e a Filosofia da Medicina é uma disciplina optativa. Não há dúvidas, porém, de que os médicos e os músicos discutem em seus cursos acerca do significado e dos limites da medicina ou da música, sendo sentido como desnecessário tornar obrigatória uma matéria exclusivamente para tratar de filosofia.

Nos cursos jurídicos, as disciplinas de introdução ao direito (que na UnB são Introdução ao Direito I e II) envolvem uma série de questões filosóficas, especialmente o debate acerca da pergunta jusfilosófica por excelência: o que é o direito? É bem possível que essa estratégia fosse suficiente como abordagem geral e, seguindo o exemplo da Medicina, poderíamos deixar a filosofia do direito como uma matéria optativa, para quem desejasse se aprofundar nessas questões que não caem em concursos públicos e não são centrais para o exercício proficiente da advocacia.

A estratégia do currículo da graduação em direito da UnB não podia ser mais diversa: além das disciplinas introdutórias, são obrigatórias também a própria Introdução à Filosofia e mais três disciplinas especificamente filosóficas: Ética e Direito, Modelos e Paradigmas da Experiência Jurídica e, finalmente, Filosofia do Direito. Essa multiplicação de abordagens filosóficas faz com que, a cada ano de curso, todo aluno tenha uma disciplina voltada à filosofia.

Tal estratégia sugere que, longe de enfrentar uma sobrecarga de suas capacidades duvidantes, os estudantes enfrentam uma severa escassez de incertezas, estimulada pelas abordagens dogmáticas do direito. As disciplinas dogmáticas normalmente exigem dos estudantes respostas, e não perguntas. Respostas que (i) articulem de forma adequada as fontes do direito (legislação, jurisprudência, doutrina e eventualmente costumes), (ii) que tenham coerência lógica e (iii) apelo retórico. Trata-se de uma educação com raízes antigas, pois essas três habilidades correspondem, em grande medida, às três disciplinas clássicas do trivium: a gramática (domínio da língua e conhecimento dos textos canônicos), a dialética (domínio da lógica de construção dos argumentos) e a retórica propriamente dita (habilidade de gerar convencimento) (Joseph, 2008).

Essa abordagem clássica e dogmática está ligada uma escassez de dúvidas (ou excesso de certezas) que parece muito conveniente à atividade prática dos juristas, que é a de participar de um processo de tomada de decisões. Os juristas são treinados para decidir mesmo em situações duvidosas, pois é preciso estabilizar as expectativas sociais, mesmo (e talvez principalmente) nos casos em que existe dissenso acerca das interpretações corretas das normas e dos fatos. A capacidade de estar plenamente convicto de suas teses, mesmo sem ter motivos sólidos para isso, é uma forma de autoengano bastante comum entre os juristas. Mesmo quando têm dúvidas, sua tendência é defender suas teses com uma convicção simulada, visto que qualquer sinal de insegurança pode enfraquecer o potencial retórico de seus argumentos.

Ocorre, porém, que esse excesso de certezas pode gerar padrões de atuação pouco reflexivos, que podem conduzir a situações desastrosas, especialmente quando as convicções de uma autoridade judicial são demasiadamente enviesadas. Um exemplo claro desse desequilíbrio das convicções está na sentença de condenação do ex-presidente Lula pelo ex-juiz Sérgio Moro. Moro demonstra uma convicção tão grande da culpabilidade que não se dá ao trabalho de fornecer uma argumentação sólida para justificar essa condenação, repleta de saltos lógicos e de inconsistências (Costa, 2017).

Pessoalmente, acredito que Sérgio Moro tinha uma convicção sincera de que estava realizando um julgamento técnico e bem fundamentado, sendo que tal certeza irrefletida é uma armadilha comum entre os juristas. Todavia, essa eventual boa-vontade não diminuiria a responsabilidade de Moro por conduzir tão mal um processo que era tão crucial para a política brasileira (Costa, 2017). A posição de juiz exige cuidados redobrados, visto que as consequências de sua irreflexividade são muito assimétricas: para o réu, pode custar a liberdade; para um sistema político, pode custar a estabilidade; já para o próprio magistrado, custa apenas a revisão da sentença e eventuais respingos no seu prestígio pessoal.

No caso dos advogados, o impacto da irreflexividade pode ser igualmente danoso, visto que um causídico que não tenha consciência sólida sobre o grau de adesão que seus argumentos provocam nos outros (e não em sua própria convicção) pode conduzir seus clientes a situações desastrosas. Além disso, um advogado pouco reflexivo pode manter padrões argumentativos que funcionaram bem em um contexto anterior, mas que se tornam problemáticos quando o ambiente jurídico acumula alterações tão grandes que tornam inadaptadas estratégias que foram robustas ao longo de bastante tempo.

O excesso de convicções pode ser muito eficiente quando nossas certezas estão bem alinhadas com as percepções dominantes, mas é pouco eficiente quando se trata de adaptar suas próprias estratégias a um contexto social em constante mudança. Não podemos perder de vista que os seres humanos são excepcionais em sua capacidade de duvidar dos outros, sem duvidar de si mesmos.

Temos um intenso desejo de conhecer e um sistema nervoso que o tempo todo constrói padrões a partir dos influxos fragmentários que ele recebe das interações com o mundo e de sua própria atividade interna. A ciência nos mostra cada vez mais que nossa estrutura cognitiva elabora uma rede de percepções e de expectativas que, uma vez estabilizadas, dificilmente podem ser alteradas. Temos todos um fortíssimo viés de confirmação: uma tendência arraigada a receber bem os argumentos que reforçam nossas crenças e a rejeitar por motivos frágeis os argumentos que nos desafiam.

A maioria de nós tem menos dúvidas do que deveria. Melhor dizendo, temos uma capacidade de duvidar muito bem calibrada com contextos de mudança ambiental mais lenta, que formavam os ambientes que selecionaram as características de nossas espécies. Todavia, ao longo do holoceno, a velocidade de transformação social necessária para acompanhar as mudanças ambientais tem exigido uma aceleração nos nossos ritmos de mudança, que demandam uma capacidade especial de (re)avaliar os nossos modelos de interação social e de explicação do mundo.

Somos, assim, levados a um paradoxo: precisamos avaliar a correção dos nossos modelos simbólicos, mas para isso somente contamos com os critérios de avaliação que esses próprios modelos nos dão. Temos uma cultura que precisa avaliar a si mesma, quando o que as culturas normalmente fazem é exigir de nós que as apliquemos, e não que as julguemos.

No direito, esse paradoxo é ainda mais evidente: pretende-se que as pessoas obedeçam ao direito, e não que analisem o direito, mas é impossível saber quais são nossos direitos sem interpretá-los. Acontece que não temos como interpretar o direito sem modificá-lo, porque o sentido do direito é dado pelas nossas interpretações. Não existe algo como um direito estático a ser interpretado, mas existe um direito dinâmico, que é constituído pelas interpretações que damos do próprio direito.

A religião nos dá um fenômeno semelhante. Construímos discursos religiosos que estabilizam algumas interações sociais ao determinar papéis sociais que são sagrados e, portanto, inquestionáveis. Questionar o sagrado é algo proibido, e com isso o sagrado consegue gerar um alto grau de estabilidade. Porém, a vedação do questionamento nunca consegue se realizar perfeitamente porque a aplicação do sagrado exige uma reinterpretação constante de nossos papéis sociais, sob a pressão dos contextos mutantes. Essa relativa inquestionabilidade é imensamente útil, pois ela proporciona um certo equilíbrio entre conservação e variação: a sociedade vai se modificando gradualmente, de maneira discreta, mas com um discurso de que ela está apenas aplicando os padrões definidos pela tradição.

3. Filosofia e transformação social

3.1 Os ritmos da mudança social

Toda sociedade está em constante processo de mudança. Mesmo uma sociedade baseada em uma tradição que se afirma como inquestionável e eterna se encontra em permanente transformação, em um ritmo que é muito maior do que o de comunidades de outros animais sociais (como formigas e abelhas) e que é extremamente adaptado ao ritmo acelerado de alterações ambientais enfrentadas pelas espécies terrestres desde o início do último período glacial. Parafraseando Pierre Clastres (2003), as sociedades anteriores ao antropoceno não eram sociedades sem governo e sem filosofia (o que implica uma leitura dessas ausências na chave da falta), mas eram sociedades contra o governo e contra a filosofia: a ausência de uma distinção estável entre governantes e governados, bem como a ausência de uma reflexão social que implicasse um autojulgamento da cultura, eram características a serem mantidas cuidadosamente.

Líderes fortes demais eram uma ameaça tão grande à tradição quanto o desenvolvimento de uma liberdade para questionar os valores tradicionais. Porém, os tempos mudaram. Ao longo do período glacial, o Homo sapiens se espalhou por todos os continentes e, em vários deles, a ocupação humana se tornou tão densa que o principal ambiente de uma cultura eram seus vizinhos, vizinhos cujas crenças, lideranças e organização se alteravam de forma constante.

Em um contexto tão instável, as sociedades que sobreviveram foram justamente aquelas que se tornaram capazes de acelerar seus ritmos de adaptação, por meio da instituição de governos. A mudança social já não dependia apenas do lento ritmo das interpretações sucessivas, mas dependia das escolhas de um líder, ou de um grupo de líderes, ou mesmo de uma comunidade inteira. A invenção do governo, que tornou possível alterar estruturas sociais por meio de uma decisão, ocorreu simultaneamente em vários pontos do globo, entre cerca de 8.000 anos atrás e 2.000 anos atrás (Flannery e Marcus, 2012).

Aparentemente, essa mudança atingiu apenas sociedades que precisaram competir duramente por alguns pontos excepcionalmente produtivos em termos de agricultura (como o crescente fértil, as áreas irrigadas pelo Nilo e as áreas agricultáveis dos Andes). Outras sociedades, como os indígenas da Amazônia, não tinham a necessidade de competir tanto pelos mesmos recursos, o que permitia a continuidade dos padrões tradicionais, que não otimizam o uso dos recursos, mas também não criam um risco constante de extinção das comunidades (pelas guerras internas, pelas guerras externas ou pela adoção de práticas que se mostram inadequadas aos novos tempos).

Como veremos, aflorou nessas sociedades uma tensão constante entre os governos (com sua mentalidade estratégica e sua possibilidade de gerar benefícios e colapsos) e as tradições que estabeleciam deveres sociais que não eram disponíveis pelos governantes. Essa tensão foi plenamente compreendida e retratada pelo teatro grego, tendo sua maior expressão na Antígona de Sófocles.

O governo, porém, não engendra a filosofia, pois a força dos governos antigos estava em apresentar-se como um defensor da tradição. É claro que todo governante reinterpretava a tradição e que muitos deles inovaram bastante no campo político, mas toda inovação gerava riscos (como sempre). Auguste Comte (1982)percebeu bem que esses antigos modelos eram teocráticos, no sentido de que os governantes se apresentavam como tendo uma origem divina, ou como sendo os próprios deuses, de tal forma que a sua autoridade deveria ser observada e nunca questionada.

A ideia de que os cidadãos deveriam ter liberdade para questionar o governo, para discutir abertamente sobre qual seria o melhor governo e quais deveriam ser as formas de organização da cidade é uma adaptação posterior. Quando os governos se tornaram suficientemente sólidos, eles puderam afirmar sua primazia sobre a tradição, mas isso tendia a ocorrer apenas em contextos bem determinados: quando certas formas de organização social se mostrassem equivocadas, elas poderiam ser reformadas pelos governantes.

Essa abertura para uma inovação social conduzida pelos governantes ocorreu intensamente na Grécia antiga, quando o modelo de organização em cidades-estados (polis) mostrou sinais de decadência, fragilizando o potencial bélico das cidades gregas a tal ponto que elas poderiam ser conquistadas pelos impérios vizinhos. Frente ao colapso de certas instituições tradicionais (especialmente a escravidão por dívida), algumas cidades gregas atribuíram a certos legisladores o poder de reorganizar a cidade, com base em escolhas racionais. Esse é o momento em que nasce a democracia, uma adaptação das cidades gregas para viabilizar a inclusão de um grande número de cidadãos na política e, assim, garantir um exército sólido de homens livres, mesmo em sociedades pequenas.

E é nesse contexto que aparece a filosofia, tal como conhecemos: em vez de discutir se as novas políticas estavam ou não de acordo com a tradição (algo que sempre foi feito pelos sábios), discutia-se se essas novas políticas eram adequadas à própria ordem natural. Os governantes deveriam reformar as cidades, mas não deveriam seguir os seus próprios desejos, pois a ordem social somente poderia funcionar caso ela espelhasse adequadamente a ordem natural do mundo.

A ideia de uma ordem natural, conceito chave do pensamento grego, é muito anterior aos filósofos. A novidade da filosofia grega foi indicar que essa ordem natural deveria ser acessível a qualquer pessoa, por meio de uma atividade intelectual, o que permitiu a realização legítima de uma crítica racional à tradição. O limite da atuação dos governos não deveria ser um repertório de valores tradicionais, acessíveis por meio de textos sagrados ou pelo conhecimento especial dos sábios, visto que toda ação deveria ser pautada pelo conhecimento racional da própria ordem das coisas, acessível a todo ser humano que se dedique a conhecê-la.

Como ressalta Appiah, ter uma visão de mundo não é ter uma filosofia (1997). Toda sociedade tem uma cultura, tem linguagens, tem um sistema simbólico complexo, mas nem toda cultura desenvolve uma capacidade crítica de si mesma. Várias sociedades dotadas de tradições multisseculares não produziram filosofia, pois tinham mecanismos muito sólidos para impedir a institucionalização de uma reflexão crítica acerca de seu próprio sistema simbólico. O surgimento da filosofia mostra a fragilidade e os limites das visões tradicionais de mundo, mas isso ocorre sempre em contextos nos quais a tradição posta em questão continuava a representar (como ainda representa) a espinha dorsal da comunidade política.

O que a filosofia faz não é destruir a tradição, mas segmentá-la: parte da cultura é vista como um reflexo adequado da ordem natural (a ser mantida), parte da tradição é criticada como uma percepção distorcida da natureza (a ser abandonada). Além disso, cria-se o espaço para identificar parcelas da ordem natural para a qual a tradição era cega, em virtude de seu caráter consuetudinário: as culturas são construídas pela sedimentação de percepções, o que faz com que elas tenham pouco a dizer sobre situações novas, que desafiam os valores tradicionais.

A possibilidade de uma investigação direta da ordem natural possibilitou que os filósofos se colocassem não apenas como revisores dos conhecimentos estratificados, mas como exploradores capazes de descobrir facetas da natureza que não conhecíamos ainda. Esse exercício de ampliar a tradição por meio de estratégias interpretativas é familiar aos juristas, que sempre precisam aplicar normas antigas para situações novas, como o casamento de pessoas de mesmo sexo, os crimes praticados em ambientes virtuais, os contratos envolvidos na uberização do trabalho, etc.

Tal como os juristas se propõem a resolver questões novas a partir da interpretação de uma ordem jurídica preexistente, os filósofos se propunham a enfrentar problemas novos a partir do conhecimento adequado da ordem natural das coisas. Tanto quanto os filósofos antigos, os juristas modernos não podem decidir conforme a sua própria autoridade, pois estão vinculados a estratégias de reinterpretação das tradições e de extensão hermenêutica e, especialmente, de contradição entre os direitos e deveres com relação a uma ordem superior (a ordem natural das coisas e, no presente, a ordem constitucional).

Ao promover uma reflexão sobre os limites da ordem tradicional, a filosofia se apresenta como um dos elementos sociais ligados a propiciar uma transformação social mais rápida, porém controlada, pois ela serve como uma instância crítica das nossas próprias visões de mundo. A função social dos juristas é semelhante, visto que um sistema de justiça precisa ser capaz de estimular a estabilidade das relações sociais, o que exige tanto a reprodução dos padrões tradicionais como a sua adaptação às novas circunstâncias. Essa proximidade do direito com a filosofia, enquanto instâncias reguladoras dos ritmos de mudança social, faz com que o estudo dos argumentos filosóficos possa ter várias utilidades para os juristas.

Porém, parece-me que a questão mais importante é a de que o estudo da filosofia nos propicia a realização de uma reflexão sobre as bases dos nossos próprios modelos explicativos, tanto do modelo social predominante quanto dos critérios que adotamos individualmente. Como esses critérios nos são muito caros e fazem parte de nossa própria identidade, temos uma grande dificuldade em perceber a sua contingência e, principalmente, de avaliar a solidez dos nossos próprios modelos.

3.2 A crítica filosófica da tradição

Os seres humanos têm uma tendência a repetir os padrões estruturados, mesmo que eles não nos conduzam a uma vida mais satisfatória. Temos um intenso desejo de conhecer e uma estrutura cognitiva que o tempo todo constrói padrões, que elabora perspectivas de mundo estáveis e que as protege do sentimento de dúvida. Somos dotados de uma dificuldade incrível para rever nossas percepções, nossas crenças, nossos valores. Cada um de nós tem um repertório imenso de certezas, de valores fundamentais, de crenças arraigadas sobre o modo como as pessoas são e sobre os papéis sociais que elas deveriam desempenhar. Esse repertório de certezas compartilhadas é a espinha dorsal de nossas unidades sociais: sem essa cultura, não seríamos capazes de construir organizações sociais tão amplas.

Mas as nossas certezas também são um risco. Uma sociedade demasiadamente ortodoxa tem pouca capacidade para se adaptar a um contexto que muda em ritmo acelerado. Toda espécie de seres vivos precisa equilibrar permanência e mudança: mudança demais coloca em risco a integração dos nossos sistemas orgânicos e sociais, mas flexibilidade de menos coloca em risco a nossa capacidade de sobreviver a um ambiente mutável.

As sociedades humanas têm múltiplos elementos que produzem essas forças de coesão e mudança, e a ciência atual nos sugere que é justamente o nosso alto grau de flexibilidade que nos colocou no ápice da cadeia alimentar. Nossos antepassados distantes não eram grandes predadores, mas eram pequenos mamíferos que se alimentavam do tutano dos ossos de animais mortos. Foi um longo caminho até que conseguíssemos formar associações coordenadas de dezenas de pessoas, capazes de caçar um mamute. Esse grau de coordenação de vários indivíduos para realizar atividades complexas não é único na natureza: cupins, abelhas e formigas também formam grandes comunidades de indivíduos.

Mas a nossa capacidade de gerar novas formas de organização, aproveitando os nichos ecológicos disponíveis em cada ambiente, é única na nossa biosfera. Nossa capacidade ímpar de reorganização social vem do fato de que essas interações são mediadas por sistemas simbólicos, por crenças compartilhadas, por papéis sociais que podem variar muito em um tempo reduzido. Isso nos torna adaptáveis, embora a um custo energético muito alto, pois precisamos gastar cerca de ¼ de nossos nutrientes para manter o sistema nervoso que organiza tais interações.

A filosofia, a política e o direito são elementos culturais envolvidos nesses processos de transformação simbólica que engendra novas formas de sociabilidade. Mas a filosofia não é um substituto para a tradição, e sim uma instância crítica. Nossas sociedades também precisam dos valores compartilhados, das concepções convergentes, dos instrumentos de reprodução das formas de interação, que as tradições nos fornecem. Portanto, não deve causar espanto o fato de que ainda hoje seja muito forte o discurso que visa a proteger a tradição contra as críticas filosóficas (e artísticas, e políticas, e jurídicas...).

De tempos em tempos, ressurge com força a narrativa ancestral de que as ideias modernas são um ataque às verdadeiras tradições e que, por isso devem ser combatidas. Em tempos de instabilidade política, é comum que muitas pessoas se apresentem como detentores da verdadeira filosofia, uma série de sábios se apresentam na defesa dos valores tradicionais da família, da hierarquia, da estabilidade. O mito da restauração, que coloca no passado imaginário os ideais a serem buscados, é tão constante quanto o mito da utopia, que coloca os mesmos ideais em um futuro inatingível. Esses movimentos messiânicos e missionários, por mais que se digam filosóficos, tendem a ser o avesso da filosofia: apresentam-se como a negação do diálogo, pedindo a conversão forçada dos infiéis (os hereges, os pós-modernos, os marxistas culturais), pois somente assim eles podem ser salvos.

Não precisa de um curso de filosofia quem tem certeza de que está do lado certo da história, de que seus deuses são os verdadeiros deuses, de que a sua verdade é a verdadeira verdade, de que os seus inimigos são pessoas más e de que existe uma conspiração imensa do mundo para destruir os valores que nos são mais caros. Esses tipos de pensamentos delirantes e paranoicos exigem o auxílio de psicólogos e psiquiatras, não de filósofos.

Antes de mais nada, os filósofos precisam estar abertos a uma prática argumentativa de apresentação e refutação de argumentos. Poetas podem se limitar a construir narrativas. Religiosos podem se limitar a enunciar suas verdades e a educar pelo exemplo. Artistas podem emocionar as pessoas e transformá-las por meio de suas criações intuitivas.

Políticos, religiosos, artistas, advogados e juízes podem se limitar a enunciar suas opiniões. Essas opiniões podem ser complexas, astutas e sedutoras. Elas podem ser o resultado maduro de uma vida de experiências e, provavelmente, a intuição de uma pessoa experiente é o melhor guia que dispomos para enfrentar situações de crise, que exigem respostas rápidas frente a cenários construídos com base em informações limitadas.

A ciência nos oferece alternativas mais seguras, mas as pesquisas científicas demandam um tempo que muitas vezes não é disponível, como ocorre no começo de toda nova pandemia. É preciso agir em um contexto obscuro e, nesse caso, o que se espera é a prudência, a antiga habilidade de tomar decisões adequadas com os insumos que se têm. Essa habilidade prática é o que esperamos de médicos, de juízes, de governadores, de presidentes da República, de pessoas encarregadas de tomar decisões difíceis e com impactos sociais relevantes.

Os filósofos não são os professores de prudência. Eles não nos ensinam a tomar decisões rápidas e eficazes. O que eles nos ensinam é outra coisa: desde os gregos, os filósofos nos mostram as limitações de nossos sistemas de prudência, construídos sobre certas percepções do mundo que condicionam nossas respostas políticas, nossas capacidades de prever dificuldades e de enfrentar crises. O modo como percebemos a realidade define nossas interações com o mundo, e pode ser mortal a aplicação de padrões decisórios antigos a situações novas.

A filosofia é uma espécie de reflexão que põe à prova os nossos modelos explicativos sobre a realidade. Ela funciona como um espelho que nos mostra como vemos o mundo, esclarecendo as formas como as nossas percepções são condicionadas pelas nossas tradições e apontando caminhos para construir modelos alternativos.

Quando nossos modelos explicativos e nossos modelos decisórios nos oferecem respostas que julgamos adequadas, os filósofos sempre parecem inúteis. Discutir as limitações de um time que está ganhando parece sempre um exercício de pessimismo ressentido. Aparentemente, nossa disposição para rediscutir tais modelos tende a aumentar quando começamos a perceber que nossas instituições políticas atuam de forma a produzir crises, que nossa ciência é incapaz de explicar os vários fatos que vemos e que nossos sistemas judiciários reproduzem situações de injustiça.

Normalmente, a percepção dessas deficiências nos leva a buscar as razões de ineficiência, pois pressupomos que lidamos com um sistema razoável, cuja falha em oferecer respostas adequadas decorre de algum tipo de desvio, de corrupção, de práticas indevidas. Todavia, há situações variadas em que não podemos identificar uma ineficiência, pois concluímos que as instituições estão funcionando normalmente: os resultados ruins não decorrem de um uso inadequado das ferramentas disponíveis, mas das limitações inerentes a tais ferramentas.

Essa percepção faz com que nosso sistema político esteja o tempo inteiro em reforma: existe constantemente a percepção de que certas estruturas precisam ser alteradas para que o sistema consiga alcançar seus objetivos. Não se trata de aumentar a eficiência na execução, mas de alterar o próprio sistema. Essas alterações estruturais não são propostas normalmente por filósofos, por pessoas com experiência prática e influência política. Ocorre, porém, que essas alternativas para mudar tudo o que está aí muitas vezes são fadadas ao insucesso porque elas se baseiam em modelos explicativos equivocados.

Por maior e mais justificada que seja a insatisfação social com o modelo político vigente (uma crítica que pode ser encontrada em qualquer momento histórico), não há grandes perspectivas de melhora quando as propostas de reforma são guiadas por uma teoria da conspiração centrada na ideia de que o grande inimigo a ser combatido é o marxismo cultural (Araújo, 2017). Não há muitas esperanças de adaptar nossos modelos explicativos a uma realidade complexa quando o discurso reformador nos aponta para a necessidade de retomar os valores perdidos, de restaurar as tradições abandonadas, de retornar aos papéis sociais naturais.

E é justamente aqui que entram os filósofos, com a sua peculiar atenção sobre os modelos explicativos que servem como base para a nossa atuação coletiva: nossas organizações políticas, nossos sistemas educacionais, nossos modelos judiciários. Os filósofos se questionam sobre que tipo de conhecimento pode ser considerado seguro, sobre a coerência de nossos valores, sobre as potencialidades de nossa metodologia científica, sobre a solidez da rede de categorias a partir da qual construímos nossas percepções sobre a realidade.

A reforma social pode ser mobilizada por um líder político, por um profeta messiânico, por um general carismático. Mas o filósofo não é o profeta, não é o político, não é o prudente. O filósofo não é o missionário de uma fé, não é o defensor de uma tradição nem o agente de uma nova utopia. O filósofo é apenas alguém que reflete sobre as estruturas dos modelos explicativos que usamos para explicar o mundo e para tentar interferir na realidade.

Por isso, a filosofia não nos torna melhores nem mais profundos. Ela não responde às grandes questões da humanidade, ela não nos ensina os princípios, ela não descobre a Verdade. Assim como o estudo da música nos torna melhores músicos, mas não melhores pessoas, o estudo da filosofia apenas nos torna melhores filósofos. E uma sociedade com bons filósofos corre o risco de ter uma percepção mais crítica de si mesma, de uma compreensão mais adequada do que fazemos quando operamos os sistemas simbólicos que organizam as interações sociais, como é o caso do direito e da política.

Referências