1. Filosofia e categorias linguísticas
Teoria, Filosofia, Empiria. Física e Metafísica. Ética e Política.
Velhos nomes gregos. Conceitos que fazem parte de um esforço de compreensão da realidade, voltado a conhecer o mundo e seus habitantes. O ambiente que nos envolve é muito complexo e essa complexidade representa um desafio que precisamos enfrentar diariamente, pois dele depende a nossa sobrevivência como indivíduos e como espécie.
As percepções que temos acerca daquilo que nos rodeia revelam uma enorme multiplicidade de seres radicalmente individuais: cada pedra tem uma forma particular, cada pessoa é única, cada planta é diversa de todas as outras que já existiram. A tarefa de conhecer cada um dos inumeráveis seres existentes ultrapassa largamente nossas capacidades cognitivas e nossa curta vida.
Um conhecimento completo de todos os objetos é uma tarefa impossível, exceto para um ser de capacidades absolutas, que nós evidentemente não temos. Se alguém pode conhecer um mundo de possibilidades infinitas, essa pessoa precisa ter a onisciência e a imortalidade dos deuses, e não dos homens.
De fato, nossas capacidades cognitivas individuais são bastante limitadas, dificuldade esta que tentamos contornar por meio de estratégias de classificação: em vez de acumular conhecimentos sobre cada um dos inumeráveis objetos que existem, dividimos esses vários objetos em uma quantidade relativamente pequena de classes e produzimos conhecimentos sobre o conjunto de unidades que agrupamos na mesma classe. Estrelas, montanhas e árvores não aparecem em nosso conhecimento apenas como seres individuais, mas como seres integrantes de um conjunto de objetos que têm características comuns.
Essa é uma estratégia enraizada na própria linguagem humana: podemos nomear seres individuais, mas também nomeamos classes de seres: pássaros, humanos, cadeiras, etc. Tais classificações implicam a divisão dos objetos do mundo em termos de categorias abstratas. De fato, somente existem pássaros concretos, radicalmente diversos, totalmente individuais. Mas quando inventamos a categoria pássaro, podemos falar de todos eles ao mesmo tempo.
Essa abordagem faz com que possamos interagir com o mundo sem depender de um conhecimento exaustivo dos seres individuais. Necessitamos de mapas que simplifiquem a realidade por meio de classes, definidas por certos atributos, para podermos traçar um mapa manejável por nossas capacidades cognitivas finitas.
A linguagem nos oferece a possibilidade de multiplicar nossos mapas: sabemos muitas coisas específicas sobre a casa em que moramos, mas também sabemos muitas coisas genéricas sobre casas em geral. Assim, a casalogia, a astrologia, a arvorelogia e qualquer outro conhecimento não é um saber sobre entidades específicas, mas sobre classes de objetos.
Dependemos fortemente dessas generalizações para podermos interagir com o mundo de modo significativo e eficaz, mas não devemos confundir as coisas: cada árvore tem existência empírica, mas a classe árvore somente tem existência linguística. O escritor Italo Calvino descreveu essa relação com muita precisão em um diálogo de Marco Polo com Kublai Kahn.
“Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
– Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? —pergunta Kublai Khan.
– A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra —responde Marco—, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:
– Por que falar em pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
– Sem pedras, o arco não existe.”
O arco não existe. Entretanto, sem a ideia de arco, não podemos falar de como é possível fazer uma ponte de pedras que permaneça estável. As pedras que existem não são a “ponte”, embora sejam o único elemento material da ponte. Todavia, a ponte tampouco é o conjunto das pedras: ela é o conjunto das pedras dispostas de uma “maneira” singular. Ocorre, porém, que essa “maneira singular” não tem existência material, visto que ela não é uma coisa, mas a forma como se distribuem certos elementos que fazem parte de um conjunto.
Devemos estar sempre atentos para a radical diferença entre as palavras e as coisas. Em especial, precisamos levar em conta que a palavra “ponte” designa objetos que têm determinadas características (formas, funções, dimensões), mas a palavra “ponte” não tem as mesmas qualidades dos objetos que ela designa.
Esse distanciamento tão grande entre a palavra-ponte e os objetos-ponte pode nos causar estranhamento, especialmente porque vivemos em uma cultura que parece pressupor que as palavras têm uma relação mais estreita com as coisas. Se existe uma ordem no mundo, então deveria haver uma relação direta entre os objetos e as classes: deveríamos conseguir chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes. Para isso ser possível, deveríamos ser capazes de diferenciar os nomes verdadeiros, que revelam os atributos essenciais dos objetos, e os falsos nomes, que obscurecem a nossa percepção das coisas.
Platão percebeu essa necessidade e tentou superá-la reconhecendo que, para que os verdadeiros nomes sejam conhecidos, eles devem ser objetos observáveis, e não apenas nomes. Essas categorias devem ser tratadas como objetos abstratos, que existem em um mundo particular, sob pena de não podermos alcançar um conhecimento objetivo sobre a justiça, sobre o bem ou sobre a verdade (SEP, 2016). Se essas palavras forem meras classificações, o conhecimento moral seria impossível, algo que soa absurdo para as sensibilidades platônicas.
Por considerar que os nomes (inclusive as classes) têm uma existência real e não apenas linguística, Platão se enquadra na linha filosófica chamada de Realista. Nesse caso, o realismo não se opõe a um idealismo, mas ao nominalismo, linha filosófica de quem considera que os nomes não passam de nomes.
Para os nominalistas, a justiça não é um objeto abstrato, mas é uma categoria linguística. Pássaro não é o verdadeiro nome de certos objetos, mas é apenas um recorte, um agrupamento de coisas diversas, realizado por razões instrumentais. Para os nominalistas, não faz sentido esperar que existam classes que correspondam às coisas. O enfrentamento entre nominalistas e realistas é um debate recorrente na filosofia ocidental, o que denota uma dificuldade em integrarmos aquilo que a linguagem parece fazer (possibilitar classificações abstratas) com aquilo que a filosofia grega esperava da nossa racionalidade (diferenciar as categorias falsas daquelas verdadeiras categorias, que guardam conformidade com a própria ordem do mundo).
O que é o direito? Essa é uma pergunta normalmente ligada ao realismo, pois parte da suposição de que existe a entidade abstrata “o direito”, e não apenas que existem direitos e deveres concretos. A teoria jurídica é influenciada pelo platonismo, pela crença de que existem certas interpretações corretas, certos conceitos que correspondem aos fatos, certos objetos que são simultaneamente abstratos e reais. Isso faz com que a adoção de perspectivas ligadas ao nominalismo da filosofia contemporânea gere em muitos juristas um grande estranhamento.
Se a validade jurídica, a norma e a interpretação correta forem apenas nomes (e não objetos abstratos), parece que a ciência jurídica perde totalmente o seu objeto. Se essas entidades forem apenas categorias linguísticas, não podemos fazer sobre elas afirmações objetivamente válidas. Enquanto os gregos entendiam que a nossa racionalidade era a via pela qual podíamos compreender a ordem do mundo, os nominalistas entendem que essa ordem não existe: só existem os entes concretos, e não as categorias abstratas.
2. As palavras e as coisas
Argumentos nominalistas sugerem que as palavras não designam apenas objetos materiais, nem mesmo conjuntos de objetos: a linguagem não é usada para descrever apenas coisas (como quando fala de uma entidade determinada), mas também gêneros de coisas, os quais não existem no mundo empírico, pois eles são classificações linguísticas.
Se considerarmos que as coisas são objetos com existência empírica, somos forçados a admitir que nossa linguagem fala de muitos objetos para além das coisas. Outra estratégia é redefinir o conceito de coisa, para que os objetos dos quais falamos sejam, desde logo, uma mistura de elementos materiais e elementos linguísticos. Nesse caso, pode ser possível sustentar a ideia comum de que a linguagem fala de coisas, mas o custo dessa estratégia é afastar a palavra coisa do seu conceito comum. Essa é uma estratégia parecida com a que Kant utilizou para diferenciar as coisas em si (que têm existência objetiva), dos fenômenos (que são as coisas como elas nos aparecem, ou seja, descritas a partir das categorias intrínsecas de nossas formas de ver o mundo).
Kant teve de transformar o objeto do nosso conhecimento em algo bastante peculiar, para poder afirmar que temos um acesso direto aos fenômenos, mesmo que não tenhamos um acesso direto às coisas do mundo (visto que só conhecemos os objetos empíricos a partir da mediação dos nossos sentidos e das nossas formas peculiares de cognição).
Kant era um filósofo anterior ao giro linguístico, que pensava em uma relação entre coisas e pensamentos, que não era imediatamente mediada pela linguagem, mas por uma capacidade cognitiva humana. Nos últimos cem anos, é difícil entender essa relação entre mundo e conhecimento sem partir do pressuposto de que o conhecimento sobre o mundo existe dentro da linguagem (e não fora dela). Quando a filosofia da linguagem rompeu a ideia de que existem categorias não linguísticas, parece que acabamos por borrar a relação entre as palavras e as coisas. As palavras não são artefatos culturais que se referem a coisas, mas são artefatos que constituem os fenômenos observados, visto que as coisas não são percebidas linguisticamente como unidades singulares, e sim como elementos de uma classe.
Nos últimos cem anos, os filósofos refletiram incessantemente sobre as relações entre as palavras e as coisas. Quanto mais pensamos nisso, mais temos dificuldades para ajustar nossas conclusões com um senso comum para o qual continua sendo estranha a noção de que as coisas das quais falamos, mesmo as que nos parecem mais concretas, já são (ao menos em parte) linguagem. Se essa condição linguística dos conceitos é relevante para categorias que designam objetos concretos (como planetas, pontes e seres vivos), o que dizer das entidades que reconhecemos desde sempre como abstratas?
O que dizer da justiça? O que dizer da verdade ou da legitimidade? Que podemos conhecer acerca dos motivos pelos quais criamos e derrubamos regimes de governo bastante reais? Todas essas palavras parecem destituídas até dos elementos empíricos que as pontes parecem ter. A justiça, a igualdade de gênero e o direito de não ser escravo parecem ser puras formas linguísticas, que não existem sequer como formas de generalização. Tais conceitos, centrais em nossas culturas e nossas formas de interagir com o mundo, talvez não passem de artefatos linguísticos, categorias a partir das quais classificamos certos objetos considerados moralmente relevantes.
Se tais conceitos forem apenas convenções linguísticas, não haverá nenhuma afirmação objetivamente verdadeira sobre eles: não haverá a possibilidade de identificar uma justiça objetiva, uma verdade necessária, uma legitimidade natural. Frente a esse problema, Platão optou por desafiar o senso comum, afirmando que as formas precisam existir porque, se elas não existissem, o mundo não faria sentido. Com essa abordagem, Platão se contrapunha a noção (atribuída aos sofistas) de que o homem seria a medida de todas as coisas porque os conceitos humanos seriam pura linguagem, simples convenção, mera contingência histórica.
Para a filosofia de matriz platônico, é melhor assumir, contra todas as nossas percepções comuns, que existe um mundo intelectivo de puras formas, do que admitir que o mundo não tem um sentido intrínseco. De fato, Platão não dizia que essa opção era melhor: ele afirmava que a admissão de que existe um mundo das ideias era necessária. Mais propriamente, ele defendia ser racionalmente necessário admitir que as ideias precisam ser pensadas como qualidades do ser (e não como simples atributos linguísticos) e que os parâmetros que nos permitem compreender e avaliar os fenômenos precisam ter uma existência objetiva. Portanto, a metafísica grega apresentava como uma verdade evidente (para a nossa razão e não para nossos sentidos) a existência de uma justiça objetiva, de uma beleza objetiva, de um bem objetivo.
Na raiz da filosofia grega estava a percepção clara de que o mundo não pode ser explicado por meio de uma descrição empírica das coisas, até porque esse tipo de descrição não existe: as coisas descritas são em parte matéria, mas em parte também são formas abstratas (dualidade, consequência, justiça, etc.). Inclusive, as coisas nos parecem mais importantes, aquelas que definem nossos valores, nossas lealdades, nossa disposição para arriscar nossas vidas, estas então são puras formas.
Os sofistas argumentavam que essas formas eram apenas ilusões, são estruturas imaginárias convencionalmente construídas e que dependem das relações sociais. Já os filósofos gregos negavam tal relatividade valorativa, afirmando a existência de uma verdade moral objetiva, mesmo que essa suposição os comprometesse com a estranhíssima concepção de que existe simultaneamente um mundo físico e outro metafísico, o primeiro formado pelas coisas observáveis e o segundo pelas formas e conceitos descortinados por nossas faculdades intelectivas. A necessidade lógica da existência desse mundo além do mundo é um passo fundamental do discurso filosófico clássico, pois o filósofo seria a pessoa que investigar justamente a realidade metaempírica da verdade, da justiça, do bem, do belo, de todos os valores que oferecem sentido para a nossa fugaz existência.
Pensar sobre o mundo nos leva a ter de admitir certas ideias paradoxais, ou seja, concepções que desafiam a opinião comum das pessoas (doxa). A filosofia contemporânea é baseada em uma releitura específica do platonismo, que reduz a metafísica à linguagem. Os filósofos contemporâneos tipicamente recusam a noção platônica de que é preciso existir um mundo de formas arquetípicas, e adotam um postulado que deflaciona a metafísica: para falar da realidade, precisamos usar conceitos que não estão no mundo, mas que são partes do nosso aparato linguístico.
A Justiça não precisa existir metafisicamente como ideia, para que seja possível discutir se uma condenação penal foi injusta ou não. Porém, na abordagem linguística dos contemporâneos, nem o mais realista dos realistas pode abrir mão das idealizações conceituais que são parte integrante de nossa linguagem. Reconfiguramos assim a tensão entre as palavras e as coisas: Platão precisou transformar as palavras em coisas, para que elas tivessem existência objetiva em um mundo metafísico; os contemporâneos transformam as coisas em palavras, a partir da ideia de que é impossível falar de objetos puramente empíricos, pois tudo o que pensamos é já linguagem.
3. Os labirintos da linguagem
Hoje em dia, boa parte dos filósofos reconhece que o conceito de pássaro não existe no mundo. Somente os pássaros existem. O conceito de pássaro é um artefato linguístico, uma distinção formulada por algumas culturas em nosso esforço para falar do mundo. Mas faz pouco tempo que isso parece claro e, mesmo hoje, há quem rejeite essa perspectiva linguística e invista na perspectiva clássica que busca identificar a natureza ontológica das coisas, e não a função linguística dos conceitos.
Essa percepção linguística do mundo fez aflorar uma percepção de que o conhecimento humano não pode escapar dos paradoxos porque uma pessoa que conhece a si mesma, fatalmente, entra em um perigoso jogo de espelhos. De modo resumido, um autoconhecimento conduz ao problema de que esse tipo de observação reflexiva deve ser simultaneamente subjetiva e objetiva, e isso parece gerar problemas incontornáveis. Por um lado, ninguém consegue identificar claramente seus próprios delírios como fantasias e suas próprias convicções como crenças: ninguém é um bom juiz de suas próprias percepções. Por outro, toda vez que descrevemos a nós mesmos, esse processo de construção de narrativas altera (por vezes fundamentalmente) a própria pessoa que somos. Se a psicanálise é possível, isso ocorre justamente porque o ato de descrever nossa vida faz com que compreendamos nossos atos de forma diversa.
Além disso, o espelho que usamos para nos observar nos oferece uma imagem muito diferente do que a que nos daria uma câmera que nos filmasse, pois os espelhos invertem as imagens: tudo que está de frente aparece como se estivesse de costas. Como estamos acostumados a nos olhar no espelho, tomamos a imagem invertida pela nossa verdadeira imagem, o que tende a causar estranhamento toda vez que vemos uma foto na qual nossa imagem aparece “desinvertida”. Essa imagem “objetiva” desafia nossa autoimagem, pois nossos rostos são assimétricos e acaba que a imagem real nos parece uma outra pessoa, desconforto que as câmeras frontais de celulares buscam contornar gerando selfies que simulam espelhos.
Curiosamente, a inversão da selfie faz com que ela nos pareça mais natural, pois o natural não é uma imagem objetiva do mundo, mas uma imagem que emula o mundo que tipicamente percebemos. Ocorre, porém, que não temos como obter um conhecimento objetivo sem que seja um conhecimento produzido pelo olhar humano, e não estamos tipicamente prontos a abdicar do conhecimento objetivo porque pretendemos construir saberes que tenham validade objetiva. Talvez não haja saída para esse labirinto dentro da linguagem, pois a linguagem tem de falar sobre si mesma, e essa “dobra” conduz aos paradoxos da autorreferência que pretende ser simultaneamente objetiva e subjetiva. Mas é provável que tampouco haja saída para o labirinto fora da linguagem.
Por isso mesmo, Castoriadis renova a velha metáfora platônica para dizer que não podemos sair da caverna. O que podemos é andar incansavelmente pelas galerias, dando voltas em becos sem saídas até que esse caminhar em círculo faça abrir rachaduras nas paredes. A saída não está lá para ser percorrida, mas é possível criar novos caminhos. Gradualmente. Com muito esforço. Mas é possível.
Nesse itinerário, uma das primeiras coisas a abandonar é a ideia de que o conhecimento pode ser um espelho da natureza. Até bem pouco tempo atrás, entendíamos que os conceitos deveriam corresponder às propriedades das coisas. Os pássaros seriam seres essencialmente diversos das cobras e as cobras seriam seres essencialmente diversos dos lagartos. Essa é a herança ontológica que devemos aos pensadores da Grécia antiga e que constitui a marca distintiva da filosofia clássica ocidental.
Nosso esforço de compreensão não começou com um trabalho consciente voltado a definir categorias artificiais, mas com a tentativa de descobrir as essências imutáveis, objetivas, absolutas. No mundo antigo, as palavras deveriam corresponder, de alguma forma, a propriedades existentes no mundo, pois os conceitos deveriam ser portadores de uma verdade. Não se colocava em dúvida de que deveria haver um conceito verdadeiro de pássaro, que fosse capaz de designar uma classe de objetos cuja essência (ou seja, cujo modo específico de ser) era a de ser um pássaro.
A ideia de um conceito verdadeiro gera uma série de dificuldades, que foram bem percebidas pelos antigos. O conceito (e usaremos categoria como um sinônimo de conceito) era percebido como se fosse um nome, e os nomes só fazem sentido quando correspondem a algo que existe. O Rei da Pérsia, as Pirâmides do Egito, a Justiça: essas expressões linguísticas somente podem ter um sentido objetivo quando elas fazem referência a um objeto existente, pois o nome estabelece uma relação de correspondência.
O nome substitui, na linguagem, a própria coisa referida. Quando falo de Sócrates, eu trato de uma pessoa que existiu, não falo de uma palavra. Quando digo que Sócrates era mortal, eu uso esse adjetivo para atribuir uma qualidade a um sujeito. Mas qual é objeto que corresponde à palavra mortal? A mortalidade é um atributo, não é uma coisa. Na nossa percepção intuitiva da linguagem, as coisas têm atributos, mas não existem atributos autônomos, independentes das coisas. O azul, o frio, o justo. Todas as qualidades somente existem enquanto atributos de objetos específicos, de tal modo que parece claro que não faz sentido buscar no mundo um azul que não seja a cor das coisas azuis.
Ocorre que quando dizemos que um determinado objeto é um cavalo ou um pássaro, ser cavalo ou ser pássaro são atributos desse objeto. A consciência de que a linguagem é uma coleção de atributo, sendo que esses atributos não correspondem a coisas determinadas, coloca em risco a nossa percepção comum, que toma a linguagem como uma série de palavras que indicam determinados fatos (ser azul, ser cavalo, ser injusto).
Ser. Na raiz de todos esses atributos, está a própria noção de ser. Essa é a noção mais original, mais poderosa e mais problemática. Será que ser é um atributo? Um objeto pode ser azul, ser quadrado e ser leve. Mas ele pode simplesmente ser? Essa é uma questão complicada porque o verbo ser (to be, être, estar) é normalmente utilizado para estabelecer relações: ele relaciona um objeto a um atributo.
Linguisticamente, a frase “o cavalo é” parece simplesmente incompleta. Ela tem um problema no nível sintático, ou seja, da própria estrutura de construção do enunciado: falta um pedaço da frase, o que a torna sem sentido aparente. Podemos dobrar a frase e dizer “o cavalo é uma coisa que é”, e isso nos aponta para um sentido não relacional da ideia de “ser”, que normalmente expressamos por meio do verbo “existir”. Quando dizemos que o cavalo existe, atribuímos uma qualidade ao cavalo (existir) por meio de um verbo e não de adjetivos qualificadores ligados por um verbo ser ou estar.
Parece que existir e ser estão ligados, mas essa ligação é obscura. Inclusive porque atribuímos várias qualidades a seres inexistentes: unicórnios são brancos, quadrados redondos não existem. Quando a própria inexistência é um atributo linguisticamente atribuível a um objeto, levados a um terreno pantanoso: qual é o ser de um objeto que não existe? Nessa pergunta, o que aflora como pantanoso não é exatamente o terreno de uma linguagem que pode ser simplesmente emotiva e poética, portadora de fantasias delirantes. O que fica borrado é a ligação entre linguagem e verdade, que parecia evidente para Platão e a filosofia grega, mas que fica obscurecida pela possibilidade de construirmos enunciados com sentidos absolutamente paradoxais.
Que verdade é possível numa linguagem que delira? A linguagem humana permite falar de coisas existentes e inexistentes. Fala inclusive de coisas impossíveis, como quadrados redondos e estrelas de massa infinita. A linguagem, como um mecanismo de interação entre seres humanos, não nos conduz a paradoxos. Os paradoxos linguísticos, inclusive, são uma grande fonte artística, utilizada exaustivamente pelos poetas como Manoel de Barros, especialistas em construir situações em que a palavra delira.
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá, onde a criança diz:
eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
Funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta,
que é a voz
De fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio. (Barros)
Os poetas talvez estejam certos, explorando a linguagem como um elemento expressivo. Isso faz com que os poetas sejam perigosos, pois eles podem convencer as pessoas de coisas falsas e, inclusive, de coisas nocivas. Por isso mesmo Platão pretendia vedar a poesia, com sua capacidade incrível de produzir sonhos e sombras que nos distanciam da verdade que não nos é mostrada pela linguagem, mas pela nossa racionalidade.
O problema da filosofia clássica não era compreender o que podemos falar sobre o mundo, mas compreender como o mundo é. É preciso conhecer o mundo em sua verdade, sendo que os atributos de um ser não deveriam ser entendidos como designações linguísticas, mas como propriedades ontológicas. Curiosamente, parecia que a linguagem infundia aqui suas próprias ilusões. Os filósofos falam das coisas como entes (ou seja, objetos que são) dotados de certos atributos, e esses atributos não são uma mera classificação linguística, mas um modo específico de ser.
As características próprias dos seres humanos são entendidas como atributos que os seres humanos têm, e que os diferenciam de outros seres. Na base dessa visão de mundo está a ideia de que existe um cosmos, uma realidade organizada, na qual existem papéis naturais, relações naturais, padrões de interação entre os objetos que seguem essa ordem natural e que, portanto, deveriam ser imutáveis. Nietzsche chegou a afirmar que o que caracteriza os filósofos é justamente a falta de sentido histórico e a tentativa de pensar as coisas imutáveis, eternas, sem história, que serviriam como fundamentos objetivos para um conhecimento verdadeiro das essências.
A morte, a evolução, a idade, tanto quanto o nascimento e o crescimento, são para eles não só objeções, como até refutações. O que é não se torna, não se faz, e o que se torna ou se faz não é. [...] Resultado: mister se faz desprender-se da ilusão dos sentidos, do devir, da história, da mentira. Conseqüência: negar tudo o que supõe fé nos sentidos, negar todo o resto da humanidade. (Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos).
O único conhecimento sólido, na tradição filosófica, está na descoberta das formas imortais, que subjazem aos movimentos do mundo, esses pontos arquimedianos em que podemos apoiar com segurança as alavancas do nosso conhecimento. Nada que muda na história pode ser objeto de um conhecimento seguro, para essa tradição metafísica.
Ocorre que as classes que usamos para falar das coisas estão em constante transformação, pois essas classes muitas vezes nos conduzem a conclusões erradas. Precisamos das generalizações porque, sem elas, podemos ter descrições de objetos, mas não podemos ter os tipos de explicação que nos possibilitam extrapolar nossos conhecimentos para objetos ou situações suficientemente similares. Porém, essas generalizações são perigosas porque, frequentemente, essas extrapolações nos conduzem a conclusões falsas.
Olhamos céu e vemos vários pontos de luz, que normalmente chamamos de “estrelas”, e essas estrelas parecem estar estacionárias, umas com relação às outras. O objeto “estrela” era diferente do objeto “lua” e do objeto “sol”, que tinham formas e comportamentos muito diversos das estrelas. Tínhamos 3 categorias para falar do céu (Sol, Lua, Estrela) e estávamos contentes com isso, até observarmos que algumas das estrelas tinham um comportamento diferente, pois pareciam vagar no céu. Elas eram estrelas de um tipo especial, e precisamos dividir as estrelas em duas categorias do mesmo gênero: as estrelas fixas e as estrelas errantes (asteres planetai, em grego, de onde vem o nome planeta). Esses objetos compartilhavam alguns atributos (tamanho, brilho, estar no céu), mas não outros. Além de sua trajetória estranha, elas não piscavam como as demais estrelas, o que talvez significasse que elas não seriam espécies do gênero “estrela”, mas outra classe de objeto: os planetas.
Planetas e estrelas pareciam girar em torno da Terra, seguindo padrões recorrentes, o que possibilitou que a sua observação fosse relevante para uma série de atividades complexas, especialmente servindo como pontos de referência para que os antigos navegadores pudessem atravessar os mares sem perder o senso de direção. Outras observações, possibilitadas por novas tecnologias, permitiu que entendêssemos que os planetas não tinham luz própria, o que os colocou definitivamente em outra categoria, diferente das “estrelas”, do “sol” e da “lua”.
No tempo de Copérnico, era uma possibilidade real classificar a Lua e o Sol como planetas. Demorou muito para entendermos que o “sol” era um objeto do tipo “estrela”, e que as estrelas estariam a distâncias muito diferentes de nós. Mudaram as categorias, mudaram os mapas usados para compreender o céu. E cada uma dessas transições categoriais envolveu discussões imensas, nas quais os defensores de novas categorias debateram com os defensores das categorias hegemônicas.