Introdução

1 - Por que estudar filosofia do direito hoje?

"A filosofia só ocupa um lugar importante na cultura quando as coisas parecem estar desmoronando"[1]. Atualmente, essa frase do filósofo americano Richard Rorty é a minha citação preferida sobre o tema.

Creio que ele tinha toda a razão, pois a filosofia envolve questionamentos que parecem fora de lugar toda vez que as pessoas estão satisfeitas com sua percepção do mundo. Nas épocas de estabilidade, quando não existem muitas dúvidas sobre o caminho correto a seguir, o filósofo se torna uma figura marginal, como aconteceu em boa parte do século XIX, época em que o iluminismo se tornou uma espécie de tradição hegemônica.

Até hoje vivemos dentro dos quadros desse paradigma iluminista, que se manifesta como um grande projeto de modernização, exigindo a garantia tanto das liberdades individuais quanto do bem-estar social. Essa é uma utopia bem diferente das que a precederam, pois o projeto social não envolve mais a manutenção dos costumes tradicionais nem aponta para a recuperação de algo que perdemos no passado.

Para um europeu do século XV, a idade de ouro dos romanos podia soar como uma espécie de paraíso perdido. Mas a utopia que desenvolvemos nos últimos 500 anos não foi a de retomar aquilo que um dia fomos, mas a de implantar um novo modelo de sociedade, capaz de concretizar no presente os direitos naturais dos homens.

Na utopia moderna, a igualdade, a liberdade e o progresso não são apresentados como simples aspirações políticas, mas como direitos de cada um dos homens. Com isso, o discurso social da modernidade é um discurso jurídico, pautado pela definição de cada indivíduo como um sujeito de direitos, e pela elaboração de limites jurídicos ao exercício do poder político.

A linguagem do direito tornou-se tão central que a própria sociedade passou a ser apresentada como resultado de um contrato. Não somos mais uma comunidade natural de irmãos ou de fiéis, mas um grupo de indivíduos unidos por meio do estabelecimento de uma constituição que regula a organização e o exercício do poder político.

O Estado de Direito instituído por essa constituição é uma invenção moderna, calcada sobre a idéia de que não pode haver autoridade acima da própria lei. Nesse contexto, o Direito Público assumiu uma função preponderante, pois é ele que organiza o império da lei (rule of law), essa marca definidora do modelo de organização social do ocidente contemporâneo.

No estabelecimento desse modelo (e na crítica ao modelo anterior), uma série de filósofos teve papel fundamental. Hobbes, Descartes, Hume, Rousseau e Kant são referências obrigatórias para a compreensão do projeto social iluminista. Porém, uma vez que iluminismo alcançou hegemonia, os filósofos perderam seu espaço, pois esse novo tempo era daqueles capazes de concretizar o projeto, e não de criticá-lo.

A reflexão crítica insufla revoluções, mas atrapalha a construção lenta e paulatina do novo regime, colocando dúvidas sobre as novas certezas, dificultando os processos de catequização por meio dos quais as novas verdades são cristalizadas no senso comum.

A filosofia viva e pulsante costuma estar na contramão das tradições, e desde Sócrates sabemos que um dos papéis típicos do filósofo é o de realizar a crítica dos poderes e dos saberes instituídos. O filósofo sempre exige uma justificativa que legitime o exercício do poder, mas as autoridades tradicionalmente não se vêem no dever de realizar uma justificativa filosófica explícita, exceto nos momentos de crise.

Nas épocas em que existe uma tradição claramente hegemônica, é percebida como natural a autoridade reconhecida pela tradição (que pode se dos deuses, dos reis, dos pais, dos homens, do povo). Essa naturalização torna dispensável uma justificação filosófica explícita, pois ninguém se sente no dever de provar o que é por si evidente. Quando as crises colocam em xeque a eficácia desses processos de naturalização, cresce a importância dos filósofos e de suas variadas estratégias argumentativas de legitimação, que permitem ancorar o poder em outros pontos.

Porém, uma vez que a locomotiva iluminista do progresso foi colocada em movimento, que restava a nós exceto implantar no mundo as utopias da modernidade? A necessidade de garantir a liberdade, a igualdade e o desenvolvimento econômico são objetivos tão óbvios que dispensam qualquer justificação filosófica. A cientifização dos saberes, a codificação e a constitucionalização dos direitos, a democratização da política e a liberalização da economia eram os caminhos evidentes a seguir.

Já não mais era preciso discutir o que fazer, mas apenas como fazer. Nesse ambiente, o século XIX assistiu a uma espécie de rarefação filosófica dos discursos sociais em geral, e do discurso jurídico em particular. Desde então, a filosofia perdeu espaço na formação dos juristas, que passou a ser dominada por duas ordens de discurso que são normalmente qualificadas como positivistas, mas que não devem ser confundidas.

De um lado, houve um positivismo cientificista, caracterizado pela tentativa de superar o discurso filosófico dos direitos naturais por meio de um discurso de matriz científica. Aliás, como veremos adiante, houve vários positivismos cientificistas, ligados às diversas concepções de ciência que existiam no início do século XX, entre os quais cabe destacar o positivismo sociológico e o positivismo formalista.

Porém, as concepções ligadas a um positivismo científico nunca conseguiram ter grande penetração no discurso jurídico, que continuou sendo dominado por uma perspectiva que sacraliza a lei e encara o direito como um conjunto de normas a serem aplicadas. Esse enfoque dogmático reduz o direito a um saber técnico, voltado a capacitar os estudantes a manejar os instrumentos judiciais disponíveis. E esse tecnicismo, que também é chamado de positivismo, é que está na base do senso comum dos juristas.

Esse senso comum é o horizonte a partir do qual os juristas compreendem o seu campo de conhecimento e a sua atividade. Trata-se de uma concepção filosoficamente rarefeita, inconsciente dos seus pontos de partida, das suas incongruências e dos seus limites. É claro que ele está permeado por uma filosofia implícita, que organiza os conceitos e dá sentido ao conjunto. Porém, esses conceitos raramente são trazidos ao nível da reflexão, na medida em que a formação jurídica está concentrada em como manusear os conceitos estratificados.

Um velho estereótipo diz que os profissionais do direito são homens e mulheres pragmáticos, pouco afeitos à teoria, embora dedicados ao conhecimento da sua técnica. Nisso, eles se parecem com os músicos. Assim como os estudantes de música normalmente querem aprender a tocar o seu instrumento, os estudantes de direito muitas vezes querem aprender a fazer petições, sentenças ou provas de concurso. Eles querem aprender a responder perguntas e a resolver questões práticas.

Nos dois casos (direito e música), as disciplinas teóricas costumam ser sentidas como um desvio quase inútil, pois qual é a utilidade prática de aprender o conceito de norma fundamental em Kelsen? Certamente, não é operando um discurso filosófico que decidimos as questões dogmáticas. E, quanto à ciência, o próprio Kelsen sustentava que ela é incapaz de decidir as questões práticas do direito, pois o julgamento de um caso concreto sempre envolve um componente político que se resolve mediante uma escolha valorativa que transcende qualquer cientificidade.

Após quase 200 anos de um primado tecnicista (cuja primeira grande expressão foi a Escola da Exegese francesa, no início do século XIX), era de se esperar que muitos profissionais do direito considerassem a filosofia uma espécie de erudição dispensável. Essa idéia raramente é verbalizada, especialmente na frente dos professores de filosofia, mas creio que ela é suficientemente disseminada para valer a pena uma refutação.

A inutilidade da filosofia me parece uma falácia. Curiosamente, é uma falácia estimulada por muitos filósofos, que há 2.500 anos insistem em dizer que a o estudo da filosofia é desinteressado. Mas ainda assim trata-se de uma falácia, pois o estudo da filosofia estimula uma série de habilidades, sendo que a mais importante para os juristas me parece ser a capacidade de redirecionar as perguntas e redefinir as questões. Desde a Grécia Antiga, é reconhecido que as habilidades retóricas dos filósofos eram instrumentos políticos altamente eficazes, pois a capacidade de persuadir outras pessoas é um ativo político importantíssimo.

O conhecimento sempre foi, em grande medida, secreto. Era assim nos tempos antigos e continua sendo nos dias de hoje. O dono da padaria da esquina não ensina a seus concorrentes os segredos que ele utiliza para fazer seus pães, e menos ainda ensina a gama de estratégias que ele usa para maximizar seus lucros. Uma indústria farmacêutica não ensina a seus concorrentes as suas descobertas e, na modernidade, desenvolvemos inclusive estruturas políticas específicas para garantir que certas pessoas tenham benefícios exclusivos com relação a determinadas produções técnicas, científicas ou artísticas: o direito industrial e o direito de autor.

Não é à toa que os sofistas, na Grécia, foram muito mal vistos por vender a qualquer pessoa os seus conhecimentos, possibilitando uma estranha conversão de poder econômico em poder político: se o dinheiro compra conhecimento, os privilégios das velhas famílias oligárquicas, unidades típicas da reprodução de um conhecimento que passava de pai para filho. O conhecimento não deveria ser passado assim a qualquer um, inclusive porque todos sabemos que o conhecimento é demasiadamente perigoso: era assim na Grécia antiga com as habilidades retóricas, é assim nos dias de hoje com a Cambridge Analytics oferecendo propaganda política baseada nos perfis individuais adquiridos por meio das redes sociais.

Como ressaltou Foucault, não há fronteiras claras entre o saber e o poder. Nesse jogo, a filosofia é uma das principais estratégias de combate contra os saberes tradicionalmente estratificados. Contra as visões de mundo cristalizadas, a filosofia desenvolveu técnicas de dissolução da confiança nas crenças hegemônicas, muito capazes de desacreditar valores tradicionais e autoridades reconhecidas. O caráter subversivo do conhecimento filosófico levou Sócrates à ser condenado e levou Platão a ser vendido como escravo. Desde o início, a habilidade filosófica não oferece a ninguém uma promessa muito grande de felicidade. Mas concedamos que a felicidade raramente foi o objetivo dos filósofos.

A habilidade em lidar com as reflexões filosóficas nos ajuda a compreender o sentido das perguntas e os seus pressupostos teóricos, o que possibilita realizar deslocamentos nos eixos da argumentação. Ao desenvolver uma percepção consciente das estruturas argumentativas envolvidas em um debate, podemos extrapolar os limites do debate dogmático, problematizando a coerência entre os argumentos em jogo e a visão de mundo que a sustenta, ou a consistência da própria rede de pressupostos.

O discurso dogmático não tematiza os seus pressupostos e, por isso mesmo, não é capaz de defendê-los contra uma argumentação filosófica. Por isso mesmo é que a dogmática do século XIX anos se blindou contra os argumentos filosóficos, que são capazes de desestruturar a tão almejada segurança jurídica. Porém, a nossa busca por justiça fez com que a dogmática jurídica do século XX tenha se tornado cada vez mais permeável a argumentos filosóficos, ligados especialmente ao controle de legitimidade e à interpretação das normas.

Temos hoje um discurso dogmático (que é o discurso que organiza a prática do direito) que lida com conceitos abertos e valorativamente densos, que se mostram de modo mais claro no movimento de valorização dos princípios, que irradiou do direito constitucional para vários outros ramos jurídicos. A compreensão da mudança desses padrões discursivos é uma parte importante da filosofia do direito.

Em outras palavras, o discurso dogmático dos advogados, dos juízes e dos outros atores jurídicos busca definir o sentido das normas, mas raramente ele se volta a definir o seu próprio sentido. Qual é o papel dos juízes? Qual é o limite da sua autoridade? Quanto de subjetivismo existe nas interpretações ditas literais? Qual é a fronteira entre o político e o jurídico?

Essas perguntas demarcam o campo do direito e oferecem uma narrativa que dá sentido à prática jurídica. E elas não cabem no discurso técnico da dogmática, cujo objetivo é determinar a solução correta de acordo com o sistema de normas vigentes e de conceitos hegemônicos. Assim, a argumentação puramente técnica, por mais competente que seja, permanece aprisionada nos limites estreitos do senso comum de uma tradição. O técnico se acostuma a discutir sempre dentro de um horizonte conhecido, com pessoas que compartilham os seus pontos de partida e os seus modos de argumentar.

Costuma gerar estranhamento nos técnicos o fato de os argumentos filosóficos envolverem a crítica dos fundamentos implícitos que estão na base do discurso dogmático. Esse estranhamento pode desconcertar as pessoas, mostrando a elas os limites que elas ainda não tinham percebido no seu próprio discurso. A estes juristas, a filosofia ajuda a ver mais longe e a desenvolver um pensamento mais vigoroso. Mas há quem simplesmente rejeite o argumento filosófico, e ainda se questione: que tipo de sujeito é esse que faz perguntas tão ridículas?

Realmente, as perguntas filosóficas são ridículas como as de uma criança de 7 anos, que insiste em perguntar por que as coisas são assim. Por que o ipê é amarelo? Por que existem pobres? Por que as pessoas morrem? Por que eu não posso voar? Colocados contra a parede, os adultos, de tão habituados com o fato de o mundo ser assim, costumam responder apenas com um "porque sim" e com um "porque não".

Então, os filósofos talvez sejam crianças crescidas, que não conseguiram deixar de estranhar o fato de o mundo ser assim como é. Platão já dizia que o primeiro requisito para a filosofia é a capacidade de estranhamento. Para o filósofo, tudo parece um pouco esdrúxulo, e eles se negam a admitir qualquer coisa que não tenha uma justificação adequada. A radicalização dessa postura foi feita por Descartes, que simplesmente se negou a aceitar qualquer afirmativa que não pudesse ser provada racionalmente.

Por que pode uma decisão do rei limitar a minha liberdade? Porque os nobres têm direitos diferentes dos plebeus? Pode o Estado impor a mim uma obrigação de ordem religiosa? No século XVIII, essas perguntas ainda eram subversivas, e os questionamentos que elas geraram ajudaram a implodir o modelo vigente de organização social.

Mas, desde o grande sucesso das revoluções burguesas, os filósofos do direito não têm tido o mesmo papel heróico desses tempos revolucionários. Isso não quer dizer que eles abandonaram a sua eterna tarefa reflexiva, mas apenas que a filosofia palatável para o senso comum ainda parece ser a filosofia iluminista do início do século XIX. De lá para cá, tudo parece um pouco estranho e desconcertante, o que valeu para os filósofos contemporâneos uma fama de digna de Heráclito, um pré-socrático que era conhecido como o obscuro.

Contudo, as idéias dos filósofos atuais costumam ser mais desconcertantes que obscuras, e uma das funções deste curso é ajudar vocês a compreendê-las. Assim como o gosto artístico das pessoas de hoje costuma ter dificuldade ao lidar com a arte contemporânea, o seu gosto teórico pode ter dificuldade de lidar com as idéias presentes no debate filosófico atual. Porém, com algumas chaves de leitura que este curso pretende oferecer, é possível compreender o sentido dos debates contemporâneos.

Mas qual é a relevância de estudar filosofia hoje?

Acredito que o crescente distanciamento entre o senso comum e a filosofia contemporânea não diminuiu a sua relevância. O domínio da filosofia abre diversas perspectivas estratégicas interessantes para a prática do direito, pois a filosofia continua sendo um discurso extremamente hábil para dissolver as crenças hegemônicas e, muitas vezes, o trabalho dos juristas é o de promover decisões francamente contrárias ao senso comum. Embora a maior parte do trabalho dogmático seja muito alinhado com a reprodução do senso comum, todo jurista em alguns momentos se vê frente ao desafio de promover câmbios nas interpretações dominantes, sendo que nesses momentos é fundamental uma formação filosófica.

Para além dessa função instrumental, o conhecimento da filosofia tem um valor inestimável para quem pretende desenvolver um discurso que tenha consistência teórica, como é o caso do discurso acadêmico. Dentro da academia, diversamente do que ocorre na prática judicial ou advocatícia, mesmo as questões dogmáticas precisam ser tratadas com densidade teórica. Diferente de uma sentença ou de um parecer, uma monografia é um trabalho que não pode ser apenas uma opinião pessoal, pois ela precisa esclarecer devidamente os seus pontos de partida e as perspectivas utilizadas, elementos que somente se tornam claros para quem desenvolveu uma reflexão filosófica.

Um dos pontos mais típicos da filosofia contemporânea é o reconhecimento de que não existem verdades universais e imutáveis a serem descobertas e que, portanto, toda visão de mundo adota uma determinada perspectiva.

Sob que perspectiva vocês enxergam o direito? Quais são os pressupostos em que se assentam os conceitos que vocês usam? Quais são os pontos que vocês não podem comprovar, mas ainda assim continuam acreditando neles? De que maneira o seu modo de ver o mundo condiciona aquilo que você chama de realidade e, portanto, a sua maneira de interpretar as normas e de decidir questões jurídicas?

O modo como vocês respondem a essas perguntas define o seu marco teórico, que é justamente a perspectiva a partir da qual se constrói um discurso acadêmico. E este curso de filosofia visa justamente a auxiliar cada um de vocês a identificar as linhas filosóficas com que têm mais afinidade, para que com isso vocês possam ter uma consciência mais reflexiva acerca dos elementos estruturam os seus discursos sobre o direito e que, com isso, definem o horizonte da sua prática.

I - O problema moderno: legitimidade como fundamentação

O começo normal das discussões filosóficas é a antiguidade grega. Nós vamos chegar lá, mas creio que é melhor adotar um ponto de partida mais atual, para depois buscar as suas origens e avaliar as suas consequências. Então, antes de abordar os pontos da história da filosofia que julgo imprescindíveis para compreender as questões jurídicas contemporâneas, gostaria de analisar primeiramente uma questão atual que servirá como fio condutor das nossas reflexões.

Esta será a questão da validade, que acredito ser o ponto nodal de toda teoria filosófica do direito, e ao mesmo tempo o ponto cego de toda teoria dogmática, como veremos depois.

1 - O paradoxo da validade

Quando uma norma é válida?

Podemos dizer que uma regra é válida quando ela acarreta consequências deônticas, gerando obrigações, proibições ou permissões. Mas afirmar isso é simplesmente esclarecer o próprio sentido do termo "validade", sendo necessário oferecer critérios para definir quando essas consequências efetivamente ocorrem.

No caso do direito, faz parte do senso comum atual a idéia de que as normas são válidas quando estão de acordo com a Constituição. Estamos acostumados a discutir a validade das leis, avaliando a sua compatibilidade com o sistema constitucional. E com base nas regras legais e constitucionais avaliamos a validade dos contratos, das decisões judiciais e de outros atos que geram deveres e direitos.

Esse tipo de questão faz parte da prática jurídica comum, e desenvolve-se no sentido de avaliar a compatibilidade entre uma norma específica e um determinado sistema normativo.

Porém, existem momentos em que se coloca em questão a validade do próprio sistema. Na páscoa de 1916, por exemplo, uma série de insurgentes irlandeses tomou alguns prédios em Dublin e proclamaram a independência da Irlanda com relação ao Reino Unido, afirmando "nós declaramos ser soberano e imprescritível o direito do povo irlandês ao domínio da Irlanda, e ao controle irrestrito dos destinos irlandeses. A longa usurpação desse direito por um povo e um governo estrangeiros não extingue o direito, que não pode ser extinto exceto pela destruição do povo irlandês."

Nesse texto, os insurgentes declararam o direito do povo irlandês a decidir o seu destino, o que se chocava diretamente com o sistema jurídico britânico, que foi válido na Irlanda por mais de 300 anos. Contra a validade do direito vigente, eles justificaram sua revolta em nome de um direito imprescritível de autodeterminação.

Esse levante durou poucos dias e, como era previsto pelos seus próprios líderes, o movimento foi sufocado e eles foram quase todos fuzilados. Porém, o resultado da atuação brutal dos ingleses foi o recrudescimento de um sentimento nacionalista que possibilitou a guerra de independência, alguns anos depois. Nessa guerra, a Irlanda conquistou sua independência, reconhecida por um tratado em que se deixou sob o domínio britânico algumas províncias do norte, que atualmente compõem a Irlanda do Norte.

Indignados com esse tratado, e afirmando o direito de independência de todas as províncias, alguns dos insurgentes continuaram a luta pela independência, gerando uma guerra civil (perdida em 1923), e um movimento separatista que considerava inválido o tratado, pois ninguém poderia dispor do direito de independência das províncias do norte. A continuação da luta pela independência foi movido pelo IRA, que perdeu muito de sua força, mas continuou durante muito tempo suas atividades, inclusive por meio de terrorismo.

Na base de todos esses movimentos existe um questionamento da validade do próprio sistema jurídico britânico e, posteriormente, do sistema irlandês, o que significa um deslocamento da questão típica dos juristas. A validade de uma lei tipicamente se mede com referência à legitimidade do sistema que ela integra. Mas como se pode julgar a validade do próprio sistema?

Foi nessa mesma época que Kelsen realizou suas primeiras reflexões sobre o tema, que estão na base da Teoria Pura do Direito. Como um bom filósofo analítico, ele estudou os discursos acerca desse problema e mostrou que existem algumas assimetrias na discussão sobre a validade.

A validade é um conceito relacional, pois sempre liga uma norma (fundada) a uma outra norma (fundante). Como todo conceito desse tipo, ele estabelece uma cadeia entre elementos fundantes e fundados, que segue bem até o momento que tentamos estabelecer um princípio para a cadeia. Dentro do direito positivo, o elo inicial é a constituição, por ser ela a norma de maior hierarquia.

Kelsen, utilizando uma estratégia tipicamente platônica (que estudaremos ainda hoje) percebeu que toda tentativa de fundar o direito positivo, ou seja, de justificar a validade da constituição, apontava necessariamente para fora do direito positivo. Assim, demonstrar a validade do direito positivo implicava a admissão de algum tipo de norma meta-positiva.

A própria estrutura relacional da validade gera um paradoxo: admitir a validade de uma norma positiva (como a das sentenças judiciais que mandaram fuzilar os insurgentes irlandeses) implica admitir a existência de normas meta-positivas que seriam o fundamento do próprio ordenamento. E como essas normas para além do direito positivo deveriam ser jurídicas, a validade do direito posto se assenta sobre a validade de um direito fora da história, o que nos conduz aos tradicionais argumentos do jusnaturalismo.

Portanto, parece um contrasenso afirmar que o direito positivo é válido sem reconhecer a validade de um direito natural que lhe atribua essa condição. Isso fez com que Kelsen abandonasse a idéia de que é possível provar que um sistema positivo é válido, o que é uma de suas posições mais desconcertantes, especialmente porque foge ao que esperaríamos que dissesse um positivista.

Mas creio que a observação mais desestruturante para o senso comum é o reconhecimento que o próprio conceito de validade é paradoxal. Dizer que uma norma é válida porque está baseada em outra nos conduz logicamente a reconhecer que pelo menos uma norma deve ser válida sem estar baseado em nada.

Essa norma válida em si é ao mesmo tempo a sustentação do sistema e uma quebra do sistema, pois o conceito de validade tem de ser distorcido justamente no caso da norma fundamental. Kelsen dá para esse problema uma solução muito engenhosa, que será explicada a seu tempo.

Por enquanto, ainda é preciso fixar melhor os termos do problema, na tentativa de gerar, ou de reforçar em vocês, o estranhamento que desencadeia o interesse pela filosofia. Esse paradoxo da validade pode ser compreendido nos termos do que Hans Albert chamou ironicamente de Trilema de Münchhausen.

O famoso Barão de Munchhausen é protagonista de muitas aventuras, uma das quais lhe levou a cair em uma areia movediça. Como não havia ninguém que o acudisse, ele teve a engenhosa idéia de se puxar pelos próprios cabelos. Essa afronta surrealista às leis da física pode nos parecer esdrúxula, mas talvez o mais estranho seja a nossa insistência para fazer o mesmo no campo da teoria. Retomando velhos argumentos dos céticos gregos, Albert identifica que toda tentativa de provar algo (inclusive a validade) conduz a três saídas absurdas:

1. Regressão ad infinitum: cada passo na cadeia de justificação exige a introdução de uma norma superior, e assim por diante, de modo infinito.

2. Corte arbitrário: para cortar a cadeia infinita, é preciso um corte arbitrário, com a apresentação de uma norma válida em si mesma. Essa é a saída mais comum da filosofia, mas ela parece desnaturar o próprio conceito de validade.

3. Círculo vicioso: podemos chegar a um argumento circular, como o curioso fato de a Constituição estabelecer que todo poder emana do povo. Se todo poder emana do povo e isso precisa se reconhecido porque a constituição o estabelece, e se a constituição é válida porque derivada do poder do povo, então a constituição é válida porque ela é válida.

Portanto, validade parece ser um conceito completamente absurdo, especialmente quando consideramos que podemos demonstrar objetivamente a validade de uma regra. Apesar disso, ele é o conceito fundamental da nossa percepção jurídica, pois uma norma inválida é uma não-norma.

A mesma lógica também se aplica aos conceitos de causalidade (pois a explicação de uma consequência aponta sempre para uma causa antecedente, até o infinito), e também de verdade (pois a demonstração da veracidade exige sempre a prova dos pressupostos).

Assim, boa parte da filosofia é tentativa de dizer que podemos escapar do trilema de Münchhausen, encontrando alguma forma de justificar o conhecimento objetivo das coisas ou a validade objetiva das normas.

Se vocês sentem algum estranhamento perante esse absurdo todo, então há espaço para entender as idéias dos filósofos que tentaram desenvolver categorias que lidassem com ele, inclusive que tentassem encontrar uma saída para o trilema. E, aqueles que se sentem genuinamente angustiados diante desse paradoxo certamente têm um genuíno interesse na filosofia.

Quanto àqueles para quem esse problema soa apenas como uma pergunta vazia, espero que mudem de opinião durante o curso. Mas, ao menos, espero que não incidam em uma das formas mais comuns de esvaziar o questionamento filosófico, que é a pura negação do seu sentido. Para muitos juristas que adotam um enfoque técnico, não vale a pena discutir os fundamentos de validade daquilo que efetivamente vale. Discutir os fundamentos do direito brasileiro ou da nossa constituição é uma perda de tempo, pois o que interessa é conhecer os seus conteúdos e conseqüências.

Bom, isso pensavam também os juristas franceses em 1788. Isso também pensavam os dogmáticos brasileiros na década de 70. Para mim, um dos casos mais emblemáticos dessa época foi o julgamento da ação judicial por meio da qual o MDB postulava a declaração de inconstitucionalidade do decreto-lei de 1970 que instaurava a censura. Era uma época em que apenas o Procurador-Geral da República tinha legitimidade para ajuizar Representação por Inconstitucionalidade (que era o único veículo de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade), e ele havia rejeitado o pedido que o MDB lhe dirigiu no sentido de contestar a validade da censura.

Frente a essa negativa, o MDB ingressou com Reclamação perante o STF. Vários ministros defenderam que essa ação nem deveria ser conhecida, mas essa tese acabou não prevalecendo e passou-se à análise do mérito. Contudo, apenas um dos ministros, que se chamava Adaucto Cardoso e que havia sido indicado pelo próprio regime militar, levantou sua voz contra o decreto-lei, afirmando claramente que "a conjuntura em que nos vemos e o papel do Supremo Tribunal Federal" indicam a necessidade dar provimento à reclamação.

Essa postura foi contestada por Luiz Gallotti, que deu início a um diálogo exemplar. Disse Luiz Gallotti, como um bom dogmático ligado ao poder vigente, que a legitimidade para propor a ação era exclusiva do Procurador-Geral e que a sua inércia não era um problema porque "será livre a qualquer interessado trazer-nos, por outras vias, a matéria, e então o Tribunal decidirá." Frente a essa defesa de que a autoridade do tribunal não estava ameaçada porque restava aberta a via do controle difuso, Adaucto Cardoso respondeu:

Considero o argumento de Vossa Excelência com o maior apreço, mas com melancolia. Tenho a observar-lhe que, de janeiro de 1970 até hoje, não surgiu, e certamente não surgirá, ninguém, a não ser o Partido Político da Oposição, que a duras penas cumpre o seu papel, a não ser ele, que se abalance a argüir a inconstitucionalidade do decreto-lei que estabelece a censura prévia.

Então escritores ou empresas não poderão fazê-lo?

V. Excia. está argumentando com virtualidades otimistas, que são do seu temperamento. Sinto não participar das suas convicções e acredito que o Tribunal, deixando de cumprir aquilo que me parece a clara literalidade da L. 4.337, e deixando de atender também à transparente disposição do art. 174 do Regimento, se esquiva de fazer o que a Constituição lhe atribui e que a L. 4.337 já punha sobre seus ombros, que é julgar a constitucionalidade das leis [...].

É assim que entendo a lei, que entendo a Constituição, e é assim também que entendo a missão desta Corte, desde que a ele passei a pertencer, há quatro anos.

Luiz Galloti ainda respondeu que não havia excesso de otimismo de sua parte, mas excesso de pessimismo nas análises de Adaucto Cardoso. Porém, inconformado com o desfecho desse caso, Adaucto Cardoso logo renunciou à magistratura e dois anos depois, o então Procurador-Geral da República foi investido pelo Presidente da República no cargo de ministro do Supremo.

Essa história é para lembrar que a discussão do fundamento define, em muitos momentos, o debate acerca do conteúdo das normas. É claro que o debate judicial se dava nos quadros de uma dogmática que não podia questionar a validade da própria constituição de 1967, assim como o atual Supremo não vai questionar a validade da constituição de 1988. Porém, nós sabemos que as decisões não são tomadas em virtude da fixação de um texto de base, mas na atribuição de um sentido a esse texto, num processo interpretativo em que os valores e a sensibilidade do julgador desempenham um papel muito relevante.

Nesse processo, juristas acostumados à análise da legitimidade se tornam menos vulneráveis ao aspecto conservador da dogmática (que é capaz de justificar abusos com base no respeito à discricionariedade dos outros poderes políticos) e também ao aspecto autoritário do ativismo de um judiciário que se torna capaz de impor sua própria ideologia como se fosse uma verdade técnica ou até mesmo científica. De um lado ou de outro, a existência de uma legitimidade presumida (seja dos atos do executivo, do legislativo ou do judiciário) inibe o debate sobre a legitimidade que pode gerar uma efetiva legitimidade democrática.

Além disso, creio que a compreensão dos paradoxos da validade ajuda a nos proteger das armadilhas do formalismo jurídico, que é o nome que damos à postura dos juristas que por algum motivo pretendem se abster da avaliação da legitimidade. E um caso extremo, como esse da censura, serve para mostrar que a escolha pela técnica e pelo formalismo não é uma forma de isolar o direito da política, mas apenas de assumir uma postura política conservadora (no sentido de ser voltada à preservação da ordem vigente).

E isso é para esclarecer as vinculações políticas da perspectiva adotada neste curso, que está ligada ao processo de construção de uma democracia, na medida em que acredito que um dos seus principais pilares é a formação de sujeitos que avaliem a todo momento a legitimidade dos atos dos vários poderes. E como o debate sobre a legitimidade é uma atividade política que se efetiva no manuseio de conceitos filosóficos, creio que um passo importante para que esse debate seja transparente e frutífero é a compreensão das estruturas argumentativas que organizam o discurso filosófico da legitimidade.

Portanto, a primeira parte deste curso aborda justamente os conceitos e as estratégias argumentativas que normalmente organizam o discurso da legitimidade, que é o conceito a partir do qual pensamos a validade do próprio sistema jurídico e articulamos as idéias de direito e justiça.

2 - O racionalismo cartesiano

Embora esse seja o começo da nossa abordagem histórica, deixemos ainda os gregos para um pouco depois. Em vez de seguir a ordem cronológica e linear das idéias, creio melhor seguir um procedimento em espiral. Começaremos do centro, onde o problema me parece ser o mais compreensível, pois os instrumentos de navegação de que normalmente dispomos são mais capazes de entender os modernos que os antigos. Depois, voltaremos aos gregos porque, na contraposição das perspectivas, ambas se mostram de modo mais claro. E, ao final, analisaremos os desenvolvimentos contemporâneos da filosofia.

Iniciemos nosso itinerário pela colocação moderna do problema da legitimidade, que se faz mediante a seguinte pergunta:

Por que eu devo obedecer a uma norma?

Essa é uma releitura de uma velha pergunta por que a norma gera dever?, mas ela tem um componente inovador que, a primeira vista, pode parecer pequeno, mas que tem consequências revolucionárias: ela é feita na primeira pessoa do singular.

Ela não é sequer feita na primeira pessoa do plural. Não se trata de um questionamento acerca dos motivos pelos quais as pessoas em geral devem observar certos padrões de conduta, mas ela é colocada a partir da perspectiva de um indivíduo que se encontra frente ao poder político.

Esse momento de individualização, em que o sujeito se desvinculou de suas relações naturais com a comunidade, marca o início dos tempos modernos. Trata-se de uma espécie e declaração de independência muito próxima da postura dos adolescentes que, de um momento para o outro, passam a questionar radicalmente a validade das instituições.

A modernidade, assim, parece uma espécie de adolescência do pensamento ocidental, com todo o vigor, a impetuosidade e a presunção de um jovem que se acha o centro do mundo e que somente confia nas suas próprias conclusões pessoais. Os modernos desconfiam de tudo que é antigo, de tudo o que é posto, de tudo o que é estratificado nas tradições sociais.

Na história da filosofia, o principal marco dessa mudança é o pensamento do filósofo francês René Descartes, cuja obra máxima é o famoso Discurso do método, de 1637. Descartes começa assim a sua revolução:

"O bom senso é o que existe de mais bem distribuído no mundo. Porque cada um se julga tão bem dotado dele mesmo que mesmo aqueles que são mais difíceis de se contentar com qualquer outra coisa não costumam desejar possuí-lo mais do que já têm."[2]

Nessa frase, que é uma das mais famosas da nossa cultura, parece até que ele estava fazendo uma ironia, dizendo que as pessoas se enganam a crer que têm o mesmo bom senso dos sábios e dos filósofos. Mas aí não parece haver ironia alguma, pois logo ele continua:

E não é verossímil que todos se enganem a esse respeito. Pelo contrário, isso testemunha que o poder de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina bom senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens; e que, por isso, a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de uns serem mais racionais do que os outros, mas somente do fato de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e de não considerarmos as mesmas coisas. Pois não é suficiente possuir um espírito bom; o mais importante é aplicá-lo bem.

Essas palavras marcam todo um novo projeto. A razão de um não é maior do que a razão dos outros. Os sábios não têm uma racionalidade diversa dos demais, pois todos somos idênticos nesse ponto. Somos todos indivíduos iguais, tanto em nossa liberdade quanto em nossa racionalidade.

Portanto, se algum conhecimento pode haver do mundo, ele tem de ser perceptível por cada um dos seres humanos, individualmente. Com isso, não se pode admitir a verdade revelada (típica das perspectivas teológicas) nem o argumento de autoridade. Ninguém tem um acesso privilegiado à verdade, e o sábio normalmente não passa de um embusteiro que repete uma série de preconceitos como se fossem verdades universais e necessárias.

Descartes queria a certeza, queria escapar do trilema de Munchhausen no que toca à verdade. Em suas próprias palavras:

Eu sempre tive um imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver com clareza as minhas ações e caminhar com segurança nessa vida. (p. 37)

Porém, depois de estudar nos melhores colégios, depois de ter acesso a toda a cultura disponível, ele chegou à estonteante conclusão de que ele era completamente incapaz de fazer essa diferença. E isso era ainda mais notável na filosofia, em que não se encontra algo sobre o qual haja disputa e dúvida. Como ele disse, nada se poderia imaginar de tão estranho e de tão pouco crível que algum filósofo já não houvesse dito. (p. 42)

Portanto, tudo aquilo que lhe havia sido ensinado pelos seus professores, tudo aquilo que fazia parte da tradição européia, todas as verdades tradicionais da filosofia, da teologia e da ciência, Descartes duvidou delas. Ele percebeu que muitas das pretensas verdades eram justificadas por crenças sem qualquer justificativa. Assim, ele chegou a uma consciência muito clara de que todo o seu estudo não lhe melhorava em capacidade de distinguir o verdadeiro do falso.

Essa percepção fez com que ele se tornasse um dos protagonistas do movimento que negou a autoridade da tradição medieval, colocando em dúvida todo o conhecimento disponível. Ele não disse que tudo era falso, mas apenas que tudo era duvidoso, pois não havia nenhum critério adequado para distinguir o preconceito consolidado das verdades.

Esse movimento é conhecido como a dúvida hiperbólica, em que ele se propõe a suspender a sua crença em todos os saberes de que ele podia duvidar. Sua intuição é a de que era necessário colocar abaixo todo o edifício do conhecimento, para reconstruí-lo em bases sólidas. Ele temia que esse ambicioso projeto parecesse absurdo e inalcançável, mas mesmo assim decidiu avançar, mesmo sentindo-se como alguém que tateava no escuro.

Para isso, ele estabeleceu um método, que deveria guiar as suas reflexões, e que tinha 4 preceitos básicos (pp. 44-5).

1. Regra da evidência: "jamais aceitar alguma coisa verdadeira que não soubesse evidentemente como tal, isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito que eu não tivesse nenhuma chance de colocar em dúvida".

2. Reducionismo: "dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas partes quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las"

3. "Começar pelos objetos mais simples e mais fácies de serem conhecidos, para galgar, pouco, a pouco, como que por graus, até o conhecimento dos mais complexos e, inclusive, pressupondo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros"

4. "Fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada ter omitido".

O exercício da dúvida conduziu Descartes a "fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões dos meus sonhos". Mas a regra da evidência conduziu estabeleceu o limite da dúvida, pois:

Concluí que, enquanto queria pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E notando que essa verdade "penso, logo existo" era tão firme e segura que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que procurava" (p. 56)

De tão acostumados que estamos com a obviedade do famoso cogito ergo sum (penso logo existo), somos capazes de considerá-la trivial, perdendo o seu sentido revolucionário. Esse é um problema que temos com todos os clássicos, que são ao mesmo tempo muito presentes e muito distantes: eles são uma referência constante (quantas vezes não falamos de um raciocínio cartesiano?), mas não falamos deles, e sim de uma imagem consolidada no senso comum (que sentido faz falar em raciocínio cartesiano, para dizer apenas rigoroso ou claro?).

Então, abrindo um parêntesis literário, gostaria de fazer um pouco com as idéias filosóficas o que João Cabral fez com a palavra seda, que ele tenta recuperar para a poesia no fim do poema que termina assim:

A palavra seda

[...]

E é certo que a superfície
De tua pessoa externa,
De tua pele e de tudo
Isso que em ti se tateia,
Nada tem da superfície
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é "como seda".

Mas em ti, em algum ponto,
Talvez fora de ti mesma,
Talvez mesmo no ambiente
Que retesas quando chegas
Há algo de muscular,
De animal, carnal, pantera,
De felino, da substância
Felina, ou sua maneira,
De animal, de animalmente,
De cru, de cruel, de crueza,
Que sob a palavra gasta
Persiste na coisa seda.

E sob o gasto "penso logo existo", sob o gasto adjetivo "cartesiano" ainda resta muita coisa pulsante, um movimento vital que perdemos se não olhamos com cuidado.

Perceba o trânsito que ocorre nessa época: cada homem é o único juiz de todo o conhecimento, de toda a verdade, de toda a justiça. Ele não deve crer em nada que não lhe pareça evidente, em nada que não lhe seja dito pela sua própria razão.

E isso num tempo em que Galileu acabara de ser condenado pela inquisição, pelo pecado de ter priorizado sua visão dos fatos à descrição da Bíblia, que é justamente a mesma postura racionalista defendida por Descartes. Há uma passagem bíblica que diz que um profeta ordenou ao sol que parasse, e o sol parou. Galileu ousou propor uma interpretação alegórica a esse trecho, para compatibilizá-lo com a teoria heliocêntrica e as observações da física. Porém, interpretar a Bíblia à luz da física, e não a física à luz da Bíblia, era uma inversão de autoridade inaceitável.

Em 1933, Galileu se submeteu ao tribunal da Santa Sé e Descartes, temeroso, decidiu queimar todos os seus papéis, ou, pelo menos, permitir que ninguém os visse. Porém, alguns anos depois, terminou publicando parte de seus escritos.

A filosofia medieval ressaltou a limitação da razão humana, a necessidade de admitir os mistérios divinos e a autoridade da bíblia. A fé era uma virtude maior que o conhecimento, pois as grandes verdades do mundo não eram acessíveis pela razão de um ser pequeno e fugaz como os homens.

Contrapondo-se a toda essa madura tradição, Descartes ajudou a estabelecer um individualismo renovado, que colocava a razão individual como o tribunal máximo do conhecimento, em que a evidência era o único meio de prova aceitável. E, como notou Paul Valéry, "jamais, até então, nenhum filósofo se tinha revelado tão deliberadamente sobre o palco do seu pensamento, expondo sua vida, ousado o EU em páginas inteiras".

Aqueles eram tempos heróicos em que a defesa de idéias antitradicionais podia custar a vida, tal como ocorreu a Giordano Bruno, que foi morto em 1600 pelo Santo Ofício. Tempos de contra-reforma e inquisição, tentativas de garantir a sobrevivência de uma tradição corroída pelas tensões barrocas e atacada em várias frentes. Foi nesse momento de convulsão que nasceu esse novo indivíduo, tão bem retratado nas obras de Shakespeare, e que tem em Descartes um de seus maiores arquétipos.

Creio que a noção de barroco é uma boa chave para compreender esse novo homem, com a dúvida corrosiva de Hamlet. Eles não eram ainda os livre-pensadores do iluminismo, que forjaram uma filosofia laica, quando não francamente atéia. Estes viveram uma época em que a tradição medieval estava em franca decadência, em que a autoridade religiosa já não dispunha mais da mesma força, em que revolução urbana impunha novas formas de organização social, gerando a necessidade de que os povos europeus convivessem com um grau de pluralidade étnica e religiosa para a qual não estavam preparados.

Esse novo sujeito havia perdido as certezas que mantinham coesa e homogênea a sociedade européia medieval. Essa dúvida angustiante o conduziu, à busca de uma verdade mais sólida, e por isso Descartes é uma figura tão importante: ele mostrou explicitamente que a verdade capaz de satisfazer a esse novo sujeito precisava ser falada em nome do EU.

Descartes era um homem que buscava uma verdade sólida, baseada na articulação de evidências. Essa é a perspectiva que originou a ciência moderna, que é o tipo de discurso mais influente nas sociedades ocidentais contemporâneas. Como foi possível esse trânsito?

Havia uma tradição medieval que estava em crise, mas ainda era dominante. Como pode um indivíduo sozinho rebelar-se contra uma tradição? Como pode a idéia de um sujeito ser mais relevante que a opinião consolidada dos sábios? Nesse contexto, Descartes precisava de um ponto arquimediano, um ponto sólido para colocar a sua alavanca e mover o mundo inteiro. E o ponto encontrado foi a razão individual. Cada homem somente pode ter como verdade aquilo que se impõem como evidente à sua razão.

Todo esse itinerário vem da consciência de que o fato de certa idéia ser dominante no senso comum não é um argumento a seu favor. Pelo contrário, ele próprio disse que "a pluralidade das vozes não é prova que valha algo para as verdades difíceis de descobrir, uma vez que é mais verossímil que um só homem as tenha encontrado do que todo um povo" (p. 43). Assim, para contrapor-se aos preconceitos do senso comum, ele precisava falar em nome de uma verdade objetiva.

Porém, uma vez que a verdade foi passada ao julgamento individual, como pretender que houvesse uma verdade única, se todos sabemos que as pessoas efetivamente tem as opiniões mais díspares sobre tudo. Uma individualização da razão poderia levar a uma tal fragmentação dos discursos que fosse impossível uma verdade.

Por isso mesmo é que o pensamento moderno utiliza a saída sugerida por Descartes: se todos temos a mesma razão, então uma conclusão que vale racionalmente para um, deve valer racionalmente para todos. Eis o milagre da argumentação moderna: toda verdade precisava ser fundamentada, ou seja, precisava ser demonstrada em termos puramente racionais, pois uma prova racional (como uma prova matemática) deve ser válida para todos os indivíduos ao mesmo tempo.

Assim, no discurso cartesiano, o sujeito moderno se tornou consciente de suas próprias características: somos todos igualmente racionais e, portanto, somente estamos dispostos a admitir demonstrações que sejam universais, na exata medida em que são racionais.

Já não bastava mais a verdade objetiva das tradições. Era necessária a verdade universal das ciências e da nova filosofia. Com isso Descartes, que não refletiu explicitamente sobre a validade das leis e dos costumes, mas sobre a veracidade do conhecimento, ofereceu uma estratégia de justificação que até hoje é a principal saída frente ao trilema de Munchhausen.

Para ser objetiva, a validade ou a verdade precisam ser universalizáveis, pois devem ser igualmente válidas para todo o universo dos homens racionais. Por isso, o discurso moderno na filosofia esteve constantemente envolvido na questão da fundamentação.

Fundamentar não é apenas oferecer bons motivos, não é seduzir retoricamente, não é convencer por argumentos emocionais. Fundamentar é realizar uma demonstração racional e, portanto, universalizável, da validade de uma norma ou da verdade de um enunciado. E é por isso que, nesses 400 anos, a maior parte das discussões filosóficas do direito e da ética foram uma grande tentativa de estabelecer quais são os elementos racionais em que podemos ancorar as pretensões de de validade objetiva dos nossos sistemas jurídicos e morais.

Em que ponto os revolucionários de 1789, os insurgentes irlandeses de 1916, ou os guerrilheiros brasileiros da década de 1970 podiam erguer pretensões de que suas lutas eram mais legítimas que a manutenção do sistema político e jurídico dominante?

A resposta moderna é: em um conjunto de direitos universais, válidos independentemente das contingências políticas e das estruturas sociais dominantes, pois decorrentes da própria natureza do homem, que é um ser racional e livre e que, portanto, precisa organizar racionalmente a sua liberdade. Mas quem desenvolveu essas noções não foi o próprio Descartes, mas um contemporâneo seu das ilhas britânicas, chamado Thomas Hobbes, que ofereceu a primeira formulação explícita e organizada do contratualismo.

3 - O contratualismo como fundamentação moderna

Nas concepções tradicionais da antiguidade e do período medieval, a organização social era percebida como natural e, portanto, a submissão de cada pessoa às regras sociais é uma decorrência imediata de sua posição no cosmos. Por isso, não havia sentido algum em questionar acerca dos motivos que justificariam a autoridade da sociedade sobre o indivíduo. Essa pergunta seria recebida com o mesmo estranhamento com que um católico encararia uma pergunta acerca dos fundamentos da autoridade do seu deus sobre os homens: se Jeová criou o mundo, então como podemos questionar sua autoridade sobre o mundo criado?

No contexto antigo, o máximo a que se podia chegar era perguntar sobre qual era a organização correta da sociedade e formular, como fizeram Platão e tantos outros, utopias acerca da justa organização social. O que se podia colocar em xeque era uma determinada organização da sociedade, e não a própria relação entre sujeito e sociedade, pois era evidente que o homem é um animal social e que, portanto, ele era naturalmente sujeito às regras vigentes em sua sociedade.

Quando nos sentimos como parte integrante do organismo social, não questionamos a autoridade dela sociedade sobre nós. Porém, a individualização do sujeito moderno fez aflorar uma cisão entre o social e o pessoal. Na medida em que o homem foi se percebendo cada vez mais como um indivíduo, ele passou a questionar a autoridade das regras tradicionais, cuja validade não mais era sentida como natural.

Chegou um tempo em que não era mais possível dizer simplesmente: obedeça aos costumes antigos porque eles são costumes e são antigos. Mas era evidente que não se podia simplesmente abandonar as velhas tradições, pois era preciso organizar a vida social, mesmo que segundo novos padrões, mais adequados ao tipo de subjetividade que estava em formação.

Mas é preciso reconhecer que o rompimento da submissão natural à sociedade gerou uma ferida que a modernidade não soube cicatrizar. De um lado, havia uma afirmação de individualidade que poderia ser desestruturante, na medida em que desmontava os mecanismos tradicionais que impunham, na forma dos costumes jurídicos e morais, o interesse comum sobre o interesse individual. O isolamento do indivíduo enfraquecia sua posição e o gerou uma espécie de desamparo cujo limite se mostrou na crise do estado liberal, no início do século XX.

O estado social surgiu justamente como uma forma de equacionar esse problema, buscando limitar a exploração dos hipossuficientes e construindo redes estatais de amparo. Porém, a tentativa de reinstituir primado do coletivo sobre o individual pode conduzir a regimes em que não haja espaço suficiente para o desenvolvimento de subjetividades autônomas, como ocorreu nas variadas formas de totalitarismo, tanto nos países capitalistas quanto nos socialistas. Frente a essas tensões, aflorou em meados do século XX um novo projeto de Estado Democrático de Direito, que representa uma tentativa de reequacionar essas tensões entre o individual e o coletivo, que foram desencadeadas há quase quinhentos anos, justamente na formação desse indivíduo que desnaturalizou a sua relação com a comunidade.

Essa mudança exigiu a criação de novos discursos de justificação do poder político e de uma nova mitologia que oferecesse aos homens uma imagem de si próprios, das sociedades em que viviam e das que pretendiam construir. O novo discurso de legitimação, próprio da modernidade, foi o contratualismo, que ganhou espaço na medida em que os cidadãos europeus passaram a se enxergar como indivíduos autônomos, e a ver a sociedade como uma congregação de homens livres, que se uniam em função de uma escolha.

Esse é o núcleo da idéia de contrato social, que gradualmente tornou-se a teoria hegemônica de justificação do poder político, alterando a base mitológica do poder: o poder político ainda operava por delegação, mas essa passou a ser popular (delegação do povo) e não teológica (delegação divina).

Esse é um trânsito importante no imaginário ocidental, pois significa a consolidação de uma nova autopercepção das pessoas: o indivíduo é senhor de si mesmo e, portanto, a submissão do sujeito à sociedade somente pode ser justificada pela sua própria aceitação dos poderes sociais, mediante um contrato de delegação de poderes. Ora, não havia nenhum contrato social que ligasse os homens com os monarcas do século XVII, assim como nenhum cristão pensaria na existência de um contrato que atribuísse a Jeová autoridade sobre os fiéis. Essas eram relações sentidas como naturais e necessárias, de tal forma que não passavam pela vontade das pessoas.

Porém, o homem que pertence ao mundo moderno não aceita nenhuma autoridade que não seja constituída por delegação dos indivíduos, assim como não aceita nenhuma verdade que não seja comprovada cientificamente, de tal forma que o argumento de autoridade foi rejeitado tanto na ciência quanto na política.

De todo esse processo, nasce a nossa subjetividade moderna, que se afirma como individual, livre e racional. Individual porque, antes de ser membro de uma comunidade, somos pessoas dotadas de liberdade e razão. Uma razão que é individual e que, portanto, não aceita nenhuma verdade que não seja comprovada objetivamente. Uma liberdade absoluta, que somente pode ser limitada pela própria vontade ou pela própria razão.

Esse é um ponto fundamental: a liberdade do sujeito somente pode ser limitada pela sua própria vontade subjetiva ou por imperativos objetivos da razão. Pela sua própria vontade, o sujeito pode tomar decisões individuais, mas essas não podem vincular outras pessoas. Mas restava o problema de justificar a possibilidade de que, no exercício da política, a vontade coletiva possa estabelecer limites para a liberdade social. Como resolver essa questão?

Restava apenas uma via para essa validade objetiva do sistema jurídico: fundá-lo nas normas que todo ser humano deve admitir, independentemente dos seus desejos e interesses individuais, ou seja, nas normas racionais. Então, foram gradualmente abandonadas as teorias tradicionais, que apelavam para a teologia, buscando estender fundar a autoridade dos reis na autoridade divina. Porém, na medida em que os valores de igualdade e liberdade foram alçados à categoria de valores intrínsecos à natureza humana e passaram a ser vistos como naturais em si, e não em decorrência de uma determinação divina, a racionalidade se desligou da teologia. Com isso, o moderno problema do da legitimidade pode ser descrito da seguinte maneira:

Quando homens vivem em uma comunidade jurídica, sua liberdade é restringida e a organização da sociedade implica desigualdade. Como, então, esse estado de coisas pode ser reconciliado com a idéia de uma liberdade e igualdade originais? Como podem os indivíduos livres e iguais terem introduzido limitações e subordinação entre eles?[3]

A mais duradoura resposta a essa pergunta foi oferecida pelo contratualismo, cuja primeira expressão clássica foi a concepção do britânico Thomas Hobbes, cujas idéias marcam o início da modernidade na filosofia política, mediante a substituição das categorias teológicas de legitimidade por uma teoria racional plenamente laica e composta por um argumento extremamente engenhoso.

Hobbes partiu de dois pressupostos básicos: o homem é um ser essencialmente racional e a natureza humana é basicamente egoísta. Considerava ele que cada homem atua de forma racional, buscando garantir a sua sobrevivência e, na medida do possível, o seu prazer. Por causa disso, afirmava que, antes da consolidação de um poder político organizado, os homens viviam em um estado de guerra e que, "desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é uma conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há justiça". [4]

Nessa guerra de todos contra todos, a única saída que o homem tinha para defender seus interesses pessoais era fazer um contrato com as outras pessoas, um acordo que garantisse condições mínimas de segurança. E, para manter esse acordo, era necessário atribuir o poder a uma pessoa ou assembléia (ou seja, criar um Estado) que pudesse tomar decisões e impô-las aos membros de uma comunidade. Com esse raciocínio, Hobbes buscava fundamentar o poder político não na autoridade religiosa, mas no fato de que atribuir o governo da sociedade a um Estado absolutista era a única forma racional de organização.

Apesar de oferecer uma nova fundação ao poder hegemônico, as idéias de Hobbes foram veementemente rejeitadas pelos monarcas ingleses de sua época (meados do século XVII), pois ela desafiava a teoria do direito divino dos reis, que ainda era a idéia dominante. As outras versões clássicas do contratualismo, formuladas no século seguinte por Locke e Rousseau, ofereceram teorias propriamente iluministas, na medida em que não se tratava de uma refundação do poder tradicional, mas de uma justificativa da criação de um novo modelo social.

Porém, a diferença entre esses autores estava no tipo de governo que propunham[5] e não o modo de justificar a legitimidade de tais formas de organização, pois a estrutura argumentativa foi a mesma usada por Hobbes. Todas as vertentes do contratualismo defendem que a constituição do Estado é uma conseqüência necessária da racionalidade humana e, com isso, todas as pessoas devem submeter-se à autoridade política estatal --- inclusive às normas jurídicas impostas pelo Estado.

A idéia por trás deste projeto era a seguinte: como todos os homens são racionais, toda norma que for comprovadamente racional deverá ser aceita por todos os homens. Com isso, a modernidade transformou a antiga obrigação frente ao rei em uma obrigação frente a si mesmo, pois o Estado passa a ser visto como constituído pela própria autoridade dos súditos. Identificamos, assim, uma mudança no discurso legitimador: da justificação do direito positivo por meio de sua adequação aos valores tradicionais (incluindo os teológicos), passou-se a fundamentar o direito e o Estado com base no racionalismo individualista que caracterizava a modernidade.

Como o homem é considerado livre por natureza, teoricamente ele poderia escolher qualquer dos caminhos que se abrissem a sua frente. Contudo, sendo o homem racional, a ele é vedado escolher opções manifestamente irracionais. Ora, para os contratualistas, seria irracional que os homens decidissem pela manutenção do estado de natureza[6] e, portanto, a organização da sociedade civil é considerada um imperativo da razão humana.

Embora ninguém afirme que esse contrato original tenha realmente existido, o apelo a esse modelo de justificação é uma forma de dar à sociedade um fundamento racional: caso os homens vivessem em um estado de natureza[7], eles perceberiam racionalmente que o melhor para eles seria reunir-se em uma sociedade e fazer um contrato, estabelecendo uma organização social mais adequada aos ditames da razão. Se assim fariam os homens no estado de natureza, então se pode concluir que a criação e a manutenção da sociedade civil é a única opção racional de organização.

II - De volta às origens: ética e direito na filosofia grega

Estabelecida a pergunta moderna sobre a legitimidade, podemos entender melhor as semelhanças e também as diferenças entre a perspectiva antiga (pré-moderna) e a moderna. Creio que essa inversão na cronologia é especialmente útil porque uma das ilusões típicas de uma aproximação linear da história da filosofia é compreendê-la como uma linha de progresso, que parte dos gregos e procede por acumulação até os dias de hoje. Essa abordagem termina por nos fazer buscar na antiguidade as raízes do pensamento contemporâneo, exagerando na visão de continuidade.

Um dos filósofos que melhor evidenciou esse erro foi o francês Michel Foucault (de quem falaremos mais tarde), cuja leitura nos ensina dar especial atenção às descontinuidades. Enxergar a antiguidade como uma preparação do presente é um equívoco sério, que nos faz ler os antigos como precursores dos modernos.

Existem similaridades, existem pontos de convergência, mas é preciso reconhecer uma certa autonomia entre esses discursos, para que a modernidade seja vista como uma das histórias possíveis da humanidade, e não como fruto do desenvolvimento inevitável da Razão. Foi por isso que optei por inverter a cronologia, evitando apresentar a modernidade como uma espécie de passo a frente na evolução do homem.

Essa é a imagem que a modernidade tem de si mesma (inclusive, é uma de suas principais marcas), mas não precisamos cair nessa armadilha. Porém, isso não quer dizer que as influências do pensamento grego possam ser minimizadas. Os filósofos antigos moldaram conceitos e estratégias argumentativas que usamos até hoje, e compreendê-las nos ajuda a entender os nossos modos contemporâneos de pensar.

Em especial, continua sendo útil a oposição entre aristotélicos e platônicos, que marca uma diferença de estilos que foi relida e revisitada em várias etapas do pensamento ocidental. Mas, para entender a utilidade e os limites dessas categorias, precisamos voltar primeiro à própria formação do espírito filosófico.

1 - A formação da filosofia, a partir da mitologia

1. Entre sábios e sofistas

Cada cultura apresenta uma rede de mitos, de valores, de normas, de expectativas e de vários outros elementos simbólicos que definem as nossas visões de mundo. Quando uma determinada visão de mundo adquire um caráter hegemônico dentro de uma cultura, nós costumamos chamá-la de tradição. Assim, cada tradição é um conjunto de concepções que não precisa de justificativa porque elas são sentidas como naturais dentro de uma certa comunidade. Quem vive imerso numa determinada tradição não a compreende como uma visão de mundo, mas como a visão correta do Mundo.

Um cristão, por exemplo, não percebe sua religião como uma das expressões da experiência religiosa humana, mas como um conjunto de descrições verdadeiras e de normas válidas. Ele não percebe os mandamentos de sua fé como uma construção histórica, mas como uma revelação divina. Quando um missionário cristão prega, ele não vê no seu discurso a expressão de um dos inumeráveis imaginários coletivamente elaborados na história, pois ele não encara a sua fé como uma crença específica, mas como a Verdade. Jeová não é o seu deus, mas simplesmente Deus.

Assim, o cristão não pode simplesmente sair de dentro de sua própria cultura para enxergá-la de fora. Ele não pode vê-la sem nenhum comprometimento com os seus mitos e seus dogmas. O olhar externo é o olhar do estrangeiro, que nos enxerga a partir de um outro território simbólico, composto por mitos e valores diversos.

Para o estrangeiro, nosso país é sempre uma experiência particular da diferença, um lugar entre muitos possíveis. Para nós, nosso território imaginário é percebido apenas como a Realidade.

Quando um muçulmano entra em contato com um cristão, ele o faz a partir da perspectiva de seu próprio universo simbólico. Tal experiência conduz a um estranhamento que pode libertar a ambos das fronteiras rígidas de sua própria cultura, pois a vivência da diversidade tem potencial para nos fazer entender que muito daquilo que cremos universal não passa de uma expressão particular da nossa cultura.

Quando ocorre esse estranhamento, ganha relevância a tentativa de distinguir entre o que é universal e o que é particular na experiência humana. Porém, esse contato nem sempre acontece em um ambiente de abertura, dado que a reação mais típica frente à diferença é a simples negação: os costumes estranhos são bárbaros, a religião estranha é uma seita herética. Essa é a reação etnocêntrica: o etnocêntrico, ou seja, aquele que percebe a sua cultura com a Verdade, colocando-a no centro do mundo, não é capaz de experenciar a diferença senão como erro, como atraso, como cegueira.

Todavia, quando o outro não é percebido como bárbaro, a experiência da diversidade pode estimular uma série de reflexões muito esclarecedoras sobre a nossa própria cultura. No ocidente, essa abertura para a diversidade remonta à experiência dos sofistas gregos, cuja condição lhes permitiu ver algumas coisas que permaneciam ocultas a quem nunca havia refletido sobre o caráter contingente do seu próprio ethos, dos seus próprios costumes.

Os sofistas eram professores de retórica que andavam de pólis em pólis ensinando essa arte a quem podia pagar pelos seus serviços. Nessa medida, eles eram quase sempre estrangeiros, pois eles raramente estavam na sua cidade natal. Assim, o sofista foi sempre repleto de estranhamento com a cultura alheia, pois ele sabia ver muito bem toda a diferença entre as várias culturas que ele encontrava. Ao mesmo tempo, eles eram gregos, de tal forma que sua mirada não radicalmente externa, pois o estranhamento frente à pluralidade dos costumes era compensado pela familiaridade com tudo aquilo que se repetia de forma constante.

Essa situação intermediária permitiu que eles divisassem nas várias cidades uma série de elementos constantes, que eles identificaram com a própria natureza, e uma série de elementos variáveis, que eles identificaram como construções culturais. Com isso, eles puderam formular a clássica distinção entre physis e nomos, entre natureza e cultura, que encontrou sua definição mais clássica na obra de Aristóteles (que não era um sofista, mas um filósofo, personagem diverso que será descrito mais adiante):

A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente. [...] Existem uma justiça que é natural e uma justiça que não é natural. É possível ver claramente quais as coisas que podem ser de outra maneira, que são como são por natureza, e as que não são naturais, e sim convencionais.[8]

Essa distinção não poderia ter sido formulada pelos sábios, justamente porque o Sábio está preso à perspectiva interna de sua própria cultura. Sua mirada é a de quem comunga dos princípios fundamentais dessa tradição, e o sábio funciona justamente como um repositório dos valores tradicionais. Por isso, ele capaz de oferecer aos outros cidadãos um espelho no qual eles podem enxergar, em sua melhor expressão, os seus próprios valores, mitos e saberes.

A virtude do sábio é a prudência, e a sabedoria é sempre definida pelo seu reconhecimento social. Assim, o sábio funciona como uma espécie de porta-voz da sua cultura. Fala por sua boca a autoridade da tradição. No campo normativo, o resultado típico do seu trabalho é a elaboração de uma dogmática, por meio da qual se regula a aplicação das regras reconhecidas aos casos concretos, contribuindo assim para a efetividade de uma tradição normativa.

O limite dessa dogmática é justamente o fato de que o seu comprometimento com a tradição faz com que ela não possa observar criticamente as concepções que integram o seu universo simbólico, o que confere aos seus discursos um caráter conservador (e conservador não quer dizer retrógrado nem ruim, mas apenas comprometido com a conservação de uma determinada tradição).

Em oposição a essa mirada interna e conservadora, está a perspectiva do estrangeiro, que observa uma cultura estranha sem se comprometer com seus dogmas e seus valores. O sofista nômade, na sua condição de estrangeiro, foi capaz de formular uma série de conceitos comparativos, que tomavam as várias culturas como expressões particulares de alguns valores universais, que permaneciam na base da experiência humana. Esse distanciamento foi especialmente radical porque o saber dos sofistas era meramente instrumental: eles não ensinavam a Verdade, nem a Justiça, nem o Bem (que compunham o conhecimento dos sábios), mas apenas procedimentos discursivos que poderiam ser utilizados pelos defensores das mais diversas posições.

Os sofistas ensinavam habilidades e não virtudes. E eles perceberam que os sábios, por viverem dentro de sua própria cultura, tendem a nunca questionar os seus mitos, repedindo-os como verdades imutáveis. E o mito é justamente o modo como uma cultura se apresenta aos seus integrantes. Ele é sempre uma visão interna, que estrutura uma tradição na medida em que apresenta como naturais os seus elementos.

O tabu do incesto, a condição inferior da mulher, o dever dos filhos de cuidarem dos pais na velhice, a obrigação de lutar nas guerras e de obedecer às ordens dos reis: para muitas culturas, isso tudo era vivido como parte inevitável da existência humana, e não como decorrência de costumes elaborados em uma vivência social.

Em suma, a perspectiva interna dos sábios tende a naturalizar uma série dos elementos culturais, apresentando-os como decorrências da própria natureza das coisas, e não como uma criação humana.

Essa naturalização é extremamente importante para garantir a estabilidade dos costumes, pois aquilo que é natural é imutável, justamente por não depender das nossas escolhas. Assim, a naturalização serve como uma espécie de limitação ao poder humano de criação normativa, obstando a mudança dos elementos fundamentais de uma cultura.

As culturas tradicionais tipicamente consideram que existe uma ordem natural no mundo, que pertence à órbita do sagrado, à qual o homem se deve adequar. Isso não é negado pelos sofistas (que, afinal, não deixaram de ser gregos), mas o seu nomadismo possibilitou que notassem que muito do que cada cultura específica considera natural não passa de uma criação social.

E é justamente porque consideravam importante identificar a ordem natural que eles aprofundaram a reflexão que visava a diferenciar, de um lado, as normas sociais elaboradas por cada cultura, e de outro as regras que são realmente inatas ao homem e que, portanto, têm um caráter universal.

2. Entre sofistas e filósofos

Essa percepção dos sofistas tem um grande potencial crítico, pois abre espaço para que muitas regras que pertenciam ao campo do sagrado fossem transferidas ao campo do político, fenômeno que efetivamente ocorreu no mundo grego. O natural era obrigatório na medida de sua sacralidade, pois a visão religiosa e mitológica percebe na organização da natureza o resultado da vontade dos deuses. Porém, a radicalização própria distinção entre regras naturais e regras políticas abria espaço para uma ampliação do político sobre o sagrado, o que equivale a dizer que houve uma dessacralização das relações sociais.

Não obstante, a oposição entre o sagrado e o laico ocorreu sempre em um ambiente de grande tensão, de que é testemunha a conhecida na tragédia Antígona, em que Sófocles conta a história de um rei que ousou estabelecer normas contrárias aos costumes religiosos e que, com isso, causou uma série de desastres. Embora tivesse um caráter trágico, o conflito entre a legislação e a tradição havia aflorado e merecia atenção dos principais pensadores.

Esse processo de desnaturalização dos costumes é um procedimento arriscado, pois ele é percebido pelo sábio como um ataque à moral, aos valores corretos, à estabilidade social. Nisso, a sociedade grega e a nossa sociedade atual são semelhantes, pois muitos dos nossos costumes são ligados à órbita do sagrado, pois a religião continua sendo um elemento importantíssimo na vida das pessoas. Isso ainda pode ser notado claramente quando analisamos temas referentes a aborto, homossexualidade e prostituição.

E os sofistas, que não estão comprometidos com nenhuma das culturas em que atuam, com nenhuma das religiões professadas, sempre têm uma fama um pouco duvidosa, pois a sua habilidade com as palavras não significa que eles a utilizam para defender os valores corretos. Como todo instrumento, a retórica se presta a qualquer tipo de uso, e isso fez com que os sofistas viessem a ser percebidos como uma espécie de mercenários da retórica, que ofereciam seus serviços a qualquer um que possa pagar o seu preço. Algo parecido com a fama atual dos marqueteiros políticos e da idéia presente nas infindáveis piadas sobre advogados.

Esse descomprometimento com qualquer valor social específico fez com que os sofistas tivessem uma função crítica de primeira grandeza, pois inventaram muitos elementos voltados à desconstrução dos saberes tradicionais. Porém, esse próprio descomprometimento não lhes possibilitava uma função revolucionária, justamente porque eles não se atribuíam a função de alterar a sociedade em nome de uma utopia qualquer.

Esse papel de revolucionário caberia a um terceiro personagem na história dos saberes gregos. O primeiro personagem é o Sábio, que fala em nome da verdade, mas a sua verdade é a tradição consolidada em uma cultura. O segundo é o Sofista, com sua visão externa, que aumenta a nossa capacidade de compreender o mundo, mas que não fala em nome da verdade, pois seu saber é instrumental. Contrapondo-se aos dois, nasceu o Filósofo, que se opunha a ambos de uma maneira muito peculiar: falava em nome da Verdade, mas não se pretendia sábio porque estava em franca oposição às concepções tradicionais; era um mestre da retórica, mas limitava o seu uso ao objetivo de alcançar a Verdade.

Assim, utilizando todo o arsenal retórico afiado pelos sofistas, os filósofos ergueram-se como os portadores de uma nova Verdade, uma verdade que não se explicava mais por meio de narrativas mitológicas nem se exercia por meio da prudência. Essa nova verdade devia ser conquistada pela observação rigorosa do mundo e, principalmente, pelo uso cuidadoso da própria razão. Dessa maneira, o filósofo articulou uma oposição da verdade racional contra a verdade tradicional, o que lhes conferiu um papel revolucionário.

Enquanto o Sábio era o depositário de uma tradição, o Filósofo era o revolucionário que atacava os saberes constituídos com a arma luminosa de uma nova razão, o logos. Não foi à toa que os atenienses mataram Sócrates, nem que Platão escapou por pouco da escravidão, e isso ocorreu quando a defesa de suas idéias gerou severas indisposições com autoridades instituídas.

2 - Escapando da caverna

A razão defendida pelos filósofos equilibrava de maneira inovadora a perspectiva externa dos sofistas (usada para demolir o saber tradicional) e a perspectiva interna dos sábios (usada para falar em nome da nova verdade). Mas, ao contrário dos sofistas, eles não eram tipicamente estrangeiros nômades, mas representantes da própria sociedade, de tal modo que eles precisavam exercitar a sua capacidade de crítica ao ponto de poder olhar os valores de sua própria tradição a partir de uma perspectiva externa

Olhar nossa própria imagem no espelho com a ingenuidade de uma criança e o estranhamento de um estrangeiro não é nada fácil. E os primeiros filósofos que tentaram compreender os mecanismos dessa aproximação ainda construíam argumentos de modo alegórica (ao modo da mitologia) e não apenas teórico.

A alegoria grega mais conhecida é o mito da caverna, contada no Livro VII da República, que é uma tentativa Platônica de lidar com a questão da verdade e a função do aprendizado. Segundo Platão, a situação dos homens é como a de escravos acorrentados dentro de uma caverna.

Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de perna e pescoço acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar à cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro,semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.

Assim, os homens não vêem as coisas como elas são, mas apenas as sombras projetadas na parede. Para eles, essa é toda a realidade, é sequer desconfiam que haja algo para além disso.

Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz.

Nesse caso, ele vai demorar a se acostumar à luz, mas terminará por ver as coisas como elas são, e não apenas como sombras projetadas. Porém, ele aprenderá a ver, pois a alma tem o órgão destinado a apreender a verdade. Por isso, Platão afirma que a educação (uma idéia fundamental para os gregos)

Não consiste em dar visão ao órgão da alma, visto que já a tem; mas como ele está mal orientado e não olha para onde deveria, ela esforça-se por encaminhá-lo na boa direção.

Assim, Platão não admite que o sábio seja dotado de uma habilidade inexistente nos outros homens. Todas as pessoas são dotadas de logos, de capacidade de compreensão e aprendizado, mas acontece que nem todas são devidamente educadas. Portanto, ninguém tem um acesso privilegiado à verdade, e todos podemos chegar a ver a Verdade, desde que sejamos devidamente educados.

Essa idéia de que vivemos imersos em sombras e que a verdade consiste na capacidade de enxergar a luz teve muitas releituras no pensamento ocidental. Nos últimos anos, creio que a mais popular dela foi a caverna virtual construída no filme Matrix. Nela, todos os homens viviam como escravos e viam apenas o que era a eles apresentado. Porém, alguns conseguem escapar, e a cena contida em http://www.youtube.com/watch?v=te6qG4yn-Ps mostra o momento em que Morpheus (que é o nome do senhor dos sonhos) oferece a Neo a possibilidade de sair da caverna.

Essa tentativa de escapar do reino das sombras e descobrir o mundo em si, o mundo verdadeiro, é o grande motor da filosofia. A mitologia foi vista como uma grande reprodutora de sombras, com suas imagens falsificadoras cristalizadas no senso comum. E o uso disciplinado do logos era a saída da caverna, pois era a partir de nossa razão que nos capacitávamos a ver o verdadeiro sol.

3 - De Platão a Aristóteles

1. Superando Heráclito e Parmênides

Platão é provavelmente o pensador mais influente da filosofia. O modo como ele equacionou as questões da verdade até hoje representa um dos modelos fundamentais do pensamento filosófico.

Porém, para compreender a importância do pensamento platônico, é preciso dar um passo atrás, e entender o modo como a questão da verdade foi colocada por dois dos mais importantes filósofos pre-socráticos: Heráclito e Parmênides.

Eles ainda eram filósofos naturalistas, o que significa que estavam envolvidos no projeto de dar uma explicação laica para o mundo natural. Eles são anteriores ao movimento dos sofistas, que deslocaram o eixo das questões para a oposição entre a natureza e a sociedade e, com isso, possibilitaram o afloramento das reflexões socráticas, que se concentram sobre o homem em sociedade (e não sobre o mundo natural).

Uma das questões que eram fundamentais e até hoje continuam sendo, é a questão do movimento. Observando o mundo, nossos sentidos nos mostram que tudo está em constante transformação, e essa constatação fez com que Heráclito de Éfeso sugerisse que tudo é dinâmico. "Tudo se move, tudo escore (panta rhei). "Não se pode descer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado, pois, por causa da impetuosidade e da velocidade da mudança, ela se dispersa e se reúne, vem e vai.... Nós descemos e não descemos pelo mesmo rio, nós próprios somos e não somos".

Em contraposição, na escola de Eléia, Parmênides afirmava que o ser é imóvel. Ele não conseguia admitir a idéia de que uma coisa simplesmente deixasse existir, passando do ser para o não-ser. Como toda transformação envolve uma passagem para o não-ser (na medida em que algo se que acaba), Parmênides terminou por sustentar que o movimento é ilusório.

Por mais que os nossos sentidos nos indiquem que as coisas se movem, a nossa razão mostra que isso não pode ocorrer. Essa teoria soa para nós tão estranha quanto soou àquela época, pois ela contraria frontalmente o senso comum.

Porém, ela foi defendida com alguns argumentos desconcertantes, especialmente por Zenão de Eléia, o pai da dialética. Ele desenvolveu a técnica de sustentar uma idéia por meio da refutação das refutações, algo que é fundamental no raciocínio jurídico. Se eu não posso comprovar a minha tese diretamente, posso ao menos desacreditar as teses contrárias, mostrando que elas são absurdas. E foi justamente isso que ele tentou fazer: se as teorias de Parmênides eram estranhas, os argumentos utilizados contra ele eram paradoxais.

Isso ele faz por meio de dois famosos paradoxos, que tentam mostrar o caráter paradoxal das nossas impressões sobre o mundo. Embora o paradoxo da corrida entre Aquiles e a tartaruga seja o mais conhecido, o meu preferido é o paradoxo da flecha, que atualmente poderia ser atualizado como o paradoxo do cinema.

Quando vocês assistiram agora ao filme, vocês viram imagens em movimento? A nossa visão diz que sim, que as pessoas se moviam na tela. Porém, a nossa razão sabe que isso é falso. Sabemos que o cinema é a projeção contínua de quadros estáticos, e que o movimento na tela é uma ilusão criada pelos nossos modos de perceber as imagens. Sabemos racionalmente que isso é uma ilusão, apesar de vermos o movimento.

E o que nos leva mais próximo à verdade: a percepção sensitiva ou o conhecimento racional? A tendência normal dos filósofos é de desconfiar dos sentidos tanto quanto dos preconceitos, pois ambos nos ligam ao mundo das sombras. Porém, será que a única conclusão racional é a de que o movimento é impossível porque gera consequências racionalmente inaceitáveis?

É nesse ponto que ingressa a estratégia platônica fundamental, consistente em dizer que nenhum desses dois pólos avalia adequadamente a questão. Heráclito tem razão em ver que o mundo físico está em constante transformação, mas isso que vemos não é a realidade inteira. Para além do mundo físico, existe o metafísico, composto por elementos que não mudam, e que justamente por isso são a própria estrutura da nossa compreensão.

Ambos os mundos são igualmente reais, mas se diferenciam na medida em que acessamos o mundo físico pelos sentidos e o mundo metafísico apenas pela razão.

2. A metafísica platônica ou de como o mundo não se explica por si mesmo

A grande invenção platônica foi a metafísica. Enquanto os filósofos naturalistas buscavam explicar o mundo a partir de elementos com existência física (água, ar, quatro elementos, átomos etc.), Platão percebeu a insuficiência dessas tentativas. O que é a beleza? Os naturalistas buscariam responder essa pergunta a partir de referências a características físicas: cor, forma, simetria etc. Platão propõe uma resposta completamente diversa, que encontra sua expressão mais sistemática na teoria das idéias.

Suas reflexões apontam para o fato de que nós buscamos explicações e não apenas descrições do mundo. Não nos basta descrever o que acontece, pois o nosso logos tenta explicar os fatos segundo as suas causas, o que coloca Platão frente ao problema que descrevemos como o trilema de Münchhausen.

A causalidade, como a validade, exige uma cadeia de relações que seria absurdo apontar para o infinito ou para uma circularidade. Por isso mesmo, Platão reconhece que a única forma racional de encarar o mundo é admitir que existem certos objetos não-causados, certas formas originais que estão na base do nosso pensamento.

Frente ao trilema, Platão acentua a necessidade de desvendar as coisas em si, as verdades necessárias, os conceitos imutáveis, que podem ser colocados justificadamente na base das nossas cadeias de explicação do mundo. Essas coisas em si não são observáveis no mundo físico, mas sem elas não podemos dar sentido às nossas próprias experiências.

Creio que o exemplo mais claro desse pensamento é a justiça. A observação dos fenômenos do mundo não nos capacita a distinguir o justo do injusto. Uma completa descrição de todos os fatos do mundo não nos tornaria mais capazes de fazer uma distinção ética. Por isso mesmo, se faz algum sentido falar que é injusto descumprir promessas, ou que é injusto condenar inocentes, então precisa existir uma idéia de justiça que confira sentido a essas percepções.

Se essa justiça em si não existir, então todos os nossos discursos sobre o justo e o injusto não passam de coisas sem sentido. Portanto, a existência da justiça é uma necessidade racional, embora não seja uma evidência empírica. Assim, Platão sustentou que a nossa racionalidade exigia a admissão de que existe uma justiça em si, da qual todas as coisas justas participam de alguma forma.

Essa idéia da justiça não pode estar no mundo físico, pois ela não é sensível (que pode ser apreendida pelos nossos sentidos), mas apenas inteligível (só pode ser percebida por meio da razão). Por isso, Platão postulou a existência de objetos que são reais, mas que não fazem parte do nosso mundo sensível --- objetos dos quais somente podemos conhecer alguma coisa a partir da nossa razão.

Assim, Platão admite a existência de dois tipos de objetos igualmente reais: os visíveis e os invisíveis, uns captados pelos sentidos, outros percebidos apenas pela razão. Com isso, ele conseguiu fazer uma aproximação entre teorias de Heráclito e Parmênides. Tudo muda, tudo flui, mas apenas no mundo sensível. No mundo das coisas invisíveis, tudo é eterno, nada muda, tudo permanece.

Essas coisas invisíveis são as idéias, seres incorpóreos que somente podem ser captados pela nossa capacidade de raciocínio. O que é um quadrado? O que é a relação de anterioridade? De causa e conseqüência? O que é a beleza ou a verdade? No campo do direito, o que são a validade e a justiça?

Essas são idéias que existem, mas cuja existência não se dá no mundo físico, mas no que Platão chama de lugar além do céu --- um lugar que não existe fisicamente, mas que nossa razão nos diz que deve existir. Nesse mundo além do mundo (metafísico, portanto) estão todas as idéias, também chamadas de formas, os arquétipos ideais de tudo o que existe no mundo.

Essa referência a um mundo das idéias é uma ferramenta muito útil de explicação da realidade. Talvez a mais útil que tenha sido inventada pelos homens. Ela nos permite falar da existência de coisas incorpóreas, cuja permanência dá estabilidade ao nosso pensamento: existe uma verdade, existe uma beleza, existe um bem.

Além disso, essa teoria nos permite explicar o modo como conhecemos. Como sabemos diferenciar um quadrado de um retângulo? Apenas porque há uma idéia de quadrado, diferente de uma idéia de retângulo. Assim como há uma idéia de árvore, que nos permite identificar as árvores como participantes de um mesmo gênero. Nesse sentido, todo jusnaturalismo é platônico, pois apela para a existência de um direito natural imutável, perceptível pelo logos, que define as normas justas por natureza.

Toda essa construção é bastante engenhosa. Foi Platão que primeiramente tentou --- de forma racional --- explicar o mundo físico a partir de um mundo metafísico. Para alguns, essa idéia pode parecer absurda a primeira vista, mas a colocação platônica ainda guarda uma força imensa: ou admitimos a estranha existência das idéias absolutas (de justiça, verdade e validade), ou admitimos que não faz sentido algum tratar da justiça dos homens ou da validade das normas.

Por mais que seja difícil sustentar uma metafísica que não conta (nem pode contar) com evidências empíricas, é somente a partir dela que podemos falar de direitos universais ou de verdade objetiva. Creio que a intuição platônica é correta e que não podemos escapar da metafísica sem perder junto o significado dos fenômenos. Nossa condição humana é tal que a nossa racionalidade nos condena à metafísica.

Mas não devemos perder de vista que, para Platão, a metafísica não é a ilusão, mas a luz. O conhecimento metafísico é que nos liberta das sombras da caverna, pois é ele que nos esclarece as estruturas universais do mundo.

3. Aristotélicos e Platônicos

Platão era um mestre da linguagem literária e da construção de alegorias. Os seus livros tinham uma estrutura narrativa, pois ele escrevia na forma de diálogos, normalmente protagonizados por Sócrates, que foi o seu mestre.

Já os escritos de Aristóteles são grandes compilações das aulas que ele proferiu em sua escola (o Liceu), quando voltou a Atenas, com cerca de 50 anos de idade. Embora essas anotações muitas vezes não formem um discurso linear, elas se tratam da primeira grande tentativa de sistematização do conhecimento.

Mas a grande diferença entre Platão e Aristóteles não estava apenas no estilo da escrita, mas em suas linhas de interesses. Platão era um estudioso da matemática, e sua capacidade de abstração permitiu que ele formulasse os conceitos metafísicos que constituem o seu maior legado. Já Aristóteles era concentrado no mundo empírico, nos dados da experiência. Diversamente de seu mestre Platão, ele foi um grande naturalista, um conhecedor dos fenômenos físicos, com interesses que hoje seriam entendidos como científicos, e não filosóficos. Essa clássica distinção de perspectivas tem seu retrato mais célebre no quadro "A escola de Atenas", de Rafael.

Tal como Platão, Aristóteles também valoriza o estudo da metafísica, vista como o conhecimento das causas primeiras, dos princípios primeiros e imutáveis, do ser enquanto ser. Porém, as chaves de compreensão utilizada por Aristóteles não apontam para a pressuposição de um arquétipo fora do mundo físico, e sim para um estudo das características intrínsecas do próprio ser. Assim, a metafísica aristotélica assume a forma de uma ontologia, ou seja, de um estudo acerca do ser (ontos em grego).

A principal distinção aristotélica nesse âmbito é a diferença conceitual entre substância (ou essência) e acidente. A substância é aquilo que dá identidade a uma coisa. É da essência do homem, por exemplo, ser racional. Um animal que tivesse todas as características do homem, mas fosse irracional, não seria um homem. Em oposição à essência, temos o acidente. Vocês estão fazendo uma pós-graduação em direito, mas isso é um acidente. Vocês poderiam estudar administração ou artes cênicas, e isso não os tornaria essencialmente diversos.

A segunda diferenciação é entre ato e potência. Todo homem --- assim como todo objeto --- tem uma série de potencialidades. Qual a diferença entre um cego e um homem de olhos fechados? O primeiro não tem o sentido da visão, enquanto o segundo apenas não o exerce. Uma muda de feijão é feijão em potência --- ela tem a possibilidade de gerar feijões, mas o exercício dessa possibilidade depende de algumas condições. Apenas quando gerar a semente ela será feijão em ato.

O bronze é uma estátua em potência --- necessitando de outras causas para que se transforme em estátua. O pensador de Rodin é uma estátua em ato. Com isso, Aristóteles promoveu uma reconciliação entre os filósofos naturalistas e o platonismo. Os primeiros acreditavam que o princípio do mundo era a matéria. Platão afirmava que era a forma. Aristóteles une os dois elementos e afirma que é a combinação entre forma e matéria que dá individualidade aos seres.

Mas Aristóteles não remete a forma para um mundo das idéias à parte do mundo físico, pois as coisas do mundo são efetivamente forma e matéria ao mesmo tempo. Assim, enquanto os pensadores de linha platônica tendem a ser racionalistas que privilegiam o estudo abstrato das idéias, os aristotélicos tendem a construir suas abstrações a partir da observação dos fenômenos empíricos.

Esse tipo de distinção entre as sensibilidades permanece sendo uma boa chave de compreensão. Pensemos em um problema jurídico, como a definição do que é o interesse público. Uma aproximação possível seria buscar os diferentes ramos do direito que tratam do interesse público, para construir com base nessas observações particulares um conceito geral. Essa aproximação, que passa da análise de fatos individuais e conclui pela formulação de categorias gerais, é o procedimento indutivo.

Essa é a aproximação tipicamente aristotélica, que um platônico certamente sentiria como limitada. Ocorre que, para buscar o que é interesse público em cada ramo do direito, precisamos partir de um conceito anterior acerca do que seja interesse público. Sem um conceito prévio, não podemos identificar no mundo as suas ocorrências. Assim, um pensador platônico tende a partir de um esclarecimento do que é o interesse público em si, para compreender as decorrências necessárias desse conceito. Com isso, há um primado do pensamento dedutivo, que parte de certas concepções gerais e abstratas, para extrair delas as suas conseqüências particulares.

Assim, existe uma forte possibilidade de que os platônicos acusem os aristotélicos de certas ingenuidades conceituais e de generalizações indevidas, enquanto os aristotélicos tendem a acusar os platônicos de exageros no idealismo e na abstração.

E vocês, com quem se identificam mais? Voltaremos a essa questão mais tarde, pois as sensibilidades platônicas e aristotélicas geram dois rumos diferentes para o pensamento moderno, que avaliaremos na próxima aula. Antes disso, vamos nos concentrar um pouco mais no pensamento ético da Grécia antiga, em que se mostra nitidamente a distinção entre as perspectivas platônicas e aristotélicas.

4 - A ética grega

A filosofia do direito sempre anda de mãos dadas, quando não se confunde completamente, com a filosofia moral. Em ambos os casos, lidamos com as reflexões filosóficas acerca de sistemas normativos (a moralidade e o direito), que somente ganharam autonomia a partir da modernidade. Portanto, é no estudo da ética que devemos buscar as categorias gregas que permanecem até hoje como elementos estruturantes da filosofia do direito.

1. O bom e o justo

Que diferença há entre esses dois conceitos?

Uma ação justa e um homem justo são bons. Porém, um bom vinho, não é um vinho justo. Assim como não são justos nem um bom cavalo ou nem bom médico. A exploração dessa idéia já estava presente na filosofia socrática, que deixava bem claro que um cavalo e um vinho são bons na medida em que eles realizam a finalidade que lhes é própria.

Um bom vinho para sobremesa pode ser um mau vinho para acompanhar carnes. E o vinho que uma pessoa acha ótimo, outra pode achar péssimo. Mesmo um médico ou um flautista somente são bons na medida em que têm a habilidade de realizar certas funções. Por isso mesmo, parece que não se pode pensar o bem senão com relação a um objetivo determinado. Nessa medida, o bem parece ser sempre relativo.

Porém, essa relatividade não se coaduna com o uso moral da palavra bem, na medida em que o Bem moral deve ser absoluto, no sentido de ser bom em si. Na República de Platão, Gláucon pergunta a Sócrates: "não te parece que há uma espécie de bem em si mesmo, que gostaríamos de possuir, não por desejarmos as suas conseqüências, mas por estimarmos por si mesmo?"[9]. Este é o bem moral, que reivindica para si uma espécie de incondicionalidade, que o faz ser bom independentemente de suas conseqüências.

É essa mesma incondicionalidade que usamos ao apreciar a moralidade do estupro de uma adolescente, que não é considerado simplesmente como algo ruim para o seu desenvolvimento, mas com a violação de algo que deveria ser preservado. Quando um soldado americano estupra uma adolescente na África, poderíamos avaliar a situação afirmando que se trata de um ato bom para o combatente que realiza o seu desejo e ruim para a menina violentada. Esta, porém, não seria uma avaliação moral, na medida em que não aplicaria critérios de moralidade, mas de conveniência.

Assim, a palavra Bem, admite um uso condicional (em que a bondade é medida por critérios utilitários de conveniência), e um uso incondicional (em que a bondade é medida segundo parâmetros morais que transcendem a conveniência). É apenas nesse segundo uso que o sentido de bom se aproxima ao sentido de justo. Assim é que um vinho e um cavalo podem ser bons, mas não podem ser moralmente bons. E tanto um médico quanto um flautista podem ser habilidosos em suas respectivas artes, sem que isso signifique que eles sejam moralmente bons.

Porém, para serem moralmente bons, eles precisam ser justos, de tal forma que a justiça e o bem moral parecem ser a mesma coisa. E ambos se opõem à idéia de conveniência, que não se liga à concretização bem em si, mas a uma busca estratégica de realizar determinados interesses. E essa oposição entre conveniência e moralidade é justamente o centro do debate com que Platão inicia a República.

De um lado, estão Sócrates e os irmãos de Platão, que defendem o caráter incondicional da Justiça. Do outro está o sofista Trasímaco, que radicaliza a idéia de que não existe no mundo nenhuma espécie de bem incondicional. Nessa medida, o que os homens chamam de justo não é algo bom em si, mas algo que é adequado aos seus próprios interesses. E, como a definição do justo não é individual, por estar ligada ao que é justo em uma determinada sociedade, o que se chama de justiça não passa da conveniência daquele que tem força para impor aos outros os seus interesses. Portanto, a Justiça "não é outra coisa senão a conveniência do mais forte".

Certamente que cada governo estabelece as leis de acordo com a sua conveniência: a democracia, leis democráticas; a monarquia, monárquicas; e os outros, da mesma maneira. Uma vez promulgadas essas leis, fazem saber que é justo para os governos aquilo que lhe convém, e castigam os transgressores, a título de que violaram a lei e cometeram uma injustiça. Aqui tens, meu excelente amigo, aquilo que eu quero dizer, ao afirmar que há um só modelo de justiça em todos os Estados - o que convém aos poderes constituídos. De onde resulta, para quem pensar corretamente, que a justiça é a mesma em toda parte: a conveniência do mais forte. (339a)

Esse discurso de Trasímaco é uma das mais célebres falas da ética, e até hoje muitos são os que trilham os caminhos que ele indica. Tal postura envolve normalmente um grande ceticismo acerca da possibilidade de determinar um bem em si, subordinando a questão da justiça à questão do poder. Algo é justo porque é definido como justo pelos poderes dominantes em uma determinada sociedade.

Nesse sentido, traçando um paralelo com a velha oposição entre jusnaturalistas e juspositivistas, podemos ver que a posição de Trasímaco aponta para o fato de que somente existe uma justiça positiva, e não uma justiça natural. Dessa forma, ele guarda coerência com a noção de que o homem é a medida de todas as coisas, pois sustenta que somente há no mundo os padrões de justiça determinados pelos poderes constituídos.

Dessa forma, Trasímaco opõe-se frontalmente ao idealismo platônico, que é muito consciente do fato de que a avaliação moral de uma sociedade somente pode ser feita com base em critérios metafísicos. No plano empírico, somente podemos identificar relações de poder e dominação, ameaças de violência, desejos, interesses.

Que é a justiça, além de um nome? Que é a justiça além da conveniência dos mais fortes? Se observarmos apenas as relações entre as pessoas, nunca identificaremos nada mais do que Trasímaco viu. Porém, como um observador, ele se limitou a descrever o que via, ou seja, uma pluralidade de relações de obediência. Foi justa a condenação de Sócrates? Trasímaco diria que sim, pois ela foi a voz das instituições.

Podemos nos revoltar, dizer que esse processo culmina na imensa injustiça de condenar um inocente. Podemos seguir com Gláucon e reafirmar que "o supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser" (361a). Porém, o que Trasímaco traz é o ceticismo de quem não afirma que essa crença de que existe uma justiça para além do poder é ingênua. A pretensão de que o poder se submeta à justiça não passa de uma utopia vã, pois simplesmente não existe justiça fora do poder dos homens, pois o critério institucional da justiça é o direito que organiza efetivamente a sociedade.

Com tudo isso, Trasímaco tenta mostrar que não se deve julgar moralmente o exercício do poder, na medida em que é o próprio exercício do poder que determina o que é a justiça e o bem. Esse tipo de ceticismo nega a possibilidade de haver um padrão de justiça por meio do qual se possa avaliar a própria percepção social do que é justo ou injusto. Com isso, nega a existência de um padrão de justiça externo à sociedade. Justo é quem a sociedade define como justo, não havendo outra medida da justiça senão o próprio reconhecimento social.

Dessa forma, o debate entre Trasímaco e Sócrates nos conduz a perceber a tensão entre uma perspectiva interna e de uma perspectiva externa acerca da moralidade. O que Platão e Sócrates sustentam é a existência de um critério moral que transcende a sociedade e que, portanto, é externo a um sistema moral específico. Somente a existência desse critério moral transcendente (o bem em si) é que permite a qualquer um de nós avaliar objetivamente a moralidade de uma determinada situação concreta. Se não houver esse ponto externo de observação, a nós restaria apenas entender, como Trasímaco, que as sociedades decidem chamar algumas coisas de justas e outras de injustas.

Para voltar à alegoria da caverna, é como se Trasímaco somente enxergasse as sombras projetadas na parede. Ele percebe que cada sociedade tem seus critérios de justo e injusto, e considera que o critério básico é a conveniência dos atores políticos mais fortes, que são aqueles capazes de definir a reação institucional a determinados atos. Assim, justo é o que se louva como justo e injusto é o que se pune como injusto. Portanto, Trasímaco termina por defender que são as conseqüências sociais que determinam a justiça de um ato.

O que Trasímaco nega é justamente o que Platão afirma: que existe uma realidade para além das sombras. Assim, justo não é o que a sociedade considera justo, pois não devemos confundir as sombras projetadas na parede com a realidade. A sociedade Ateniense considerou justa a condenação de Sócrates. A sociedade alemã da década de 1940 considerou justo o nazismo. A sociedade americana atual considera justa a intervenção militar no Afeganistão.

Seguir com Trasímaco nos leva apenas a fazer um catálogo de imposições de poder, sem que tenhamos qualquer critério para avaliar se essas posturas sociais são justas ou injustas. E o que Sócrates e Platão buscavam era justamente um critério moral que pudesse servir como parâmetro objetivo para avaliar condutas desse tipo.

2. Justiça e legitimidade

A perspectiva platônica defende a existência de um bem si que transcenda a moralidade dominante em uma determinada tradição, pois é justamente com base neste ponto externo que se pode aferir, inclusive, a validade moral dessa própria tradição. Trasímaco nos limita a descrever as tradições dominantes, sem poder julgá-las. Platão pretende nos permitir julgar as tradições vigentes, especialmente para que sejamos capazes de nos insurgir contra as injustiças e transformar a sociedade. Por isso ele escreveu a República, uma descrição da Cidade Ideal, que deveria servir como parâmetro para a organização das cidades reais que pretendessem ser justas.

Assim é que Platão permite que aflore a questão da legitimidade, que é o conceito que usamos para mediar as relações entre moralidade e política. Em um plano filosófico, a legitimidade é um atributo do poder, e o poder é legítimo na medida em que gera dever de obediência. No plano sociológico, a legitimidade não se apresenta assim, pois tipicamente os sociólogos chamam de legítimo o poder capaz de gerar obediência.

E, entre a mera obediência e o dever existe um grande abismo: o abismo entre ser obrigado e ter uma obrigação, que é uma diferença fundamental para a filosofia do direito.

A obediência é uma questão de fato, e pode ser observada empiricamente. Onde quer que certas normas ou ordens sejam devidamente observadas pelos seus destinatários, podemos identificar uma relação de obediência. E isso ocorre mesmo nas situações sociais em que não reconhecemos a existência de dever: cumprimos a ordem de um assaltante por medo, e negamos que essa obediência venha de alguma espécie de dever. Assim, o simples medo da punição ou da violência podem gerar obediência, mas não podem gerar dever.

O que gera o dever é a autoridade, ou seja, o fato de que a norma ou a ordem configuram exercício de um poder legítimo. Assim, a legitimidade é o conceito de que dispomos para questionar a validade de uma ordem, mesmo quando ela advém de uma pessoa ou instituição que tem potencialidade de gerar obediência.

Assim, na medida em que o direito se relaciona com o exercício do poder, o direito legítimo é aquele cuja autoridade se assenta em um poder legítimo. Mas quando um poder é legítimo? Podemos dizer, inspirados em Trasímaco, que a legitimidade é a conveniência do mais forte. Com isso, porém, terminamos por aniquilar as potencialidades críticas do conceito de legitimidade, na medida em que todo poder constituído seria legítimo pelos simples fato de ser constituído.

Portanto, se o conceito de legitimidade tem uma função crítica, ele precisa remeter a algo que não se confunde com a mera capacidade de gerar obediência, e que tampouco se confunde com o reconhecimento social da legitimidade. E isso ocorre justamente porque esse conceito é usado primordialmente para medir a validade dos poderes constituídos.

Nessa medida, a legitimidade, assim como a justiça, tem um conteúdo que precisa transcender os valores vigentes em uma sociedade. E aí se encontram esses dois conceitos, pois todo ato legítimo é justo, no sentido de que não admitimos que o poder político tenha legitimidade para praticar injustiças. E essa ligação entre legitimidade e validade projeta novas luzes na própria relação entre justiça e bem.

Quando dizemos que um ato é justo, normalmente não queremos com isso apenas fazer uma observação sobre o mundo (como ao dizer que a luz está acesa), pois temos um dever de praticar a justiça. Não temos nenhum dever de praticar atos eficientes, cabendo a nós escolher maximizar ou não a eficiência prática de nossas condutas. A eficiência pode falar aos nossos desejos, mas não fala ao nosso senso de dever. Já com a justiça ocorre o contrário: temos o dever de praticá-la, ainda quando ela seja contrária aos nossos interesses pessoais.

Assim, a noção de justiça, tal como a de legitimidade, relaciona-se com o exercício do poder. Na legitimidade, trata-se do poder político organizado. Na justiça, trata-se do poder em geral, pois, como Aristóteles bem identificou, a justiça está sempre nas nossas relações com o outro, nas nossas potencialidades de influenciar na vida das outras pessoas.

Então, por mais que legitimidade, justiça e bem não sejam termos propriamente sinônimos, todos eles apontam para os critérios de moralidade. E, nessa medida, uma reflexão filosófica sobre o direito precisa entrelaçar as idéias de justiça e de legitimidade, pois esses são os critérios fundamentais de avaliação moral dos atos jurídicos, tendo reflexos diretos sobre a sua validade.

3. A Ética aristotélica

Seguindo a trilha platônica, somos levados à posição de que é preciso haver um bem em si, para servir como padrão para avaliar se um ato ou sujeito é moralmente bom. Isso implica uma espécie de monismo moral, na medida em que implica a existência de um padrão único de moralidade (o Bem), aplicável a todas as situações concretas.

Contra esse tipo de perspectiva, levantou-se Aristóteles, que não vinculou a reflexão ética a um bem abstrato e único, mas a uma pluralidade de virtudes referentes a aspectos diversos da vida. Assim, não lhe parece adequado simplesmente considerar que a coragem e a prudência são virtudes por serem manifestações diversas de um critério ideal de bem. Um bem tão amplo seria absolutamente vazio e formal, não dizendo nada acerca do conteúdo moral de uma situação e sendo, portanto, inútil para diferenciar um ato corajoso de um covarde. Por isso mesmo é que Aristóteles diz que, se apenas a idéia platônica do bem for boa em si, então essa idéia seria inútil, pois é preciso buscar o que há de bom nas próprias ações concretas do homem[10].

Assim, enquanto Platão atentava para a questão da unidade (na busca de uma categoria que possibilitasse pensar unitariamente as várias expressões do bem), Aristóteles introduziu um pensamento mais sensível à pluralidade da experiência moral, oferecendo categorias capazes de articular os vários modos pelos quais uma pessoa age de maneira boa.

Tal posicionamento não implica negar a existência de uma idéia geral de bem, que possa articular um pensamento unitário sobre a ética, mas apenas que não basta chegar a uma definição genérica de bem. E isso ocorre porque também é preciso aplicar tal definição "aos fatos particulares, pois entre as definições referentes à conduta, as mais gerais têm uma aplicação mais ampla, mas as particulares são mais verdadeiras, já que a conduta tem a ver com casos particulares."[11] Dessa forma, por mais exista uma forma abstrata do bem, Aristóteles articula uma avaliação geral do sentido do bem com uma reflexão minuciosa sobre os modos particulares como esse bem se revela relativamente aos vários modos do agir humano.

No plano geral, Aristóteles identifica que o senso comum considera que sempre atuamos com vistas à felicidade, pois a felicidade é algo que desejamos como um bem em si. Porém, ele não pode seguir a noção da maioria dos homens, que "identifica o bem, ou a felicidade, com o prazer", especialmente porque "a humanidade, em massa se assemelha totalmente aos escravos, preferindo uma vida comparável à dos animais"[12]. Isso deixa claro que ele não está buscando descobrir o que as pessoas normalmente chamam de felicidade, mas o que é a felicidade.

Portanto, a identificação aristotélica entre felicidade e bem não é um modo de identificar o bom a partir do que nos é agradável, mas uma forma de identificar felicidade e excelência, Isso porque, se fazer o bem é agir de modo excelente, então a felicidade (ou seja, a finalidade dos atos humanos) "é a atividade conforme a excelência"[13]. Dessa forma, a medida do bem não pode ser o prazer buscado ou alcançado, especialmente porque é "por causa do prazer que praticamos más ações, e é por causa do sofrimento que deixamos de praticar ações nobilitantes"[14].

Assim definida, a felicidade não pode ser identificada com o que os homens normalmente buscam com os seus atos, mas com o que as pessoas deveriam buscar, para agir de modo excelente. Mas, entre as excelências que o homem pode alcançar, nem todas podem ser identificadas com o bem, pois somente algumas têm conteúdo moral. Por isso mesmo é que Aristóteles divide as excelências em intelectuais (como a inteligência e o discernimento) e morais (como a coragem e a prudência).

Essa diferença é importante porque as excelências intelectuais são uma espécie de desenvolvimento de aptidões inatas (como a inteligência), enquanto a excelência moral depende única e exclusivamente do hábito (ethos). Assim, ninguém é virtuoso por natureza, pois a excelência moral é fruto da educação e não do aprimoramento de habilidades naturais. Além disso, ninguém se torna virtuoso por conhecer o bem, pois a excelência moral não é saber distinguir o certo do errado, mas uma disposição da alma no sentido de realizar o bem.

Por isso mesmo, a educação moral de uma pessoa não significa o desenvolvimento de um saber, mas do desenvolvimento de uma disposição da alma para o agir excelente. Com essa distinção, Aristóteles também resolve o velho problema de distinguir uma ação realmente virtuosa de uma ação aparentemente virtuosa. Uma pessoa que faz caridade apenas para parecer virtuosa aos olhos dos outros, ou que diz a verdade apenas para obter proveito próprio, não está sendo caridosa nem sincera, pois ela não atua em função de uma disposição da alma para a excelência, mas apenas em decorrência de seus interesses pessoais. Assim, muitas ações são aparentemente virtuosas, mas no fundo não passam de ações egoístas, motivadas por interesses pessoais.

Mas que disposição da alma é uma excelência moral? Para Aristóteles, as deficiências morais são apresentadas como excessos, e a posição intermediária que anula esses excessos é a medida adequada de uma ação moralmente adequada. Com relação ao medo, por exemplo, uma pessoa pode ser covarde (quando o medo excessivo leva ao não enfrentamento dos riscos) ou temerária (quando a excessiva falta de medo faz com que os riscos sejam simplesmente desconsiderados). No meio termo, está o corajoso, que tem a dimensão adequada da ação, assumindo os riscos necessários.

Porém, o termo médio não é eqüidistante dos extremos, na medida em que a coragem se aproxima muito mais da temeridade que da covardia. Uma ação temerária pode até ser confundida com uma corajosa, mas uma ação covarde está muito distante desses dois pontos. Do mesmo modo, a liberalidade pode às vezes ser confundida com a prodigalidade, mas nunca com avareza. Assim, o homem excelente deve ser capaz de identificar em cada ação os extremos a que levaria uma deficiência moral, e ter uma disposição moral que aponte para a realização do meio termo justo, que se coloca entre eles.

Entre as diversas excelências morais, algumas se realizam com relação à própria pessoa (como a moderação no tocante ao prazer ou a realização de um ato corajoso para a satisfação de um interesse próprio) ou em relação às pessoas próximas (como uma liberalidade praticada para os amigos). Nesses casos, podemos falar de excelência, mas não podemos falar de justiça, pois a justiça é a excelência moral que busca o bem dos outros. Assim, em um sentido muito amplo, a justiça é a aplicação da excelência moral com relação às outras pessoas, de uma maneira irrestrita.

Existe, porém, um sentido mais restrito da palavra justiça, que não tem a ver com um objeto específico, que tem a ver com a convivência política do homem e que se relaciona a dois aspectos: a distribuição dos bens e a aplicação das penalidades. Para designar o primeiro aspecto, Aristóteles fala de justiça distributiva, reservando ao segundo o termo justiça corretiva.

Para ele, a justiça distributiva envolve a escolha de um critério para possibilitar a divisão dos bens que precisam ser divididos, tais como os prêmios e as honrarias. Nesse caso, cada pessoa deve receber segundo uma regra geral de proporcionalidade, pois cada um deve receber os bens de acordo com o seu mérito pessoal. Assim, embora o próprio conteúdo do mérito seja diferente em cada comunidade, a justiça distributiva é sempre uma questão de estabelecimento de critérios de aferição do mérito de cada um. Atualmente, podemos ver aplicações dessa divisão, por exemplo, nas regras de exames vestibulares e de concursos públicos, em que a atribuição das vagas disputadas é dada por critérios de mérito.

Diversamente da justiça distributiva, é a corretiva, que rege a imposição de penalidades pelo descumprimento de regras previamente estabelecidas. A principal característica dessa espécie de justiça é a sua impessoalidade, pois a punição a ser atribuída a uma pessoa depende apenas do ato praticado, e não de suas características pessoais. Assim, o dever de pagar uma dívida ou responder por um crime é idêntica para as pessoas justas e as injustas, de tal forma que o mérito pessoal de cada uma não deve entrar na definição da penalidade. Nesses casos, o juiz deve apenas restabelecer a igualdade rompida pelo ato do infrator, que impôs a outrem alguma espécie de prejuízo.

Portanto, ainda que esses tipos de ações tenham a ver com a justiça, não se trata de aplicar aos casos um mesmo critério, mas de aplicar a cada tipo de situação o critério de justiça adequado. Assim, Aristóteles estabelece categorias voltadas para pensar a diversidade dos padrões de justiça, sendo que esses conceitos são utilizados até os dias de hoje com o objetivo de refletir sobre as questões éticas contemporâneas. A idéia de justiça distributiva, por exemplo, ganhou especial relevo na sociedade contemporânea quando a implantação dos estados sociais gerou a necessidade de estabelecer critérios para a distribuição dos benefícios estatais.

Outra categoria relevante para o pensamento aristotélico é a oposição entre justiça legal e justiça natural, segundo a qual "são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio poderia ser determinado indiferentemente de maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente"[15]. Assim, Aristóteles traz para o campo da justiça a diferenciação sofística entre physis e nomos, ou seja, entre regras estabelecidas convencionalmente e regras derivadas da própria natureza, numa distinção que até hoje está na base das discussões sobre a oposição entre direito natural e positivo.

Porém, o principal ponto Aristotélico é justamente o tratamento da ética como uma questão de excelências morais, que se unificam na idéia geral de felicidade, mas que se revelam como modos adequados de conduta em face de cada tipo de situação vivida. Assim, a pessoa virtuosa é a que tem uma disposição de alma no sentido da prática do bem, disposição esta que nunca é natural, mas sempre estabelecida por meio de um processo educativo adequado.

Dessa forma, mesmo que Aristóteles admita que há certos valores éticos naturais, ele não supõe que exista uma tendência natural do homem para a realização do bem. Pelo contrário, se existe uma tendência natural, é para a realização do prazer, e é justamente a busca desenfreada dos prazeres que nos leva aos exageros que constituem as ações moralmente deficientes. Por isso mesmo é que a formação (paidéia) não pode se limitar a ensinar o que é o bem, mas a moldar subjetividades que tendam a realizá-lo, em vez de buscar a vida amena e os prazeres imediatos. Assim, é necessário um processo educativo que molde cidadãos cuja idéia de felicidade não se esgote no gozo de prazeres, mas que envolva a busca da excelência. Portanto, existe aqui uma oposição à idéia socrático-platônica que a prática do mal é uma questão de ignorância, pois a deficiência moral não está ligada à ausência de um saber, mas à ausência do cultivo de uma disposição interna.

Outro ponto relevante é o reconhecimento explícito de que boa parte dos valores de justiça são positivos, e não naturais. Essa admissão implica o reconhecimento de que a excelência moral envolve a aceitação de valores culturalmente estabelecidos, o que reforça o sentido social da ética aristotélica. Assim, por mais que ele diga expressamente que existe apenas uma forma de governo que é a melhor por natureza, ele tenta oferecer uma teoria ética adequada a pluralidade de constituições por meio das quais as sociedades se organizam politicamente.

Essa dimensão social da ética, diretamente contraposta à idealização platônica de modelos abstratos, faz com que Aristóteles procure os padrões do agir excelente no âmbito das pessoas socialmente reconhecidas como excelentes. Esse passo crucial permite que ele eleja certos comportamentos como paradigmas do agir ético, em vez de buscar deduzi-los a partir de uma noção vaga e abstrata de bem. Tal concretude faz com que a ética aristotélica seja em grande parte uma análise da moralidade vigente, voltada para a perpetuação dessa própria moralidade.

Assim, a ética aristotélica é um estudo sobre o ethos grego, mas que não se limita a uma perspectiva externa, pois Aristóteles está vinculado aos valores que ele descreve. Com isso, não existe na teoria aristotélica a possibilidade de uma crítica ética aos valores de moralidade, na medida em que eles são morais justamente na medida do seu reconhecimento social. Como seria possível criticar, a partir do próprio ethos grego, a admissão natural da desigualdade entre os homens, que permite a escravidão e a submissão das mulheres aos homens?

Esse é o preço da concretude, que busca retirar das experiências práticas, por meio de um pensamento generalizador, as regras de sua organização. E é justamente esse o ponto fundamental do pensamento Platônico, que está comprometido desde o início com a garantia da possibilidade de uma avaliação ética da moralidade vigente. Assim, enquanto Aristóteles aproxima a ética da moral social, Platão se esforça por manter a distância entre as duas, de tal forma que a reflexão ética possa esclarecer a idéia de um bem em si, capaz de servir como parâmetro adequado para a crítica da moralidade vigente e sua transformação.

Nessa medida, é o idealismo platônico que funciona como elemento transformador, na mesma medida em que o realismo aristotélico adquire um caráter conservador perante os valores sociais hegemônicos. Assim, por mais que Aristóteles não possa concordar literalmente com Trasímaco que a justiça é a conveniência do mais forte, a sua teoria não oferece elementos adequados para a crítica dos valores hegemônicos, que não são dados pela autoridade política dominante, mas pela conformação cultural.

Com isso, por mais que os conceitos aristotélicos sejam esclarecedores de nossa própria vivência moral, a postura aristotélica não é capaz de responder às demandas da ética moderna, na exata medida em que ela problematizou as relações entre o indivíduo e a coletividade. Tanto para Platão quanto para Aristóteles, a ética é uma dimensão da política, pois o homem não é visto senão dentro da coletividade que ele integra. Assim, existe uma ligação imediata entre o bem comum e o bem pessoal, que estabelece uma subordinação natural do indivíduo à coletividade. Porém, quando os pensadores modernos questionaram a naturalidade dos vínculos entre as pessoas e suas comunidades, o problema ético precisou ser colocado de uma forma inovadora: por que cada indivíduo tem o dever de observar o bem comum e os valores morais tradicionais?

III - Ética e Direito na Filosofia Moderna

Em que a moralidade moderna se diferencia da moralidade antiga? A resposta a essa pergunta representa a tentativa de demarcação do território moral que ainda habitamos. A modernidade é o nosso habitat simbólico, mesmo que os terremotos pós-modernos já tenham posto abaixo alguns dos fundamentos das nossas construções.

Não nos vemos como os antigos se viam, pois nenhum deles cogitava em questionar a naturalidade das relações entre o homem e a sociedade. Era evidente para os filósofos gregos que o bem da pólis estava acima do bem pessoal de cada um. Essa postura estava ligada ao entendimento, traduzido especialmente por Aristóteles, de que o homem era um animal essencialmente político, no sentido de que o seu lugar no mundo é a polis. O indivíduo, isolado da comunidade, seria um bárbaro ou um deus, mas não um homem.

Contrapondo-se a essa posição, a modernidade começa a pensar o homem isoladamente da comunidade que ele integra. O sujeito moderno não mais admite a existência de uma ligação orgânica entre o indivíduo e a comunidade, exigindo do poder político que justifique a autoridade da própria tradição. Já não mais era a tradição que justificava o poder, pois ela própria precisava se justificar perante essa nova subjetividade.

Nesse contexto, nasceu uma nova mitologia: os velhos mitos, que criavam uma identidade cultural baseada na origem comum, foram substituídos pelo mito do contrato social, que apresenta a sociedade como fruto de uma livre associação. Não nos apresentamos mais como os descendentes de Abraão, nem de Rômulo, nem de Eva. Não fazemos parte da mesma família, não somos unidos pela religião nem pelos costumes. Somos indivíduos naturalmente livres, e o que nos une não é alguma imposição externa, mas a nossa própria vontade individual, guiada pela nossa razão. Assim foi que a origem mítica das sociedades modernas passou a fazer referência a um vínculo contratual originário.

Mas vocês estariam prontos a qualificar como contratual o vínculo que os une a seus pais e amigos? Tal como poucos de nós qualificariam como contratual essas relações, nenhum grego sonharia em atribuir um conteúdo contratual ao vínculo existente entre o cidadão e a pólis. Assim, a experiência moral dos antigos dava-se de forma diferente do que ocorre hoje. O desafio da filosofia grega era refletir sobre uma moralidade que não fosse mais a expressão do sagrado, de tal forma que a mudança operada por Platão não era propriamente uma revolução moral (no sentido de uma renovação nos valores sociais dominantes), mas uma revolução ética (no sentido de oferecer novos fundamentos, novas metáforas, novas estruturas simbólicas para a compreensão da própria moralidade).

As virtudes tradicionais não estavam sendo postas em questão, mas apenas o modo como elas eram pensadas. E, no diálogo de Sócrates com Trasímaco, podemos identificar inclusive uma tentativa de defender, em novas bases, os valores tradicionais corroídos pelo relativismo da perspectiva sofística. Assim, podemos ler a experiência da filosofia grega como um processo renovador, que encontrou solo propício numa sociedade em que o discurso religioso/mitológico começava a dar ares de exaustão. Frente a esse esgotamento, foi elaborado um discurso que oferecia a possibilidade de uma renovada autocompreensão: a filosofia baseada no logos.

Esse racionalismo, porém, não pretendeu desligar o homem da natureza. Pelo contrário, o logos deveria ser capaz de esclarecer os vínculos naturais do homem com a ordem política e com o cosmos. Assim, o racionalismo clássico opô-se a uma determinada tradição mitológica com base em uma razão natural, que deveria esclarecer racionalmente a ordem do mundo, em todos os seus aspectos.

Essa crença de que a razão poderia esclarecer todos os aspectos do mundo, foi colocada em dúvida no pensamento medieval, especialmente porque muitos dos elementos fundamentais do cristianismo somente eram acessíveis pela fé. Seria muita pretensão do homem querer que a sua razão abarcasse o mundo criado por um deus onipotente, cuja grandeza não poderia ser nunca alcançada por nossa limitada racionalidade. Assim, mesmo que as concepções cristãs tenham mantido a idéia de que a razão pode nos conduzir a muitas verdades, não se podia crer que ela nos mostrasse toda a Verdade.

Isso tornou o pensamento medieval bastante cético quanto aos limites de uma racionalidade individual. Ademais, que tipo de questionamento racional pode colocar em dúvida a validade dos dogmas religiosos consolidados em uma tradição? Nenhum, é claro, pois a virtude do crente é a fé e não a dúvida. Dessa forma, não parece coincidência que as grandes tentativas de articular razão e ocorreram num momento em que a própria tradição cristã já estava desgastada.

Se Tomás de Aquino, no século XIII, representava a razão a serviço da fé, era justamente porque a fé já necessitava de outros elementos que a reforçassem. E foi com esse objetivo que Tomás efetuou a célebre quadripartição das leis em eterna (a razão divina, imutável e ilimitada), natural (parcela da lei eterna reconhecida pelo homem por meio de sua razão), humana (a lei elaborada pelo homem, como forma de concretizar os ditames genéricos da lei natural) e divina (conhecida por revelação, e não por razão).

Com essa arquitetura, Tomás de Aquino colocou lado a lado razão e revelação, como formas de acesso dos homens à ordem divina. Mas o que nos interessa neste ponto é que, mais uma vez, a razão é vista como algo que nos mostra relações naturais, estabelecidas independentemente dos homens. Portanto, é o critério de racionalidade que nos permite distinguir os ditames da lei humana (em sua artificialidade) da lei natural (constante e imutável, como parcela da lei eterna).

Foi contra esta tradição, que naturalizava os seus valores tradicionais para garantir a sua validade, que se ergueu o pensamento moderno. Descartes foi o primeiro a enunciar isso de modo claro, reconhecendo que, entre as idéias que ele considerava naturais, havia muitos preconceitos propagados pela sua cultura. Como ele já não podia mais converter em natural tudo o que lhe era familiar, ele precisou elaborar um método para diferenciar o que era aparentemente natural do verdadeiramente natural.

Portanto, continuamos dentro de um pensamento naturalista, no qual somente os valores efetivamente naturais podiam aspirar a uma validade objetiva. Daí advém a imensa importância das teorias entrelaçadas do direito natural e do contrato social, que passaram a servir como mitologia fundante das organizações sociais modernas. Diversamente do clã e da família, os Estados contemporâneos não se apresentam como uma união orgânica natural, mas como uma livre associação de pessoas. Portanto, eles se fundam por meio de um ato de liberdade, em que os cidadãos elaboram artificialmente uma estrutura para governá-los.

Dentro desse contexto, somente com base em certos direitos válidos por natureza é que se podia justificar a validade do ordenamento positivo. Era preciso admitir ao menos admitir a naturalidade do pacta sunt servanda, ou seja, da regra que confere validade objetiva aos contratos. Porém, as teorias iluministas eram mais abrangentes, envolvendo também outros direitos naturais, como a liberdade, a igualdade e a propriedade. John Locke, que publicou suas principais obras cerca de 1690, inovou no contratualismo ao apresentar esses direitos individuais como limites à própria autoridade do Estado, que nunca poderia revogar normas válidas por natureza.

Devemos reconhecer que as teorias contratualistas não foram inovadoras na relação entre direito natural e o positivo, já que o primeiro continua servindo como base e limite do segundo, do mesmo modo como defendia Tomás de Aquino. Todavia, os limites da naturalidade foram redefinidos, pois muita coisa passou do campo da artificialidade. E foi justamente com esse trânsito que a modernidade pôde criticar a tradição, da qual vários elementos passaram a ser apresentados como construções artificiais ilegítimas.

Era preciso desnaturalizar o vínculo entre o homem e a sociedade, a autoridade da igreja, a desigualdade entre os cidadãos, os privilégios da nobreza, as limitações ao direito de propriedade. Mas também era preciso naturalizar a igualdade, a liberdade e a propriedade, pois a naturalização continuava sendo o único discurso legitimador alternativo à pura tradição dogmática. E ao fazer isso, as modernas teorias contratualistas fixaram as bases mitológicas de uma nova autocompreensão das relações entre natureza e cultura. Nesse contexto, restava aos filósofos o papel de identificar um núcleo de normas e valores justos por natureza, de tal forma que os primeiros pensadores modernos da ética, da política e do direito eram tributários da velha tradição platônica, em sua busca eterna pelo do bem em si.

1 - Hume e a desconstrução do bem em si

A herança platônica da filosofia moral e jurídica foi duramente atacada a partir do século XVIII, que desconstruíram aos poucos a solidez da velha noção do bem em si, ou do justo por natureza. Um dos principais responsáveis por esse movimento foi o filósofo escocês David Hume, que por volta de 1650, adotou a inovadora postura de que todos os valores morais são artificiais.

Hume identificou que as estratégias anteriores de fundamentação filosófica da moral (e portanto também do direito) corresponderam a uma busca, na própria natureza, de alguns valores morais fundantes. O sucesso dessa busca deveria ser garantido pelo exercício de um logos que nos capacitasse a perceber o bem em si.

Contra essa aproximação, Hume ponderou que a razão humana é incapaz de nos mostrar o bem em si, porque nossa racionalidade é meramente calculadora. Ela traça estratégias adequadas para a busca dos fins que escolhemos, mas é inútil para definir quais são os fins que deveríamos buscar. A compreensão desse ponto é importante porque nela está a raiz do positivismo kelseniano e da tradição analítica no direito, que são derivações da tradição empirista de que Hume participa.

Empirismo é o nome que damos para a vertente da modernidade predominante nas ilhas britânicas, que adotava uma perspectiva aristotélica. Os empiristas desconfiavam do racionalismo continental e privilegiavam a idéia de que a nossa razão trabalha sempre sobre o substrato dos dados sensitivos (empíricos). No campo da moralidade, isso se revelava em uma espécie de teoria dos sentimentos morais que culminou na obra de Hume.

Os sentimentos morais, diversamente dos valores morais, são empiricamente observáveis, pois nós sentimos culpa, indignação, vergonha, orgulho. Um platônico tipicamente veria nesses sentimentos reflexos de valores abstratos, e se aventuraria na identificação dos valores racionais que estão por trás dessas manifestações. Hume, contudo, segue uma inspiração aristotélica e propõe que realizemos uma análise indutiva, que avalie esses sentimentos e procure compreender a moralidade que eles engendram.

Com isso ele inverte o pressuposto platônico. Em vez de pressupor a existência de idéias abstratas que dêem sentido à experiência moral, o jovem Hume (então com 28 anos) renova a ética fazendo uma nova pergunta: se não há o arquétipo de bem, como é que chegamos a chamar alguma coisa de bom?

Reparem que a pergunta de Hume não é como descobrimos que uma coisa é boa em si? mas como chegamos a chamar algo de bom? Essa colocação indica que a própria noção de bem é uma construção cultural, cuja história pode ser traçada. Traduzida para o direito, a dúvida de Hume seria colocada como: se não existe um direito propriamente natural, como chegamos a chamar de naturais certas normas?

Como um bom moderno, Hume responderá: por meio do uso da nossa razão. Porém, ele tinha claro que os racionalistas haviam abusado do conceito de razão, tentando extrair valores diretamente da racionalidade. Porém, isso não é possível para o empirismo, na medida em que a escolha valorativa é irracional. Não há finalidades e valores racionalmente bons (ou seja, bons em si) porque é um absurdo completo pensar em algo racionalmente bom, uma vez que a racionalidade trata apenas de fatos e não de valores. A razão calcula probabilidades, faz deduções lógicas, mas é incapaz de fundar uma moral porque ela não estabelece fins, apenas esclarece os meios.

Portanto, não existe um objetivo racional para o homem. Embora a razão seja inata ao homem, isso não significa que há normas e valores inatos. Essa é uma idéia revolucionária dentro da própria modernidade, pois colocou em xeque uma noção muito cara ao pensamento da época: que havia valores evidentemente morais.

Hume percebia que o critério cartesiano da evidência não era adaptado à moralidade, pois cada um de nós tende a afirmar a naturalidade dos próprios preconceitos. Consciente dessa limitação, ele defendeu que todos os valores humanos são convencionais, pois o seu nascimento sempre ocorre dentro da história de um povo, e a medida de sua validade é justamente o seu reconhecimento social.

Dessa forma, ele trata todos os valores morais como elementos consuetudinários, negando-lhes qualquer pretensão de objetividade e de universalidade, o que implica negar a existência de um platônico bem em si a ser descoberto. Quando chegou a esse ponto, Hume poderia ter seguido a trilha do ceticismo e do relativismo, pois a negação da naturalidade parecia uma afirmação de contingência. Para os seus contemporâneos, um valor que não fosse natural não poderia ser objetivamente obrigatório. Porém, Hume não defendeu um ceticismo relativista, mas esforçou-se para buscar uma solução que garantisse a validade objetiva de certos valores artificialmente criados.

A resposta que ele oferece é baseada em uma mudança no foco da naturalidade. Embora admita que todos os valores sejam artificiais, Hume reconhece que os seres humanos têm uma série de tendências naturais, entre as quais está a de considerar devido aquilo que nós consideramos bom.

Portanto, embora todos os sistemas normativos sejam artificiais (no sentido de que são criados pelo homem), a existência do direito e da moralidade é inevitável porque existe nos homens uma tendência natural a construir sistemas normativos que organizam as sociedades em nome da justiça. Então, bom e justo são categorias desenvolvidas pelo homem, em sua natural busca de organizar as sociedades de modo a garantir melhor seus interesses egoísticos.

Logo, a validade objetiva e o bem em si não passam de quimeras, embora seja impossível escapar desses conceitos, cuja elaboração é fruto de uma tendência inata do homem. O conteúdo da justiça é artificial, mas a própria existência da idéia de justiça é inevitável. Existe aqui um naturalismo, mas um naturalismo indireto: não há normas válidas em si, mas apenas decorrência necessárias da natureza humana.

Esse modo de colocar o problema foi inovador, e influenciou fortemente a Kant, a Kelsen e a todo o positivismo. Hume deixou muito claro que, em todos os discursos jusnaturalistas de fundamentação existe um salto lógico. O pensador começa descrevendo como mundo é, a partir disso tira uma série de conclusões de dever. De modo grosseiro, esses argumentos dizem algo como: os homens vivem e têm uma tendência natural a lutar por sua sobrevivência e, portanto, eles têm um direito inato à vida.

Esse portanto é tudo, menos lógico, porque não se pode extrair uma consequência deôntica de um enunciado assertivo. É tão ilógico quanto afirmar que os homens morrem e que, portanto, eles têm direito de morrer (um direito que, aliás, não é reconhecido pelo nosso ordenamento). Uma tendência não cria direitos nem deveres. Apesar disso, cada jusnaturalismo seleciona alguns fatos que considera naturais e retira deles consequências normativas, num salto lógico que podemos chamar de falácia naturalista.

Tal crítica tem um poder demolidor, pois indica a impossibilidade de escapar do trilema de Münchhausen pela via do naturalismo. Uma vez que enxergamos isso, o naturalismo parece muito uma busca alquímica pela pedra filosofal, ou uma tentativa escolástica de demonstrar racionalmente a existência do deus cristão.

E a solução proposta por Hume não alivia muito essa situação, pois ele reduz a validade a uma crença na validade, derivada de tendência natural dos homens a criar certas ilusões. E assim como a teoria de Hobbes não agradou os reis absolutistas, a teoria de Hume não agradou aos jusnaturalistas, que se viram frente à dura acusação de que eram irracionais as suas tentativas de provar racionalmente a validade dos direitos naturais.

2 - Kant e o retorno ao bem em si

Por volta dos cinqüenta anos, a leitura dos textos do jovem Hume acordou Immanuel Kant do seu sono dogmático e o estimulou a desenvolver sofisticados raciocínios que defendessem a verdade e a moralidade das críticas humeanas. Melhor dizendo, Kant buscou defender apenas uma parte do conhecimento e das regras morais, já que ele reconhecia que Hume tinha razão no tocante a todo o conhecimento empírico, tanto no campo da ciência como da ética.

Kant aprendeu com Hume que o método indutivo, fundado na generalização de observações empíricas, não conduz a uma verdade objetiva. Aprendeu também que a razão humana não pode reconhecer na natureza valores objetivamente morais. Porém, diferentemente de Hume, Kant não estava disposto a admitir que toda a verdade e toda a moralidade são apenas construções historicamente determinadas por certas tendências inatas do homem. Então, ele tentou resguardar a objetividade de parte do conhecimento e da ética, buscando encontrar os elementos cuja validade fosse objetiva e, portanto, independesse do assentimento dos homens.

Contudo, isso não significa que Kant buscava uma verdade independentemente do homem, pois ele reconhecia que todo o nosso conhecimento do mundo (físico ou moral) era decorrente dos modos humanos de perceber o mundo. Esse nível de platonismo, que estava presente no racionalismo cartesiano, já não era aceitável para Kant. Para ele, tal como para Hume, a verdade era algo ligado ao homem, sendo portanto descabido eles buscassem valores e verdades absolutos em uma ordem natural exterior, tal como faziam os gregos e os medievais.

Assim, Kant não buscava uma metafísica que colocasse a verdade e o bem em um mundo das idéias platônico, pois, se há uma verdade e uma moralidade, estas somente podem ser verdades e moralidades humanas. Se continuasse seguindo os passos de Hume, Kant seria levado a concluir que o conteúdo do conhecimento humano é sempre contingente, na medida em que as nossas percepções derivam da posição histórica dos sujeitos. Porém, Kant rejeita essa conclusão e busca sustentar, contra Hume, que existem, para a moralidade e o conhecimento humano, certos conteúdos necessários.

Para Hume, apenas as formas eram definidas pela natureza humana, mas os conteúdos eram contingentes. Assim, somente as afirmações meramente formais, como as da lógica, poderiam ser universalmente válidas. Todavia, como os juízos formais são tautológicos, eles não ensinam nada sobre o mundo. Um enunciado como "as causas da guerra do Paraguai são as causas da guerra do Paraguai" é apenas uma das infinitas variações de "a=a" e, nessa medida, é uma expressão tão vazia quanto todas as outras que são verdadeiras apenas por causa de sua forma lógica. Ao chegar nesse ponto, Kant percebe que um puro formalismo racionalista não é capaz de conduzir ao conhecimento adequado sobre o mundo, seja na ética ou na física.

O clássico opositor desse tipo de racionalismo é o empirista, que confia que todos os conhecimentos humanos passam pelos seus sentidos, desdenhando de conhecimentos puramente formais. Porém, Hume já tinha deixado suficientemente claro que o empirismo não garante a verdade, pois os enunciados acerca de elementos empíricos têm uma validade sempre contingente. Kant, portanto, não poderia dar um passo para a formalidade, sob pena de tornar sua teoria vazia de todo conteúdo.

Assim, as trilhas abertas por Hume pareciam conduzir tanto o racionalismo como o empirismo a um beco sem saída. Kant, porém, desejava dar um passo a mais, e tentou superar a aporia humeana por meio de uma espécie de dupla abstração: ele admitiu que a forma da natureza humana é universal, mas estabeleceu que essa forma é justamente um dos objetos do próprio pensamento.

Com isso, ele transformou a forma em um conteúdo, pois as afirmações acerca da forma humana de perceber o mundo e julgar moralmente eram um conhecimento acerca do mundo (e o modo humano de ser é parte do mundo) não são meramente formais. Com isso, ele considerava possível escapar da crítica humeana ao empirismo na ética e na física, na medida em que o conhecimento das formas da razão humana não constituem um conhecimento empírico, pois eles não são adquiridos por meio dos nossos sentidos.

Se o conhecimento empírico dos fenômenos é sempre falível, o conhecimento da própria racionalidade humana (nos termos de Kant, o conhecimento transcendental, ou metafísica) não compartilha essa mesma sina, pois ele não deriva da experiência. Trata-se de um conhecimento direto da racionalidade humana sobre si mesma, e não de um conhecimento formulado indutivamente e mediado pelas nossas impressões sensíveis[16]. Por isso mesmo é que Kant o chama de conhecimento a priori, não a posteriori, pois ele independe de qualquer observação empírica.

É este o conhecimento puro, ou seja, purificado de todas as incertezas que provém da empiria. Para Kant, esse saber acerca das formas a priori não se confunde com o conhecimento meramente formal, na medida em que ele tem um conteúdo. Assim, a metafísica se diferencia da lógica, que é toda formada por juízos analíticos, cuja veracidade depende apenas da forma do enunciado, e não do seu conteúdo.

Essa conversão da forma do conhecer em objeto de estudos teve um caráter revolucionário, pois abriu espaço para que a filosofia procurasse dentro dos próprios homens, por meio de uma análise racional da sua própria racionalidade, a única fonte de verdades objetivas. Inspirado por Hume, Kant fez a razão tentar olhar-se no espelho e tentar compreender-se de uma maneira inovadora. Com isso, a verdade objetiva já não estava mais na eventual correspondência entre um enunciado e os fenômenos do mundo, mas na correspondência necessária entre um enunciado e os modos propriamente humanos de perceber os fenômenos e representar a realidade.

Com isso, radicaliza-se a máxima socrática do conhece-te a ti mesmo, para chegar ao ponto de que não podemos conhecer, com objetividade, nada mais do que o nosso puro pensamento. Por isso mesmo é que Kant se propôs às explorar as possibilidades do pensamento puro, o que ele fez na Crítica da Razão Pura (referente à razão especulativa) e na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, que é uma espécie de introdução à razão pura prática, em que ele investiga o "princípio supremo da moralidade"[17].

Dessa forma, Kant pretende trazer de volta o bem em si do limbo ao qual a filosofia humeana o relegara. A busca kantiana é justamente de redefinir o bem em si, que já não pode mais ser considerado como um elemento da natureza a ser identificado pela razão humana, mas que precisa ser parte integrante da própria razão aplicada às questões do agir humano (a razão prática). Se existe um critério absoluto do bem, ele precisa ser a forma fundamental da própria razão prática.

Mas o que é o bem em si? Aristóteles tinha dito, a felicidade. Kant, contrapondo-se a essa velha resposta, afirma que é a boa vontade. Para ele, todas as capacidades humanas podem causar resultados daninhos, quando a pessoa que os maneja não é boa. E o poder, a honra, a alegria e tudo o mais que ligamos à palavra felicidade não geram ações boas, senão quando elas são movidas por uma boa vontade. Assim, embora negue a palavra aristotélica, Kant reforça a desvinculação aristotélica entre o bem e o prazer.

Contudo, também rejeita a ligação aristotélica do bem à virtude, pois a coragem e a prudência de um criminoso não conduzem, de forma alguma, ao bem. Para ele, o que torna boa uma ação é somente a boa vontade, no sentido de que a ação é motivada por uma vontade boa em si mesma. Contudo, não se trata aqui da disposição da alma aristotélica no sentido de praticar ações virtuosas, pois esse tipo de perspectiva exige uma determinação material do conceito de bem, que é incompatível com a recusa kantiana do empirismo. Se há um critério absoluto do bem, ele não pode ser derivado de uma formação adequada, mas deve ser perceptível a priori na própria racionalidade humana.

Então, a boa vontade não pode ser outra coisa que a vontade devidamente dirigida pela razão. Assim sendo, os atos bons não podem ser resultados de um afeto, de uma disposição, de uma tendência inata ou adquirida, pois nesses casos não seria a razão que guiaria a vontade. E esse tipo de perspectiva ressalta a vinculação acrítica do aristotelismo à tradição grega, pois somente uma tradição naturalizada pode oferecer a ilusão de objetividade de certos valores.

Além disso, Kant reconhece que resultados socialmente úteis podem advir tanto de ações praticadas com boa vontade (seja por erros de cálculo ou por causa de fatores incontroláveis) ou por condutas meramente egoísticas (que poderiam ser socialmente úteis, apesar de imorais ou amorais). Porém, o sentimento social de utilidade mostra apenas a adequação de um ato aos parâmetros morais dominantes, o que não diz nada acerca da validade desses critérios.

Assim, se o valor moral de um ato está no fato de eles realizarem uma vontade racional, ele não pode estar ligado à percepção social acerca de suas conseqüências. E é neste ponto que o kantismo mais se distancia de Hume, pois o grande mérito kantiano foi dar força renovada à noção de que existe uma vontade racional.

Todo ato guiado pela razão é feito em virtude de alguma motivação, e é nessa motivação que está a chave para a compreensão do seu valor moral. Eu minto para ajudar um amigo, eu pago uma dívida por que não quero sofrer as conseqüências de ser inadimplente, eu ajudo uma pessoa porque sei que ela pode me ajudar no futuro. Cada uma dessas justificativas subjetivas explicita as vontades envolvidas em nossa conduta.

E, para Kant, entre todas as justificativas que nos movem, apenas uma tem valor moral: a obediência a um dever objetivamente válido. Portanto, nenhuma das justificativas descritas no parágrafo anterior evidencia uma atitude moral, pois todas elas são voltadas à satisfação de interesses individuais. Em nenhuma delas é possível identificar a boa vontade, ou seja, a vontade de praticar um ato em observância de um dever moral qualquer.

Mas quais são os deveres morais que devem guiar nossa vontade? Antes de mais nada, esses deveres devem ser leis objetivamente válidas, o que exige que eles sejam praticáveis por todas as pessoas, independentemente das características que a tornam singular. Então, a justificativa que orienta uma conduta precisa ser universalizável, de tal modo que qualquer pessoa possa desejá-la, independentemente de seus interesses, valores e idiossincrasias.

Esta é a forma racional dos deveres morais, dado que uma norma moral precisa sempre ser igualmente desejável por qualquer pessoa, sem o que ela não poderia ter validade objetiva. Assim, purificado de todos os impulsos, o princípio da vontade racionalmente guiada somente pode ser o de uma lei universal cujo sentido é o de que cada um deve agir de tal forma que possa querer que a máxima que guia a sua ação se converta em lei universal.

E a identificação dessa forma geral da moralidade é justamente o núcleo da metafísica dos costumes, pois esse princípio não é bom para a realização de certos fins ou interesses, mas ele é bom em si mesmo, na medida em que deriva da própria razão que deve guiar a nossa vontade. Esse motivo o faz chamá-lo de imperativo categórico: um enunciado é imperativo na medida em que impõem deveres, e categórico porque esses deveres não admitem qualquer tipo de relativização.

Com isso, Kant oferece uma nova chave para a discussão moral: em vez de nos perguntarmos se um ato é virtuoso, bom ou justo, devemos nos perguntar se a máxima que o move é universalizável. Eu vou dizer ao professor que estive doente, para que ele me ofereça um prazo maior para entregar o trabalho. Eu não vou pagar uma dívida, pois pretendo usar esse dinheiro para viajar. Eu vou tomar para mim a caneta do meu vizinho, pois gostei dela. Eu vou furar a fila para comprar ingressos, pois gosto muito do cantor que se apresentará. Para Kant, nenhuma dessas máximas seria universalizável, pois todas elas envolvem a desconsideração de alguém e, portanto, elas não poderiam ser desejáveis simultaneamente por todas as pessoas. Portanto, nenhuma dessas ações poderia ser considerada ser moralmente corretas.

A mentira, o descumprimento das promessas, o furto, a agressão, todas essas práticas envolvem a desconsideração do outro, de tal forma que sua universalização seria inviável, pois esse outro não a poderia admitir. Por isso, Kant introduz esse elemento na própria formulação do imperativo categórico, que determina: age de tal modo que te relaciones com a humanidade, tanto em sua pessoa quanto na de qualquer outro, sempre como um fim, e não apenas como um meio. Isso significa que os desejos e valores de cada pessoa não podem ser tratados como elementos de um cálculo estratégico, pois a posição de cada uma das pessoas deve ser considerada.

Nessa medida, o discurso kantiano exige uma igual consideração de todos os homens, pois a posição de cada um deles deve ser levada em conta para a definição da moralidade de uma ação. Assim, não se trata apenas de fazer ao outro o que desejaria que fizessem a mim, pois isso significaria universalizar meus próprios desejos. Por mais que um europeu ou um chinês considere bom o seu modo de vida, esses padrões culturais não podem ser universalizados, pois implicariam a imposição dos valores de uma cultura sobre outra. Assim, a universalização kantiana estabelecer algo mais do que a regra de ouro cristã (não faça aos outros o que não desejaria que fizessem a ti), pois determina uma consideração da pluralidade dos interesses e dos valores em jogo.

Nessa medida, trata-se de um discurso bastante ligado ao ideal iluminista de racionalização das relações sociais e de uma garantia dos âmbitos de liberdade individual contra intervenções que o limitem. A exigência de universalização constitui uma barreira contra a justificação moral de privilégios e desigualdades, que não podem nunca passar nesse teste, na medida em que causam distorções que não seriam aceitas pelos envolvidos.

Assim, a moralidade kantiana coloca-se como a grande representante da busca iluminista de uma igualdade universal e da proteção da liberdade individual contra o arbítrio. Com isso, de uma maneira radicalmente moderna, o bem em si é recuperado como uma espécie de garantia geral de dignidade do indivíduo e de igual consideração.

E os ecos dessa postura podem ser encontrados em muitos dos pensadores contemporâneos, como Kelsen, Habermas, Rawls, Tugendhat, Alexy e todos os outros que tentam extrair o valor de igualdade da própria natureza racional do homem. Pessoalmente, vejo o kantismo como a melhor versão do platonismo moderno: a busca por um novo mundo das idéias, que não está fora do homem, mas dentro da estrutura de nossa própria racionalidade. Uma metafísica da razão, e não do cosmos. Um bem em si que é objetivo por estar entranhado em nós, e não no mundo. E tudo isso permeado por igualitarismo radical, que combina muito com os ideais democráticos que ainda movem nossas utopias políticas.

3 - O silenciamento do naturalismo

O jusnaturalismo revolucionário é retumbante. Ele grita os seus direitos, ele exige a mudança, ele tenta impor ao mundo o seu próprio ritmo. Ele fala pela boca dos utópicos, dos poetas, dos que inspiram o movimento. O direito que ele pede é o direito que não ainda existe.

No jusnaturalismo iluminista, o contratualismo assumiu uma nova feição. Com Locke, ele se encontrou com os direitos do homem à liberdade e à propriedade. Com Rousseau, o contratualismo se encontrou com um radical direito de igualdade que conduziu à perspectiva democrática de um governo cuja legitimidade se dá a partir da representatividade popular. Essa combinação de liberalismo e democracia, é que está na base do movimento constitucionalista ligado à formação dos Estados de Direito contemporâneos, desde o último quartel do século XVIII, que viu surgir a Constituição dos EUA e a Revolução Francesa. Todo esse movimento foi justificado com um discurso naturalista ligado à vontade popular e à garantia dos direitos individuais.

Porém, uma vez que as revoluções chegaram à vitória, o discurso jusnaturalista abandona o seu tom contestatório e passa a ser conservador. Ontem, a justiça estava nos ventos da mudança, justificada pela crença inabalável nos valores que inspiravam a destruição da velha ordem. Porém, vencida a batalha, era preciso organizar a nova sociedade. Em nome da justiça, os velhos valores foram combatidos. Em nome da mesma justiça, agora é preciso manter a segurança.

Mas a segurança não se conquista com gritos apaixonados, e sim com a sobriedade de instituições conscientes da sua própria força. A virtude transformadora da coragem é substituída pelas virtudes conservadoras da temperança, da prudência, do comedimento. O jusnaturalismo continuou ali, mas convertido na mitologia que sustenta a legitimidade da nova ordem de poder. Esse jusnaturalismo não fazia mais alarde dos direitos naturais, porque o sucesso da revolução os converteu em direitos positivos.

A primeira coisa que toda revolução vitoriosa faz é estabelecer novas leis, revogando o velho direito e impondo uma nova ordem jurídica. Uma vez consolidado o novo ordenamento, é com base neles que todos os juristas exercem a sua atividade. Portanto, a positivação dos direitos humanos, na forma de declarações autônomas ou de sua introdução no texto constitucional, dispensava a todos da necessidade de fazer referências ao direito natural.

Essa dinâmica fez com que a revolução francesa representasse um momento crucial para o jusnaturalismo moderno. Por um lado, significou um importantíssimo triunfo dos ideais iluministas, inclusive do jusracionalismo que a ele estava ligado. Todavia, as condições criadas por essa revolução determinaram um rápido silenciamento dos discursos jusracionalistas.

Os iluministas julgavam ser possível descobrir, mediante procedimentos racionais, quais eram as regras que compunham o direito natural. Acreditavam eles ser possível desenvolver um direito absolutamente racional e que, nessa medida, deveria ser a forma mais adequada de organização para qualquer sociedade humana. O direito assim desenvolvido não deveria tomar como base os costumes e as tradições de um povo, que são assistemáticas e contêm uma série de preconceitos, sendo imperioso que ele fosse elaborado racionalmente e organizado de maneira sistemática.

Com vistas a desenvolver um direito com essas características, iniciou-se um movimento para a elaboração de conjunto de normas que possibilitassem uma organização racional das condutas humanas, normas essas que deveriam ser reunidas em um mesmo livro e expostas de forma sistemática. Criaram-se, então, os códigos modernos: livros que continham todas as normas sobre um determinado assunto, organizadas metodicamente. Essas obras deveriam trazer regras claras e objetivas, de modo que qualquer cidadão pudesse, lendo-os, conhecer seus direitos e deveres. O fruto mais conhecido desse esforço foi o Código Civil francês de 1804, normalmente chamado de Código de Napoleão.

Alguns dos autores dos códigos chegaram a crer que suas obras consolidavam, de maneira sistemática e objetiva, as regras do direito natural. Aparentemente, tratava-se de uma vitória do direito natural racionalista contra o direito anterior, que tinha base nos costumes e que era considerado irracional e desorganizado.

Chegou-se mesmo a crer que o Código de Napoleão poderia ser aplicado às nações, independentemente das peculiaridades de cada cultura, pois ele incorporava a forma racional de organizar a sociedade. O iluminismo pensava em termos de progresso, e a codificação era percebida como uma forma de modernizar as sociedades, aperfeiçoando as relações sociais na medida em que elas eram submetidas a uma ordem racional. Essa noção ultrapassou as fronteiras e juristas de várias nacionalidades defenderam que seus países deveriam adotar um código civil nos moldes do francês.

Porém, a vitória do jusnaturalismo foi o gérmen de sua decadência. Embora os autores dos códigos fossem jusnaturalistas, o direito codificado logo perdeu sua ligação direta com o direito natural, dado que o discurso jurídico foi reduzido gradualmente a sua faceta dogmática. Como observou Boaventura de Sousa Santos, as categorias que possibilitam um questionamento do direito instituído pela burguesia logo são deixadas de lado, pois a existência de um "fundamento do direito, acima das leis, não mais lhes interessa, eis que elas são elaboradas tendo em vista os seus interesses.[18]

No século XIX, as revoluções triunfantes não precisavam de uma fundamentação filosófica, pois a hegemonia dos seus universos simbólicos era tamanha que dispensava um discurso justificador. Os códigos, as máquinas a vapor, as linhas de trem e as construções de ferro esses eram símbolos de uma nova era e signos de uma modernização que gerou um progresso material sem precedentes. A força da ciência, da economia industrial e dos códigos era tão grande que um questionamento filosófico da sua validade soava arcaico, quando não completamente fora de lugar.

Não era preciso justificar esses institutos, mas aperfeiçoá-los e ampliar a sua influência tanto quanto possível, pois eles eram os signos da modernidade e do progresso. Não precisávamos de filósofos para refletir sobre eles, mas de técnicos capazes de implementar essas inovadoras tecnologias. O positivismo da época levou os juristas a não se preocuparem com a justificação filosófica dos ordenamentos jurídicos (uma das eternas preocupações dos jusnaturalistas) e centrarem suas preocupações na descrição dos ordenamentos jurídicos. Nesse contexto, Savigny chegou a afirmar que a filosofia não é necessária ao jurista, mesmo como simples elemento prévio[19].

Esses elementos apontam para o fato de que o Código de Napoleão marca o início da decadência do jusnaturalismo não porque os seus autores desconsideravam os problemas filosóficos de justificação, mas porque as gerações posteriores de intérpretes foram formadas apenas para manejar o discurso dogmático[20]. Diferentemente da geração francesa anterior, que havia estudado o direito romano e os costumes, os novos juristas estudaram apenas as normas codificadas, e essa redução do direito à lei era sentida como tão natural que dispensava justificação.

Assim, a Revolução Francesa representou o apogeu do direito natural iluminista, mas também marcou o início de um processo em que o discurso jusnaturalista perdeu espaço, não por ser errado, mas por ser desnecessário. Nesse processo, o culto à lei e a utopia da codificação deixou de ser uma inovação a ser justificada pelos filósofos, e passou a ser um dogma a ser conservado pelos juristas.

Somente trazemos à tona os mitos fundantes nos momentos de crise, em que a própria ordem é questionada. Nas épocas de normalidade institucional, os mitos permanecem em silêncio. Não porque eles estejam mudos, mas apenas porque a sua voz não precisa ser invocada para a resolução dos problemas enfrentados pelos juristas, esses homens cujo aguçado senso prático não se deixa perder em debates desnecessários. Essas épocas costumam ser as eras de ouro da dogmática, pois o debate jurídico se distancia das questões filosóficas de base e se concentra nos problemas relativos à aplicação efetiva das normas positivas.

Com isso, o jusnaturalismo contratualista não se perdeu, mas adquiriu uma feição silenciosa, na medida em que os discursos dogmáticos do dia-a-dia somente fazem referência ao direito positivo. Isso não quer dizer, de modo algum, que as crenças jusnaturalistas foram abandonadas: é justamente o fato de que todos reconhecem os mitos contratualistas que eles podem permanecer no pano de fundo do inconsciente coletivo.

Esse novo positivismo influenciou fortemente a produção dos teóricos, mas não conseguiu afastar do senso comum o naturalismo silencioso que até hoje domina o senso comum teórico dos juristas[21]. Se a história oficial do direito tende a falar da hegemonia do positivismo, é porque ela chama de positivistas todos aqueles que sacralizam o direito positivo. Essa é a utilização comum da palavra, que mostra o quanto o discurso jusnaturalista tornou-se silencioso, ao ponto de os próprios naturalistas se enxergarem como positivistas, muito embora considerem que o fundamento do direito se encontra na natureza do homem.

Assim, o que ocorreu ao longo do século XIX não foi propriamente uma anulação do naturalismo, e sim uma divisão dos discursos. O discurso dogmático de aplicação tornou-se "positivista", mas continuou assentado em um discurso jusnaturalista de fundamentação. Essa ligação foi ficando tênue porque os juristas formados pelo estudo do direito codificado deixaram de tematizar a própria validade das leis, que foi simplesmente naturalizada. Assim, o discurso filosófico deu lugar a um discurso religioso, a uma sacralização acrítica do direito positivo que passou a ser chamada de "positivismo".

Não existe, assim, um discurso positivista de legitimação, pois a dogmática positivista é marcada justamente por ela ter resolvido religiosamente a questão da validade, alçando-a à condição de dogma. Os discursos de fundamentação mantiveram seu caráter naturalista, ainda que disfarçado, o que deu margem a uma espécie de positivismo naturalista.

No direito constitucional, por exemplo, a teoria hegemônica afirma que a Constituição de 1988 vale em função de um poder constituinte originário cuja titularidade é do povo. O próprio texto constitucional afirma que todo poder emana do povo, sendo esta uma releitura democrática do debate jusnaturalista acerca da soberania, que chamava de soberano o titular do direito natural de impor suas decisões ao corpo social. Essa concepção não perde o seu caráter naturalista apenas porque não mais se fala em direito natural, pois continuamos encarando como natural que cada povo ser tenha o direito de estabelecer seu próprio direito.

4 - O surgimento da consciência histórica, ou o positivismo positivista

Mas existe um outro positivismo, mais consciente de si, e que tem mais razões para merecer esse nome. Um positivismo que não é fruto de um esquecimento da filosofia nem de uma sacralização da lei, mas do reconhecimento de suas contingência histórica e de sua validade relativa. Um positivista que é capaz de dizer com todas as letras que o direito natural não existe, senão como os deuses, esses seres que criamos para exercerem o papel simbólico de nossos criadores. Ele existe como uma categoria discursiva, como uma referência cultural, mas não como as pedras, os rios e o próprio direito positivo.

Esse positivismo positivista não é uma derivação do positivismo naturalista do senso comum, mas uma perspectiva que segue outra história. O positivismo naturalista tem raízes no racionalismo iluminista, em suas tentativas de revolucionar a sociedade por meio de uma razão capaz de identificar padrões absolutos de justiça e validade. Já o positivismo positivista nasce de uma espécie de ruptura com o idealismo iluminista, marcado pela afirmação da historicidade do homem e da relatividade dos valores. Um positivismo que tentou seriamente livrar-se da herança metafísica de Platão, que está na raiz de toda a filosofia jusnaturalista do ocidente.

Essa passagem somente se dá com a completa historicização do direito. Aprendi com o filósofo Miroslav Milovic que o principal legado filosófico do século XIX foi a construção de uma inovadora noção de historicidade. Como ele costuma dizer, foi nessa época que se compreendeu a possibilidade de os homens criarem o novo, de inventarem novas formas de sociabilidade.

Até o iluminismo, a razão humana era uma ferramenta que nos capacitava a identificar os valores universais, a natureza humana, a validade objetiva e todos esses elementos metafísicos com que aprendemos a dar sentido ao mundo. A imutabilidade, a eternidade e a permanência são os atributos da divindade abstrata forjada pelo platonismo dos teólogos medievais. Somente tinha dignidade o que não estava submetido ao jogo de transformações contingentes da história.

A historicização do pensamento rompeu essa predefinição, pois inaugurou-se um tempo em que percebemos a capacidade do homem de inventar a si mesmo. Passamos gradualmente a nos ver como frutos da história, e essa idéia foi radicalizada pela concepção de Darwin, que submeteu a própria constituição da espécie aos acasos contingentes de uma seleção natural aleatória.

A razão moderna era nossa alavanca para romper a contingência histórica e desvelar a ordem cósmica que deveria estar por trás dos fenômenos empíricos. Ela deveria nos tornar capazes de transcender o jogo de sombras da caverna platônica, ascendendo à percepção da verdade. A razão é a participação humana no divino, e por isso mesmo ela deveria nos revelar o mundo tal como ele era, rompendo a teia de ilusões em que estamos imersos.

Porém, depois de perscrutar os fenômenos com essa nossa incrível racionalidade moderna, o que encontramos não foi o sentido do mundo, mas uma história sem sentido predeterminado. Nós somos aquilo que nos fazemos, e esse é um pensamento extremamente perturbador, pois rompe com a base mesma do jusnaturalismo, que é a existência de valores transcendentes.

Essa perturbação tem sua tradução mais angustiada nas palavras de Ivan Karamazov: se Deus não existe, tudo é permitido. Se nada existe no homem além do que foi criado em sua história, então a metafísica é uma brincadeira de mau gosto. Não há nada a ser buscado fora da história, e portanto não existe nada válido em si, verdadeiro em si, justo em si. Não há nada em si, pois toda avaliação somente pode ser feita em relação a certos valores historicamente constituídos.

É preciso abandona a velha muleta da metafísica, que dá sentido ao mundo inventando uma série de fantasmas. O preço a ser pago por esse salto é talvez demasiado: o abandono da metafísica conduz à negação de um sentido objetivo para o mundo. Mas o desenvolvimento da sensibilidade científica conduz fatalmente a esse reconhecimento de que a razão humana é incapaz de descobrir sentidos no mundo.

E o que a razão moderna tinha feito foi inventar sentidos artificiais (como tinha apontado Hume) e depois elaborar discursos falaciosos dizendo que eles já estavam lá. Esse mecanismo foi descrito com precisão por Feuerbach, que o chamou de alienação. Para este pensador alemão, os homens inventaram a noção de deus e atribuíram a ele a função de criador do mundo: com isso, tomam a criação por criatura, e não se vêem como a fonte do próprio deus. O mesmo ocorre com o direito natural: tomamos certas normas como transcendentes e deixamos de nos perceber como seus criadores.

Mas essa inversão já não era mais palatável para a consciência histórica do século XIX. A historicidade que emergiu nessa época foi a concepção de que a história não realiza um plano, não tem sentidos predeterminados, não tem finalidades transcendentes. E quem despiu a história de toda a sua metafísica não foram os filósofos iluministas, mas os pensadores de inspiração cientificista.

O pensamento científico é a-histórico, pois busca descrever as regularidades da natureza que independem das construções sociais. O cientista pensa em termo de relações necessárias de causalidade, e o sucesso em descrever o mundo a partir dessa única chave de compreensão fez com que todas as disciplinas se enveredassem em um processo de cientifização que colocou em xeque a validade de uma compreensão finalística da história. Curiosamente, foi a radicalização desse pensamento anti-historicista que nos desvelou nossa própria historicidade.

Até o século XIX, era muito comum que as pessoas considerassem que tanto a natureza quanto o homem tivessem uma essência fixa e imutável. Compreender o homem seria desvendar essa essência, que tipicamente é chamada de natureza humana, o que permitiria descobrir quais seriam os direitos naturais.

Essa perspectiva essencialista representa uma continuação do pensamento grego, que busca dar sentido ao mundo por meio da descoberta daquilo que é necessário e imutável. Porém, no século XIX ganhou força a noção de que toda construção cultural é histórica e que, portanto, mesmo os valores culturais mais relevantes devem ser vistos como resultados de um desenvolvimento histórico que ocorre no tempo.

Não foi um ideal de historicidade que moveu as grandes revoluções burguesas, inspiradas que eram por uma utopia jusnaturalistas que justificava a derrubada do antigo regime. Não eram positivistas os autores da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no qual se declaram solenemente os direitos naturais e sagrados do homem. Porém, os herdeiros desses movimentos assistiram à Revolução Francesa destronar a tradição e decapita o rei, viram a revolução industrial mudar o ritmo do mundo e testemunharam o surgir de uma sociedade construída sobre novas relações sociais.

As gerações que chegaram à maturidade em meados do século XIX já não podia crer que essa nova sociedade era fruto simplesmente do curso inexorável de um plano definido: não vivíamos mais a realização de um destino fixo, mas a conquista de um futuro que resultava de nossas próprias ações.

Houve, então, entre os pensadores de vanguarda, uma espécie de universalização da história, a qual gerou uma relativização dos valores, que passaram do âmbito do invariável e necessário para a órbita do mutável e do contingente. Esse historicismo radical é profundamente laico, pois coloca na órbita do histórico mesmo os valores que uma cultura considera sagrados. Quando a própria religiosidade passa a ser vista como uma das expressões culturais, quando os direitos fundamentais perdem o seu caráter de imutabilidade, algo muda profundamente na percepção dos fenômenos jurídicos.

Essa transformação foi gradual. Num primeiro momento, a idéia de história ingressou no pensamento jurídico de uma maneira conservadora e jusnaturalista. Contra o caráter artificial e universal do jusracionalismo, os juristas germânicos opuseram a idéia de que somente é legítimo o direito historicamente construído, o que os levou a rejeitar as abstrações universalistas que moviam a revolução francesa e inspiravam os processos de codificação.

Para os primeiros historicistas, o direito não era fruto da razão, mas da história, motivo pelo qual as revoluções iluministas foram sentidas como quebras do direito legitimado por uma cultura. Essa contraposição tem sua expressão mais conhecida na polêmica entre Savigny e Thibaut.

Libertos da dominação francesa, por causa da queda de Napoleão e da restauração da monarquia na França, os reinos germânicos tinham a liberdade de modificar o próprio direito, adotando uma codificação de inspiração iluminista, ou de reafirmar o direito germânico tradicional. O principal defensor da codificação foi o burguês Thibaut, que justificava sua postura modernizadora em nome de um racionalismo iluminista. O principal opositor da codificação era o barão Von Savigny, um romanista (estudioso do direito romano) que defendia a manutenção do direito tradicional, composto por uma combinação do direito romano com os costumes locais. Nesse embate, venceram os partidários de Savigny, que era o maior nome da escola histórica.

Esse tipo historicismo não conduz ao positivismo, pois ele é tão jusnaturalista quanto as idéias a que se opõem. Ao utilizar a hegemonia política como critério de legitimidade, conduz à conclusão conservadora de qualificar como ilegítimas as tentativas de mudança social inspiradas pelo iluminismo. Assim, o primeiro historicismo não deriva de uma simples afirmação de que os direitos são históricos, mas de uma convicção de que somente são legítimos os direitos assentados sobre os valores tradicionais. Ele não estava vinculado ao ideal de construir um discurso científico sobre o direito, mas sobre a um discurso legitimador de matriz filosófica, que afirmava a validade das normas tradicionalmente reconhecidas.

Porém, uma vez que os ideais historicistas vieram à tona, eles terminaram por enfraquecer o jusnaturalismo, na medida em que estimulou a percepção do direito como uma construção social. Com o tempo, tornou-se claro que mesmo os direitos que uma cultura chama de naturais são positivos, pois resultam de decisões políticas. Assim, por mais que o historicismo não fosse positivista, ele abriu um importante espaço para que pudesse surgir uma teoria que não buscasse assentar o direito positivo sobre algum direito natural.

5 - Direito e ciência

O direito natural não existe no mundo dos fatos. Isso Platão já sabia. Porém, o antiplatonismo do século XIX chegou ao ponto de afirmar explicitamente que a metafísica não existe, exceto como uma elaboração cultural humana. E como o direito natural é a metafísica jurídica, o seu devido lugar é ao lado dos deuses e de todo o aparato mítico com que tradicionalmente damos algum sentido transcendente ao nossos mundo.

O direito natural é uma invenção de pessoas que têm uma mentalidade religiosa e que somente sabiam fundamentar a validade das normas em algum ponto sagrado. Porém, a modernidade é laica, e essa perspectiva demandou a elaboração de uma teoria laica do direito, que buscou suas raízes no discurso científico.

Esse contexto fez com que o século XIX tenha sido um momento de crise para a filosofia em geral, e não só para a filosofia do direito. O naturalismo iluminista já não era mais palatável para o espírito cientificista da época, que se tornou muito avesso ao platonismo com que ele tentou identificar na razão o bem em si. Naquele momento, toda a filosofia era identificada com um discurso metafísico que buscava o bem em si nos campos transcendentais do kantismo, no espírito absoluto hegeliano, ou em qualquer outro lugar abstrato.

Desde Platão, a filosofia buscou identificar um bem em si fora da história. Mesmo Kant o colocou dentro de nós para que salvá-lo do rio da contingência histórica. Como bem percebeu Nietzsche, tudo o que era histórico era identificado com o passageiro, o transitório, o pouco digno. A dignidade filosófica estava nos universais, nos pontos necessários e imutáveis, em tudo aquilo que Platão colocou no mundo das idéias e que os cristãos projetaram em deus. Ao longo do século XIX, porém, o espírito científico conquistou sua autonomia sobre o espírito filosófico.

Então, floresceu uma espécie de neo-aristotelismo, que falava pela voz da ciência e se concentrou na descrição dos ordenamentos vigentes, em vez de se tratar da sua justificação ou crítica. Esse novo aristotelismo é o positivismo propriamente dito, uma postura cientificista (e não apenas tecnicista), voltada a reescrever a teoria do direito utilizando o método indutivo que está na base de todas as outras ciências.

Para o cientista, era claro que a escola da exegese era feita apenas de comentaristas, que construíram sua disciplina com base na teologia (e seu respeito aos textos sagrados) e não na ciência. Foi-se tornando claro que o iluminismo, sob o pretexto de laicizar o conhecimento, sacralizou a razão, colocando nela a fundamentação última de todas as coisas. Por isso mesmo é que ele podia trabalhar com um método dedutivo, que partia dos direitos naturais (o novo sagrado), para deduzir deles as obrigações dos homens. Mas dedução e comentário não são os instrumentos do cientista, que opera por meio da outros instrumentos teóricos indutivos.

Essa nova mentalidade, que podemos chamar de positivismo cientificista, partia da idéia de que toda ciência precisa ter um objeto empírico e um método determinado. Encarar o direito como um objeto empírico é vê-lo como algo a ser observado no mundo, e não a ser deduzido da própria racionalidade. O direito é um fenômeno histórico, e assim deve ser encarado por todos aqueles que pretendem fazer acerca dele uma verdadeira ciência.

Essa cientificização do direito mostrou-se em duas vertentes, ambas ligadas a espécies diferentes de aristotelismo. A primeira delas surgiu na Alemanha e, seguindo as concepções tradicionais, tomou por objeto as normas jurídicas. Que tipo de análise científica se pode fazer com relação às normas? A inspiração buscada foi a química, que decompõem a matéria em seus elementos básicos, para depois explicar o modo como a combinação desses elementos forma o mundo que conhecemos.

No caso do direito, o correspondente do átomo foi o conceito, pois se entendia que cada regra era formada por uma determinada combinação de conceitos. Assim, juristas vinculados a um positivismo científico buscaram estudar as normas jurídicas que formam o direito positivo (e portanto formam um objeto empírico), por meio de um processo analítico que mostrava os seus princípios fundamentais.

Retomando posteriormente essa imagem de uma química jurídica, Francesco Ferrara afirmou que "do mesmo modo que o químico analisa os corpos singulares, reduzindo-os aos seus elementos fundamentais, e busca os princípios segundo os quais se produzem as combinações químicas, assim o jurista deve analisar os corpos jurídicos, reduzindo-os aos seus elementos puros, estudar as causas e as formas de combinação, descobrir as relações e reações entre os vários elementos, para poder, por sua vez, recompô-los e reconstruí-los sobre outra base e forma."[22]

Esse tipo de análise, que ficou conhecida como Jurisprudência dos Conceitos, está na base de uma depuração conceitual que sistematizou o conhecimento jurídico, oferecendo conceitos mais rigorosos e, inclusive, inovadores. Essa perspectiva limitava-se tipicamente ao direito civil, tendo como expoentes o jovem Jhering (que trabalhou, por exemplo, na fixação dos conceitos de posse e propriedade) e, principalmente, Windscheid, a quem devemos os modernos conceitos de pretensão e de ação.

Essa vertente do positivismo, que optou pelo tradicional estudo da norma, era cientificamente inovadora, mas politicamente ela era conservadora, pois não oferecia categorias adequadas à crítica do próprio direito. Ao assumir a função explicativa do cientista, o jurista assumia que a sua função era a de simplesmente descrever e explicar, e não de julgar e avaliar o próprio direito. Portanto, não deve causar espanto que a crise nesse tipo de visão não tenha surgido de um questionamento científico, e sim de um questionamento político, motivado pela crise do Estado Liberal.

6 - A crise do positivismo liberal

No início do século XIX, o silenciamento do naturalismo correspondeu, no direito, a uma espécie de silenciamento da filosofia em geral, motivada pela hegemonia do projeto liberal do iluminismo. O liberalismo, o capitalismo e o positivismo são expressões da mesma forma de organização política e ideológica. Todos eles tiveram um crescimento gradual e constante durante a primeira metade do século XIX e se consolidaram como perspectivas hegemônicas. As décadas de 50 e 60 foram o seu período áureo, época que marca o triunfo do capitalismo liberal no ocidente, descrito por Hobsbawm de modo lapidar na introdução de A era do capital:

Foi o triunfo de uma sociedade que acreditou que o crescimento econômico repousava na competição da livre iniciativa privada, no sucesso de comprar tudo no mercado mais barato (inclusive trabalho) e vender no mais caro. Uma economia assim baseada e, portanto, repousando naturalmente nas sólidas fundações de uma burguesia composta daqueles cuja energia, mérito e inteligência os elevou a tal posição, deveria --- assim se acreditava --- não somente criar um mundo de plena distribuição material, mas também de crescente esclarecimento, razão e oportunidade humana, de avanço das ciências e das artes, em suma, um mundo de contínuo progresso material e moral.

Todo esse otimismo, contudo, mostrou não ter bases sólidas, o que realça o fato de que o sucesso de qualquer modelo, ainda que estrondoso, não lhe confere imortalidade. Enquanto a expansão capitalista fazia com que o senso comum percebesse como evidentes uma melhoria na capacidade de geração de riquezas e na qualidade de vida das pessoas, parecia uma verdade inegável que o papel dos juízes era o de aplicar as leis de maneira objetiva e literal, pois isso contribuía para reforçar o modelo político, econômico e social garantido pelas disposições legislativas. E os positivismos liberais (Escola da Exegese e Jurisprudência dos Conceitos) tiveram sua época áurea justamente entre meados da década de 1840 até meados de 1870, quando começaram a mostrar suas fraquezas.

Porém, o início do século XX já não era mais a época do liberalismo triunfante, pois já era muito evidente que os novos Estados de Direito continham uma série de problemas que não se deixavam resolver pelas estratégias jurídicas liberais. A sociedade européia mudou radicalmente no século XIX, especialmente devido aos processos de industrialização e de urbanização, que modificaram profundamente as relações sociais.

E os modelos políticos e jurídicos vigentes não davam conta dessas novas realidades, cuja injustiça foi lida de várias formas. Elas encontraram eco na literatura no romantismo de Vitor Hugo (1802-1885), mas sua expressão mais contundente está no naturalismo cientificista de Émile Zola (1840-1902)[23]. Para escrever Germinal, Zola viveu durante meses entre os mineiros de carvão que ele pretendia retratar. Assim, como entre os mineiros também viveu Van Gogh, quando ainda tentava ser pastor protestante e não cria na possibilidade de viver afastado daqueles que ele deveria orientar espiritualmente. E essa vivência é magistralmente retratada em quadros como Os comedores de batata, que trata da pobreza extrema desses trabalhadores.

Karl Marx (1818-1883), por exemplo, leu-as como resultados necessários de um sistema econômico capitalista, o que inspirou vários movimentos que buscaram resolver essas tensões por meio da instauração revolucionária de um novo modo de produção. E o embate ideológico entre a utopia socialista e a utopia liberal marcou boa parte do século XX. Para utilizar uma leitura típica do direito constitucional, os direitos de primeira geração não ofereciam parâmetros jurídicos adequados os problemas sociais da época, que somente vieram a ser equacionados pelos direitos de segunda geração, que foram sendo estabelecidos como resultados de uma série de lutas sociais durante as primeiras décadas do século XX.

A sociedade transformava-se rapidamente e exigia alterações no direito, mas os códigos eram (e ainda são) as normas de mais difícil e lenta modificação. E menos mutável ainda era o sistema conceitual da pandectística, pois nenhuma autoridade legislativa pode alterar diretamente os conceitos desenvolvidos pela teoria. A sistematização feita pela Jurisprudência dos Conceitos foi a mais sofisticada tentativa de garantir a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões judiciais, e, como toda perspectiva que valoriza sobremaneira a estabilidade, tinha como calcanhar de Aquiles a sua inflexibilidade.

Assim, na passagem do século XIX para o XX, a codificação já não era um processo renovador, mas um elemento de conservação dos estados liberais. No final do século XIX, já estava claro que o preço a ser pago pela sistematicidade do código era o de uma extrema fixidez do próprio direito, na medida em que o tamanho e a complexidade dos códigos faz com que a alteração desse tipo de norma exija um processo legislativo muito demorado. Então, como os códigos tendem a perdurar por longos períodos, o que termina implicando a permanência de modelos de organização jurídica que vão se tornando gradualmente defasados frente à realidade jurídica.

Enquanto a sociedade modifica-se constantemente, o texto dos códigos permanece estático, pois eles são refratários a alterações pontuais que ameacem a sua sistematicidade. Esse descompasso entre a realidade social chegou a ser identificado como uma guerra dos fatos contra o direito, pois as normas legisladas eram incapazes de responder adequadamente às demandas sociais de uma sociedade que se modificou profundamente durante o século XIX.

A solução liberal para lidar com o envelhecimento do direito era a criação legislativa de novas normas. Porém, na medida em que essa solução não era suficientemente ágil dentro dos ordenamentos codificados, tornou-se cada vez mais necessário alterar o direito vigente por via interpretativa e não por via legislativa. Enquanto as soluções derivadas dos sistemas jurídicos vigentes foram socialmente entendidas como justas, manteve-se intacto o respeito às palavras do legislador e ao sistema. Porém, quando a sociedade começou a perceber como injustas muitas das decisões sistemicamente adequadas, foi o próprio normativismo que entrou em crise.

A perspectiva de que o direito deve limitar-se à norma posta passou a ter opositores cada vez mais ferrenhos, que conduziram a teoria jurídica à necessidade de enfrentar o difícil problema de definir se era mais importante a garantia da segurança jurídica (o que o sistema fazia bem) ou da justiça (que por vezes se contrapunha aos códigos e à sistemática conceitual dominante).

7 - O retorno da justiça distributiva

Na medida em que tudo parecia estar desmoronando (ou em vias de desmoronar), era de se esperar que a filosofia voltasse a ter um papel mais relevante. E isso efetivamente ocorreu, mediante uma reincorporação das noções aristotélicas de justiça distributiva. Enquanto o pensamento liberal se concentrou nas questões de justiça corretiva ligada aos direitos individuais, a crise do liberalismo fez com que aflorasse um pensamento social ligado à participação do Estado na distribuição da riqueza produzida pelo processo de industrialização.

Kant propôs uma ética liberal, que deveria garantir a liberdade e a igualdade a partir da fixação de um campo de direitos intangíveis para cada indivíduo. Nesse sentido, ele ofereceu um correlato dos direitos fundamentais de primeira geração, que são direitos negativos, na medida em que acarretam apenas limitações ao exercício da autoridade. Assim, o discurso kantiano incide nas limitações inerentes a esses direitos, pois a proteção contra intervenções estatais abusivas não implica uma orientação positiva, que imponha diretrizes adequadas para o exercício do poder político.

Assim, o ponto cego da teoria kantiana, assim como da teoria jurídica liberal, é a questão da justiça distributiva. A exigência de universalização implica um tamanho grau de igualdade que todo critério de diferenciação é posto em cheque, o que impede a justificação moral de diferenciações de tratamento. Com isso, garante-se a igualdade formal sem se garantir a igualdade material, o que torna invisíveis muitas situações injustas. Tanto no campo individual como no coletivo, as teorias liberais são incapazes de proporcionar um discurso que fundamente uma justiça distributiva, o que as torna praticamente mudas acerca das escolhas entre valores conflitantes, que são remetidas a meras preferências individuais. Falta nelas justamente um critério material de justiça capaz de abrir espaço suficiente para uma escolha valorativa consistente.

Ainda no século XIX, esse vazio foi percebido, o que deu margem ao desenvolvimento de alguns discursos que buscavam incorporar à ética moderna a possibilidade de admitir certos padrões de discriminação. Porém, a solução desse problema já não podia apelar para as hierarquias valorativas tradicionais e, em vez de retornar à busca de um bem em si material, os novos esforços se dirigiram à construção de um bem comum, como critério valorativo fundamental.

Rompeu-se, então, a velha tendência aristotélica de desvincular moralidade e felicidade, pois o bem comum é uma espécie de felicidade da maioria. Além disso, rompeu-se o discurso deontológico que está na base da moral cristã e kantiana (o ato é moral na medida em cumpre um dever), por meio da introdução de um elemento que marcou profundamente os discursos contemporâneos: a idéia de finalidade.

Essa inovação modifica profundamente a estrutura da argumentação, tanto na moral como no direito. O discurso normativo típico do início do século XIX tinha um caráter deontológico, pois a correção do ato era medida na sua adequação a uma norma com um conteúdo predefinido. Esse tipo de articulação dava um predomínio à aplicação, na medida em que a moralidade era pensada em termos de aplicação de regras a fatos, o que deixava de fora da discussão a própria validade das regras.

Fundamentar uma norma significa colocá-la acima de qualquer dúvida razoável, e uma tal blindagem das normas tem uma função ideológica clara: reforçar o seu cumprimento, por meio de sua inquestionabilidade. Porém, a aceitação social dessa estratégia somente ocorre quando as soluções proporcionadas pelo sistema jurídico são sentidas como justas, o que torna a legitimidade do direito muito suscetível a mudanças na sensibilidade social. Assim, a gradual percepção da injustiça social criada pela aplicação das normas vigentes no século XIX conduziu a uma rejeição crescente das próprias regras e à busca de um sistema normativo mais justo.

No campo da filosofia, essa transição se revelou na forma de uma renovação dos discursos de justiça distributiva, voltados a tratar do que se chamava de a questão social. O processo de urbanização e de industrialização gerou alterações substanciais na organização social, e as novas relações precisavam de um tratamento que protegesse os hipossuficientes com tratamentos diferenciados. Era necessária uma espécie de redistribuição social de direitos, de riquezas e de poderes, e o conceito a partir do qual se operou essa reorganização social foi a noção de bem comum.

No direito, esse movimento revelou-se na forma do processo de democratização, pautado pela idéia de que a legitimidade do poder se dava na medida em que ele proporcionava o bem comum. Com isso, foi reforçada a noção de democracia, que não estava no centro da concepção liberal de Estado, na qual a garantia dos direitos fundamentais não era feita por meio da busca coletiva do bem comum, mas pela garantia de que cada indivíduo pudesse realizar livremente seus interesses individuais. E, na medida em que o bem comum sempre impõe limitações à liberdade individual, ficou marcada a contemporânea tensão entre liberalismo e democracia, na qual estamos imersos até os dias de hoje.

Uma das primeiras tentativas de articular teoricamente essa tensão foi o utilitarismo de John Stuart Mill[24], que contrariou a principal tese aristotélica ao afirmar que o critério básico de moralidade é o prazer. Um ato é moral na medida em que tende à realização do maior grau possível de prazer para o maior número de pessoas.

Trata-se, então, de uma conversão de qualidade em quantidade bastante adequada aos princípios cientificistas da época. A redução da ética a um cálculo capaz de quantificar o prazer e a dor e a medir o quanto de prazer líquido (algo como ∆Prazer - ∆Dor) um ato tende a causar. Com isso, a moralidade deixa de ser medida com base na adequação normativa a um código predefinido, e passa a ser medida por meio de um cálculo objetivante que avalia as conseqüências prováveis. Conseqüências e finalidades substituem as noções de motivo e norma, o que confere ao discurso moral utilitarista uma feição bastante inovadora.

O utilitarismo não se vinculava à necessidade de uma fundamentação racionalista nos moldes daquela proposta por Kant, pois ele não se afirmava o portador de uma verdade objetiva. Stuart Mill, que era ligado ao empirismo, negava a existência de critérios éticos universais e necessários, afirmando que era a própria fixação dos critérios sociais de moralidade que gerava a possibilidade de um julgamento moral. Trata-se, portanto, de uma historicização da moral, que passou a ser apresentada como resultante do próprio desenvolvimento social. De certo modo, temos um retorno ao pensamento de Trasímaco, temperado por uma tendência democrática a substituir a vontade do mais forte pela vontade da maioria.

8 - O positivismo sociológico

Nas teorias vinculadas ao estado liberal, a interpretação foi inicialmente compreendida como um mecanismo de elucidação do conteúdo posto na lei pela vontade do legislador. Em um segundo momento, as influências da Jurisprudência dos Conceitos impuseram a visão da interpretação como uma forma de reconstruir o sentido correto da norma, dentro de uma visão sistemática do ordenamento. De um lado ou de outro, existe uma tentativa de resguardar a segurança jurídica contra arroubos subjetivistas dos intérpretes.

Porém, quando o Estado Liberal entrou em crise, a busca de extrair decisões justas de um direito defasado fez com que os juristas construíssem instrumentos hermenêuticos capazes de oferecer aos casos concretos soluções que fossem socialmente percebidas como legítimas. Essa operação foi realizada por meio de uma valorização da argumentação finalística, voltada a introduzir no direito a busca do bem comum como um critério hermenêutico relevante.

Assim foi que, no final do século XIX, muitos juristas acentuaram o fato de que as palavras da lei admitem interpretações diversas e que, portanto interpretar é escolher, dentre as muitas significações que a palavra oferecer, a justa e conveniente[25]. Esse movimento exigia que os juristas adotassem uma postura hermenêutica mais ativa, consciente dos limites da interpretação gramatical e do viés conservador das interpretações sistemáticas.

Uma das potencialidades dessa transformação seria uma efetiva politização do discurso judiciário, em que os juízes tomassem decisões que poderiam contrariar as regras positivadas, desde que tivessem como objetivo a realização do bem comum. Houve inclusive ensaios nesse sentido, dos quais o mais conhecido é o "bom juiz Magnaud", que na virada do século tomou uma série de decisões motivadas pelo seu sentido de justiça. Contudo, embora várias dessas decisões tenham sido bem recebidas pela opinião pública e algumas delas tenham sido incorporadas à jurisprudência, ficou patente que esse tipo de postura judicial gerava uma insegurança jurídica demasiada, pois sujeitava as partes ao sentimento de justiça individual do julgador.

Porém, tampouco era possível limitar o raciocínio jurídico a uma análise do sentido literal ou sistemático das normas, na medida em que o direito enfrentava uma forte crise de legitimidade. Como afirmou Saleilles, um dos principais representantes dessa mudança de mentalidade na França, era preciso que o direito se curvasse a esse mundo novo, que desse satisfação a essa nova justiça, o que exigia uma adaptação às transformações econômicas e sociais que se produziam[26].

Portanto, era necessária uma solução de consenso, que permitisse uma flexibilização da interpretação (motivada por questões políticas) sem que se perdesse a segurança jurídica esperada de um sistema que não poderia atribuir aos juízes uma autoridade política soberana. Como o direito se encontrava defasado, era preciso que parte do processo de atualização fosse realizada pelos próprios juristas, e não apenas pelos legisladores, que não conseguiam acompanhar a rápida marcha dos fatos.

O que se buscava naquela época era algo paradoxal. Tornou-se claro que era preciso tornar o direito permeável às noções sociais de justiça, sem as quais o próprio sistema jurídico perde a sua legitimidade. Contudo, não era admissível uma politização do discurso jurídico, porque isso implicaria a concessão aos juízes de um poder político que também não seria legítimo. Como realizar esse milagre de politizar o discurso sem politizá-lo?

A resposta encontrada para este dilema foi a de que era preciso identificar valores objetivamente corretos, em nome dos quais os juízes pudessem agir sem que isso implicasse a imposição de sua vontade subjetiva. Mas quem pode definir valores objetivamente corretos?

A saída clássica para esse problema seria desenvolver um discurso filosófico, na busca de um bem em si que justificasse objetivamente a intervenção dos juízes na atualização do sentido das normas. Porém, no final do século XIX, o papel de discurso legitimador já havia sido conquistado pela ciência. A filosofia e a religião, que exerceram esse papel em outros momentos históricos, já não pareciam uma base sólida para assentar qualquer tipo de validade objetiva, pois a forma mais eficiente de conferir confiabilidade a uma postura teórica era demonstrar a sua cientificidade. Naquele momento, parecia fora de lugar a tentativa de realizar uma fundamentação filosófica dos discursos (para que serviria isso afinal?), já que a prova objetiva de qualquer afirmação deveria ser a sua comprovação científica.

Por isso, o século XIX desenvolveu uma nova estratégia de legitimação do discurso jurídico, que não era baseada em sua ligação com a política ou com a filosofia, mas no formato científico que eles procuraram adotar. Inspirados pelas novas ciências da sociedade (especialmente pela sociologia), muitos pensadores defenderam que o direito não se esgotava nas normas, mas que ele deveria ser encarado como a expressão normativa de uma determinada sociedade, na qual o direito cumpre uma função social.

Portanto, o saber jurídico não poderia ser reduzido ao conhecimento de um conjunto de textos legislativos, mas deveria envolver o conhecimento aprofundado da sociedade que os produziu. Essa mudança de perspectiva fez com que muitas pessoas advogassem que a formação jurídica não deveria ser limitada ao estudo das leis, pois os juristas precisariam ser conhecedores da própria realidade sócio-econômica que lhes deu origem[27]. Como os textos são um produto dessa sociedade, eles devem ser interpretados de forma a realizar as suas aspirações. O direito precisa ser um veículo para que a sociedade realize suas próprias utopias de modo dinâmico, adaptando-se ao constante fluxo de mudanças. Portanto, mais importante do que cumprir a letra da lei, é fazer com que a lei cumpra as suas finalidades sociais.

Entram em jogo, então, conceitos como paz social, harmonia social, interesse público, felicidade geral e vários outros que buscam servir como ponte entre a previsão abstrata da norma e uma decisão concreta materialmente adequada às concepções dominantes de legitimidade. Tornou-se, então, preciso conhecer as necessidades sociais para que fosse possível adaptar a elas as soluções jurídicas, que foi a base para uma virada sociológica na ciência do direito.

Para as correntes sociológicas, o importante não era elaborar o sistema conceitual implícito na tradição, mas buscar o que Ehrlich veio a chamar de direito vivo: o direito em sua expressão mais atual, capaz de refletir a consciência jurídica contemporânea de um povo. Essa busca de contemporaneidade pode ser lida como uma radicalização do historicismo, que deixou de ter um caráter meramente conservador, para adotar um caráter prospectivo: o direito histórico não é o que foi construído, mas aquele que está em um processo constante de produção.

O historicismo que estava por trás desse movimento já não era mais conservador como o de Savigny, que opunha o historicismo ao iluminismo. Tratava-se, pelo contrário, de uma leitura da história como progresso, como evolução, como realização no mundo dos próprios ideais iluministas. Porém, na medida em que se constituiu como um discurso científico, o positivismo sociológico não buscavam determinar o ser do direito por meio de referências a um ideal transcendente, e sim por meio de referências a uma descrição científica da sociedade.

Em suas várias vertentes, o positivismo sociológico buscou sempre acentuar o papel criativo inerente à atividade judicial, evidenciando que o juiz desempenha um papel político na sociedade. O norte-americano Roscoe Pound chegou a afirmar que o juiz é um engenheiro social, pois não lhe cabe apenas aplicar regras a casos concretos, sendo sua função a de projetar soluções jurídicas capazes de promover "a melhora da ordem econômica e social por meio de um esforço consciente e inteligente"[28].

Essa noção de que os juristas devem contribuir para que o direito alcance a sua finalidade social é uma das mais caras aos positivismos sociológicos, estando no centro das reflexões de teóricos do peso dos americanos Wendell Holmes, Roscoe Pound e Benjamin Cardozo, dos franceses François Gény e Léon Duguit ou dos alemães Rudolf Von Jhering, Eugen Ehrlich e Joseph Kohler. No Brasil, as reflexões sociológicas encontraram eco em vários juristas do início do século XX, entre os quais merecem destaque Clóvis Bevilaqua e Pontes de Miranda[29] e, mesmo autores que vinculados a posturas mais tradicionalistas mostraram ter alguma influência das teses sociológicas, como Carlos Maximiliano[30].

Essas perspectivas tiveram o mérito de contestar a redução do direito à lei, de revalorizar o conceito de justiça e de tentar infundir no direito os valores dominantes na sociedade, tentando fazer do sistema jurídico um instrumento de justiça social. Assim, as teorias sociológicas não se limitavam a afirmar a validade das regras formalmente vigentes, mas buscavam identificar as normas cujo conteúdo era adequado aos padrões sociais de justiça e legitimidade. Nessa medida, elas ofereciam um conceito material de direito, ligado a uma legitimidade dada por parâmetros de justiça social, em vez de se reduzirem a um conceito formal de direito. Portanto, elas caracterizaram um ganho de legitimidade, pois a flexibilidade que elas trouxeram ao sistema jurídico possibilitava uma gradual adequação do sentidos normativos às aspirações sociais, independentemente de uma alteração legislativa.

9 - Naturalismo sociologista

Os juristas vinculados às principais correntes de viés teleológico tinham objetivos políticos evidentes, mas a realização dessas finalidades tipicamente não era buscada por meio da politização "à la Magnaud" do discurso jurídico, mas sim por meio da elaboração de um conhecimento científico simultaneamente teleológico, histórico e objetivo. Assim, para os problemas derivados do modelo jurídico iluminista, a solução proposta foi uma radicalização do próprio iluminismo, naquilo que ele tem de racional e cientificista.

E foi essa vinculação ao iluminismo, que acredita religiosamente nas potencialidades emancipatórias da razão, que impediu esses teóricos de ver que o que eles promoviam não era uma nova onda de cientificização, mas uma verdadeira politização do discurso hermenêutico. Uma politização relevante, inscrita em um momento histórico de crise de legitimidade e que desempenhou um papel renovador muito importante para a sociedade da época. Porém, tratou-se de uma politização velada, pois ela foi realizada mediante a introdução de novos critérios de verdade e não mediante critérios autônomos de justiça.

Esse velamento terminou conferindo a esses discursos um viés profundamente ideológico, pois se tratava do uso de um linguajar científico para encobrir as posturas políticas subjacentes. E foi assim que o positivismo sociológico terminou sendo bastante infiel com sua própria cientificidade, na medida em que buscava encontrar em uma análise descritiva da sociedade os padrões prescritivos corretos a serem aplicados pelos juristas, como forma de corrigir teleologicamente os desvios axiológicos da legislação. Assim, foi construída uma aporia: os juristas propuseram para a ciência do direito um desafio que ela é incapaz de enfrentar sem que seja desnaturada como ciência.

Esse amálgama entre teleologia e deontologia e entre normas e fatos foi considerado por muitos pensadores como um avanço da teoria jurídica rumo à garantia da justiça. Entretanto, as diversas concepções que mesclavam legalismo e sociologismo tipicamente não tinham um grande rigor científico, especialmente porque havia uma tendência de representar questões ideológicas (que envolviam preferências políticas e ideais de justiça) como questões lógicas (que envolviam análises científicas e raciocínios dedutivos).

A idéia de que o respeito aos interesses sociais deveria prevalecer sobre a observância dos padrões da lógica podia servir como base para um discurso dogmático percebido como justo, porém dificilmente deixa-se articular com a pretensão de construir uma ciência do direito nos moldes positivistas. Isso ocorre porque as tendências sociológicas tendiam a afirmar que o jurista não deveria simplesmente descrever o direito como ele era, mas que ele tinha a função criativa de converter o direito positivo naquilo que ele deveria ser.

Essa atribuição de um sentido político à atividade dos juízes e dos demais profissionais do direito teve um impacto bastante forte, e modificou a nossa percepção da atividade judicial. A atividade jurídica tem um conteúdo político e, por isso mesmo, parece tão extemporâneo recriminar atualmente os Tribunais pela utilização de critérios políticos de julgamento.

Assim, o que está fora de lugar não é a politização do Judiciário, mas a tentativa de encobrir essa politização com um manto de cientificidade que a negava. A tentativa de afirmar que os juízes poderiam aplicar os valores sociais de uma forma científica não passava e uma tentativa de levar a ciência para muito além do seu próprio espaço, convertendo-a em uma ideologia de legitimação do poder. Essa utilização ideológica da ciência não foi uma idiossincrasia dos juristas, mas o resultado de uma sociedade que confiava religiosamente na própria cientificidade.

Uma das análises mais interessantes desse fenômeno foi feita por um sociólogo alemão chamado Jürgen Habermas, que na década de 1960 escreveu um artigo com o sugestivo título de Técnica e ciência como "ideologia". Nesse texto, Habermas mostra como os pensadores do século XIX deixaram de apresentar a sua atividade como uma realização de finalidades políticas e passaram a descrevê-las como uma resolução de questões técnicas (Habermas, p. 70), o que tem um impacto muito grande na forma de discutirmos a legitimidade do poder.

Como ocorreu no utilitarismo de Mill, a avaliação da legitimidade foi dominada por um discurso de matriz científica, que renegou como metafísica toda a discussão tradicional sobre os direitos naturais. Essa cientificização correspondeu a uma espécie de despolitização dos discursos, pois o cálculo matemático de utilidade não é fruto de um debate político, e sim de uma análise técnica. O pressuposto implícito nessa perspectiva é a de que a justiça pode ser desvendada por meio de uma análise científica, e que a organização social pode ser encarada como um problema técnico a ser resolvida pela aplicação adequada de um corpo de conhecimentos pela nova tecnocracia.

Mas isso é pedir demais da ciência. Desde Hume, ao menos, o empirismo tinha como claro que a razão é incapaz de orientar juízos de valor. E o que o positivismo sociológico pretendia era justamente que a ciência pudesse substituir a política, mediante a identificação racional dos valores que deveriam pautar uma aplicação teleológica do direito. Na base dessa concepção, havia a idéia de que existia, na sociedade, um modelo correto de justiça que pode ser conhecido a partir de uma análise científica. Ora, essa pressuposição não é minimamente adequada à complexidade das modernas sociedades, em que a afirmação de que uma norma é socialmente justa não passa de uma fórmula vazia, pois não existe uma concepção uniforme de justiça, mas uma rede de valores polifônicos.

Portanto, partir da idéia de que o cientista social é capaz de identificar os valores corretos de justiça implica adotar um pressuposto epistemologicamente ingênuo (quando as pessoas realmente acreditam que os seus valores pessoais são os valores socialmente corretos) ou cínico (quando as pessoas sabem que os seus valores são subjetivos, mas os tratam como objetivos, na tentativa de justificar a sua imposição). De uma forma ou de outra, a possibilidade de construir uma ciência do direito se perde, pois ela se transformaria em uma concepção ideológica inconsciente (quando ingênua) ou em uma distorção consciente da realidade (quando cínica).

E, como toda teoria crítica que não assume claramente os pressupostos valorativos em que é calcada, os discursos sociologizantes (ou economicizantes, ou psicologizantes, ou tudo isso ao mesmo tempo) tiveram uma grande densidade política, mas uma fragilidade epistemológica gritante. E foi justamente essa fragilidade epistemológica, revelada na falta de uma delimitação adequada tanto do objeto quanto do método, que moveu juristas de viés analítico a empreenderem a busca de construir um discurso verdadeiramente científico, dentro dos padrões positivistas de ciência, que à época se tornavam cada vez mais ligados ao neopositivismo lógico do Círculo de Viena e do primeiro Wittgenstein.

10 - O giro linguístico

No início do século XX, a força do pensamento científico era tão grande muitos filósofos pretenderam simplesmente converter a filosofia em ciência, realizando uma espécie de ciência filosófica. Esse movimento, que foi batizado com o curioso nome de empirismo lógico, somente se tornou possível em virtude da maior inovação filosófica do século XX, que foi encarar todos os problemas relativos ao conhecimento como problemas de linguagem. Essa mudança, aparentemente sutil, gerou uma revolução filosófica que hoje é conhecida como giro linguístico, ou linguistic turn.

Ao esclarecer a falácia naturalista, Hume estabeleceu os limites da racionalidade científica: o cientista até pode descrever os valores dominantes, mas não deve ter nenhuma pretensão de que exista um conceito racional de bem. Além disso, a ciência precisa escolher um objeto empírico e concentrar-se na sua explicação, o que significa um abandono de todos os objetos metafísicos, em que estão incluídos vários dos objetos típicos da reflexão filosófica. Toda a filosofia clássica era metafísica e, nessa medida, ela era incompatível com o discurso científico.

Porém, alguns estudos lógicos e matemáticos do final do século XIX apontaram um sentido inovador para as questões filosóficas. Percebeu-se que a matemática não era uma ciência, mas apenas uma linguagem. As várias matemáticas são apenas linguagens rigorosas e formalizadas, cuja precisão e rigor possibilita que as explicações científicas sejam mais rigorosas e precisas também. Elas não têm um objeto empírico, pois os números e as suas relações são entidades puramente abstratas. Apesar disso, o conhecimento matemático é fundamental para o próprio pensamento científico. Essa intuição deu margem a um novo conceito de ciência, que podemos chamar de neopositivista: a peculiaridade da ciência é a de que se trata de uma explicação feita por meio de uma linguagem rigorosa e precisa.

Tal inovação abriu espaço para uma adaptação das noções kantianas aos novos tempos. Kant foi muito criativo ao afirmar que era possível um conhecimento metafísico objetivo, na medida em que nós analisássemos a nossa própria racionalidade. E o que o neopositivismo fez na filosofia foi abandonar o platonismo do conceito kantiano de racionalidade (vista como algo metafísico, a ser percebido por meio uma análise transcendental), e apresentar a razão como um modo lógico de lidar com a linguagem.

Esse trânsito para a linguagem deu para a filosofia um objeto empírico. Nossas capacidades linguísticas, nossos modos de dizer, nossas estruturas argumentativas, tudo isso pode ser objeto de uma pesquisa indutiva, capaz de esclarecer as estruturas lógicas por meio das quais a linguagem se processa. Assistimos, assim ao surgimento de um aristotelismo filosófico renovado: uma nova espécie de ontologia, que não se concentrava em desvendar indutivamente a essência dos seres, mas a estrutura lógica da linguagem.

Todo o conhecimento humano é uma explicação linguística e, portanto, os limites do nosso conhecimento são os limites da nossa linguagem. E a melhor coisa a fazer com a filosofia é depurá-la da metafísica, conferindo a ela uma precisão e um rigor tão grandes quanto os da ciência. Dentro dessa perspectiva, o próprio problema da metafísica ganha um novo contorno: sua origem é radicada no fato de que a nossa linguagem pode falar de uma série de objetos inexistentes, como quadrados redondos ou cores invisíveis. Igualmente inexistentes são o bem em si, o valor racional e o poder constituinte originário, que são expressões que não correspondem a nenhum objeto empírico.

Com isso, a filosofia pôde concentrar-se nos problemas da linguagem, voltando-se à sua velha tarefa de analisar a estrutura permanente por trás da multiplicidade dos fenômenos transitórios que captamos pelos nossos sentidos. Essa nova base permanente já não era mais ligada a uma ordem cósmica externa, mas à logica imanente da nossa própria atividade linguística, que se tornou o principal objeto de estudos filosóficos no decorrer do século. Tanto é assim que todas as aproximações inovadoras do século XX foram abordagens linguísticas. O primeiro movimento nesse sentido foi justamente o do empirismo lógico, ou neopositivismo, que transformou a filosofia em uma reflexão acerca da própria ciência e gerou projetos variados de construção de saberes verdadeiramente científicos.

11 - O neopositivismo

O maior representante jurídico do neopositivismo foi o jurista austríaco Hans Kelsen, que formulou a teoria pura do direito como uma tentativa de construir um conhecimento jurídico dotado de rigor científico.

O problema de Kelsen não era despolitizar o direito, mas despolitizar a ciência, retirando dela o caráter ideológico da qual ela se revestiu especialmente nos positivismo sociologistas, no qual ele não reconhecia uma postura verdadeiramente científica. Ainda, na década de 1920, ele chegou a afirmar que "hoje em dia não existe quase nenhuma ciência especial, em cujos limites o cultor do direito se ache incompetente. Sim, ele acha que pode melhorar sua visão do conhecimento, justamente conseguindo pedir emprestado a outras disciplinas. Com isso, naturalmente, a verdadeira ciência do direito se perde"[31]. Assim, Kelsen não se opunha ao desenvolvimento de outras ciências sobre o direito, mas ao "sincretismo metódico" que misturava os vários conhecimentos sem ter em vista as peculiaridades de cada um e, na época, tendia a subordinar todos os raciocínios normativos a questões ideológicas e, com isso, gerar uma pseudo-ciência do direito, em lugar de uma verdadeira ciência normativa.

Kelsen percebeu que várias das teorias ditas científicas não passavam de pseudociência, pois, em vez de descreverem o direito tal como ele é, descreviam o modelo jurídico que os seus membros gostariam que fosse implantado na prática. Nessa medida, embora essas concepções se apresentassem como científicas, elas tinham bases ideológicas e não epistemológicas, o que as desqualificava enquanto ciências. Para escapar desse sincretismo metodológico que obscurecia o próprio direito, Kelsen desenvolveu um processo de purificação da teoria jurídica, cujo objetivo era estabelecer as bases de uma teoria científica depurada de qualquer intenção ideológica e bem delimitada frente às ciências que lhe são conexas. O resultado desse processo foi batizado como Teoria Pura do Direito, que pretendia ser uma teoria científica sobre as normas jurídicas[32] e que trazia uma inovadora descrição do sistema jurídico e uma nova teoria da interpretação.[33]

O primeiro ponto a observar é que não se trata de uma teoria do direito puro, na medida em que Kelsen afirma expressamente que a atividade jurídica envolve escolhas valorativas que somente podem ser efetuadas a partir de um exercício político. O direito não pode ser depurado da política, e até a atividade dos juízes precisa ser vista como um exercício político. O que não é admissível para Kelsen é justamente a tentativa de tratar escolhas políticas como se fossem científicas, o que converte a ciência em uma ideologia que proporciona uma legimação acrítica do poder.

Mas até onde pode chegar uma teoria normativa do direito? Seguindo as tendências do neopositivismo lógico, Kelsen se concentra em uma análise da linguagem do direito, buscando esclarecer a estrutura lógica da argumentação jurídica. Ele percebe que pensamos o direito positivo como um conjunto sistemático de normas, o que o leva a analisar tanto a estrutura lógica dos enunciados normativos e o modo como as normas se organizam na forma de um ordenamento.

O que interessava a Kelsen não era o estudo de um determinado ordenamento positivo, pois ele buscava a compreensão do direito em geral, era uma descrição da própria estrutura da linguagem jurídica, o que o levou a repensar questões como legitimidade, dever, sujeito de direito e Estado. Como esses conceitos deveriam corresponder ao direito em geral, eles não podiam ser incompatíves com nenhum direito positivo em particular, de tal forma que Kelsen se concentrou apenas na forma dos discursos jurídicos, e não no seu conteúdo. Seguindo uma tendência kantiana, ele percebeu que apenas a forma do direito poderia pretender alguma universalidade, enquanto os conteúdos das normas eram todos contingentes e variáveis.

Portanto, a teoria kelseniana faz uma negação veemente de todo o naturalismo, que é justamente um tentativa de afirmar que existem no direito alguns conteúdos necessários, algumas normas que são válidas em si. Na medida em que era puramente formal, a teoria pura do direito pretendia superar a mistura de teoria e ideologia que impedia as teorias jusnaturalistas e sociológicas de se constituírem como um conhecimento propriamente científico. Mas, para realizar esse objeitvo, Kelsen precisava de um conceito puramente formal de validade, que servisse como critério para uma identificação objetiva de certos sistemas como jurídicos.

Quando é possível afirmar que uma regra é válida? Ao analisar essa questão, Kelsen percebeu que a validade de uma norma não era uma característica que estava contida no próprio enunciado normativo, mas na sua conexão com outras regras. Isso acontece porque uma norma somente é válida quando ela é elaborada, por uma autoridade constituída, seguindo parâmetros definidos por uma outra norma. Essa estrutura faz com que o direito seja construído sempre de modo escalonado, pois as cadeias de validade sempre remetem a normas de um patamar superior.

Para facilitar a compreensão dessa estrutura escalonada do ordenamento jurídico é bastante comum utilizar a metáfora da pirâmide. Por vezes chega-se mesmo chamar essa estrutura do ordenamento de pirâmide de Kelsen, mas a metáfora da pirâmide, além de ser anterior à Teoria Pura do Direito (pois remonta ao menos à Jurisprudência dos conceitos de Puchta), em momento algum é utilizada pelo próprio Kelsen. De qualquer forma é didaticamente útil a afirmação de que as normas jurídicas se organizam tal como se fossem dispostas em uma pirâmide formada por uma série de estratos. No topo, encontram-se as normas de maior hierarquia e generalidade e cada escalão inferior é formado por normas mais específicas e de menor grau hierárquico. Construída essa estrutura, podemos falar em normas superiores e normas inferiores, sendo que a validade da norma inferior é sempre derivada da validade da norma superior.

Isso o leva a enfrentar trilema de Münchhausen, para o qual ele dá uma resposta inovadora. Ele reconhece que toda tentativa de demonstrar a validade do direito positivo conduz à admissão da validade de direitos metapositivos, e que isso faz parte da própria estrutura da noção de validade. Portanto, o discurso prático sobre os direitos pressupõe a validade das normas, mas é incapaz de provar objetivamente a sua validade, sem recorrer a elementos metafísicos como o direito divino, a autodeterminação dos povos ou o poder constituinte imaginário.

E, como o trilema mostra que é impossível provar racionalmente a validade de qualquer um desses elementos, Kelsen simplesmente passa ao largo do problema da fundamentação, dizendo que a validade das normas é um pressuposto indemonstrável dos sistemas normativos. Todos eles estão ligados a certos discursos legitimadores, mas nenhum desses discursos é racional e científico. Mas o que Kelsen afirma é que a função do cientista não é legitimar os sistemas positivos. São os velhos jusnaturalistas que, em sua filosofia, pretendiam fundamentar a validade objetiva de certos sistemas. E Kelsen não se vê como um filósofo, e sim como um cientista, cuja função não é a de criticar a validade dos ordenamentos jurídicos, mas apenas a de compreender a sua estrutura.

Portanto, enquanto cientista, a ele não cabe se posicionar acerca da legitimidade política dos sistemas jurídicos particulares. Basta-lhe identificar que todos os discursos jurídicos que lidam com ordenamentos positivos partem do pressuposto de que eles são válidos, o que implica supor a validade de uma norma fundamental. Porém, supor que todo sistema jurídico se assenta em uma norma fundamental é apenas reconhecer que os discursos jurídicos sempre estão assentados sobre uma ficção, sobre um critério de legitimidade que é indemonstrável e que não cabe à ciência analisar. Portanto, afirmar que um ordenamento é jurídico não significa reconhecer a sua legitimidade, mas apenas reconhecer que ele tem uma determinada forma, na qual está presente inclusive a crença em alguma norma fundante. E o que Kelsen faz é justamente analisar a estrutura dos discursos jurídicos construídos sobre essa base ficcional, que assume dogmaticamente a validade do próprio sistema.

E o que ele mostra é que os discursos jurídicos apresentam o direito como um complexo normativo composto de forma escalonada, em que cada norma superior atribui a uma determinada autoridade o direito de produzir uma norma inferior. Assim, a norma superior não determina completamente o conteúdo das normas inferiores, mas atribui competência legislativa a um determinado agente, que deve complementar o direito, mas sem extrapolar os limites de forma e conteúdo definidos pelas normas superiores. Dessa forma, Kelsen sustenta que as normas superiores estabelecem apenas uma espécie de moldura dentro da qual uma autoridade do Estado tem competência para tomar decisões. "Daí resulta que todo o ato jurídico em que o Direito é aplicado, quer seja um ato de criação jurídica quer seja um ato de pura execução, é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado."[34]

Assim, como a determinação do conteúdo é sempre parcial, cada autoridade constituída pelo ordenamento jurídico dispõe da liberdade de preencher a moldura criada pela norma superior. Nessa medida, as autoridades constituídas pelo ordenamento jurídico positivo realizam uma atividade simultaneamente executiva (porque a criação das normas inferiores é uma espécie de execução das superiores) e produtiva (pois, dentro da moldura, a norma superior não determina o conteúdo da inferior).

Porém, mesmo a atividade dessas autoridades é parcialmente criativa, dado que, como afirmou Kelsen, "mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer". Essa ousada afirmação de que a aplicação do direito é uma atividade sempre criativa (embora não completamente criativa) fez com que Kelsen rompesse a distinção tradicional entre a atividade legislativa e a atividade judicial.

Ao afirmar que os juízes não se limitam a aplicar silogisticamente normas a fatos, mas que, dentro da moldura estabelecida pelo sistema normativo, eles criam normas jurídicas para regular os casos que lhe são submetidos, Kelsen é levado a concluir que a atividade do juiz é praticamente idêntica à do legislador: ambos partem de molduras predefinidas e, dentro de um certo campo de liberdade, criam novas normas. Assim, a diferença entre essas funções é de grau e não de qualidade, pois o legislador trabalha com uma moldura mais ampla (para o Congresso Nacional, a única moldura é a Constituição Federal) e regula hipóteses gerais, enquanto os juízes trabalham com uma moldura mais restrita (que envolve todo o sistema jurídico) e regulam casos específicos.

E é justamente ao defender o papel inerentemente criativo e político dos juízes que a teoria kelseniana mais se afasta das teorias hermenêuticas tradicionais, que tentaram justificar cientificidade da atividade jurídica na idéia de que era possível atribuir aos juízes uma tarefa apenas intelectiva: a aplicação de normas a casos concretos, mediante métodos predeterminados. Porém, as descrições da atividade judicial oferecidas pela hermenêutica tradicional (que a descreviam como neutra, científica, objetiva, não-criadora, etc.) certamente pareciam cada vez mais estranhas aos juristas, tal a sua divergência com as observações da efetiva prática do direito.

Com o tempo, a busca de uma metodologia interpretativa perfeita passou a ser vista por muitos pensadores não apenas como uma utopia vã, mas como uma espécie de manipulação ideológica que visava a justificar certas opções políticas a partir de sua vinculação com padrões pseudocientíficos. Tornou-se claro que, subjacente à definição dos critérios corretos de interpretação, estava presente a tentativa político-ideológica de apresentar a atividade judicial como um ato de conhecimento, pois somente assim seria possível justificar a validade objetiva das decisões judiciais.

Como bem descreveu Habermas, a ideologia contemporânea não é tipicamente baseada na afirmação dogmática de alguns pressupostos éticos ou políticos, mas na pretensa demonstração de que certas opções valorativas são cientificamente justificadas[35]. Nessa medida, reconhecer dignidade científica a certos métodos de interpretação significa blindá-los contra questionamentos valorativos. Portanto, não deve causar espanto o fato de que, consciente ou inconscientemente, tantos juristas se esforcem até hoje para caracterizar como científicas as concepções que se prestavam a fundamentar as suas opções políticas.

E foi por rejeitar essa apropriação ideológica da ciência que Kelsen defendeu sistematicamente o abandono da busca da única decisão correta, seja com base em critérios sistemáticos ou sociológicos. Com isso, Kelsen ofereceu uma teoria que levava a sério as críticas de Hume e colocou claramente os limites da racionalidade moderna: a razão pode esclarecer parcialmente o sentido das normas, mas ela é inútil para orientar as decisões políticas envolvidas na atividade judicial. E o melhor que fazemos é admitir que esse elemento valorativo é fruto da ideologia política de cada juiz, em vez de fingirmos que há um modo racional de orientar essas escolhas. Portanto, o desenvolvimento de metodologias racionais de interpretação não passa de uma utopia metafísica a ser descartada pela ciência do direito.

IV - Notas sobre a filosofia do direito contemporânea

A crise do Estado Liberal resultou em mudanças profundas na estrutura do próprio direito, ocorrida entre as décadas de 30 e 50. Essa foi a época em que se ensaiou o modelo do Estado Social, com a edição de uma série de atos legislativos que buscaram efetivar a justiça distributiva que o liberalismo foi incapaz de proporcionar.

Naquele momento, foi positivada uma segunda geração de direitos fundamentais, ligados à garantia de justiça social. Esses novos direitos não mais tinham o aspecto negativo dos direitos individuais do século XIX, mas impunham ao Estado e também aos particulares uma série de princípios, que deveriam guiar a sociedade no sentido de garantir a efetivação da utopia do bem comum.

Nesse novo contexto, não era mais necessário complementar o direito positivo por meio de referências ao direitos naturais, nem sequer era preciso atualizar os velhos códigos com base na abertura do discurso para elementos metajurídicos. Nos novos Estados Democráticos de Direito, as promessas políticas e as utopias sociais foram incorporadas ao próprio direito positivo, na forma dos direitos fundamentais de segunda e de terceira geração. Além disso, os direitos individuais (como a igualdade e o devido processo) deixaram de ser lidos sob um aspecto meramente formal, e adquiriram um conteúdo material que lhes conferiu uma densidade axiológica renovada.

Com isso, o problema fundamental da hermenêutica jurídica foi modificado. Não se tratava mais de simplesmente compreender os textos, nem de atualizá-los com vistas a uma adaptação aos novos tempos. As promessas contidas nos novos direitos fundamentais eram tão grandes que a dificuldade com a qual lidamos atualmente é a de lhes conferir uma real aplicabilidade. Desde então, desenvolvemos uma série de instrumentos teóricos para lidar com esses novos desafios, como é o caso da distinção entre regras e princípios e das técnicas de ponderação de valores.

Com isso, mesmo nos casos em que a legislação infraconstitucional envelheceu e foi ultrapassada pelos valores sociais (como é o caso, por exemplo, do tratamento atualmente dado às uniões homoafetivas), a grande abertura e maleabilidade dos direitos constitucionais contemporâneos permite uma solução intra-sistemática. Não é mais necessário incorporar ao direito, mediante um raciocínio pseudocientífico, os valores políticos que possibilitariam um tratamento adequado a essas questões. E isso ocorre porque o próprio sistema normativo já se tornou tão aberto, tão repleto de princípios valorativamente densos, que as questões políticas podem ser discutidas a partir das próprias categorias jurídicas. E é justamente essa mudança que possibilitou os fenômenos gêmeos da politização do direito e da juridicização da política.

Hoje, somos capazes de refletir sobre os problemas que envolvem escolhas políticas por meio dos vários instrumentos de articulação dos princípios constitucionais. Com isso, o discurso dogmático incorporou uma série de argumentos políticos, inclusive a própria lógica de ponderação, que sempre organizou o discurso político e que era rejeitada pelo discurso jurídico de aplicação.

Nesse contexto, todos os órgãos judiciais, mas especialmente as cortes constitucionais, ganharam uma relevância ímpar no cenário político. Em muitos países, questões politicamente delicadas como a igualdade racial e o aborto foram decididas pelas cortes constitucionais. E, neste século, a pauta do STF está repleta de questões dessa natureza, como as uniões homoafetivas e o aborto de anencéfalos.

Frente a esse novo direito e às questões contemporâneas que ele suscita, existem perspectivas que propõem as mais diversas leituras e enfoques hermenêuticos. Falar das correntes hermenêuticas do século XIX é muito mais simples porque o tribunal do tempo já cuidou de selecionar as linhas cuja influência foi mais perene. Mas, atualmente, que tipo de perspectivas filosóficas podem servir como orientação para os juristas? Que marcos teóricos são abertos para as pesquisas contemporâneas sobre o direito?

A principal característica do cenário contemporâneo é justamente a pluralidade de visões. Várias são as perspectivas em aberto, que passam por retornos ao jusnaturalismo, por retornos a um racionalismo platônico, por análises retóricas de matriz aristotélico, por análises econômicas ou sociológicas do direito, e várias outras.

Entre esses enfoques variados, creio que o principal elo de ligação é a concentração no problema da linguagem. Todas as perspectivas contemporâneas se concentram nas questões linguísticas e reconhecem o aspecto interpretativo e relativo do conhecimento jurídico. A idéia de que existe uma interpretação objetivamente verdadeira a ser buscada em algum mundo das idéias jurídico parece fora de cogitação, exceto em algumas leituras ingênuas do senso comum. Esse tipo de ingenuidade filosófica, contudo, já não tem espaço dentro dos discursos acadêmicos, ainda mais em nível de pós-graduação.

Dentro desse ambiente de pluralidade, poucas são as perspectivas que pretendem ser racionalmente fundamentadas. A maior parte delas reconhece que são apenas enfoques possíveis, cujos pressupostos não podem ser demonstrados racionalmente, na medida em que parece impossível escapar racionalmente do trilema de Münchhausen. Com isso, o que se exige de cada pesquisador é apenas um alto grau de transparência com relação aos seus pressupostos teóricos, especialmente quanto aos critérios valorativos utilizados para resolver os problemas que ele analisa.

Analisar detalhadamente as várias correntes atuais escapa aos objetivos de um curso de filosofia do direito que precisa oferecer uma visão geral dos problemas filosóficos com que toda teoria precisa lidar, bem como uma contextualização histórica que ofereça a vocês um pano de fundo que permita a compreensão dos autores que forem mais compatíveis com a sua sensibilidade.

Mas tenham certeza de que todas essas perspectivas precisam lidar com o trilema de Münchhausen, com os paradoxos da noção de validade e com a definição de critérios de legitimidade. Todas elas precisam posicionar-se frente à metafísica, ao direito natural, à cientificidade do direito e às questões interpretativas ligadas à prática do direito. E a maior parte delas representa uma retomada de alguma das concepções que analisamos.

Para dar uma rápida idéia do cenário contemporâneo, trataremos de algumas das perspectivas que podem atrair a atenção de vocês.

1. Senso comum dos juristas

Creio que o senso comum continua dominado por um jusnaturalismo silencioso que mistura um discurso positivista de aplicação com um discurso jusnaturalista de justificação, que não é trazido à tona porque ele é normalmente dispensável para a solução das questões dogmáticas.

Na perspectiva dogmática dominante, são razoavelmente disseminadas as idéias de que é preciso interpretar as normas combinando os elementos literais e sistemáticos, que permitiriam a identificação racional do sentido correto dos textos normativos. Desde o início do século XX, existe também uma tendência a reconhecer a possibilidade do uso de argumentos teleológicos, mas que devem ser reservados apenas para os momentos em que a interpretação sistemática conduz a absurdos muito evidentes, dado que existe uma percepção de que esse tipo de argumentação politiza indevidamente o direito e coloca em risco a segurança jurídica.

Esse tipo de concepção está ligada à reprodução dos discursos dogmáticos, que não refletem filosoficamente sobre as questões de legitimidade, sobre as estruturas argumentativas nem sobre os procedimentos de interpretação. Sob essa perspectiva, o direito é visto como um conjunto de normas a serem aplicadas, cujo sentido deve ser descoberto por meio da análise da doutrina e da jurisprudência, que funcionam segundo a estrutura pré-moderna dos argumentos de autoridade.

Não se trata, portanto, de uma perspectiva científica nem filosófica, mas de uma espécie de enfoque teológico, que sacraliza o direito positivo e se alinha acriticamente com a conservação da tradição jurídica hegemônica. No discurso dogmático, o sentido correto é identificado como o sentido dominante, o que confere ao jurista que adota essa perspectiva uma grande capacidade de descrever as interpretações hegemônicas e de argumentar no sentido de sua extensão aos casos similares. Esse tipo de conhecimento é suficiente para o exercício profissional do direito, que é voltado justamente à reprodução dos sentidos dominantes, cuja manutenção é entendida como respeito à segurança.

Porém, o domínio do discurso técnico-dogmático não confere aos juristas capacidade para atuar na crítica do direito positivo, nem de refletir filosoficamente sobre os seus pressupostos teóricos ou de analisar cientificamente a sua estrutura e as suas consequências.

Assim, um dos desafios na produção acadêmica do direito é ensinar aos estudantes a escapar do discurso técnico típico das sentenças, das petições e dos pareceres. Esses tipos de texto podem limitar-se a dar opiniões construídas em nome da autoridade do próprio autor ou da autoridade de juristas consagrados ou de órgãos judiciais. Contudo, essa abordagem é insuficiente para o discurso acadêmico moderno, que recusa o argumento de autoridade e exige o esclarecimento dos pressupostos teóricos e também uma argumentação exaustiva e transparente, que dialogue com as alternativas existentes, em vez de fechar-se em si mesma.

2. Neopositivismo

a) Escolas analíticas

Mas a perspectiva tecnicista da dogmática não o único positivismo existente, dado que é possível adotar uma postura positivista consciente dos seus próprios pressupostos, tal como fizeram Kelsen e Hart, que são os principais nomes ligados à escola analítica do direito. Esses autores analisaram a estrutura dos discursos jurídicos e adotaram uma postura explicativo-descritiva, atribuindo à ciência do direito a função de compreender o próprio modo de articulação dos discursos ligados à aplicação prática do direito positivo.

Esse tipo de positivismo ganhou especial relevância pelo fato de que os direitos fundamentais converteram em direito positivo muitos valores sociais, tornando possível que a solução das questões políticas seja lida como questões técnicas de interpretação do direito e de concretização normativa.

Porém, a adoção desse tipo de enfoque envolve o reconhecimento da inescapabilidade do trilema de Munchhausen e da falácia naturalista, e também a admissão de que é impossível tratar racionalmente os juízos de valor. Assim, os estudos vinculados ao neopositivismo analítico não vão ser dedicados à tentativa de oferecer resposta às questões dogmáticas ligadas à aplicação, justamente porque isso ultrapassa os próprios limites da ciência.

Porém, com base nesse tipo de perspectiva, é possível fazer estudos variados sobre as estruturas argumentativas utilizadas pela doutrina e pela jurisprudência, evidenciando os seus pontos de partida e avaliando a coerência sistemática dessas construções.

Se você se identifica com essas aproximações, leia a Teoria Pura do Direito de Kelsen, o O Conceito de Direito de Hart.

b) Realismo jurídico

Outra perspectiva que podemos considerar como neopositivista é a abordagem do realismo jurídico, nome que é dado à corrente que encara o direito como uma ciência voltada a prever e a explicar as decisões judiciais.

O realista não pressupõe que a decisão vai ser derivada de uma aplicação de normas, pois ele parte do princípio de que vários são os elementos que realmente conduzem os julgadores a tomar suas decisões.

Compreendendo que cada sentença é fruto de uma rede de fatos e de argumentos que determinam as decisões dos juízes, os realistas tentam identificar os reais fatores que conduzem à decisão, os quais muitas vezes não são explícitos. Assim, os realistas não se prendem à análise dos discursos normativos (como fazem os analíticos), e sim a uma busca dos fatos que orientam esses discursos.

Se você se identifica com essa posição, leia o Sobre direito e justiça, de Alf Ross.

3. Teorias hermenêuticas

Durante o século XX, foram desenvolvidas várias teorias de caráter hermenêutico, que buscaram compreender devidamente os fenômenos da interpretação. Rompendo as noções novecentistas ligadas à busca da vontade do legislador e da descoberta dos sentidos sistemáticos, as teorias hermenêuticas partem do pressuposto de que o sentido das normas não é descoberto no texto, mas construído pelo intérprete a partir do contato entre o texto e o horizonte de interpretação definido pelos seus conhecimentos e valores prévios.

Essa perspectiva é motivada pelo reconhecimento, de matriz aristotélica, de que não existe um método único de interpretação, e também de que não há uma interpretação correta em si dos textos. O principal nome dessa corrente é o do alemão Gadamer, que acentuou o fato de que toda interpretação é feita por meio de um processo circular, em que o intérprete projeta sentidos para um texto (projeção essa derivada do seu conjunto de precompreensões) e adapta gradualmente essas projeções para que o sentido do texto completo e de cada uma de suas partes forme um conjunto coerente.

Assim, a hermenêutica aponta para a terceira saída do trilema de Münchhausen, sustentando que a circularidade não é um absurdo e nem é vazia. Somos limitados ao horizonte de compreensão que é aberto pelos nossos pressupostos, horizonte esse que pode ser ampliado e transformado, mas nunca ultrapassado ou fundamentado.

Segundo essa perspectiva, a interpretação não é uma descoberta e sim uma construção, organizada por critérios dinâmicos de coerência hermenêutica e não por uma metodologia previamente definida de análise. Creio que esse tipo de abordagem diz mais a sensibilidades aristotélicas, que têm dúvidas severas sobre a existência de sentidos metafísicos, sobre valores em si, mas que se sentem vinculados a sua própria tradição. Além disso, creio que ela é mais atraente para quem gosta da idéia de Heráclito de que tudo muda, dado que a hermenêutica é uma teoria que afirma de modo radical a historicidade do homem e do direito.

Atualmente, o principal nome vinculado a esse tipo de sensibilidade é o do jurista inglês Ronald Dworkin. Esse autor trabalha com a noção de que existe uma correta para cada caso (contrapondo-se ao positivismo que nega a possibilidade de julgar a correção de escolhas valorativas), o que aparentemente o afastaria das noções hermenêuticas.

Porém, o importante é notar que o critério de correção que ele usa é histórico, e ele não fala de uma interpretação correta em si, mas da interpretação mais adequada a um determinado momento histórico, no sentido de que ela oferece uma coerência narrativa ao modo como uma sociedade compreende sua própria história jurídica.

Assim, ele não pretende introduzir critérios científicos meta-jurídicos (como os positivismos sociológicos), mas oferecer uma compreensão ampla do direito, capaz de interpretar os princípios constitucionais (que sempre admitem múltiplos entendimentos) de modo adequado compreensão que uma sociedade tem de si mesma.

Se você se interessou por esse enfoque, leia o Império do Direito de Ronald Dworkin, e a minha tese de doutorado, que trata das relações entre hermenêutica filosófica e hermenêutica jurídica, e está disponível no site www.arcos.adv.br.

4. Teorias críticas

Outra das grandes linhas atuais é a das teorias críticas. Sob esse rótulo, cabem várias correntes de conteúdo muito diverso, mas que têm em comum o fato de proporem um conhecimento engajado.

Herdeiras das linhas sociológicas do começo do século, as teorias críticas estão normalmente vinculadas à crítica da ideologia de origem marxista, cujo representante mais reconhecido nos dias de hoje é o alemão Jürgen Habermas. Elas partem da idéia de que o saber jurídico tem sempre um componente ideológico, e que todo o processo de purificação e de cientificização tende a conduzir a posturas conservadoras. Habermas, inclusive, realizou estudos hoje clássicos acerca da utilização ideológica da ciência.

Inspiradas pelo ideal marxista de que a função da filosofia é transformar o mundo, e não apenas descrevê-lo, estas teorias se contrapõem frontalmente ao positivismo, que afirma a sua cientificidade justamente no fato de se propor como um conhecimento politicamente neutro. Para as teorias críticas, essa neutralidade é ilusória e está vinculada normalmente a um projeto político conservador, que tenta se revestir como científico.

Mas o caráter anti-positivista não significa uma tendência anti-racionalista, pois elas são normalmente herdeiras do projeto moderno de ligar razão e valores. Creio que elas correspondem a uma sensibilidade mais platônica que aristotélica, pronta a reconhecer que é necessário haver alguma vinculação metafísica para dar sentido às nossas percepções do mundo, pois a alteração da realidade sempre é movida por algum elemento utópico.

Esse ponto também explica a clássica tensão entre as teorias críticas e as teorias hermenêuticas, em que estas são acusadas de serem tão conservadoras quanto o positivismo tradicional, pois não oferecem categorias adequadas para fazer uma crítica dos valores dominantes em uma tradição. Assim, se a sua percepção do direito encontra-se vinculada a uma utopia política específica diversa do liberalismo dominante, provavelmente você vai se identificar com alguma das vertentes da teoria crítica.

Se você se interessa por esse enfoque, busque textos de Habermas, como o Direito e Democracia.

5. Pragmatismo

Outra perspectiva contemporânea é o pragmatismo, um dos desenvolvimentos do empirismo que reconhece a inexistência de valores racionais e aponta para o engajamento pessoal em projetos que ofereçam a base valorativa para orientar a nossa atuação no mundo.

Essa perspectiva tem fortes ligações com a teoria crítica, mas diferencia-se dela porque o seu platonismo é muito reduzido. Enquanto as teorias críticas normalmente consideram que o seu engajamento tem um fundamento racional e objetivo, o pragmatista reconhece hermeneuticamente que o seu engajamento é sempre contingente, provisório e subjetivo.

Creio que essa perspectiva é adaptada a sensibilidades seduzidas pela idéia do relativismo e de um historicismo radical, mas que não são atraídas pelo aspecto meramente explicativo dos enfoques positivistas, por pretenderem desenvolver atividades que provoquem transformações na realidade.

Por reconhecer a inescapabilidade do trilema de Münchhausen, seria descabido que um pragmatista tentasse demonstrar a validade dos seus pontos de partida, mediante alguma espécie de fundamentação. Contudo, ele pode tentar persuadir outras pessoas a se engajarem no seu projeto, o que é feito por meio de estratégias retóricas de sedução, e não por argumentações demonstrativas de viés científico.

Se você se interessou por esse enfoque, busque textos de Richard Rorty, especialmente o debate dele com Habermas, que está contido no livro Filosofia, Racionalidade, Democracia.

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Habermas, Jürgen. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 2001.

Hobbes, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Nova Cultural, 1997.

Holmes, Oliver Wendell. The common law. 47ª ed. Boston: Little, Brown and Company. (1881).

Kant, Immanuel. Fundamentación de la Metafísica de las Costumbres. 12ª ed. Madrid: Epasa Calpe, 1996.

Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. 3a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

Larenz, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2a ed., 1982.

Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. São Paulo: Revista Forense, 1999 (1924).

Mill, John Stuart. Utilitarismo. Coimbra: Atlântida, 1961.

Olivecrona, Karl. Law as fact. London: Stevens & Sons, 1971.

Rocha, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. 2ª ed. São Leopoldo: Unisinos, 2003.

Rorty, Grandiosidade universalista, profundidade romântica, finitude humanista. Em: Souza, José C. de. Filosofia, Racionalidade, Democracia. São Paulo: UNESP, 2005.


  1. Rorty, Grandiosidade universalista, profundidade romântica, finitude humanista. p. 247. ↩︎

  2. Descartes, Disrcurso do Método, p. 30. ↩︎

  3. [Olivecrona]{.smallcaps}, Law as fact, p. 11. [tradução livre] ↩︎

  4. [Hobbes]{.smallcaps}, Leviatã, cap. XIII, §§ 14/15. ↩︎

  5. Hobbes propunha um absolutismo em que o único direito dos homens seria o de legítima defesa, Locke propunha um governo que deveria respeitar uma vasta gama de direitos naturais e Rousseau propunha um governo democrático. ↩︎

  6. Embora essa conclusão seja comum, são bastante diversos os motivos que levam a ela. Hobbes, por exemplo, sustenta que a manutenção do estado de natureza seria irracional porque ele não oferecia qualquer tipo de segurança. Já outros contratualistas, como Locke e Rousseau, afirmam que o estado de natureza não era caótico e inseguro, mas as vantagens do estado de sociedade seriam suficientes para que o homem se visse racionalmente compelido a organizar uma sociedade civil. ↩︎

  7. Conceito utilizado pelos contratualistas para designar o estado do homem antes da organização das sociedades civis. ↩︎

  8. [Aristóteles]{.smallcaps}, Ética a Nicômacos, p. 103. ↩︎

  9. 357a. ↩︎

  10. [Aristóteles]{.smallcaps}, Ética a Nicômacos, 1096b. ↩︎

  11. [Aristóteles]{.smallcaps}, Ética a Nicômacos, 1107a. ↩︎

  12. [Aristóteles]{.smallcaps}, Ética a Nicômacos, 1095b ↩︎

  13. [Aristóteles]{.smallcaps}, Ética a Nicômacos, 1098b. ↩︎

  14. [Aristóteles]{.smallcaps}, Ética a Nicômacos, 1104b. ↩︎

  15. [Aristóteles]{.smallcaps}, Ética a Nicômacos, 1134b. ↩︎

  16. Sensível, neste contexto, significa relativo aos nossos cinco sentidos, e relaciona-se com a afirmação empirista de que não há nenhum conteúdo na nossa razão que não tenha passado pelos nossos sentidos. ↩︎

  17. [Kant]{.smallcaps}, Fundamentación de la Metafisica de las Costumbres, p. 50. ↩︎

  18. Coelho, Teoria crítica do direito, p. 340. ↩︎

  19. Citado por [Larenz]{.smallcaps}, Metodologia da Ciência do Direito, p. 10. ↩︎

  20. Vide [Bobbio]{.smallcaps}, O positivismo jurídico, p. 73. ↩︎

  21. O senso comum teórico dos juristas é uma categoria formulada por Luis Alberto Warat, para definir os hábitos silenciosos de pensamento que estão na base do discurso dogmático dos juristas. ↩︎

  22. [Ferrara]{.smallcaps}, Interpretação e aplicação das leis, p. 176. ↩︎

  23. A obra-prima de Zola é Germinal, publicada em 1855, que trata das condições de vida dos trabalhadores de uma mina de carvão. ↩︎

  24. Mill parte das concepções utilitaristas de Jeremy Bentham, que eram mais individualistas, e insere nelas uma vinculação explícita ao bem comum, conferindo ao utilitarismo a versão cuja influência é mais forte até os dias de hoje. ↩︎

  25. [Kohler]{.smallcaps}, Une nouvelle conception des études juidiques, p. 171. Citado por [Bevilaqua]{.smallcaps}, Teoria geral do direito civil, p. 44. ↩︎

  26. [Saleilles]{.smallcaps}, Prefácio, p. XV. ↩︎

  27. Vide, por exemplo, [Holmes]{.smallcaps}, O caminho do direito, Em: Morris, Os frandes filósofos do direito, pp. 425 e ss. ↩︎

  28. [Bodenheimer]{.smallcaps}, Teoría del Derecho, p. 351. ↩︎

  29. Vide [Rocha]{.smallcaps}, Epistemologia jurídica e democracia, p. 41 e ss. ↩︎

  30. [Maximiliano]{.smallcaps}, Hermenêutica e aplicação do direito, pp. 151 e ss. ↩︎

  31. [Kelsen]{.smallcaps}, Teoria pura do direito, p. 52. ↩︎

  32. Observe-se a pureza não é uma característica do direito, mas da teoria, o que significa que Kelsen não considerava o direito era um objeto puro nem que a criação do direito era isenta de interesses políticos nem que ele era desvinculado da estrutura social ou política de uma comunidade. Ele pretendia afirmar apenas que a ciência do direito deveria ter um objeto e um método puros, ou seja, deveria estudar apenas as normas, sem partir para considerações ideológicas, políticas, sociológicas, psicológicas ou quaisquer outras que escapassem à mera descrição do fenômeno normativo. ↩︎

  33. Como quase todo teórico, Kelsen modificou várias de suas concepções ao longo do tempo, de modo que alguns conceitos relevantes são descritos de modo diverso em suas principais obras, que são a 1a versão da Teoria Pura do Direito (1933), a Teoria Geral do Direito e do Estado (1945), a 2a versão da Teoria Pura (1960) e a obra póstuma Teoria Geral das Normas (1973). As suas idéias sobre interpretação, porém, permanecem fundamentalmente as mesmas desde a publicação da 1a edição da Teoria Pura do Direito, o que torna dispensável uma análise da concepção hermenêutica descrita em cada um dos livros citados e possibilita uma descrição geral da teoria kelseniana da interpretação. ↩︎

  34. [Kelsen]{.smallcaps}, Teoria pura do direito, p. 364. ↩︎

  35. [Habermas]{.smallcaps}, Técnica e ciência como ideologia, p. 78. ↩︎


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