Este artigo foi originalmente publicado no Observatório da Constituição e da Democracia n. 23, que trata das relações entre Religião e Estado Democrático.
Tramita no Senado um projeto de lei que amplia a Lei n.º 7.716/89, fazendo-a abranger não apenas crimes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional, mas também de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. Com isso, inclui-se a homofobia na lista de preconceitos que o Estado brasileiro considera não apenas ilícitos, mas criminosos.
Tal inclusão tem sofrido duras críticas de quem, por motivos religiosos, considera a homossexualidade um vício a ser corrigido. Sob esse enfoque, defendem que o projeto viola as liberdades de religião e de expressão, ao limitar a possibilidade de um cidadão viver de acordo com suas próprias crenças.
A tensão presente nesse debate pode ser entendida como o rompimento de um antigo equilíbrio entre o sistema político e as diversas religiões. Por muito tempo, a liberdade religiosa garantiu que cada grupo pudesse praticar sua religiosidade como parte da vida privada, sem qualquer intervenção pública. Nesse contexto, a proteção das igrejas contra a intervenção política foi vital para o estabelecimento de uma pluralidade religiosa, protegida por um estado laico.
Mas hoje a Constituição tornou-se o livro sagrado de uma espécie de religião laica, adepta da mesma perspectiva universalista e missionária dos monoteísmos ocidentais. O culto aos direitos humanos passou gradualmente a regular as relações privadas, dando sequência ao movimento de tornar hegemônicos os direitos fundamentais.
Essa expansão do credo democrático gera choques, na medida em que dogmas do constitucionalismo conflitam com muitos dogmas de outras religiões. A homossexualidade é um dos pontos centrais desse embate, que abrange também temas como pesquisas genéticas, aborto e contracepção.
Todas essas perspectivas podem ser consideradas religiosas porque fundadas na crença dogmática em seus princípios fundamentais. E, no choque entre elas, a religião oficial sai ganhando, pois é o próprio Estado que faz a mediação do conflito.
O sistema político rejeita a legitimidade das normas religiosas incompatíveis com os princípios constitucionais, privilegiando a sacralidade das leis. Então, devemos reconhecer que essa ampliação dos valores democráticos (entre os quais o respeito à diversidade, inclusive sexual) de fato limita a liberdade de crença, podendo chegar à criminalização de práticas discriminatórias de fundo religioso.
A expansão do credo democrático tornou necessário intervir nas organizações religiosas para fomentar imaginários e hábitos compatíveis com o respeito à diferença. Isso implica recusar parte da diferença própria dessas religiões, mas faz parte do jogo democrático estabelecer políticas públicas voltadas a moldar subjetividades pluralistas.
Porém, no exercício da tolerância com os intolerantes, será que o direito à palavra pode ser limitado? O referido projeto de lei dá um passo nesse sentido, ao criminalizar os atos de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito. Frente a essa norma, seria criminoso o fato de um bispo disseminar publicamente a ideia de que a homossexualidade é um vício e um pecado?
Creio que tal limitação ao direito de opinião seria contrária aos próprios dogmas do constitucionalismo, pois a liberdade de crença ainda é demasiadamente sagrada para ser relativizada em favor do direito à identidade sexual.
Porém, embora protegidas a opinião e a palavra, estamos prestes a criminalizar o exercício das práticas discriminatórias que tais crenças inspiram. Não há unanimidade quanto a esse ponto, mas, por mais que a arena pública deva estar aberta ao debate, não é razoável esperar consenso em conflitos religiosos, pois a abertura do diálogo não gera necessariamente uma harmonização discursiva dos sagrados.
Assim, apesar de ser tenso e paradoxal proibir a realização de atos motivados por crenças lícitas, e mesmo que a criminalização possivelmente não seja a estratégia política mais adequada para a construção da democracia, a vedação do preconceito é uma exigência do atual constitucionalismo.
Se eu fosse filiado a uma igreja, poderia me contrapor a esses dogmas e defender a prevalência do sagrado da minha religião contra o fundamento místico da autoridade jurídica. Todavia, como apesar de ser ateu, eu me filio à religião constitucional dos direitos humanos, creio ser legítima a imposição da tolerância como um dever jurídico.