Certeza cognitiva existe na conclusão de Descartes: “penso, logo existo”. A peculiaridade da afirmação cartesiana se fará clara se analisarmos a proposição “penso, logo não existo”. Esta proposição, segundo Apel e Habermas, é contraditória, não no sentido semântico, mas no sentido pragmático. A proposição contradiz as condições que a tornam possível, condições que pertencem à parte performativa dos atos de fala.

A pragmática da linguagem de Apel e Habermas pretende tematizar essa questão cartesiana, não como a base de uma metafísica da subjetividade, mas como a investigação sobre as condições do sentido em geral. Tais condições se expressam através da dimensão pragmática, performativa dos atos de fala e as pressupomos “desde sempre” em toda afirmação explícita. No que concerne à ideia da transformação de subjetividade prática moderna, Descartes diz somente, “penso, logo existo”, mas não diz “penso, logo existes” ou “penso, logo alguém existe”. A certeza moderna é uma certeza sobre o sujeito e não uma certeza sobre os outros. A modernidade começa afirmando uma nova identidade. É a identidade do sujeito, é a metafísica do sujeito. E essa metafísica afirma o monólogo do sujeito dentro da questão sobre a racionalidade e o monólogo no social, no sentido do egoísmo liberal. Modernidade como monólogo – é a estrutura dessa metafísica. E claro, se coloca a questão: como pensar a democracia com este monólogo.

Pode ser que a perspectiva vai mudar no contexto de uma certa radicalização do pensamento moderno. Kant, por exemplo, acredita que Descartes, ao afirmar o sujeito, não está afirmando o sujeito constitutivo, precisamente porque o sujeito cartesiano não precisa constituir nada, a não ser colocar as condições do verdadeiro conhecimento. Aqui poderíamos dizer que toda a força do idealismo alemão está contida na pergunta acerca de como e se poderíamos pensar o sujeito constitutivo, e Hegel também está ao lado dessa perspectiva da pergunta.

Todavia, Hegel alega que Kant, ao afirmar o sujeito constitutivo, ainda permaneceu dentro da relação cartesiana entre sujeito e objeto que se propunha criticar, pois o sujeito kantiano, assim como o cartesiano, ainda está fora do objeto. A dignidade do sujeito e da nossa razão ainda não se encontrariam no mundo kantiano. Quando fala sobre a nossa liberdade, Hegel acredita que Kant irá cometer o mesmo erro, já que, ao pensá-la, Kant vai limitá-la à nossa interioridade e não ao mundo mesmo. Aqui, Hegel acredita participar, como testemunha, de um acontecimento político – a Revolução Francesa - que mostra a sua ideia de que a razão já se realizou no mundo. Segundo ele, a Revolução mostra a razão no mundo, o mundo governado pela razão; entretanto, Hegel ainda não chega, ao menos nesse ponto, até as dúvidas que Marx coloca sobre a própria Revolução Francesa.

Hegel vai discutir a historia, os senhores e os escravos e a ideia do reconhecimento. O modelo do reconhecimento é uma mudança importante dentro do pensamento moderno, o qual tinha praticamente apenas o modelo da autopreservação como alternativa. No entanto, como o reconhecimento não existe entre os senhores e os escravos, ele deve ser estabelecido pela história, e é isso o que a Revolução Francesa realiza no último momento. Dela decorre o reconhecimento do ser humano como tal, que deixa de ser reconhecido sob os pressupostos naturais.

A "Filosofia do Direito" procura reconstruir o caminho da Modernidade, que começa com a afirmação do direito natural, passa pela moralidade kantiana - ao afirmar o sujeito constitutivo -, e termina com a liberdade concreta e realizada, dentro da discussão sobre a eticidade. A "Filosofia do Direito" reconstrói a história, apesar de ainda haver povos sem história. Em suas palestras sobre a filosofia da história mundial, Hegel vai falar sobre a ausência de história, por exemplo, na África. Os africanos ainda estariam no nível do natural, sensual, concreto não conhecendo o espiritual. Hegel defende até mesmo a colonização deles, porque assim conheceriam a liberdade. Hegel prossegue, argumentando que, assim como os escravos dos europeus, os africanos, uma vez colonizados, só iriam amadurecer. Seu discurso sobre a África não é somente um episódio, mas reflete a estrutura básica de seu pensamento, no qual o concreto, o particular têm que ser superados para afirmar a estrutura geral do espírito. Assim, a vida imediata dos africanos tem que ser mediada pelos europeus, o geral tem que vencer o particular, o que implica que o particular tenha que ser colonizado pelo geral. Neste contexto, não precisamos pensar apenas nos africanos na filosofia hegeliana; podemos, por exemplo, procurar as mulheres em sua filosofia e veremos que, para elas, Hegel também reserva apenas o lugar do natural, do concreto e da família, jamais o da sociedade civil, na qual entram somente os homens. Obviamente, essa exclusão das mulheres não começa com Hegel, pois a presenciamos já na filosofia dos gregos, e em seguida, no discurso dos cristãos. Vale lembrar que, na Sagrada Família Cristã, não se encontram mulheres. Hegel simplesmente dá continuidade a essa história falocêntrica da Europa.

Como vimos, a filosofia hegeliana mostra-se como a afirmação do espírito colonialista. A história é o lugar onde acontece o processo da superação do particular e da afirmação do geral, processo este no qual o particular é dominado pelo geral. Trata-se da famosa astúcia da razão que se realiza na história. A história é, portanto, a cena da dominação; de outro modo, a dominação se realiza na história. Tendo em vista os motivos europeus já mencionados e que Hegel coloca para a discussão, poderíamos dizer que a dominação tem características europeias, o que pode inclusive ser confirmado historicamente. A globalização surgiu na Europa com o movimento protestante, e hoje domina o mundo. O mundo está cada vez mais realizando tão-somente um tipo da racionalidade, e é isso o que Hegel articula em sua ideia sobre a identidade entre o sujeito e o objeto. O mundo é dominado pela racionalidade subjetiva, no contexto histórico dominado pela racionalidade europeia. O mundo norte-americano nada mais é que uma consequência disso. Pensando assim, Hegel articula a essência da filosofia moderna, que corresponde no último momento, à tentativa de afirmar até as últimas consequências a subjetividade moderna. A dominação e a colonização do mundo são, portanto, as últimas palavras da Modernidade, e, por este motivo, temos que nos perguntar qual é o preço a se pagar para sermos modernos e entrarmos no mundo global. Então, nem os pressupostos cartesianos, que abrem o caminho da Modernidade, nem os pressupostos hegelianos, que a radicalizam, não articulam a possibilidade de pensar a democracia. Democracia parece um projeto moderno impossível.

Vamos ver, então, se essa possibilidade aparece dentro da confrontação com a Modernidade. É possível mudar a relação entre o ser e a aparência? É possível superar a hierarquia nessa relação? Estas são as grandes perguntas da fenomenologia de Husserl. Parece que só a fenomenologia seria uma resposta adequada, pois ela tenta superar essa diferença entre a essência e a existência, entre o ser e a aparência. O ser só aparece, e não há outros lugares “privilegiados” para colocá-lo. O pensamento sem essências - esse é o grande recado da fenomenologia. O mundo não é dado, mas criado. A possibilidade é mais importante do que a facticidade.

Em suas várias discussões sobre política, Hannah Arendt refere-se a essa dimensão da discussão fenomenológica, nos ajudando a compreender a importância histórica dessa radicalização do cartesianismo dentro da fenomenologia husserliana. Hannah Arendt acredita que a separação platônica entre o ser e a aparência marca um passo histórico não só para a vida dos gregos, mas para todo o caminho posterior da civilização. A desvalorização da aparência e a afirmação do ser são os aspectos da reviravolta na vida dos gregos e do Ocidente europeu. Com isso, tem início uma tirania própria da razão e dos padrões na nossa vida. Isso é o que Nietzsche diagnostica como o começo do niilismo na Europa. A estrutura já determinada, estática, entre o ser e a aparência, tem consequências catastróficas para o próprio pensamento. Ele se torna mera subsunção das aparências às formas superiores do ser. Nesse mundo tão ordenado, quase não temos que pensar mais. O pensamento não altera a estrutura dominante do ser. Essa inabilidade do pensamento termina nas catástrofes políticas do nosso século. Tantos crimes, mas quase sem culpados. O indivíduo que não pensa e se torna cúmplice dos crimes: essa é a banalidade do mal diagnosticada por Hannah Arendt como a consequência dessa tradição filosófica que quase mumificou a estrutura do ser e nos marginalizou. Pode ser que a democracia precisa de outro tipo de pensamento. Pode ser que a crise da democracia seja a crise do pensamento.

Uma fenomenologia, propõe Husserl no começo da Quinta e última meditação, “que pretendesse resolver os problemas relativos ao ser objetivo e se considerasse uma filosofia não seria estigmatizada como solipsismo transcendental.”[1] Como o que é subjetivo pode valer também como objetivo? Para resolver este problema, Husserl, na última meditação, não pensará a existência do mundo objetivo, mas a existência dos Outros. Os Outros surgem na filosofia basicamente como a possibilidade de resolver a questão do solipsismo e não como uma referência social. É curioso que Husserl, mesmo confrontado, como ele mencionou, com a profunda crise de nossa cultura, não tomou nenhum motivo do pensamento social.

Como aparecem os Outros na fenomenologia? Melhor dizendo, como os Outros surgem no momento em que a filosofia reage como a crítica radical da cultura, em que a filosofia se articula como a alternativa para se pensar contra o essencialismo tradicional? Pensar os Outros, a comunidade, inclusive a democracia fora da metafísica – estas poderiam ser as alternativas abertas pela fenomenologia. Não obstante, isso não aconteceu, porque a experiência do Outro ficou ligada à nossa consciência, ou seja, posso pensar o outro tão-somente como análogo à minha consciência; não existe uma experiência do outro além da minha consciência. O sujeito é a base para se pensar também os outros. Por este motivo, Merleau-Ponty vai seguir a fenomenologia no caminho em que aparecem os corpos, em que se articula um encontro pré-reflexivo com os Outros. [2] A reflexão não é, todavia, a possibilidade de se pensar a intersubjetividade. Husserl, contrariamente, defende que, com o novo momento da reflexão, foi possível resolver a questão do solipsismo; por conseguinte, a estrutura da consciência revela não só o ego transcendental mas também a intersubjetividade, duas estruturas essencialistas da fenomenologia. “Existem em tudo isso leis essenciais ou um estilo essencial, cuja raiz se encontra no ego transcendental, de início, e na intersubjetividade transcendental que o ego descobre em si (...)”.[3] Os Outros poderiam ser a garantia contra o solipsismo, mas também são os signos de que não podemos realizar o projeto de uma subjetividade pura na filosofia. Entretanto, Husserl não tirou essas consequências do argumento.

O problema é ainda mais complexo porque Husserl, aqui, não termina a discussão, pois o último passo da fenomenologia não é a prova da intersubjetividade, mas a articulação das perspectivas de um novo humanismo. Estamos, sem dúvida, em uma crise profunda. Esquecemos a nossa vida, a fonte doadora do sentido, reduzimos nossa consciência e estamos seguindo o caminho de um pensamento reificado.

Estamos pensando, juntamente com a ciência, o que é e não o que poderia ser. Abdicamo-nos de pensar as alternativas. Nosso pensamento é tão somente a pura repetição do mesmo. Por causa disso temos que voltar para a filosofia, para a pergunta sobre o espiritual em nossa vida. Até aqui poderíamos concordar com a critica fenomenológica. Mas, continua Husserl, “a crise’ da existência europeia só tem duas saídas: ou o ocaso da Europa em um distanciamento de seu próprio sentido racional da vida, em um afundamento na hostilidade ao espírito e na barbárie, ou o renascimento da Europa a partir do espírito da filosofia mediante um heroísmo da razão que triunfe definitivamente sobre o naturalismo”.[4]

Voltar para o espírito, para a sua imortalidade é a “missão humana do Ocidente”[5]. Quer dizer, só as mudanças na Europa são pressupostos de um novo humanismo, e a China e a Índia, por exemplo, são sobretudo os exemplos de um antropologismo empírico[6], e não de uma forte referência espiritual. O espírito está ligado apenas à Europa, e não à China ou à Índia. O Brasil nem sequer é mencionado por Husserl. Obviamente, trata-se do retorno a um claro eurocentrismo, que encontramos também em Hegel. Assim, a dúvida sobre a fenomenologia se concretiza: é possível pensar o novo humanismo com a filosofia ainda ligada ao sujeito, sobretudo ao sujeito europeu? Mesmo confrontando-se com o essencialismo na filosofia, Husserl o afirmou novamente. Um novo humanismo teria, acredito, que questionar o essencialismo até as últimas consequências e, em lugar do sujeito, em lugar dessa forma moderna da identidade, pensar a diferença. O novo humanismo poderia ser, então, o pensamento da diferença. Veremos, a seguir, se a superação do sujeito e a afirmação da diferença já se encontram na ideia habermasiana da intersubjetividade e da democracia deliberativa. É outra possibilidade de confrontar-se com a modernidade.

Habermas irá afirmar que todos os atos de fala possuem uma dupla estrutura. Por um lado, possuem uma parte proposicional e, por outro, possuem as condições de afirmação da proposição. Essas condições estão ligadas, por sua vez, a existência de uma comunidade de comunicação real e ideal. Essa dimensão não podemos evitar e Apel, por exemplo, buscará aqui uma nova fundamentação transcendental para a filosofia. Trata-se de um argumento que visa pensar as novas formas de certeza, pois mesmo os céticos têm que argumentar para articular qualquer dúvida; enfim, as condições da argumentação não podem ser superadas.

Assim, parece que faz sentido procurar os fundamentos. Essa é a tentativa moderna em torno da questão da razão. Somente a modernidade ainda não chegou à resposta, pois ela ainda é um projeto. Todavia, ao menos temos uma orientação. A certeza não é mais semântica e subjetiva, mas pragmática e intersubjetiva. A dimensão pragmática revela a presença da comunidade, da intersubjetividade. Habermas é ainda moderno, mas a mudança de paradigma já aconteceu. Em lugar da subjetividade, temos a intersubjetividade. Além da relação entre sujeito e objeto, temos agora uma relação intersubjetiva como a base da racionalidade. A intersubjetividade é, assim, a base de uma sociedade racional. Neste contexto, Habermas apresentará também a questão da legitimidade social. “Legitimidade significa que há bons argumentos para que um ordenamento político seja reconhecido como justo e equânime; um ordenamento legítimo merece reconhecimento. Legitimidade significa que um ordenamento político é digno de ser reconhecido”. Se uma sociedade é o resultado das estratégias particulares, isso significa que ela ainda não atingiu a própria racionalidade. Habermas pensa que hoje a questão da racionalidade da sociedade não é ligada à classe operária, mas às possibilidades das decisões coletivas. As questões da ética e da política são também ligadas às possibilidades da universalização das normas. Somente aquelas normas são válidas que podem ser universalizadas[7].

Então, quais são motivos para se reconstruir a teoria social, a crítica social e a crítica do capitalismo a partir das possibilidades linguísticas? O capitalismo tem uma linguagem? Ele tem uma estrutura linguística? É ele uma forma semiológica? [8] Habermas também poderia dizer que o capitalismo é uma estrutura linguística, determinando as condições do sentido, da liberdade, etc. Assim, o capitalismo é uma estrutura semântica que não articula as possibilidades pragmáticas. Ou, melhor dizendo, o capitalismo é um mundo muito prático, onde acontecem muitas coisas porém não é um mundo pragmático, que abre possibilidades para uma afirmação da comunicação, da democracia e da solidariedade baseadas na intersubjetividade. A teoria de Habermas é um olhar marxista que mostra a partir de que perspectiva criticar o positivismo capitalista.

Quase poderíamos formular aqui uma crítica hegeliana ao capitalismo, se entendermos que a satisfação do desejo, na concepção de Hegel, não está ligada ao mundo dos objetos, ao contrário do que o capitalismo está sugerindo, pois, para o capitalismo, o mercado é o lugar da satisfação dos desejos, e – claro -, o mercado sempre tem que funcionar. No último momento, isso leva a que os desejos nunca possam ser satisfeitos, já que o capitalismo, por um lado, estimula os desejos e, por outro, nunca os deixa satisfeitos. Contra isso, Hegel vai afirmar que a satisfação dos desejos não está ligada ao mundo objetivo, natural, mas ao mundo social, intersubjetivo, e é precisamente esta ideia da intersubjetividade que será depois, para Habermas, um motivo forte para confrontar-se com a Modernidade.

Uma eventual mudança do capitalismo tem que estar também ligada a uma mudança de paradigma. A intersubjetividade é, assim, a referência para a questão da fundamentação. Trata-se de um projeto moderno que permaneceu apenas como projeto. Habermas não tem uma visão muito pessimista da modernidade. A razão é ainda uma possibilidade . O ponto característico da época moderna, diz Habermas, é “a transferência do poder legítimo para um nível reflexivo da justificação.”[9] Entretanto, em vez de pensar o sistema, Habermas, tendo em vista o grande motivo fenomenológico, se volta para o mundo da vida, com o qual ele associa a comunicação não-reprimida. Liberar o mundo da vida da colonização sistêmica[10], liberar a comunicação e o olhar crítico, abrir as possibilidades para as alternativas – eis os apelos que se pode extrair de sua posição.

Voltar para a ação, para os seres humanos como atores da própria história. A pragmática universal de Habermas mostra que é possível pensar uma teoria da racionalidade fora do sistema. Institucionalizar as formas da comunicação, o que seus últimos trabalhos discutem, significa a possibilidade de articular uma sociedade auto-reflexiva que é capaz de repensar as condições da própria constituição e confrontar-se, assim, com a ideologia.

Pensando uma sociedade auto-reflexiva, poderíamos dizer que se realiza algo do projeto da revolução permanente; enfim, se realiza uma crítica permanente da sociedade. Isso é o que os sistemas comunistas esqueceram completamente. Assim, nenhuma revolução terminou com sucesso porque não era permanente. Pelo contrário, o comunismo transformou a vida em uma nova forma de estática, uma nova forma da identidade. O comunismo só seguiu o velho caminho da metafísica. O comunismo sem a metafísica poderia vir a ser um projeto para o futuro.

Na perspectiva da cultura alemã parece que Habermas quase muda, por exemplo, a perspectiva dos argumentos. Em lugar de afirmar os pressupostos da própria cultura, parece que Habermas está filosofando como se fosse um americano na Alemanha. A ideia da filosofia da comunicação é exatamente a mediação entre uma comunidade particular e real da comunicação e as condições ideais da comunicação, que se aceitam como uma ideia regulativa para todos os discursos em que estamos inseridos. Aqui se reconhecem duas consequências. Primeiro, as regras da comunidade ideal da comunicação são quase as novas formas do dever. De novo o ser tem que superar os próprios limites. Neste sentido, Habermas, ao que parece, começa como um filósofo americano na Alemanha, mas termina, por fim, como um bom filósofo alemão, quase como um bom hegeliano. A intenção da filosofia da comunicação é a de superar a metafísica, inclusive a metafísica hegeliana; entretanto, parece que ela guarda alguns aspectos da metafísica moderna. Nesse caso, a diferença entre o dever e o ser configura a primazia do dever, o dever de realizar as condições da comunidade ideal da comunicação.

A pergunta consiste em discutir a possibilidade de se pensar o particular nas estruturas éticas, ou, como parece, se os assuntos éticos estão sempre relacionados com a elaboração das normas, das estruturas gerais de nosso comportamento prático. Esse questionamento sobre a perda do particular dentro da filosofia da comunicação provocou várias dúvidas, especialmente na América Latina. A pergunta é se e como a ética da comunicação, a ética do discurso, pode ser aplicada ao contexto específico da América Latina.[11]

Habermas quer superar o modelo hegeliano em que, como a Fenomenologia do Espírito estabelece, a assimetria das relações sociais pensada na história sobre os senhores e escravos elabora as possibilidades da história e da constituição do mundo especificamente humano. Em lugar da assimetria hegeliana, Habermas quer propor a simetria das relações sociais. Mas essa simetria que parece abrir espaço para vários interlocutores, inclusive a América Latina, também limita as condições da comunicação. O Outro é tematizado como eu. Habermas estabelece assim uma ideia de simetria social, que pode ser compreendida também como uma ideia regulativa para constituir a nova sociedade racional do futuro e, assim, terminar o projeto moderno. Esse é um aspecto importante, penso, da posição de Habermas. Mas essa simetria supõe as novas formas gerais do dever que não se articulam ao particularismo do outro. O indivíduo precisa ser superado nas novas formas gerais da comunicação ideal e, assim, permanece aberta a interrogação se o outro, o particular, é um interlocutor constitutivo. Alguns autores tiram daqui a seguinte questão: se todos devem aceitar, no último momento, as novas condições da racionalidade moderna, europeia. [12] O Outro é como eu? A ética pode determinar o outro como eu, no sentido dessa perspectiva da filosofia da comunicação? Como, por exemplo, pensar os outros na discussão da reforma agrária aqui no Brasil? É possível uma solução discursiva entre os latifundiários e os sem-terra?

Parece que toda a história da filosofia comete uma injustiça profunda, tematizando várias formas do Mesmo e esquecendo o Outro. Como tematizar o Outro? Podemos imaginar a relação de simetria entre Mesmo e Outro, mas neste caso, a dúvida é se assim se afirma a posição autêntica dos outros. A alternativa seria a posição assimétrica em favor do Mesmo, o que a filosofia representa até hoje. A terceira alternativa seria a assimetria em favor do Outro.[13] Essa é a perspectiva de Lévinas.

Para elaborá-la, Lévinas parte da confrontação com Husserl e Heidegger. A importância histórica da fenomenologia é a de ter identificado ser e aparência, de ter liberado a filosofia das estruturas dominantes. A consciência é um ato e não uma coisa (res cogitans). Pensar é simplesmente existir e, neste caso, Lévinas vai afirmar a fenomenologia como a filosofia da liberdade. [14] Nos atos intencionais constitui-se também o prático e, neste contexto, Sartre afirmará a ideia de liberdade, ao passo que Hannah Arendt irá procurar as novas possibilidades de se pensar a política fora do mundo das essências. Entretanto, Husserl permanece na Modernidade, na relação entre o sujeito constitutivo e o objeto. O Outro é pensado só por analogia ao Mesmo.

A crítica de Lévinas segue a crítica de Heidegger contra Husserl. Mas também dentro da filosofia de Heidegger, Lévinas não encontra a possibilidade de afirmar o Outro. A estrutura existencial do ser-aí permanece fechada no seu próprio mundo; a possibilidade da intersubjetividade torna-se apenas uma “promessa” que Heidegger nunca vai elaborar. No final das contas, o ser-aí fica sozinho. Ética e política não aparecem na filosofia de Heidegger . Sua filosofia não é a filosofia dos Outros, dos emigrantes.[15] Uma forma de egoísmo, talvez o egoísmo europeu, determina a posição de Heidegger. “Para ele é central a Europa e o Ocidente. Há toda uma geopolítica em Heidegger.” [16] Também a estrutura hermenêutica do ser-aí revela esse aspecto. Em todos os atos de compreensão, temos que pressupor nossa existência. A compreensão é sempre uma auto-compreensão. Heidegger quer destruir a ideia do sujeito, mas, de novo, o ente, o Outro, depende do ser, do sujeito.[17]

A diferença ontológica entre o ente e o ser precisa ser superada exatamente com as estruturas éticas que faltam em Heidegger.[18] Este é o ponto em que Lévinas radicaliza a ideia da destruição heideggeriana da tradição metafísica. O que fundamenta a filosofia é o Outro, a diferença. Somente o Outro pode ser diferente. O Outro não aparece como uma postura da consciência. A consciência afirma só o sujeito, o Mesmo, e não pode ser o lugar da afirmação do Outro. Por causa disso, M. Merleau-Ponty transforma a fenomenologia em uma afirmação do corpo. Aqui, de novo, aparece essa corporalidade, essa fragilidade do Outro na discussão sobre o rosto: "o Rosto não é absolutamente uma forma plástica como um retrato; a relação ao Rosto é, ao mesmo tempo, relação ao absolutamente fraco – ao que está absolutamente exposto, o que está nu e o que é despojado, é a relação com o despojamento e, por conseguinte, com o que está só e pode sofrer o supremo isolamento que se chama morte”.[19] O rosto nos abre a nudez sem defesa do Outro, a sua miséria, a sua mortalidade.

Tudo isso significa, para Lévinas, que uma ética, hoje em dia, não pode ser elaborada com a ideia da razão, mas com a ideia da sensibilidade. A ética é uma nova sensibilidade para os outros. A subjetividade se fundamenta nessa heteronomia. Isso é um contexto antikantiano, pois os fundamentos da ética não estão na autonomia da razão, mas na heteronomia, nessa responsabilidade fundamental para com os outros. Isso é também um contexto anti-habermasiano, porque o Outro é o pressuposto da comunicação. A linguagem só existe, ou apenas precisamos dela, caso exista o Outro. A essência da linguagem está nessa hospitalidade com relação a ele.

A política nos chega do Outro, do estrangeiro. A relação com o Outro é a justiça, é a sociedade. Na tradição, a injustiça filosófica tinha também consequências políticas. As guerras são sempre a negação dos outros. Os Outros quase sempre eram os inimigos. Os inimigos assim justificam a política do Estado. Ficar hoje sem os inimigos significa para alguns Estados ficar sem política. A política, no sentido de Lévinas, afirma a diferença. Neste sentido, ela é o signo de uma nova democracia. O pressuposto para democracia não é a identidade. O pressuposto é a desconstrução dela. O pressuposto da democracia é a diferença. É a questão da igualdade política baseada nessa desigualdade, por exemplo, ética, como no caso de Lévinas. O sentido da política não é, assim, a afirmação da identidade. O sentido da política é, pelo contrario, questionar a identidade. Com a identidade não poderia acontecer nada de novo no mundo. O mundo não seria o mundo da liberdade, mas da reprodução, no sentido capitalista. O sentido do capitalismo, não é a produção, o novo, mas a reprodução. Por isso temos tantas máquinas, tanta técnica no capitalismo. As maquinas podem só reproduzir[20] o sentido capitalista.

Espero que essa afirmação da diferença signifique que a filosofia não possa ser compreendida como a nova forma de autismo . Após o monólogo do sujeito moderno, parece que hoje temos o monólogo do indivíduo pós-moderno. Afirmando a diferença, a filosofia ajuda a pensar algo novo. Ajuda a sair do deserto do pensamento metafísico, onde não aparecem coisas novas mas se repetem as estruturas dominantes. Não há nada de novo na história, conforme nos fazem lembrar as palavras hegelianas. Não há nada de novo no social, como dizem os novos hegelianos da direita. Temos só a reprodução do capitalismo.

Nessa confrontação com a metafísica, o herói para filosofia não será Zaratustra ou alguma forma de resistência estética, que Foucault e Baudrillard ainda procuram, e sim Abraão e a tradição judaica.[21] Os judeus são como os outros, que o cristianismo não aceita. Assim, o anti-semitismo começa dentro do cristianismo. Nessa linha de pensamento, Hegel dirá que os judeus não têm nada de espiritual e não reconhecem o infinito. Não sabem nada sobre essa estrutura especulativa do pensamento, sobre essa história em que o pai se transforma no filho e se guarda a espiritualidade anterior. A moralidade objetiva da Filosofia do direito começa com a ideia do amor da família cristã. Em nome do amor, Hegel mostra ódio para com os judeus. A solução final de Hitler já está, neste sentido, preparada dentro da tradição europeia. Claro, a diferença não é a identidade diferente, não são os judeus que excluem os palestinos.

Hoje o sistema isola, atomiza o indivíduo. Por isso seria importante pensar as novas formas da comunicação. Mas o sistema também nega o indivíduo. O capitalismo começa desenvolvendo as formas gerais. Na economia, por exemplo, mudam-se os valores de uso concreto e qualitativo, para os valores de troca geral e quantitativa. Na filosofia aparece o sujeito geral, e não o indivíduo. Então, a diferença é uma forma da crítica. Afirmar o indivíduo, não no sentido neoliberal e egoísta, mas no sentido dessa ideia da diferença, é um argumento crítico. Em virtude disso, dessa discussão sobre a filosofia, a democracia e o social surgem, penso, dois momentos importantes: o primeiro é pensar uma comunidade auto-reflexiva e confrontar-se, assim, contra as novas formas da ideologia. Isso é o que Habermas vem fazendo. Mas, por outro lado, a filosofia precisa da sensibilidade para o diferente, senão repetirá apenas as formas do idêntico e, assim, fechará as possibilidades do novo, do espontâneo e do autêntico na história. Esse é o projeto de Derrida. Espero que seja possível um diálogo entre as duas posições em que, como diria Gadamer, ninguém tem a última palavra. Desse modo, o projeto que sai dessa leitura habermasiana e derridiana da filosofia poderia ser talvez o de uma nova comunidade auto-reflexiva da diferença. Uma comunidade, uma democracia que talvez chegue.

Bibliografia

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  1. ibid.,p. 104 ↩︎

  2. Aqui poderíamos pensar as diferenças, por exemplo, entre Merleau-Ponty, Foucault e Arendt, quando se discute a questão do corpo. ↩︎

  3. ibid., p.149 ↩︎

  4. Husserl, E., A crise da humanidade europeia e a filosofia, Porto Alegre, 1996, p. 83 ↩︎

  5. ibid.loc.cit ↩︎

  6. Husserl, E., Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie, Gessamelte Schriften 8, Hamburg, 1992, p. 14 ↩︎

  7. cf. Habermas, J., Consciência Moral e Agir Comunicativo, Rio de Janeiro, 1989 ↩︎

  8. cf. A reconstrução do capitalismo neste sentido feita por Baudrillard em: Baudrillard, J., Para uma Critica da Economia política do Signo, Rio de Janeiro, 1995 ↩︎

  9. Habermas, J., Para a Reconstrução..., p. 228 ↩︎

  10. cf. Habermas, J., Theorie des kommunikativen Handelns, II, Frankfurt, 1982, p. 461 ↩︎

  11. cf.por exemplo, Sidekum,A., (org.) Etica do discurso e filosofia da libertacao, São Leopoldo, 1994. ↩︎

  12. cf. Thielen,H., Etica e experiencia, em: Siedekum,A., ibid, p. 209Também as perguntas neste livro, se, por exemplo, a defesa da comunidade real da comunicação pode ser tematizada como uma apologia do sistema social existente e se, por exemplo, afirmando de novo a ideia do sujeito constitutivo, na forma da intersubjetividade, a ética do discurso marginaliza a própria posição na sociedade, porque o sistema marginaliza os sujeitos ↩︎

  13. cf. a discussão em: “Les nouvelles morales”, Magazine litteraire, 361, 1998, p. 32 ↩︎

  14. Lévinas, E., En découvrant l”existence avec Husserl et Heidegger, Paris, 1974, p. 49 ↩︎

  15. Lévinas,E., Entre nós, Petrópolis, 1997, p. 160 ↩︎

  16. ibid., p.161 ↩︎

  17. cf. a discussão sobre o círculo hermenêutico em: Sein und Zeit, Tübingen, 1976, p. 202 ↩︎

  18. por causa disso J.L. Marion chama a diferença ontológica de indiferença ontológica. (Marion,J.L., Note sur lïndifférence ontologique, em: Greisch,J., Rolland, J., Ëmmanuel Lévinas. L`éthique comme philosophie première, Paris, 1993, pp.47 - 63 ↩︎

  19. Lévinas,E., ibid., p. 144. O Estado apaga os rostos, como disse J.Llewelyn no seu livro sobre Lévinas: Emmanuel Lévinas. The Genealogy of Ethics, London, 1995, p. 65. ↩︎

  20. Comp. Blanchot, M., Lámitié, Paris, 1974, p. 54 ↩︎

  21. cf., por exemplo, Derrida,J*., Donner la mort*, em: Rabaté,J.M., Wetzel,M., L’ éthique du don, Paris, 1992, pp. 11 - 109 ↩︎