Pensar o social
O presente texto foi originalmente publicado em 2005, como prefácio ao livro Sociedade e Diferença, produzido pelo Grupo de Pesquisa Pensamento Social, que era coordenado por Miroslav Milovic.
Para apresentar aqui o trabalho do nosso Grupo de Pesquisa Pensamento Social, o melhor caminho seria articular as duas questões: do pensamento e do social. Parece-me que a filosofia kantiana poderia ser uma saída ilustrativa para as duas perspectivas. Acho que a importância epocal da filosofia kantiana se encontra, primeiro, na radicalização da compreensão cartesiana da modernidade e, segundo, na nova compreensão da filosofia. Este segundo aspecto inclui também a pergunta sobre o direito. Segundo Hegel, o cartesiano “Eu penso” determina a nova perspectiva moderna. O pensamento como a certeza inicial mudou a perspectiva da metafísica. Como entender essa mudança?
Alguém poderia perguntar se o que chamamos de moderno começou muito anteriormente. Já Agostinho muda a perspectiva da metafísica. A questão sobre o mundo e o divino se coloca dentro da interioridade humana. Assim começa a metafísica da experiência interior. Qual é a diferença entre Agostinho e Descartes e por que a modernidade não começou já com o cristianismo?
Agostinho também começa com a certeza subjetiva, mas o interesse dele é, no final, a questão sobre a existência de Deus. Para Descartes, Deus não é mais a certeza básica. Ele é necessário só para mostrar a existência do mundo além do próprio sujeito. Deus é a necessidade epistemológica e não mais a estrutura ontológica do mundo. Com a certeza sobre a existência de Deus, podemos nos dedicar a pesquisa sobre o mundo sem a influência do gênio maligno. Assim, no final, o mudo aparece como o interesse cartesiano básico.
Contudo, isso também era o interesse da filosofia grega. Por que, então, Descartes, colocando a mesma pergunta, pode ser visto como fundador da modernidade filosófica? Claro que o mundo grego e o mundo cartesiano não são a mesma coisa. Descartes inclusive tenta liberar a imagem do mundo da metafísica aristotélica e tradicional. A estrutura do mundo não é mais teleológica; ela é mecânica e quantitativa. A linguagem do mundo é a linguagem da ciência. O que é moderno no pensamento cartesiano são a secularização do pensamento e o específico desencantamento do mundo. Nesse caminhar, cada vez mais a ciência se afirma. A questão do mundo, no ultimo momento, não é mais a questão da filosofia, mas da ciência. A virada da perspectiva moderna é, desse modo, uma específica perda espiritual.
O que me interessa aqui é a pergunta sobre o moderno na filosofia. Vou tentar mostrar que Kant é muito mais moderno do que Descartes. Eu diria que Kant é o primeiro filosofo moderno. Claro, essas determinações não são tão importantes. A Modernidade se manifesta de modos muito diferentes. Descartes é assim moderno ao falar sobre a autoridade do nosso pensamento, Maquiavel é moderno ao abordar a autonomia da política, Vico é moderno ao discutir a história como perspectiva humana, etc. A questão importante é por que Kant radicaliza a perspectiva cartesiana e por que Kant está criticando um específico dogmatismo cartesiano. Na verdade, Kant fala sobre isso saindo de uma discussão sobre Hume na Crítica da Razão Pura. Vamos tentar explicar isso. A questão do próprio Hume também é moderna. Como pensar a certeza poderia ser a pergunta dele. Nesse contexto, a certeza vem com os juízos da lógica e da matemática, isto é, com os juízos analíticos que não precisam do apoio da experiência e, por isso, se chamam a priori. Hume vai colocar a pergunta sobre o mundo. É esse o interesse moderno. Mas ele vai fazer isso com muito mais cuidado do que Descartes. Ele considera que o conhecimento do mundo tem de seguir a natureza. O nosso guia é mais o habito do que a razão. Aparece, assim, a certeza científica dos juízos sintéticos a posteriori, baseados na experiência.
Sem dúvida, Hume é um filosofo moderno. Ele também vai eliminar a metafísica tradicional que o nosso conhecimento não pode verificar. Porém, parece que o modelo ficou o mesmo. Os gregos, afinal, entendem que o conhecimento tem que seguir o caminho da natureza. O mundo é concebido como a fonte do conhecimento. É, nesse contexto, que se unem os argumentos tão diferentes da tradição e do começo da modernidade. Nesse âmbito das perguntas sobre o conhecimento, Kant, como ele afirma, acordou do sonho dogmático. Se, no caminho empírico, não podemos chegar até o conhecimento universal, temos que pensar outra alternativa saindo do sujeito, que, por sua vez, pensa o mundo saindo da própria estrutura. Desse modo, com essa nova pergunta sobre os juízos sintéticos a priori, com a qual começa a primeira crítica kantiana, chegamos até a ideia da subjetividade constitutiva. Penso que assim se abre a modernidade filosófica: sujeito como a base do conhecimento e não mais o mundo. A palavra sujeito ainda não apareceu em Descartes. A virada para o sujeito ainda não aconteceu com a filosofia cartesiana.
Kant entende, inclusive, que essa virada aconteceu já na própria ciência natural. Os laboratórios científicos são os exemplos da possibilidade do conhecimento sem o apoio da experiência. Parece que Descartes não só não entendeu a filosofia, como também não entendeu a ciência. A ciência, segundo Kant, já afirma a subjetividade constitutiva e, por isso, ela se tornará seu guia na primeira crítica. A ciência é ainda um interlocutor serio para Kant. Teríamos que perguntar por que Hegel não quer mais nenhum dialogo com a ciência. Mas isso é outra perspectiva. Nesse patamar, queria apenas relacionar Kant com a articulação da subjetividade moderna e constitutiva. Kant nos mostrou que a questão sobre o mundo inclui a questão sobre o sujeito. A questão sobre o mundo é, poderíamos dizer, uma específica auto-reflexão do sujeito.
Isso, porém, não é tudo. Trata-se de algo muito mais importante o que poderíamos chamar de uma nova compreensão da filosofia. Poderíamos de novo voltar aos gregos para entender a alternativa kantiana. Os gregos perguntam-se sobre o mundo e acham que ele não se abre somente para ciência, para física, por exemplo. A verdade do mundo é mais profunda e se abre para a metafísica. Filosofia é a metafísica. É esta a herança grega: a metafísica que supera a ciência. Poderíamos pensar sobre isso em nosso mundo dominado pela ciência. O que, de qualquer modo, me interessa é outra coisa. Quando falam sobre a diferença entre a filosofia e a ciência e sobre a superioridade da filosofia, os gregos tratam ambas como formas diferentes do conhecimento. A filosofia é a afirmação do teórico, da contemplação. Os cristãos já vão mudar essa perspectiva.
O nosso mundo não é só o mundo do conhecimento. O conhecimento nos liga com o dado e o humano não esta apenas no dado. O ser humano – poderíamos nos lembrar de Agostinho – foi criado para que seja possível o novo no mundo. Somente os cristãos não ligam essa possibilidade com a filosofia. Para eles, a filosofia é ainda o conhecimento, que tem que ser superado pela fé. Vimos que com Descartes essa perspectiva não mudou. A filosofia é a questão do conhecimento. Descartes desliga a filosofia da religião, todavia, muito rapidamente, a liga com a ciência. Descartes tinha essa oportunidade – que não se realizou – de ligar a filosofia só com “ego cogito”, com a auto-reflexão do sujeito. Isso não aconteceu e Husserl, nas Meditações Cartesianas, vai dizer que Descartes não entendeu a ideia da subjetividade. Poderíamos, portanto, dizer novamente que Descartes não entendeu a filosofia. A filosofia como experiência do sujeito e não do mundo – este poderia ser o caminho para uma outra modernidade.
Verificamos que Kant começa a própria filosofia discutindo os assuntos teóricos. Ele não se confronta imediatamente com a ideia da filosofia como conhecimento. Por isso, a ciência acompanha todo o caminho da Crítica da Razão Pura. Mas, nas últimas paginas deste livro, nos limites da teoria Kant coloca a questão decisiva: podemos pensar teoricamente sobre tudo? A questão da liberdade, por exemplo, é uma questão teórica? A resposta kantiana é negativa. Sobre a liberdade não temos nenhuma certeza teórica. A razão teórica nos deixa com as dúvidas pensando a liberdade no contexto da teoria. A questão da liberdade, por isso, não é uma questão do teórico, mas do prático. Aqui começa a segunda crítica kantiana, a Crítica da Razão Prática. Ela trata da questão da liberdade. A filosofia supera nesse momento toda sua história, em que ficou ligada com a teoria e com o conhecimento. A filosofia não é (só) a teoria, mas também é a experiência do prático. A filosofia é o pensamento da liberdade. Pela primeira vez na história da filosofia, afirma-se a primazia do prático. Essa será a grande inspiração para Marx. O mundo não é apenas o mundo do dado, do sistema capitalista, por exemplo, mas é a possibilidade do novo. Aqui a questão do novo é a questão da liberdade humana.
Nesse contexto, a teoria do direito deve responder, pelo menos, à pergunta que continua em aberto, a saber, o problema da determinação das condições da liberdade exterior. Se a Primeira Crítica discutiu a relação entre natureza e liberdade, se a Segunda Crítica determinou a liberdade em relação ao sujeito mesmo e a Terceira Crítica colocou a questão da mediação entre liberdade e natureza, então uma possível Quarta Crítica – exposta por Kant no livro Metafísica dos Costumes – tenta responder à questão da possibilidade da determinação da liberdade em relação aos outros – e não apenas em relação ao indivíduo isoladamente. Aqui está a tentativa kantiana de fundar o conceito de direito baseado na lei moral, ou seja, na estrutura transcendental das faculdades espirituais. Na determinação do direito, encontra-se novamente a ideia da liberdade, assim como a ideia de possivelmente universalizar a conduta prática, pois esta é a condição necessária para todas as condutas pertencentes à legalidade. Uma modalidade particular da conduta prática é considerada válida se, segundo sua máxima, a liberdade de um puder existir concomitantemente com a liberdade dos outros, todas baseadas na lei universal. Assim Kant entende o imperativo categórico no âmbito do direito.
Kant irá, desse modo, se juntar ao debate sobre as condições de legitimação da política. Parece que ele é o primeiro a propor uma resposta à questão colocada por Rousseau, a saber, o que legitima o contrato como tal – o contrato entendido como a fundamentação da moderna teoria da integração social. A resposta de Kant é simples e se encontra nos princípios a priori. Ele interpreta o contrato não mais como um fato dado, mas como uma norma que se torna critério para determinar a sociedade civil. Esta, por sua vez, não é de modo algum a expressão de alguma consideração utilitarista A alternativa encontrada por Kant em relação a Hobbes não é mais o Leviatã, mas a proposta de uma aliança de cidadãos. A noção de Kant do contrato social posiciona-se claramente em contraste com a ideia hobbesiana do contrato como subjugação. Kant não tomou este caminho das perspectivas sociais. De qualquer maneira, são importantes as indicações, que ele coloca nos últimos trabalhos, sobre o cosmopolitismo e a paz mundial baseada na liberdade.
Se, no final, quisermos unir os dois motivos da filosofia kantiana – a questão da compreensão da modernidade e a questão da compreensão da filosofia -, poderíamos chegar até a conclusão seguinte: a questão sobre o mundo inclui a questão sobre o sujeito. Seguindo Kant, Hegel e Marx vão ampliar essa conclusão e dizer que a questão sobre o mundo inclui também o social. Os gregos não encontraram o sujeito atrás do mundo. Pode ser que isso foi seu erro. Para essa perspectiva, faltavam muitos pressupostos. Nós, os modernos, seguindo a herança kantiana e marxista, poderíamos dizer que não ver o sujeito além do mundo não é mais o erro, mas, sim, a ideologia. Não ver o que poderia ser visto é o signo da ideologia. Kant nos deixou importantes argumentos para nos confrontarmos com a ideologia. Em última análise, a pergunta da Crítica da Razão Prática é como pensar a liberdade no mundo moderno, capitalista. E a questão da autonomia não é outra coisa senão a questão da liberdade.
Todavia, Hegel alega que Kant, ao afirmar o sujeito constitutivo, ainda permaneceu dentro da relação cartesiana entre sujeito e objeto que se propunha a criticar, pois o sujeito kantiano, assim como o cartesiano, ainda está fora do objeto. Hegel defende que essa posição não afirma a verdadeira perspectiva do sujeito, isto é, a possibilidade dele se realizar no mundo e, desse modo, Hegel critica a Primeira e a Segunda Críticas kantianas. A dignidade do sujeito e da nossa razão ainda não se encontrariam no mundo kantiano. Quando aborda a nossa liberdade, Hegel acredita que Kant irá cometer o mesmo erro, já que, ao pensá-la, Kant vai limitá-la à nossa interioridade e não ao mundo mesmo. Aqui, Hegel acredita participar, como testemunha, de um acontecimento político – a Revolução Francesa – que mostra a sua idéia de que a razão já se realizou no mundo. Segundo ele, a Revolução mostra a razão no mundo, o mundo governado pela razão.
Entretanto, Hegel ainda não chega, ao menos nesse ponto, até as dúvidas que Marx coloca sobre a própria Revolução Francesa. Marx escreve várias vezes sobre a grandeza da filosofia hegeliana, que afirma a ideia do trabalho. Poderíamos compreender a tarefa de Marx dizendo que ele, por um lado, quer seguir essa ideia hegeliana, liberando-a, por outro, da metafísica do espírito que ela possui em Hegel. Trabalho sem metafísica – essa poderia ser, em poucas palavras, a consequência que Marx quer tirar da filosofia de Hegel. Seguindo o idealismo alemão, Marx pensa a classe operária como o sujeito constitutivo que já apareceu na filosofia kantiana. Ele procura romper com a metafísica do passado, esclarecendo as condições da constituição do nosso pensamento e da nossa vida social. “Destruição da metafísica econômica” poderia ser, então, o título do projeto marxista. Pensar inclui, assim, as condições do social. Seguindo a filosofia como o pensamento da liberdade, Marx chega até a filosofia como pensamento da revolução. Pensamento e a questão do social são, com Hegel e Marx, duas perspectivas que não podemos separar.
Vou apenas indicar, agora, algumas perspectivas dessa discussão. Voltando para a filosofia kantiana, Deleuze vai dizer que Kant é o primeiro filosofo que introduziu a questão da diferença na filosofia, no sentido da diferença transcendental. Todavia, essa diferença fica, por assim dizer, contaminada pela própria subjetividade que só articula as perspectivas da Identidade. Liberar o pensamento da Identidade é uma referência pós-kantiana na filosofia. Mesmo falando sobre a inspiração kantiana, Heidegger vai entender a destruição da Identidade, a destruição da metafísica como a questão da diferença, da diferença ontológica. Parece que a questão sobre o ser tem que ser colocada de novo, agora como a questão sobre o próprio ser humano. Em Heidegger, entretanto, a questão sobre a diferença ainda não é a questão sobre os Outros. Sair dessa perspectiva heideggeriana para pensar os Outros na própria racionalidade vai ser o projeto hermenêutico de Gadamer, o projeto da pragmática universal de Habermas, o projeto ético de Lévinas e o projeto político da Hannah Arendt.
O próprio Deleuze vai entender a pergunta heideggeriana sobre a diferença como a pergunta sobre a dinâmica da diferença que não cria os novos lugares privilegiados na filosofia. Isso é o ponto comum entre Deleuze e Derrida. O pensamento pós-metafísico articula-se, assim, como o pensamento da diferença. Pensar significa articular o Novo. Pensar quer dizer criar. O pensamento aparece como potência e, não, como a representação do mundo dado. E inclui não só a crítica das formas tradicionais e modernas da filosofia da identidade, mas também as formas do social. O Capitalismo – já para Marx – é a forma da metafísica moderna, da paralisação econômica e política do mudo que hoje se chama globalização. A dinâmica que o capitalismo cria é só um simulacro para não ver a paralisação do sistema, poderia dizer Marx.
O liberalismo cria as alternativas só dentro da Identidade, dentro da metafísica da economia. Metafísica da economia? A palavra parece fora do discurso econômico, político, sociológico… Desse modo, estamos chegando até um certo paradoxo atual. O que é o essencial, para o sistema capitalista, desaparece do olhar teórico. O sistema não vê ou não quer ver, juntamente com a própria ciência, os próprios pressupostos. É o sinal, acompanhando Marx mais uma vez mais, de uma nova forma da ideologia do social? O pensamento social tem que incluir este tipo da reflexão.
Ele também tem, em conjunto com Hannah Arendt, de discutir as condições da reificação do social na Modernidade de onde, segundo ela, não estão saindo as alternativas para o pensamento. Que tipo do social articula a diferença e o novo? Onde aparece a diferença na teoria, na economia, política ou direito? Repensar ou, melhor dizer, inventar o mundo seria o projeto para um novo pluralismo e um novo cosmopolitismo.