Linguagem e Sociedade

1. Introdução

Os debates sobre o mundo tipicamente não são debates sobre as percepções que temos de um objeto determinado, mas sobre as maneiras corretas de descrever e de classificar um conjunto de fenômenos. Quando começa a vida? Quais são os efeitos colaterais de um medicamento? Qual é o candidato com mais chances de ganhar uma eleição? Perguntas como essas não envolvem a descrição de um fenômeno particular, mas a análise de um grande número de fatos, cuja observação conjunta permite formular os padrões explicativos que chamamos de conhecimento.

Enquanto esses debates estão apenas no plano categorial, poucas pessoas se interessam por eles. Qual o conceito jurídico de pessoa? Quais são os tipos de sentenças judiciais? Todo ato que encerra um processo deve ser chamado de sentença? Nesse plano abstrato, tais discussões podem parecer um exercício burocrático de erudição, uma filigrana acadêmica.

Mas acontece que os resultados desses debates podem ter implicações práticas imensas. Uma transição no que se chama de pessoa pode mudar o estatuto jurídico dos fetos (com reflexos na regulação jurídica do aborto) ou dos animais (que podem vir a ser protegidos contra o sofrimento, tornando-se até mesmo sujeitos de direitos próprios). Quando um biólogo sugere que certos traços culturais têm base genética, é comum que um antropólogo rebata que esses comportamentos precisam ser explicados como elementos de uma cultura. Uma mudança em nossa compreensão sobre a genética pode impactar nos modos como a medicina, o direito e a psicologia lidam com identidades de gênero ou orientação sexual.

Todos esses debates impactam nossa vida justamente porque a nossas interações sociais são mediadas por esses tipos de categorias. Há outras espécies de animais que dependem de laços sociais, mas é entre os Homo sapiens que a estrutura dos grupos pode ser profundamente impactada por alterações no significado de certas categorias linguísticas: mulher, liberdade, pecado, culpa, responsabilidade, tolerância.  Muitas espécies dependem pouco de laços sociais, visto que sua interação com o ambiente se dá sem essa mediação por um sistema social que cria o nicho ecológico no qual o indivíduo se insere. Já a sobrevivência dos seres humanos depende da capacidade dos indivíduos de realizar esforços coordenados. Não somos os animais mais fortes, nem mais rápidos, mas somos aqueles cuja capacidade de coordenação social permitiu que a convergência de muitos esforços gerasse resultados altamente eficazes.

Aparentemente, nós não extinguimos os neandertais por eles serem mais fracos ou menos inteligentes, mas porque eles não eram capazes de coordenar esforços para além nos seus núcleos familiares estendidos, numa etapa evolutiva na qual os Homo sapiens já conseguiam formar sociedades clânicas, baseadas na cooperação de múltiplas linhagens familiares (Flannery e Marcus, 2012). Enquanto nossas sociedades também eram limitadas à família estendida, coexistimos (e convivemos e reproduzimos) com os Neandertais, até que essa espécie se extinguiu, há cerca de 28.000 anos, durante a chamada Idade do Gelo.

Como é possível essa organização social em larga escala? A resposta está em nosso amplo repertório cultural, possibilitado pelo desenvolvimento de uma linguagem abstrata. Flannery e Marcus afirmam, com precisão, que nós nascemos em famílias, mas que somos iniciados nos clãs (ou em sociedades maiores), nas quais o indivíduo se torna parte integrante do corpo social mediante processos de aprendizagem e ritos de iniciação. A socialização produz seres humanos capazes de atuar de forma coordenada, e para isso é fundamental que eles sejam incorporados a uma cultura: um conjunto de comportamentos, de rituais, de conhecimentos, de valores. Esse conjunto de elementos simbólicos define padrões de interação social que, uma vez praticados simultaneamente por vários integrantes do grupo, permitem uma ação coordenada.

A cultura de uma comunidade é uma mescla de padrões que são repetidos pelos seus membros, o que envolve padrões de comportamentos (modos de vestir, modos de se alimentar, modos de cuidar das crianças, etc.) e também padrões discursivos (narrativas, explicações que descrevem o mundo, enunciação de deveres e de punições). Esses padrões discursivos podem ser entendidos como comportamentos linguísticos, visto a comunicação ser uma interação na qual as pessoas agem. Apesar disso, vamos diferenciar categorialmente esses padrões discursivos (ou seja, a linguagem), porque o agir comunicativo tem características bastante peculiares.

A cultura é o nosso grande desenvolvimento, pois ela molda nossa subjetividade e nos oferece um repertório de conhecimentos que permitem a cada pessoa lidar com a multiplicidade do mundo e a complexidade das possíveis interações sociais. Cada cultura nos oferece uma explicação para o mundo, uma espécie de mapa que simplifica a multiplicidade dos fenômenos observáveis e, com isso, permite que a realidade caiba dentro de nossas capacidades cognitivas. Ao definir um certo horizonte de compreensão, ao estabelecer conjuntos de valores e ao determinar uma série de deveres, a cultura propicia que cada indivíduo desenvolva padrões de interação social relativamente estáveis e que podem ser transmitidos intergeracionalmente.

Outras espécies também são capazes de aprender, mas aparentemente é somente o grupo dos Homo sapiens que desenvolveu disposições e habilidades específicas para ensinar, o que é fundamental para que seja possível transmitir um repertório de comportamentos e percepções tão complexo como as culturas humanas. Somos uma espécie constituída em torno de tradições, de repertórios culturais transmitidos de geração em geração, o que permite níveis de acumulação cultural que são a marca particular da nossa espécie.

O fato de que os seres humanos desenvolveram uma linguagem abstrata e que somos imersos desde o nascimento em um ambiente de interações linguísticas constantes e intensas faz com que cada membro de uma comunidade cultural seja exposto a uma série de narrativas, explicações, interdições e comandos que terminam conformando uma espécie de conhecimento compartilhado sobre o que é o mundo, sobre o que são as pessoas e sobre o que podemos ou devemos fazer.

2. O senso comum

O senso comum pode ser descrito como um conjunto de informações que se caracterizam apenas pelo fato de serem compartilhadas, sendo que nada garante a sua veracidade ou validade objetivas. Não obstante, dentro de uma perspectiva histórica, o fato de certas informações (e não outras) integrarem esse repertório comum de conhecimentos sugere que tais conhecimentos são bem adaptados o contexto interno (ou seja, da relação entre os membros) e externo (ou seja, da relação com o ambiente) de uma comunidade.

O senso comum é composto por uma série de informações que se caracterizam por serem compartilhadas em uma determinada comunidade, e uma comunidade pode incorporar conhecimentos a partir de fontes muito variadas. Tradições religiosas, mitos, notícias, discursos de autoridade, livros didáticos, canções famosas, programas de TV, grupos de WhatsApp, tiktoks e tuítes viralizantes: não existe uma fonte unificada de conhecimentos sociais, não existem critérios de incorporação de novas informações e, principalmente, não existe uma decisão acerca do que vai ingressar ou não no senso comum.

Além disso, conhecimento comum não significa conhecimento unânime. Muitas pessoas podem desconhecer parte desse repertório geral de informações (porque são jovens, porque ingressaram tardiamente na comunidade, porque são velhos e não acompanharam os novos movimentos, etc.) e, o que é mais relevante, pode haver discordância de parcelas da sociedade acerca de conhecimentos bastante consolidados, como demonstra o atual movimento terraplanista.

Esse conhecimento comum não é um conhecimento alicerçado sobre uma teoria. Ele usa conceitos, mas os conceitos são imprecisos. Muitas vezes coexistem noções contraditórias: a ideia de que os juízes são imparciais coexiste com a percepção de que "de cabeça de juiz e de bunda de neném ninguém sabe o que vem".  Certas afirmações claramente falsas, mesmo absurdas, continuam a ser veiculadas regularmente, como a noção de que usamos somente  10% do nosso cérebro.

Essa heterogeneidade, essa mistura de verdades e falsidades, essa falta de critérios e de precisão, todo esse caldo é de uma riqueza ímpar para os escritores, para os poetas, para os diretores de cinema. Além disso, o senso comum é extremamente útil: as verdades compartilhadas são tipicamente capazes de orientar o comportamento das pessoas de forma eficiente: possibilitam grandes acertos com pouco exercício cognitivo e poucas informações.

Os conhecimentos comuns não estão aí por acaso, mas são o resultado de anos (ou séculos, em alguns casos de milênios) de experiência, e a capacidade humana de manter a integridade de padrões culturais constituídos (ou ao menos reforçados) por discursos compartilhados é um dos segredos do sucesso evolutivo de nossa espécie. Nossa dependência da cultura é tanta que se chega a falar que ela representa uma natureza substituta, pois ela é a nossa própria realidade. Não lidamos nunca com fatos brutos da percepção, pois a nossa percepção é sempre modelada pelo nosso horizonte de compreensão e pelos nossos valores, pois essa é a forma específica de funcionamento do nosso sistema nervoso.

A neurociência atual identificou em nós uma série de modos de processamento de informação que faz com que a nossa percepção do mundo dependa da nossa percepção do mundo, em uma relação de feedback que a filosofia chama de círculo hermenêutico. O sentido do todo é dado pelas partes, mas o sentido das partes é definido pelo todo, de tal forma que toda nova informação interfere no modo como ela própria é interpretada. Não existe um lugar neutro de observação (e, portanto, não existe conhecimento objetivo dos fatos) porque todo o nosso aparato cerebral não é capaz de construir uma representação fiel dos fatos, mas somente a de reorganizar as nossas percepções segundo os padrões de atuação cerebral que chamamos de cognição.

Com isso, nunca analisamos fatos brutos, tanto porque a nossa percepção é modelada pelos nossos sentidos quanto porque o significado simbólico dos fatos interfere tanto na percepção quanto na compreensão das implicações de uma nova informação. Parecem-nos mais prováveis as consequências que são mais familiares. Parecem-nos mais convincentes argumentos que confirmam nossas intuições. Nós tendemos a avaliar de que as escolhas que fizemos (ter filhos, votar em certos candidatos, investir em certas ações) são melhores do que as alternativas que tínhamos. Não temos como escapar dessa operação circular da racionalidade. Resta-nos conhecer suas implicações e desenvolver estratégia para lidar com ela.

Em termos formais, essa operação circular faz com que o conjunto dos nossos conhecimentos tenha como elementos várias informações individuais, mas também vários conjuntos de informações e, inclusive, o conjunto integrado de todas as informações das quais dispomos, que é justamente o nosso próprio conhecimento. Com isso, o nosso conhecimento é um conjunto que contém a si mesmo, e essa configuração autorreferente é uma máquina de gerar paradoxos. O primeiro deles é o fato de que o nosso conhecimento se contém a si mesmo.

Conhecer o que já conhecemos parece algo que não poderia nos trazer nenhum benefício, pois aquilo que sabemos, nós já sabemos. Não obstante, sabemos que conhecer os nossos conhecimentos é algo difícil e que nos agrega muito. Mas isso só acontece porque, ao conhecer o nosso conhecimento, aprendemos tantas coisas que o nosso próprio conhecimento é substancialmente alterado. Opera aqui uma espécie de princípio da incerteza: não é possível conhecer a nós mesmos sem nos alterar. A nossa ação de conhecer altera substancialmente o objeto conhecido, de tal maneira que tudo o que falamos de nós mesmos é imediatamente falso, pois se refere a um eu transformado pelos atos de conhecer e de enunciar.

Esse caráter fugidio do autoconhecimento, que nunca pode operar sem gerar paradoxos, está na base da filosofia e da religiosidade. Nós somos parte da natureza e, com isso, falar da natureza é de alguma forma falar de nós mesmos. No nosso discurso sobre a natureza opera a mesma circularidade, embora de forma menos evidente e talvez menos intensa. Todo questionamento filosófico tem como raiz a percepção dos paradoxos gerados pelo conhecimento do mundo que se apresenta como sólido, absoluto, objetivo, mas que é tecido com um conjunto de categorias e percepções que são altamente dependentes do horizonte de compreensão do falante.

O fato de que vivemos imersos em uma realidade simbólica (que é aquilo que Freud chama de Realidade, ao reconhecer que o mundo real é uma atribuição de sentido e não apenas uma percepção de objetos) curiosamente nos torna pouco capazes de perceber o caráter simbólico da Realidade. Isso acontece justamente porque a função estabilizadora da cultura se realiza na medida em que ela não se afirma como cultura, como um determinado mapa do mundo, mas como uma descrição objetiva de como as coisas são. Nenhuma religião se afirma como um resultado de desenvolvimentos culturais, mas como uma percepção imediata de uma realidade que extrapola as nossas percepções sensíveis.

As culturas, as religiões, as ciências e os sistemas jurídicos (e todos os sistemas simbólicos em geral) somente são capazes de operar na medida em que se apresentam como um repertório de conhecimentos objetivamente verdadeiros. A única forma de escapar dos paradoxos do conhecimento objetivo sobre o mundo (essa noção completamente sem sentido) é fazer com que esses discursos falem do mundo, sem falar de si mesmos.

As abordagens filosóficas contemporâneas são baseadas especificamente na ruptura dessa vedação, e todas elas implicam alguma forma de reflexividade cuja admissão explícita impede a pretensão de objetividade. Não parece possível manter, ao mesmo tempo, reflexividade e objetividade como elementos de uma mesma visão de mundo, e o reconhecimento dessa impossibilidade é aquilo que Albert Camus chamava de sentimento do absurdo: vivemos em um mundo que não comporta sentidos objetivos e, portanto, no qual não há verdades nem valores objetivamente válidos.

E como as coisas impossíveis são as que mais desejamos, o Santo Graal da filosofia moderna é o desenvolvimento de uma teoria que permita falar do mundo ao mesmo tempo com objetividade e com reflexividade. Ao longo do curso, estudaremos algumas das tentativas de enfrentar essa questão espinhosa, que muitas vezes é enfrentada a partir de uma afirmação de que é preciso promover um renascimento de abordagens capazes oferecer um sentido objetivo para o mundo e valores objetivos capazes de organizar as relações humanas. De fato, o fortalecimento das perspectivas tradicionais é um dos movimentos relevantes do mundo atual, o que reforça a relevância do estudo contemporâneo da filosofia.

O reconhecimento racional de que inexiste sentido objetivo em um mundo cultural construído com base em contingências históricas representou uma fonte de sofrimento psíquico intenso para as primeiras gerações que precisaram lidar com esse fato. Quando Darwin assinalou o caráter histórico da espécie humana, sua teoria foi rejeitada por muitas pessoas em função das suas consequências morais (e não de sua inconsistência científica). Quando Nietzsche anunciou a morte dos valores absolutos, essa notícia não foi recebida com alegria. Quando Marx assinalou o caráter histórico (e, portanto, relativo) do direito de propriedade e quando Freud assinalou o caráter fugidio da consciência e da racionalidade, eles tampouco tiveram uma recepção calorosa. Todos eles colocaram em risco as percepções comuns da nossa cultura porque questionaram alguns dos pressupostos básicos das visões tradicionais de mundo: a existência de uma ordem objetiva e de um sujeito objetivo capaz de observá-la.

3. Filosofia e mudança social

A inexistência de valores e verdades objetivas deixa sem chão pessoas que, durante séculos, viveram dentro de culturas que operaram justamente oferecendo uma descrição da realidade que deveria ser compreendida como um conjunto de afirmações verdadeiras sobre a natureza e os papéis sociais dos homens. O pressuposto implícito das perspectivas tradicionais é o de que existe uma ordem natural subjacente, que pode ser apreendida pelos homens de alguma forma (investigação, revelação, intuição): a existência de uma ordem objetiva no mundo (Tao, Dharma, Me, Cosmos, Nomos) exige que uma descrição objetivada ordem seja possível. Existe uma grande variação entre as diversas tradições culturais com relação à confiança de que a investigação racional seja capaz de conhecer a ordem natural, mas existe pouca variação com relação ao fato de que essa ordem natural exista e que, de alguma forma, ela pode ser conhecida.

Ocorre que, atualmente, é muito difícil simplesmente ignorar as várias teorias que abordam a natureza e a sociedade a partir de uma perspectiva histórica. Ao longo do último século, essas abordagens ganharam espaço e produziram resultados bastante expressivos tanto na ciência como na filosofia e na técnica. Ocorre, porém, que essas abordagens contrastam de forma muito gritante com a percepção compartilhada pela direita e pela esquerda de que existe um conjunto de direitos humanos objetivamente válidos, sejam eles os direitos liberais (de liberdade, propriedade e tolerância religiosa), os direitos sociais (de justiça social, de acesso à educação e à saúde) ou os direitos identitários (ligados aos direitos de minorias discriminadas). Não parece muito congruente defender a validade objetiva dos nossos valores e a validade relativa dos valores dos outros: é muito difícil reconhecer a relatividade dos valores que nos são tão caros que os tratamos como se fossem sagrados (no sentido de que nos permite caracterizar como má uma pessoa que questiona a sua validade). Nesse embate entre historicidade e sacralidade, que valores devem prevalecer?

Algumas pessoas enfrentaram esse dilema por meio de uma revisão de suas visões de mundo, incorporando nelas os paradoxos, a relatividade e a historicidade. Para estes, a relatividade do mundo é uma verdade desconcertante, que inicialmente gerou um sentimento de luto pelas tradições que tanto nos eram caras (deuses, direitos naturais, valores morais), mas que deveria ser superado com o tempo, por meio do desenvolvimento de teorias que incorporem os paradoxos da reflexividade (e que são chamadas tipicamente pelo nome cunhado por Lyotard: narrativas pós-modernas).

Outras pessoas reagem a essa incongruência mediante a tentativa de redimensionar as teorias de modo que seja mantido ao menos um certo espaço para as verdades objetivas e os valores absolutos. Quando Lyotard afirmou na década de 1970 que já era passada a hora de superar o luto, ele certamente foi muito otimista, tendo em vista que a maioria das pessoas parece mais propensa a reforçar sua visão de mundo contra os desafios da historicidade do  que a desenvolver uma visão de mundo que incorpore uma historicização de sua própria experiência.

Para estas pessoas, os relativismos pós-modernos devem ser abandonados, cabendo reforçar os valores objetivos que estruturam as visões tradicionais. Não vivemos hoje uma onda de historicização da cultura, mas um conflito crescente entre esse movimento de historicização e um renascimento das visões tradicionais: um retorno ao mito da ordem e da sensação de segurança promovida por uma concepção de mundo que se apresenta como objetiva na medida em que nos possibilita justamente o conforto emocional de equilibrar nossas intuições (de que deve existir um sentido objetivo para o mundo) com nossos conhecimentos (que devem nos oferecer uma explicação objetiva para um mundo dotado de valores e fatos objetivos).

Trata-se, pois, de uma época barroca, em que muitas pessoas se sentem divididas entre o reconhecimento do caráter histórico do mundo e o sentimento de que é imperativo reconhecer alguns pontos imutáveis, que permitam um julgamento moral objetivo. Para as pessoas em geral, é desafiador viver em uma era na qual não estão claros os parâmetros adequados para conferir sentido à nossa existência. Para a filosofia, esse é um momento de peculiar relevância, pois, como afirma Richard Rorty, as pessoas parecem ouvir os filósofos somente quando o mundo está desmoronando e, com isso, a cartografia oferecida pelo senso comum não é percebida como um guia adequado.

Nos momentos em que estamos dispostos a rever a nossa cartografia, a filosofia ganha espaço social, justamente porque uma de suas atividades mais recorrentes é justamente a de realizar uma reflexão detida sobre os limites do nosso conhecimento comum do mundo e sobre as possibilidades de desenvolver um entendimento mais adequado da realidade.

Como sintetiza Kwame Appiah, a filosofia parte de uma “reflexão sistemática sobre crenças pré-reflexivas muito difundidas acerca da natureza da humanidade, de nossos objetivos e de nosso conhecimento sobre o cosmo e sobre nosso lugar nele”  (Appiah 1997, 129). E são justamente essas crenças que começam a gerar problemas nos momentos de crise, quando os resultados obtidos pela aplicação dos conhecimentos compartilhados discrepam muito dos resultados esperados.

O papel típico da filosofia não é aprimorar o senso comum, mas oferecer uma alternativa a tais formas de ver o mundo. Enquanto os sábios, inclusive dentro do direito, estão comprometidos em aprimorar os conhecimentos tradicionais, fazendo pequenas reformas e adaptações, a filosofia tende a desenvolver outras formas de ver o mundo, que poderiam substituir as perspectivas tradicionais.

Em toda sociedade é possível identificar um sistema de conceitos, ou, mais precisamente, um conjunto de sistemas conceituais interligados, que organizam a compreensão de mundo e a interação social dos membros dessa comunidade. Esse conjunto de concepções muitas vezes é chamado de filosofia, e é nesse sentido que normalmente se fala de uma filosofia oriental ou de uma filosofia ameríndia. Exemplo desse uso foi uma obra de Placide Tempels, de 1945, chamada A filosofia Bantu (2006). Tempels era um missionário franciscano belga que viveu no Congo Belga entre 1932 e 1962 e que, ao refletir sobre os motivos pelos quais o povo bantu impermeáveis à conversão ao cristianismo, concluiu que isso decorria do fato de que eles tinham uma filosofia própria, com um sistema conceitual muito diferente do europeu.

A abordagem de Tempels partia do pressuposto de que “todo comportamento humano depende de um sistema de princípios”, mas afirmava que os próprios bantu ainda não eram capazes de identificar claramente o conjunto de princípios nos quais eles estavam imersos (Tempels 2006). Como os bantu não tinham uma descrição sistemática dos seus próprios conceitos, Tempels assumiu a tarefa de realizar tal sistematização, utilizando como base o repertório conceitual da filosofia europeia, especialmente a noção de ontologia.

Esse desafio partia da abordagem antropológica da etnografia, entendida então como uma disciplina voltada a descrever as culturas de povos primitivos, mas dava um passo além ao tentar compreender o pensamento subjacente às práticas sociais dos povos analisados. Por esse motivo, essa forma de abordagem foi chamada criticamente por Paulin Hountondji de etnofilosofia.

A abordagem de Tempels teve sucesso ao contestar a noção vigente de que os povos considerados primitivos não tinham um pensamento abstrato, e contribuiu decisivamente para sedimentar a noção de que os povos africanos tinham uma ontologia própria, baseada na ideia de uma “força vital” inerente a cada objeto. Esse interesse nos repertórios conceituais de culturas não-europeias é visível em várias abordagens jurídicas contemporâneas, especialmente no comprometimento do novo constitucionalismo latino-americano no sentido de desenvolver sistemas constitucionais que incorporem elementos das cosmovisões indígenas, especialmente uma noção de Bem Viver (Sumak Kawsay) identificada “con la armonía con el entorno social (la comunidad), con el entorno ecológico (la naturaleza) y con el entorno sobrenatural (los Apus o Achachilas y demás espíritus de un mundo encantado)” (Recasens 2014).

Embora as perspectivas contemporâneas incorporem uma tentativa explícita (e legítima) de superar o eurocentrismo reinante na filosofia e nas ciências sociais, existe um debate aceso acerca do que devemos chamar de filosofia no contexto atual. Para muitos, inclusive para Hountoudji e Appiah, a etnofilosofia não é propriamente uma atividade filosófica, mas antropológica: compreender os sistemas de pensamento de certas sociedades é uma atividade relevante, mas a atividade própria da filosofia não é a de descrever sistemas de pensamento, mas a de operar uma análise crítica desses sistemas, explorando os seus paradoxos, suas potencialidades e seus limites.

A filosofia não tem uma abordagem descritiva, nem mesmo compreensiva, e sim uma abordagem crítica. Ela desconstrói sistemas de pensamento e propõe alternativas categoriais que deveriam ser capazes de superar as dificuldades diagnosticadas pelo filósofo. Embora boa parte dos filósofos passe sua vida discutindo sobre os pensamentos de outros filósofos (em uma autorreferência filosófica que pode gerar um pensamento esotérico), os filósofos tendem a preocupar-se também com as categorias socialmente hegemônicas, o que faz com que eles sejam um dos grupos que mais criticam as pseudo-verdades da tradição e o senso comum de uma comunidade.

Essa postura crítica faz com que os filósofos muitas vezes questionem os dogmas que uma sociedade pretende que não sejam questionados, o que os coloca muitas vezes em uma tensão muito grande com as instituições sociais legitimadas pela cultura e responsáveis pela reprodução dos valores hegemônicos. Não é por acaso que os filósofos não costumam gozar de uma imagem muito boa em uma sociedade que busca proteger suas tradições e reproduzir uma determinada ordem social. Nesse contexto, não causa estranhamento o fato de que a tradição apresente sérias ressalvas (para dizer o mínimo) quanto a um tipo de discurso que questiona frontalmente a sua autoridade. Numa sociedade patriarcal e conservadora, a resposta com relação ao questionamento da autoridade tende a ser violenta.

Desde Sócrates, os filósofos sofrem simultaneamente duas acusações: de um lado, são vistos como pessoas que vivem nas nuvens, pensando em coisas inúteis, sem dar atenção suficiente aos problemas efetivamente vividos pelas pessoas; de outro, são considerados perigosos para a ordem social. Com isso, as tradições hegemônicas e os governos que as corporificam muitas vezes tratam o filósofo como um inútil subversivo, o que os coloca no grupo de pessoas que não cabe tolerar, mas combater.

Talvez essa acusação seja até merecida, considerando que é muito parecida com a condenação que Platão fazia aos artistas: sua arte não deveria ter lugar na porque cria versões falsas da realidade (e vejam que fake news é uma categoria nova para lidar com um problema velho...) e, com isso, contribuem para a propagação de mitos e falsidades. Ocorre que, cada um a sua maneira, os filósofos e os artistas partem de interpretações das interações humanas que eles observam e as descrições que eles fazem da realidade recorrentemente se opõem às descrições hegemônicas de uma tradição cultural. O mérito das obras filosóficas, assim como das obras artísticas, muitas vezes está na originalidade com a qual elas percebem os paradoxos das nossas formas de organização social, mostrando que a realidade que vivemos difere bastante de nossas formas comuns de descrever essa realidade.

Em ambos os casos, a inutilidade é uma acusação peculiar. Artistas e filósofos são de fato inúteis porque não contribuem para a produção de bens econômicos. Entretanto, os produtos de seus trabalhos interferem diretamente nas formas de sociabilidade, pois eles são alguns dos principais personagens envolvidos na forma como uma sociedade constantemente transforma suas formas de autocompreensão. A cigarra pode não produzir comida, mas pode aumentar a coesão social ou inspirar revoluções.

Alguns filósofos específicos fazem certas afirmações que inspiram revoluções de grande escala. A maior parte dos filósofos é esquecida ao longo do tempo, pois eles oferecem alternativas que não se tornam hegemônicas. Porém, alguns deles são lembrados pelo fato de que foram capazes de compreender os limites do seu tempo e de oferecer instrumentos conceituais capazes de superá-los. Daqui a mil anos, quando o mundo contemporâneo já for antigo, imagino que os historiadores ensinarão que, no século XX, uma filósofa francesa fez uma afirmação paradoxal para a sua época, mas que desestabilizou definitivamente uma das noções que não foram problematizadas por milênios de pensadores homens. Em 1949, quando Simone de Beauvoir publicou uma obra em que refletia sobre a condição feminina e sobre o fato de que as mulheres estavam em pleno processo de destronar o mito da feminilidade, ela fez sua afirmação mais conhecida: On ne naît pas femme : on le devient. Não nascemos mulher, nós nos tornamos mulher.

Essa pequena frase, em sua concisão e elegância, introduz uma série de fraturas no pensamento filosófico de sua época. O fato de o nós impessoal se referir às mulheres já é um deslocamento, pois ela poderia ter dito as mulheres não nascem mulher, colocando-se como observadora externa de sua condição, e não na posição reflexiva de quem fala da própria condição. Creio que esse detalhe se perde na tradução brasileira, que optou justamente por operar esse deslocamento, que torna a frase menos estranha para os homens: Ninguém nasce mulher: torna-se mulher (Beauvoir 2009). Para uma filosofia que sempre falou do lugar falsamente impessoal do masculino, esse pequeno detalhe já cria um grande estranhamento para os leitores homens. Porém, o deslocamento mais importante da frase está no fato de que ela coloca em xeque séculos de utilização da distinção entre masculino e feminino como se essa divisão se tratasse de uma diferença natural.

É claro que uma mulher nasce com a carga genética feminina, e não é esse o problema que Simone de Beauvoir pretende assinalar. Quando ela afirma categoricamente que mulher é uma categoria para designar um estado que é adquirido, ela abriu espaço para uma distinção que se consolido nos anos 1980 a partir da distinção entre o sexo (biológico) e o gênero (cultural). E o gênero é uma categoria artificial, socialmente construída, de forma que não faz sentido algum buscar o significado natural de ser mulher, ou de ser homem. E toda categoria construída pode ser desconstruída, pode ser politicamente reconfigurada, sem que isso constitua alguma forma de desvio contra a natureza. Numa tradição filosófica que identifica o bem com o natural, ela opera uma distinção conceitual que até hoje não foi bem digerida pela parte da sociedade que chama essa divisão categorial de ideologia de gênero.

Se o gênero é uma construção social, podemos multiplicar o número de gêneros o quanto quisermos, pois não há limites para a nossa capacidade de criar novas categorias. Além disso, é preciso desligar a questão do gênero de outra que normalmente vinha agregada a ela, que é a do desejo sexual. No fim do parágrafo citado, Simone de Beauvoir já afirmava que:

Até os 12 anos a menina é tão robusta quanto os irmãos e manifesta as mesmas capacidades intelectuais; não há terreno em que lhe seja proibido rivalizar com eles. Se, bem antes da puberdade e, às vezes, mesmo desde a primeira infância, ela já se apresenta como sexualmente especificada, não é porque misteriosos instintos a destinem imediatamente à passividade, ao coquetismo, à maternidade: é porque a intervenção de outrem na vida da criança é quase original e desde seus primeiros anos sua vocação lhe é imperiosamente insuflada. (Beauvoir 2009)

Simone de Beauvoir não formulou os conceitos que são usados no debate atual, mas abriu espaço relevante para que certas distinções fossem percebidas e, posteriormente, designadas por conceitos autônomos. Ela reconheceu a incapacidade do repertório conceitual de sua época para compreender a complexidade da identidade feminina e buscou caminhos alternativos para descrever o processo de tornar-se mulher. A partir de um olhar contemporâneo, é evidente a pobreza do repertório categorial da nossa tradição cultural para lidar com o complexo fenômeno da sexualidade, que não cabe no binômio homem/mulher. Essas categorias naturalizam o que não é natural, não permitem lidar com a identidade de gênero das crianças e não oferecem um lugar adequado para acomodar uma intersexualidade que desafia o binarismo da distinção sexual padrão.

Essas tensões entre a realidade descrita e os conceitos usados para a descrição nos acompanham desde que temos uma linguagem abstrata e elas são os elementos motivadores do labor filosófico, mas também do labor científico. Tanto cientistas como filósofos, analisando os modelos conceituais disponíveis e as consequências de sua aplicação, propuseram modelos conceituais alternativos, por meio de estratégias de distinção (criando novos conceitos onde as categorias existentes falhavam por tratar fenômenos diversos a partir do mesmo conceito), de fusão (abandonando distinções conceituais que não faziam sentido) e de redimensionamento (alterando as fronteiras dos conceitos para que eles se acoplassem melhor à realidade).

Quando os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela propuseram uma definição alternativa de vida, eles atuaram como biólogos ou como filósofos? Quando Einstein propôs a ideia de que a gravidade não é uma força, mas uma distorção no espaço tempo, como devemos classificar essa contribuição? Filosófica ou científica? Esse problema acentua o fato de que o conceito não é uma propriedade dos filósofos. Os filósofos não são os formuladores dos conceitos, não são os únicos inventores de novas categorias, que são formuladas em todas as atividades humanas mediadas por interações linguísticas: as artes, as ciências, as religiões, a política, em todas essas áreas podem surgir novas categorias.

Entre os antigos, de fato, não é possível oferecer uma distinção clara entre ciência e filosofia, pois a perspectiva antiga entendia que os filósofos deveriam oferecer categorias que refletissem a realidade do mundo, e é isso que os cientistas normalmente fazem. Na modernidade, a filosofia passou a ter um objeto diferente das ciências, por se concentrar em questões de ordem metafísica, enquanto as ciências se concentravam em questões de natureza empírica.  Porém, a ideia de que os conceitos deveriam espelhar a realidade era compartilhada por esses discursos.

É apenas na contemporaneidade que fazemos uma releitura linguística dessas relações, identificando que os filósofos se debruçavam (conscientemente ou não) sobre os limites dos próprios conceitos, concentrando-se nas interações conceituais (dos conceitos entre si) e não nas interações entre os conceitos e o mundo. Os cientistas estudam a empiria e criam sistemas conceituais que tentam ser capazes de descrever e explicar o mundo. Os filósofos contemporâneos não estudam diretamente a empiria, mas analisam diretamente os sistemas conceituais, o que faz com que eles possam estudar os discursos científicos, sem serem eles próprios cientistas. Mas as inovações, que interessam muitíssimo a todos, podem vir de qualquer lugar: da ciência, da filosofia, das artes, da política, da propaganda. Não há um lugar específico para a criatividade e para a originalidade.

Não precisamos desenvolver ainda mais esse problema porque, de fato, tampouco precisamos defender um lugar autônomo para a filosofia. Podemos deixar a filosofia como o nome de um estilo, de um enfoque, mas não de uma disciplina autônoma, definida por uma forma definida de analisar um objeto. De certa forma, esse é o ganho da categoria socrática de filosofia, de um amor pelo conhecimento que não exige o seu domínio. Caracterizar essa abordagem como uma filia, e não como uma sophia, era é continua sendo revolucionário. Não nos importa quem cria os conceitos, quem os inventa. Pode ser o artista, o político, mesmo o filósofo. Mas é tipicamente o filósofo que submete os modelos conceituais a um teste de consistência, avaliando em que medida eles contribuem para o nosso esforço reflexivo contemporâneo.

Por isso, nem as crenças compartilhadas nem os sistemas formulados pelos filósofos anteriores são o ponto de chegada da filosofia. Eles são objetos acerca dos quais o filósofo reflete, servindo antes como ponto de partida. Isso acontece justamente porque o trabalho filosófico não é voltado meramente à descrição dos sistemas de pensamento culturalmente hegemônicos, envolvendo também uma tentativa de superá-los por meio do desenvolvimento de formas alternativas de entender o mundo.

A postura crítica dos filósofos e dos cientistas não deve representar uma desvalorização das tradições, especialmente de sua fundamental importância histórica: a filosofia e a ciência, em sua imensa capacidade de contestar as tradições (e de renová-las), somente existem hoje porque em outros momentos houve tradições culturais estáveis, capazes de estimular uma atuação coordenada de seres humanos em formações sociais cuja manutenção exigia respeito a uma série de leis que não eram justificadas argumentativamente, mas transmitidas socialmente por mecanismos consuetudinários.

A cultura é plástica, e essa maleabilidade permite que os seres humanos se adaptem a uma infinidade de contextos de maneira bastante rápida. Mas a cultura é também estável, permitindo que os padrões que garantiram essa adaptação ao ambiente se projetem no tempo. Por dependermos simultaneamente de plasticidade e estabilidade, a cultura que desenvolvemos está em um constante processo de transformação, cujo segredo está no seu ritmo: uma transformação rápida o suficiente para que seja possível desenvolver configurações mais eficientes, mas lenta o suficiente para garantir que as mudanças não dissolvam as estruturas sociais que garantiram a sobrevivência da comunidade.

Esse mesmo ritmo também pode ser percebido na estrutura básica de todos os seres vivos da terra: um código genético que se transforma de modo lento (por meio de mutações e de cruzamentos), em mudanças bastante discretas, que permitem uma transformação constante das populações, mudanças essas que se perpetuam (ou não) por meio do lento processo de seleção natural. A seleção natural é o processo pelo qual os indivíduos discretamente diversos de seus pais sobrevivem (ou não) ao ambiente em que estão inseridos e, com isso, toram-se capazes de gerar descendentes e, com isso, alterar a composição média da população que constitui uma espécie.

No caso das configurações sociais, não existe propriamente um código genético transmitido entre gerações, mas existem vários elementos que possibilitam a manutenção de padrões culturais. Essa multiplicidade de mecanismos possibilita que a cultura tenha elementos com diversos graus de plasticidade: certas partes da cultura podem ser alteradas de modo mais rápido (como hábitos alimentares ou modos de vestir ou de falar), mas outras partes são dotadas de mecanismos mais fortes de garantia de estabilidade. Não existe apenas um ritmo controlado na variação cultural, mas podem coexistir vários ritmos de variação, além de vários níveis de tolerância à diferença.

Isso acontece não apenas com as sociedades humanas, mas com várias outras espécies, cujas configurações culturais são muito relevantes para a interação dos indivíduos e para os seus comportamentos. No caso dos humanos, contudo, a existência da linguagem abstrata e de uma série de vínculos simbólicos viabilizou um grau de plasticidade comportamental muito maior do que em outras espécies, bem como uma velocidade de mudança extremamente alta. Essa velocidade tem seus custos: a possibilidade de introduzir modificações adaptativas também é uma abertura para introduzir modificações que levam à rápida extinção de certas comunidades.

Essa situação faz com que a filosofia tenha um papel importante para a sobrevivência da espécie: ao representar uma paradoxal instância reflexiva sobre os sistemas de categorias da própria cultura, a filosofia permite simultaneamente uma maior abertura para a mudança e um maior controle das mudanças, visto que todo sistema alternativo de conceitos será submetido a uma análise minuciosa e a uma crítica sistemática. Uma sociedade com filosofia aumenta o seu grau de criticidade. Um direito com filosofia, terá instrumentos mais adequados para selecionar as categorias mais adequadas, entre as várias inovações teóricas produzidas por políticos, juízes e advogados.

Uma cultura jurídica com uma filosofia forte dificilmente será tomada de assalto por um populismo jurídico, por categorias autoritárias, por discursos que apelam para nossos sentimentos de esperança e de medo, mas que não oferecem sistemas conceituais capazes de lidar com a complexidade do mundo contemporâneo. Em um ambiente político marcado por simplificações atrozes e por um discurso emocional pouco argumentativo, o estudo da filosofia contribui para que os juristas tenham um maior grau de exigência com relação ao repertório conceitual construído pela dogmática, especialmente pelas inovações conceituais recentes: princípio da proporcionalidade, responsabilidade penal das pessoas jurídicas, personalidade jurídica de entidades não-humanas, integridade como critério de interpretação, autonomia sistêmica como um bem a ser buscado.

Essas propostas nem sempre vêm dos filósofos. Mas refletir sobre elas é um papel da filosofia jurídica contemporânea, e uma análise adequada dessas inovações somente é possível a partir de um estudo histórico sobre os padrões argumentativos que já foram utilizados e sobre as funções historicamente desempenhadas pelo direito.