Teoria Pura do Direito: A hierarquização das normas

Texto originalmente publicado no Projeto Arcos: Informações Jurídicas pelas então acadêmicas de direito no UNEMAT: Amanda Caroline Soares, Gabriela Reis Oliveira e Muryel Fernanda Souza Curity Moraes.

A “Teoria Pura do Direito”, de 1934, é uma das obras mais importantes de Hans Kelsen. O neopositivista vienense nasceu na cidade austríaca de Praga, no ano de 1881. Fundou a Escola de Viena, onde lecionou por um período 10 anos (1919-1929). Inovador dos pensamentos positivistas de sua época. Morreu no estado da Califórnia, no ano de 1973.

Kelsen, ao criar sua “Teoria Pura do Direito”, inovou todas as explicações dadas ao direito, pois o desenvolvimento de sua tese tentou fazer deste uma ciência, na qual, todo o seu pensamento ocorre em torno do desejo de ter uma ‘teoria pura do direito’, sendo esta ciência jurídica pura e independente de qualquer outra área de conhecimentos, como a política, a ética, os juízos de valores, a moral, a sociologia, a psicologia, etc.. Assim, tenta explicar o direito através de uma doutrina, sendo esta apenas pura, lógica e precisa, contendo métodos fixos pelos quais se chegaria a um resultado irrefutável. A ciência jurídica deveria ser afastada da política, bem como de outras áreas de conhecimentos, pois se não auxiliam na explicação, devem ser mantidos fora do campo explicativo, haja vista que a referida ciência deverá desempenhar o papel de identificar e descrever as normas que integram determinado ordenamento jurídico. Em síntese, a pureza se dá em relação à doutrina, ciência jurídica, e não ao direito objeto desta última, pois a política é inerente ao próprio direito.

Kelsen analisa nos modelos das ciências da natureza as relações de causa e efeitos, cujo princípio é de causalidade, em que os cientistas formulam leis gerais para a transmissão do conhecimento e assegurar a hipótese de previsibilidade de ocorrência dos eventos.  Neste sentido, o autor infere ao seu rebento a estrutura do dever-ser, através do princípio da imputabilidade, em que um fato torna-se condição de outro conectado com o anterior por uma vontade atributiva do vínculo.

Surgem desta forma, as normas primárias – sanções - tidas como verdadeiras normas e as normas secundárias, ou também denominadas reflexo da primária, sendo normas que evidenciam condutas. Entretanto, as normas secundárias, são normas dependentes, tendo sua identificação somente a partir das normas sancionadoras, ou primárias. Por outro lado, revela Kelsen, a existência de um “mínimo de liberdade”, em que nem sempre a conduta humana estará incorporada em uma sanção.

Ao estabelecer a estrutura do dever na norma jurídica, o autor se preocupa em diferenciá-lo do dever da moral e da religião, já que todos prescrevem normas de condutas.  Assim, a discrepância entre essas normas surgem na perspectiva que: 1) o direito motiva de forma indireta o comportamento humano por meio da ameaça de sanção, 2) o direito forma-se pelos comandos sancionados, possuindo caráter coercitivo exercido apenas pela força física do Estado, e, 3) o direito pertence ao mundo da cultura, ou seja,  advém da vontade humana.

Outro ponto crucial é a validade das normas; assim preconiza Sgarbi¹:

“conforme a teoria Kelseniana, dizer que uma norma é válida é o mesmo que dizer que existe no conjunto normativo e que, por existir, deve ser obedecida e aplicada juridicamente.”[2]

Ou seja, as normas válidas são obrigatórias.

Kelsen também estabelece uma hierarquização das normas, atribuindo a existência destas na dicotomia: Norma superior-fundante X Norma inferior-fundada, a primeira sempre direciona a segunda. A norma superior-fundante é quem regula e institui a criação e os métodos utilizados na norma inferior-fundada. Entretanto, o autor se depara com uma resistência: se há sempre uma superior-fundante, isto é, a Constituição emanando direções às normas inferiores, como se ocorre a existência de uma norma superior que orienta a própria constituição (norma superior-fundante)? Surge nesse momento a norma “hipotética” fundamental, a qual se estabelece como uma pressuposição, uma hipótese capaz de dar identidade e identificar as normas da ordem jurídica.

Em princípio, desempenha o papel de desvincular o direito das deduções, dos pensamentos metafísicos, no entanto, Kelsen se vê obrigado a utilizar da transcendentalidade para justificar sua teoria. Assim a norma “hipotética” fundamental trata-se de um pensamento, uma pressuposição situada em um plano superior e inacessível, estando além do ordenamento jurídico, mas é ela quem confere, segundo o autor, validade a todo o ordenamento jurídico.

Para Kelsen, o direito só existe dentro de um ordenamento jurídico imposto pelo Estado, sendo que a justiça se estabelece na aplicação de tais normas. Neste caso, é irrelevante avaliar a norma jurídica como justa ou não, devido acreditar que o conceito de justiça é relativo, assim, a injustiça é concebida somente se as normas contidas no ordenamento não estiverem de acordo com a norma superior-fundante, isto é, aquela direciona e fundamenta as outras normas tidas como inferior-fundamente. Outro caso de injustiça da norma que o autor vienense admite ocorre quando a norma utilizada na aplicação é oriunda de um órgão que não possui competência para legislar determinada matéria.

Neste sentido, Kelsen peca ao não estabelecer o conceito de justiça, afinal, nem sempre a justiça estará disposta na norma. Além, de que, muitas vezes os próprios órgãos competentes legislam leis arbitrárias que beneficiam somente uma ínfima parcela da sociedade. Em outras palavras, para Kelsen a justiça ocorre somente quando há subsunção da norma ao caso concreto, acabando assim, por limitar demasiadamente a função do julgador, que estará direcionado a norma exercendo apenas um papel mecânico, e não observando os princípios gerais do direito.

No intuito de fundamentar sua teoria, Kelsen tira a ideia de que o judiciário age mecanicamente apenas aplicando o direito, inferindo-se a ideia do afastamento da justiça na aplicação da norma. Neste sentido, ele afirma que a aplicação e a criação do direito não são movimentos separados, em que somente o legislador produz leis e o judiciário as aplica. Assim, Kelsen entende que quando o judiciário se utiliza da constituição, está aplicando individualmente a norma em sua sentença, bem como, criando outras normas.

Entretanto, percebemos que o argumento de Kelsen é falho, pois como pode existir a criação de uma nova norma através da aplicação ao caso concreto, se a lei já está criada e ao julgar não se analisa nada além da própria lei pré-disposta.

Após esta breve explanação geral a respeito da obra Teoria Pura do Direito de Kelsen, direcionamos nossos estudos a partir de então para discorrer sobre um assunto em particular desta obra: a hierarquização das normas.

O direito possui a particularidade de regular sua própria criação, logo uma norma só é válida porque foi criada e determinada por uma outra norma superior àquela. Essa relação de criação é denominada por Kelsen de supra-infra-ordenação. A norma que regula a produção é a norma superior e a norma produzida é a norma inferior. Essa foi a conclusão já apresentada por Kelsen no livro Teoria Geral do Estado de 1925 e na 1º versão da Teoria Pura do Direito, de 1934. Diferentemente do que trouxe em Problemas Fundamentais de Direito Público, 1911 em que o autor identificava a ordem jurídica como um sistema de normas situadas todas num mesmo plano horizontal, umas ao lado das outras.

O modo de criação, função e aplicação das normas inferiores são determinadas pelas normas hierarquicamente superiores. Muitas vezes ainda, é determinado o conteúdo a ser disposto na norma inferior. No entanto, Kelsen ressalta que pelo menos a norma superior deve estipular qual o órgão criador da norma inferior.

Assim cita Kelsen :

“A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental - pressuposta. A norma fundamental - hipotética, nestes termos - é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora.” [3],

como exemplifica a figura  abaixo:

Imagem produzida pelas autoras.

Como mostra a pirâmide, a norma hipotética fundamental é a mais superior dentre o ordenamento jurídico, ”sendo o fundamento supremo de validade da ordem jurídica inteira” (H. KELSEN, 1987)

A norma que se apresenta como fundamento de outra norma é, em relação a essa, uma norma superior, sendo assim a norma hipotética fundamental é o pressuposto de validade de todo o ordenamento jurídico representado pela pirâmide. Logo, a norma jurídica positiva é válida, porque a norma que a fundamenta é pressuposta como válida. Sendo assim, podemos concluir que se a norma fundamentadora perder sua validade, a ordem jurídica que por ela se fundamentava, por consequência, se torna inválida.

A norma hipotética fundamental é assim denominada por estar em um plano superior hipotético além da pirâmide, devido ao fato de não se tratar de uma norma posta, pois esta não está regulada por nenhuma outra e sua validade independe de norma superior. Sendo assim, esta norma é o ponto de partida do processo de criação do direito positivado, tendo como função fundamentar a validade objetiva de uma ordem jurídica posta, sendo então uma norma pressuposta. Deste modo, a norma posta tem sua validade embasada em uma norma que não pertence ao direito positivo, estando aquela funcionando como critérios e limites impostos ao positivismo jurídico.

Saindo do plano transcendental e adentrando no campo do direito positivado, encontramos no topo da pirâmide a figura da Constituição. JAS assim a define:

“A Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que elas o reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às normas jurídicas.”[4]

Kelsen ainda faz uma distinção entre Constituição material e Constituição formal. Entende ele como Constituição material um conjunto de regras que regem a criação das normas jurídicas gerais, em específico os estatutos. Trata-se do documento solene contendo as normas escritas que compõe parte da Constituição formal.

Assim como também citou JAS, a Constituição em sentido material tem como finalidade dar proteção aos órgãos e procedimentos legislativos que projetam tal documento solene, e ainda dificultar a modificação de suas regras.

Já a Constituição em sentido formal traz preceitos que dificultam a alteração ou revogação das normas constitucionais.

Sendo assim, a norma jurídica que contrariar as disposições da Constituição não será considerada válida.

Dando segmento à pirâmide hierárquica, as normas gerais estão imediatamente colocadas após a Constituição. Estas normas são criadas pela legislação, ou ainda, através dos costumes.

Hans Kelsen entende que as normas gerais oriundas do processo legislativo, são normas postas – estatuídas. Trata-se de um processo que estabelece normas de acordo com os interesses sociais tendo como fonte os fatos e valores que a sociedade oferece. Desta forma, o ato legislativo é tido como um fato produtor de Direito.

A Constituição além do ato legislativo  prevê o costume – fato consuetudinário – como criador de Direito. Paulo Nader nos dá a definição de costume como sendo:

“Um conjunto de normas de conduta social, criadas espontaneamente pelo povo, através do uso reiterado, uniforme e que gera a certeza de obrigatoriedade. [...]” [5]

Neste caso, o indivíduo pertencente à comunidade entende o costume com o sentido de um dever-ser, ou seja, sentido de que se deve conduzir de acordo com o costume, logo, os indivíduos praticam os atos costumeiros na convicção de que tais devam ser praticados.

Portanto, entendemos que o próprio indivíduo cria em seu inconsciente uma espécie de ordem, na qual acredita que a forma como age – consuetudinariamente – é a obrigatória. Deste modo, o costume produz direito tal como a legislação.

Para que o Direito Consuetudinário seja aplicado devem os órgãos aplicadores ter competência para tal. E ainda, as normas consuetudinárias só se tornarão normas jurídicas quando essas forem reconhecidas pelos tribunais. Para que isso ocorra, o tribunal devera saber se a norma costumeira contém todos os requisitos para se validar o costume.

Kelsen ainda faz a diferenciação entre lei e decreto. Ele os considera como subdivisões do escalão da produção de normas gerais.

Em regra, as leis são produzidas por um parlamento, porém a Constituição permite que em certos casos excepcionais o governo ou determinado órgão administrativo editem normas gerais.

Estas normas que não são oriundas do parlamento são denominadas de decretos, que ainda podem ser regulamentares ou decretos-leis

Juntamente com as leis, os costumes e os decretos, as jurisprudências compõem o patamar das normas gerais da pirâmide Kelseniana. Assim, reza a brilhante doutrina de Paulo Nader:

“Jurisprudência em sentido estrito: [...] conjunto de decisões uniformes, prolatadas pelos órgãos do Poder Judiciário, sobre uma determinada questão jurídica” [6]

Por fim, na base da pirâmide Kelseniana temos as normas individualizadoras.

Encontra-se neste patamar a figura dos negócios jurídicos e das decisões judiciais.

A respeito das decisões judiciais, Kelsen afirma que estas não possuem apenas caráter declaratório, pois a sua função vai muito além de se descobrir e declarar direitos. Possui a decisão judicial, então, para Hans Kelsen um caráter constitutivo, pois o tribunal deverá primeiramente verificar a constitucionalidade da norma a ser aplicada, e somente depois de se ter feito toda análise necessária é que a norma tornar-se-á passível de aplicação ao caso concreto. Somente neste momento, então, pode se dizer que a lei é vigente.

Kelsen afirma:

“Somente a falta de compreensão da função normativa da decisão judicial, o preconceito de que o Direito apenas consta de normas gerais, a ignorância da norma jurídica individual, obscureceu o fato de que a decisão judicial é apenas a continuação do processo de criação jurídica e conduziu ao erro de ver nela apenas a função declarativa” [7]

A decisão judicial constituirá uma norma geral quando tal decisão criar o chamado precedente judicial. Neste caso, a decisão será vinculada a outros casos idênticos, devido ao fato de a norma individual que ela representa ser generalizada. Sendo assim, os tribunais também exercerão a função de criadores de Direito.

O negócio jurídico, também é considerado como um fato produtor de Direito. Sua forma mais comum é a figura do contrato.

A ordem jurídica confere aos sujeitos do negócio o poder de regular suas vontades, desde que observados os limites estabelecidos pelas normas gerais. A ordem jurídica poderá, ainda, prescrever a forma pela qual o contrato deverá ser celebrado (escrito, oral, v.g).

Através de tal contrato criar-se-á normas entre os contraentes, estipulando a estes direitos e obrigações. Em regra, os contratos criam normas somente aos sujeitos contratantes.

Diante do exposto, entendemos que Kelsen está correto ao apresentar, e declarar, que há dentro do ordenamento jurídico uma espécie de hierarquia de normas. Tal sistema hierárquico existe, e deve existir, para evitar que o ordenamento entre em colapso, ou ainda, entre em contradição. Entendemos porém, no que se referem à finalidade das normas, estas estão situadas num mesmo patamar, pois todas as normas são dispostas com o mesmo objetivo – regular as condutas sociais, estipulando direitos e deveres aos membros da sociedade. Neste caso podemos dizer que não há hierarquia entre elas. Do contrário, tal escala existe, e é perfeitamente aceita.

Por último, Kelsen ainda aponta que, com o ordenamento disposto de forma escalonada é possível haver conflitos entre as normas superiores e inferiores.

Quando tais conflitos envolvem decisões judiciais, Kelsen adverte que esta somente poderá ser anulada pelo próprio tribunal que a proferiu, ou ainda, por tribunal superior. E ainda, quando a lei for contrária à Constituição, diz-se que tal lei é inconstitucional. No entanto, Kelsen afirma que “enquanto, porém, não for revogada, tem de ser considerada como válida; e enquanto for válida, não pode ser inconstitucional”(H. KELSEN 1987, p. 287).

Assim, são essas as principais considerações acerca da obra de Kelsen e de sua correlação com o ordenamento jurídico atual.

REFERÊNCIAS

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

___________. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes.

NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 30ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

REIS, Isaac.Interpretação na Teoria Pura do Direito. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/sequencia/article/viewFile/1224/122>, acessado em:28/06/2010.

SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

TORRES, Ana Paula Repolês. Uma análise epistemológica da teoria pura do direito de Hans Kelsen. Disponível em: http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/cej/article/viewFile/716/896, acessado em: 28/06/2010.



[1] Acadêmicas do curso de bacharelado em Direito pela UNEMAT.

[2] SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito. Lúmen Júris. Rio de janeiro, 2009, p. 41

[3] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, Martins Fontes, São Paulo, 1987, p. 240

[4] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, São Paulo, 2006, p. 45.

[5] NADER, Paulo, Introdução ao Estudo do Direito, Forense, Rio de Janeiro, 2008, p. 157.

[6] Paulo Nader, op. cit., p. 172.

[7]Hans kelsen, op. cit.,  p. 256.