1. A jurisprudentia
Enquanto o desafio típico dos juristas contemporâneos é o de oferecer intepretações capazes de articular unitariamente um conjunto imenso de elementos jurídicos (leis, decisões, pareceres, etc.) que precisam ser interpretados e compatibilizados, o desafio dos antigos jurisprudentes romanos era diverso, na medida em que lidavam com uma ordem jurídica de alcance e complexidade limitadas. Como indica Tercio, “a jurisprudência romana se desenvolveu numa ordem jurídica que, na prática, correspondia apenas a um quadro geral” (Ferraz Jr., 1980), composto por orientações pontuais e lacunosas, que não tinham qualquer pretensão de oferecer respostas jurídicas consistentes para todos os conflitos sociais possíveis. Naquele contexto, a aplicação do direito se aproximava do que hoje ocorre ainda com os julgamentos éticos, a partir dos quais avaliamos condutas concretas, usando como parâmetros as genéricas orientações que nos são oferecidas pelos princípios morais consolidados em nossas culturas.
Não deve causar espanto que a ideia romana de jurisprudência tenha se aproximado da noção grega de phronesis, que designa essa capacidade de extrair consequências concretas a partir de um conjunto abstrato de orientações gerais. O ponto máximo da phronesis é justamente o exercício da equidade, que envolve a identificação dos limites das diretrizes contidas nas regras gerais, que podem estabelecer consequências injustas para alguns casos particulares, o que exige das pessoas prudentes a opção por um tratamento excepcional. A equidade é a capacidade de produzir justiça nos casos concretos em que a aplicação da regra geral conduziria a soluções absurdas. Não cabe às pessoas prudentes, na ética ou no direito, servirem como aplicadores irrefletidos de um conjunto de diretrizes genéricas, que podem ser justas para a maioria dos casos, mas que fatalmente geram injustiças em contextos particulares.
Na base dessa concepção está a noção de que existe uma sobreposição entre uma ordem natural, que contém alguns princípios de justiça muito genéricos, e várias ordens sociais, que instituem regras mais específicas, mas que deveriam ser coerentes com a justiça natural. A tensão entre a justiça natural e as determinações sociais exige que a aplicação das normas seja feita a partir de um esforço de compatibilização, que valorize a aplicação das diretrizes normativas definidas pelas autoridades políticas, mas sem perder de vista a necessidade social de que elas sejam percebidas como compatíveis com a ordem natural subjacente. A phronesis está sempre nessa compatibilização de diretrizes paradoxais, que não dá margem à emergência de protocolos predefinidos de atuação.
A valorização clássica da prudência deve nos servir como lembrança de que todo sistema jurídico precisa promover constantemente esse tipo de compatibilização, visto que a estabilidade social depende do reconhecimento de que as instituições que decidem sobre a vida das pessoas atuam de acordo com os valores que uma cultura considera como centrais. A aplicação concreta de sistemas normativos baseados em diretrizes amplas e lacunares dependem de uma complementação hermenêutica intensa, e o pensamento jurisprudencial dos romanos foi desenvolvido justamente “como uma espécie de mediação entre a relativamente parca legislação e a necessidade de se construírem regras intermédias que possibilitassem a solução dos conflitos concretos” (Ferraz Jr., 1980).
Em comunidades pequenas, nas quais os conflitos são mediados diretamente pelas lideranças políticas, não existe espaço para a construção de um domínio reflexivo autônomo acerca das regras sociais. Em grandes sociedades, mesmo que haja uma liderança centralizada, a análise dos conflitos sociais concretos exige a atuação concertada de múltiplos polos de autoridade política, o que fatalmente conduz a uma série de divergências que precisam ser processadas. Os desafios de organizar uma sociedade tão complexa como a do Império Romano inviabilizavam processar essas diferenças hermenêuticas a partir do simples recurso à liderança central, cuja autoridade não poderia ser contrastada pelos magistrados locais.
Esse é um tipo de contexto sócio-político que propicia a consolidação do reconhecimento de que, apesar de todos os magistrados partirem de uma ordem normativa cuja validade é pressuposta, é legítimo o embate hermenêutico acerca do seu verdadeiro significado. A atuação coordenada desses vários magistrados, que são incumbidos de tomar decisões para os casos concretos, conduz ao gradual desenvolvimento de um discurso que reflete acerca dos resultados produzidos por esta burocracia decisional. Os julgadores precisam observar as decisões anteriores, que não podem ser meramente desconsideradas, mas que tampouco têm autoridade para estabelecer normas obrigatórias. Dentro de um contexto social desse tipo, é previsível a ocorrência de uma gradual sedimentação das categorias que viabilizam a compreensão dessas variadas decisões como concretizações razoáveis da mesma ordem.
A jurisprudência romana não foi o primeiro exemplo em que a solução dos conflitos sociais concretos foi realizada por um amplo grupo de pessoas doutas, que legitimavam sua atividade por meio da referência a uma ordem normativa comum, da qual eles seriam apenas intérpretes. Situação similar já havia ocorrido com os brâmanes da cultura hindu, cujos séculos de atuação na interpretação dos livros sagrados do hinduísmo conduziram ao que pode considerar como uma jurisprudência indiana clássica (Katju, 2010).
O resultado dessa lenta acumulação cultural, que processa divergências interpretativas e políticas, não é necessariamente a construção de uma ordem normativa unificada, como testemunha o fato de que a interpretação do Corão, apesar de partir de um conjunto de textos que permaneceu imutável ao longo de séculos, nunca conduziu à formação de uma interpretação unificada. Na cultura interpretativa islâmica, convivem de forma relativamente pacífica diversas escolas interpretativas, que se voltam a estabelecer os direitos e deveres que podem ser extraídos a partir das orientações jurídicas vagas e lacunares oferecidas pelo Corão. Em todos esses casos, existe um reconhecimento social de que a atividade interpretativa é legítima. Como é previsível na gestão de sociedades complexas, a divergência interpretativa não é apresentada como uma heresia a ser combatida, mas como uma aspecto legítimo da própria realização da ordem normativa que todas as pessoas devem seguir e que todos os magistrados devem aplicar.
As experiências políticas do mundo antigo nos sugerem que o estabelecimento de um sentido unificado para a ordem normativa não está ligado a momentos de alta concentração de poder político, nos quais toda divergência pode ser lida como herética ou subversiva. Sistemas políticos centralizados podem operar sob a ficção de que as palavras do chefe são diretamente inspiradas pelas divindades e que todo conflito deve ser remetido à sua apreciação. Todavia, quando sistemas altamente centralizados se tornam também muito amplos, torna-se necessário descentralizar as atividades de governo, incluindo a jurisdição, o que termina por conduzir à necessidade de promover a atuação coordenada de múltiplos magistrados. Isso faz com que mesmo unidades que são nominalmente monárquicas terminem por adotar efetivamente um formato oligárquico, no qual o exercício do poder depende da articulação de múltiplos polos, o que fatalmente conduz ao desenvolvimento de sistemas políticos capazes de processar as divergências políticas e interpretativas que emergem de sua própria efetivação.
Uma característica dos modelos oligárquicos é a de que a unidade não é proporcionada pela lealdade a um líder, mas pelo respeito devido a um sistema cultural, que serve como referência ética e política. Nas oligarquias, mais importante que a autoridade de qualquer dos agentes que a compõem, é a solidez da rede simbólica que liga os vários polos de poder e, com isso, oferece as bases necessárias para que todos os envolvidos se enxerguem como parte de uma mesma ordem. Nas poliarquias contemporâneas, essa situação é radicalizada, pois elas passam da legitimação da divergência hermenêutica a uma legitimação da oposição política, o que torna ainda mais central a ficção de que existe uma ordem simbólica comum, em nome da qual os governos podem exercer a sua autoridade legislativa e judicial.
Em todos esses casos, a estabilidade dos sistemas políticos envolve a constante reprodução da ideia de que existe uma ordem normativa autônoma, à qual todos devem observância (costumes, religiões, direito natural, constituições, direitos humanos, etc.), acompanhada pelo desenvolvimento de mecanismos de processamento das divergências hermenêuticas acerca da interpretação correta dos direitos e deveres de cada pessoa. Essas estratégias permitem que a divergência seja compreendida como legítima, na medida em que se trata de um esforço comum de compreensão, realizado por meio de um constante e respeitoso diálogo entabulado pelos especialistas. Esse diálogo infinito conduz à estruturação de modos discursivos nos quais as divergências podem ser enunciadas, analisadas e decididas.
Esse discurso comum não tem como objetivo substituir a ordem normativa válida por outra mais precisa e mais detalhada, pois isso ultrapassaria o labor hermenêutico dos juristas e representaria uma desconsideração do reconhecimento de que a divergência interpretativa é inevitável em um sistema multicêntrico. Mas a situação desses sistemas multipolares é sempre paradoxal, visto que a admissão da diversidade interpretativa ocorre simultaneamente ao reconhecimento da necessidade de decidir os casos concretos em tempo hábil. Todo sistema político multipolar precisa ser capaz de decisões, ainda que elas envolvem certo grau de incerteza e de divergência, o que exige o desenvolvimento de parâmetros capazes de definir quando uma decisão política ou jurídica pode ser considerada como válida.
No exercício do governo, tendemos a definir procedimentos decisórios e considerar válidas as decisões produzidas por certos rituais de tomada de decisão (eleições, votações, sorteios, plebiscitos, etc.) ou impostas por certas autoridades consideradas legítimas. O que define a validade da decisão governamental não é o seu conteúdo, mas a autoridade própria a certos atores ou processos decisionais. Já no campo propriamente jurídico, ainda que ela precise seguir alguns procedimentos bastante rigorosos, entende-se que a sua validade não decorre do processo, mas do seu próprio conteúdo: toda decisão precisa ser compreensível como uma aplicação de uma ordem preexistente, o que converte o problema decisório em uma questão hermenêutica.
Embora seja razoável argumentar que os procedimentos jurídicos têm grande influência sobre os resultados dos julgamentos, as decisões jurídicas são justificadas socialmente por meio da afirmação de sua fidelidade com relação à ordem normativa que elas afirmam concretizar. Os discursos jurídicos se apresentam como interpretativos e aplicativos, mesmo quando eles envolvem atividades propriamente decisórias e avaliativas.
Nos casos em que esse discurso é manejado por um governo centralizado, as questões jurídicas podem ser resolvidas mediante uma invocação da autoridade governamental, o que termina por gerar uma indistinção entre interpretação e decisão. A teoria jurídica clássica designava esse paradoxo por meio da curiosa expressão “intepretação autêntica”: quando o próprio legislador é incumbido de interpretar os textos que ele produz (ou poderia ter produzido), suas decisões têm força normativa.
Já nas ordens políticas em que existe alguma forma de poliarquia decisória, torna-se inevitável o desenvolvimento de uma techne propriamente hermenêutica, que organize a complexa tarefa de múltiplos polos de poder tomarem decisões que podem ser compreendidas como aplicações fiéis de uma ordem normativa. Nesse contexto, a atuação concertada e dialogada dessas várias autoridades promove a elaboração do que chamamos de “dogmática jurídica”: um conjunto de critérios que determinam o modo como a ordem normativa deve ser devidamente interpretada e aplicada, possibilitando a formação de um conjunto de decisões que possam ser entendidas como uma aplicação adequada da ordem normativa subjacente.
2. Dogmática jurídica
O discurso dogmático parte do pressuposto normativo que os sistemas jurídicos devem atuar de acordo com os parâmetros que são definidos por uma determinada tradição interpretativa. Melhor dizendo, a dogmática não se apresenta como uma tradição interpretativa, mas como um conjunto de cânones objetivamente válidos de interpretação. Tal como as mitologias se apresentam acriticamente como um discurso verdadeiro sobre o mundo, as dogmáticas se apresentam como um discurso verdadeiro sobre os modos corretos de realizar uma prática.
O jogo discursivo das variadas dogmáticas termina por apresentar os costumes interpretativos vigentes em determinada comunidade como se fossem a forma objetivamente correta de praticar essa atividade. Esse tipo de discurso conduz a uma curiosa forma de blindagem de suas conclusões, pois a solidez dos pressupostos dogmáticos não é baseada em testes que mostram sua efetiva compatibilidade com o mundo, mas na própria vedação desses testes, ou no oferecimento de teorias que desqualificam qualquer tentativa de confrontação empírica.
A dogmática é contrafática, no sentido de que a validade de suas afirmações independe de qualquer confirmação fática dos seus enunciados. Normas publicadas são consideradas conhecidas por todos, inclusive pela pessoas que não as conhecem. As pessoas consideradas incapazes não podem fazer disposições contratuais válidas, ainda que elas tenham completa consciência de seus atos. As constituições são consideradas manifestação legislativa legítima de um povo, mesmo quando se trata de regras impostas violentamente por um golpe de estado.
Esse descolamento de qualquer factualidade tem origem no objeto próprio da dogmática, que não faz afirmações “sobre fatos empíricos”, que poderia ser testados, mas trata-se de afirmações sobre “direitos e obrigações válidos”, cuja existência somente pode ser medida em termos interpretativos. Os parâmetros de validade jurídica nunca estão nos fatos em si, mas na forma particular como eles são interpretados por uma determinada comunidade de juristas: a verdade dogmática não é uma correspondência com os fatos, mas uma correspondência com as narrativas predominantes em uma comunidade de intérpretes.
O caráter dogmático dos discursos jurídicos os aproxima daqueles produzidos por religiosos, astrólogos e psicanalistas, profissionais cuja techne também conduz à produção de discursos cujo critério principal de avaliação não é baseado em observações empíricas de seus resultados, mas na coerência entre os textos produzidos e os cânones estratificados na comunidade das pessoas que se dedicam a realizar essa própria atividade. Trata-se de atividades hermenêuticas, que processam informações a partir da interpretação e da aplicação de certos parâmetros compartilhados por um conjunto de especialistas. Em todas elas, o prestígio de um ator e o peso de suas palavras é medido pelo reconhecimento dos pares, e não por algum critério empírico.
É evidente que o fato de todas essas atividades serem discursivas e dogmáticas não quer dizer que elas sejam idênticas. Certas comunidades são mais restritas e a sua prática não é estruturada de maneira institucional, o que faz com que não haja a produção de critérios de revisão por pares e de hierarquização de autoridades. Na astrologia, pode haver cânones interpretativos compartilhados, pelo compartilhamento de uma história comum, mas não existe um sistema de autoridades que define a forma correta de interpretar as relações entre o signo e o ascendente. No tarô, espera-se que as pessoas proficientes partam de alguns princípios básicos e que tenham diferenças interpretativas variadas, gerando interpretações colidentes que podem coexistir tranquilamente: se dois tarólogos oferecerem narrativas diversas para a mesma pessoa, caberá ao consultante decidir o que fazer com essas orientações conflitantes.
O mesmo não ocorre no direito ou nas religiões institucionalmente estruturadas, pois a definição da interpretação autoritativa tem impactos sociais diretos. Esses sistemas institucionalizados não compõem apenas uma comunidade hermenêutica, mas constituem realidades culturais capazes de impor suas decisões, o que exige delas a produção de um sistema unificado. Os psicanalistas evitam cuidadosamente a instituição desse tipo de autoridade, reafirmando que sua atividade não admite institucionalização e que, portanto, não há qualquer grupo que possa ter o domínio da interpretação psicanalítica autêntica e válida.
A inexistência de uma autoridade constituída faz com que a psicanálise fique sempre refém de um discurso de origens, que liga a autoridade de um novo psicanalista à autoridade daquele que o formou, sendo que essa ligação em algum momento deve remontar a Freud, o psicanalista fundamental, cuja autoridade profética não pode ser questionada. Os juristas não têm esse tipo de fixação com uma autoridade original, pois o centro de seu discurso está em outro lugar de validade: a validade de um sistema jurídico, que não se confunde com a validade das categorias hermenêuticas desenvolvidas por uma pessoa, ou por um grupo.
O discurso judicial é sempre um discurso de fundamentação, que apresenta argumentos voltados a justificar que a decisão tomada é compatível com a ordem normativa que ela deveria concretizar. Os pretores romanos não eram propriamente juízes, pois eles eram autoridades incumbidas da fixação de padrões normativos adequados, a partir de sua prudência, enquanto os juízes têm como função social tomar decisões que apliquem, de modo impessoal, uma ordem normativa.
O critério fundamental para aferir a validade de suas decisões não é a “verdade”, mas a “fidelidade”: pouco importa se as normas que ele aplica são verdadeiramente válidas, visto que a função política da magistratura é a de garantir a aplicação concreta do ordenamento normativo a que estão subordinados. A dogmática jurídica é o discurso socialmente desenvolvido para avaliar esta lealdade à ordem estabelecida, possibilitando diferenciar as aplicações fiéis do sistema normativo daquelas atuações ilegítimas, que são tomadas “em nome” de um sistema normativo, mas que não se constituem verdadeiramente em uma concretização da ordem jurídica vigente.
Uma das formas mais antigas de discursos dogmáticos é a sacralização do precedente, segundo a regra do stare decisis et quieta non movere. Nesse modelo, as decisões judiciais anteriores são consideradas como dotadas de autoridade cogente, o que faz com que o julgamento dos casos presentes precise seguir não apenas as disposições normativas, mas também as razões enunciadas pelos magistrados que decidiram anteriormente questões semelhantes. Tal modelo constitui uma estratégia conservadora de promoção de fidelidade, na medida em que proporciona que casos atuais sejam julgados de forma idêntica a casos semelhantes já apreciados. O ponto fraco dessa abordagem é que o critério de adequação é deslocado do sentido normativo para a semelhança factual, o que engendra um debate infinito acerca da efetiva semelhança entre os casos julgados e os paradigmas decisórios invocados.
Como todos os casos são particulares, sempre será possível argumentar que a distância existente entre eles justificaria um tratamento diferenciado. Mulheres e homens são diversos, assim como crianças e adultos, estrangeiros e nativos, juízes e delegados... existem argumentos para tratá-los igualmente, enquanto pessoas ou profissionais do direito, mas todo igualamento é desafiado por argumentos que afirmam a necessidade de tratar desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade. O sistema de precedentes desagua em uma teoria da (des)igualdade, que regule a prática do distinguish, ou seja, da operação pela qual se define se um caso é suficientemente diverso do paradigma, para que seja viável pretender para ele uma regulação distinta da regra geral definida no precedente.
Essa lógica do precedente é diversa das teorias baseadas na interpretação legislativa. Nesse caso, em vez de haver uma concentração na similaridade dos fatos, aflora um foco na interpretação normativa, pois o direito é compreendido como uma série de padrões que definem os direitos e deveres de cada um. Nesse contexto, o precedente não adquire força normativa própria, pois ele é entendido como a aplicação de uma norma, que pode ter ocorrido de forma fiel ou infiel. O contexto das teorias baseadas na ideia de que as normas têm um conteúdo obrigatório conduzem a teorias que exigem uma aplicação homogênea, mas a sistematicidade a ser buscada é a do próprio sistema de enunciados.
A operação coordenada de múltiplos magistrados que se apresentam como concretizadores de um mesmo sistema normativo termina por estabelecer uma situação curiosamente circular. Por um lado, a articulação das autoridades é feita sob o pressuposto de que existe uma ordem normativa unificada, o que faz com que as variadas divergências representem um tensionamento de versões diferentes acerca dessa ordem subjacente. Porém, não há uma diferença ontológica entre o objeto descrito e as variadas descrições. Mesmo nos casos em que existe um conjunto canônico de textos de validade indiscutível, não é possível realizar uma observação direta dos seus significados, tendo em vista que o sentido dos textos somente pode ser acessado por meio de cada uma das versões hermenêuticas que apresentam a sua significação.
Nesse ponto, a prática jurídica se distancia da prática de médicos e engenheiros, que são duas das techne basilares do mundo contemporâneo. Mesmo que exista um debate intenso acerca das conveniências de determinados tratamentos, os médicos têm a possibilidade de fazer testes empíricos, que avaliem os resultados decorrentes das intervenções defendidas pelos especialistas que se contrapõem. A eficiência dos produtos desenvolvidos pelos engenheiros é medida em um confronto com a realidade: um avião é bom na medida em que ele voa, uma arma é eficiente na medida em que tem alta capacidade de incapacitar exércitos. No caso do direito, qual seria o critério de eficiência a partir do qual poderíamos avaliar a prática decisória de um magistrado?
No caso das atividades jurídicas, não existe essa possibilidade de testar as afirmações sobre a validade do direito a partir de testes empíricos, pois o significado correto de um texto é um objeto linguístico, que somente existe enquanto parte do jogo discursivo que move uma comunidade. Apesar disso, são desenvolvidos critérios para avaliar se as decisões jurídicas consistem ou não em um exercício adequado da techne jurídica, que se manifesta justamente na tomada de decisões adequadas.
A função social reconhecida aos juízes antigos e contemporâneos nunca foi a de tomar decisões que bem recebidas ou incontestadas, mas a de aplicar adequadamente os parâmetros definidos no ordenamento jurídico, dando a cada pessoa o que lhe é devido. É claro que a situação de um antigo pretor romano, que tinha como parâmetros jurídicos válidos um conjunto de prescrições esparsas que formavam apenas um quadro geral (Ferraz Jr., 1980), dentro do qual as suas decisões deveriam ser tomadas de modo prudente, é diversa da situação de um juiz contemporâneo, que precisa articular suas posições como efetivadoras de uma quantidade imensa de leis, regulamentos e precedentes judiciais.
A atividade dos pretores romanos era mais próxima da phronesis descrita por Aristóteles, consistente na capacidade de tomar decisões concretamente justas, a partir de princípios relativamente vagos e absolutamente lacunares. Em contraposição, os magistrados atuais enfrentam um desafio diferente, que é o de compatibilizar nos casos concretos a série imensa de disposições legislativas, administrativas e jurisprudenciais que é produzida pela imensa burocracia de um estado contemporâneo. O excesso de referências legislativas também exige uma phronesis, mas a necessidade de lidar simultaneamente com tantas diretrizes representa um desafio epistêmico particularmente acentuado, dado que a techne judicial precisa levar em conta uma quantidade de elementos que é claramente incompatível com a brevidade, não apenas de sua vida, mas dos prazos em que a sua atuação precisa ser realizada para continuar sendo oportuna.
3. A techne dos advogados
O que advogados tipicamente fazem é estruturar argumentos que seguem os parâmetros definidos pela comunidade dos juristas e consolidados em uma determinada tradição interpretativa. Esses parâmetros dogmáticos não são descrições empíricas de como os juízes decidem, mas são orientações normativas acerca de como eles deveriam decidir.
O que leva os advogados a formular assim as suas petições é a crença de que certas formas de construir seus pedidos os tornam aptos a obter providências judiciais que atendam a seus interesses. Esse fenômeno indica que a existência da dogmática, enquanto discurso canônico, não afasta a relevância prática da techne advocatícia. Uma coisa é saber quais são as condições da ação e os pressupostos processuais; coisa diversa é saber escolher em que ordem serão feitos os pedidos alternativos ou saber quando é adequado optar por uma ação cautelar preparatória.
Da parte dos advogados, existem várias opções estratégicas que não se relacionam com a interpretação do direito e que escapam inclusive da retórica argumentativa, tais como a escolha dos tipos de letra com que a petição será impressa, a conveniência em arguir a suspeição de um magistrado ou a adoção de abordagens centradas em questões preliminares, tendo em vista que os juízes parecem preferir extinguir processos a julgar o seu mérito.
A techne advocatícia é baseada em um conhecimento relativamente seguro dos modos como os juízes efetivamente decidem, o que aproxima a sua atuação daquela tradicionalmente feita por médicos e engenheiros, que também exercem ofícios voltados a realizar uma prática eficaz. Todavia, devemos ter em mente que os movimentos que defendem uma prática baseada em evidências acentuam justamente o limite dessas abordagens tradicionais, excessivamente dedutivas e confiantes nas intuições bem treinadas de um profissional experiente (Guyatt, 1992). Os advogados têm uma série de crenças sobre as formas eficientes de produzir uma petição ou uma defesa, mas elas raramente decorrem de uma pesquisa observacional, o que torna esse conhecimento muito sujeito aos vieses de seleção e de confirmação, que marcam as concepções que uma pessoa desenvolve sobre o mundo, a partir do olhar sempre limitado de sua própria experiência. Embora seja provável que boa parte dessas concepções compartilhadas seja bastante sólida, outra parte certamente envolve preconceitos cuja concretização conduz a práticas profissionais pouco efetivas.
No caso dos advogados, a validade dessas percepções compartilhadas pode ser avaliada empiricamente, visto que é possível mensurar a eficácia das estratégias utilizadas. Todavia, essa postura estratégica perante o direito mostra-se inviável no caso dos magistrados, cuja atuação é incompatível com essa perspectiva externa: o discurso dos juízes é comprometido com a existência de uma solução a ser descoberta e com a existência de critérios objetivos para justificar uma decisão. A função dos juízes modernos é atuar como se eles não estivessem tomando uma decisão, mas simplesmente implementando as decisões políticas que foram tomadas pelos legisladores. Resta claro que o discurso dogmático é realizado a partir da ótica dos juízes, que observam o direito como um conjunto de textos objetivamente válidos e que lhes cumpre aplicar com fidelidade, sem lhes moderar o rigor.
Essa peculiar conformação da atividade jurídica faz com que a techne dos advogados seja curiosa: eles devem ser capazes de tomar decisões eficazes, mas a sua eficácia não é medida com relação a fatores naturais objetivos, e sim com relação à sua efetiva capacidade de promover a adoção de medidas judiciais (ou administrativas) que estejam alinhadas com os interesses de seus clientes. Esse tipo de promoção é feita tanto por meio da escrita de petições, mas também por orientações negociais, voltadas a conceber contratos ou condutas hábeis a receber um tratamento jurídico favorável.
Por mais que esse caráter retórico da atividade advocatícia pareça diferenciá-la muito do que fazem engenheiros e médicos, devemos ter em mente que boa parte da atuação desses profissionais também é guiada pela necessidade de convencer os seus pares. Embora o objetivo final da engenharia seja o desenvolvimento de objetos complexos, a consecução dessa finalidade depende da realização prévia de um planejamento, que indique as formas pelas quais seles serão confeccionados. Antes de construir produtos inovadores, todo inventor precisa desenvolver projetos indicando o que se pretende construir, definindo os materiais a serem usados e explicando os processos que se pretende utilizar. Projetos não voam, não matam e não servem como moradia: eles são entidades linguísticas, cuja utilidade é fornecer orientações para quem vai implementá-los.
É certo que, para avaliar a eficiência de um produto, precisamos confrontá-lo com a realidade e verificar se ele é efetivamente capaz de atingir suas finalidades. Porém, toda atividade prática precisa lidar com o fato de que tomamos decisões antes de saber exatamente quais serão os seus resultados. Embora seja evidente que são bons os projetos aptos a orientar a confecção de produtos adequados, precisamos ter parâmetros capazes de avaliar os projetos antes de sua execução.
Os testes empíricos dos produtos geram a possibilidade de uma avaliação retrospectiva dos projetos, mas precisamos utilizar também critérios de avaliação prospectiva, que nos possibilitem escolher quais serão os planos que nos dedicaremos a concretizar, o que envolve o delineamento de cenários e a previsão de consequências plausíveis. Embora os testes sejam nosso critério mais sólido para avaliar a eficácia dos projetos implementados, os custos envolvidos em cada tentativa fazem com que precisemos desenvolver parâmetros para determinar quais são os planos que vamos financiar e implementar, possibilitando que eles tenham resultados práticos a serem avaliados.
É claro que ninguém colocaria no mercado um novo modelo de avião ou de vacina sem fazer testes exaustivos, nos quais é previsível a necessidade de produzir e testar uma série de protótipos, de combinações ou de dosagens. Não é por acaso que Santos Dumont conseguiu fazer voar o 14 bis depois de mais de uma dezena de tentativas frustradas, mas altamente elucidativas. Quanto maior a complexidade do desafio, mais irreal é a expectativa de resultados ótimos desde a primeira versão executável do projeto. Todo novo projeto aeroespacial envolve um investimento gigantesco em protótipos que fracassarão, mas cujos resultados oferecerão informações preciosas sobre os elementos do projeto que precisam ser aperfeiçoados.
No caso da engenharia, o que define uma projeção como aceitável é o fato de ela seguir certos parâmetros consolidados em uma comunidade de engenheiros, cuja experiência acumulada permite estabelecer parâmetros mínimos que um projeto deve ter, para que seja previsível a sua viabilidade prática. Assim, os parâmetros de viabilidade de um projeto de engenharia não são físicos, mas retóricos, pois eles envolvem a capacidade de persuadir uma comunidade acerca dos méritos de uma proposta. Nesse ponto, engenheiros e médicos se aproximam dos juristas, pois a avaliação dos projetos depende de sua confrontação com as concepções dominantes, com os padrões estratificados, e não com a própria realidade. Isso acontece porque os projetos também são artefatos, mas de uma natureza especial: trata-se de artefatos linguísticos, de discursos modulados para interferir nas crenças e nas práticas de um determinado grupo social.
Os juristas também produzem artefatos linguísticos cuja eficiência é mensurada em termos de sua capacidade de serem apreciadas positivamente por seus pares. Contudo, há uma diferença fundamental entre essas atividades: enquanto médicos e engenheiros produzem estratégias testáveis empiricamente a partir de procedimentos repetíveis, os resultados dos discursos jurídicos estão ligados apenas ao convencimento de outras pessoas. Mesmo que os projetos científicos sejam artefatos linguísticos, sua avaliação não se esgota na apreciação pelos pares, visto que a implementação desses projetos implica um confronto com a própria natureza. Já no caso dos juristas, o único critério para avaliar uma petição ou uma sentença é a sua eficiência retórica.
Seguindo essa intuição, poderíamos considerar que o ajuizamento de uma petição seria uma forma de teste, visto que seria possível avaliar a sua capacidade de gerar resultados práticos. Ocorre que o resultado prático de uma petição é medido em termos de sua apreciação por um magistrado, que acolhe ou não os pedidos, e sabemos que o mesmo requerimento pode ser julgado de modos diferentes, a depender de qual seja o juiz sorteado para analisar a causa. Não há como garantir, no direito, que o mesmo input gere sempre o mesmo output, pois a avaliação por magistrados é uma atividade hermenêutica que depende de uma série de elementos subjetivos.
Por mais que essa particularidade faça com que a decisão de cada petição inicial seja imprevisível, ela não obsta a construção de um conhecimento empírico sobre a eficiência de certos modelos de petição inicial. Tal como ocorre em outras ciências sociais, seria possível adotar uma abordagem estatística, voltada a determinar quais seriam os modelos de petição inicial mais eficientes, para a generalidade dos juízes. Esse tipo de abordagem exigiria a análise de uma multiplicidade de ajuizamentos e julgamentos, na busca de identificar outputs típicos de uma certa intervenção.
Esse tipo de abordagem é comum, por exemplo, na economia: não podemos prever com segurança qual será o impacto de uma elevação de preço em cada ato de compra e venda, mas podemos observar os impactos dessa medida na média mensal de vendas e, com isso, tentar identificar quais seriam os resultados predominantes de certa estratégia de precificação de um produto. Também podemos avaliar os resultados de várias alterações na taxa de juros, para tentar mensurar o seu impacto médio na inflação. Essas abordagens estatísticas consideram que cada relação individual é imprevisível, mas que grandes conjuntos de interações humanas podem seguir padrões identificáveis e, portanto, previsíveis.
A pandemia de Covid-19 tornou todas as pessoas mais conscientes do caráter estatístico do conhecimento sobre saúde. Todos sabemos que não existe uma vacina perfeita, mas que várias das vacinas desenvolvidas possuem capacidade de interferir no curso da doença, conhecimento que é alcançado por meio de amplos testes empíricos, que mensuram o impacto médio da vacinação. Sabemos que um teste de Covid nunca é capaz de nos dizer, com certeza, se temos ou não a doença: mesmo testes altamente confiáveis têm uma margem de erro considerável.
Seria possível que pesquisadores jurídicos adotassem estratégias semelhantes, desenvolvendo conhecimentos a partir de pesquisas empíricas voltadas a identificar a ocorrência de correlações significativas entre determinados aspectos das petições iniciais (tipos de pedidos, argumentos utilizados, fontes de impressão, partes envolvidas, etc.) e as decisões judiciais que as apreciam. Assim como os médicos podem pode testar empiricamente os tratamentos que ele considera promissores, advogados e juízes poderiam testar empiricamente as estratégias argumentativas que eles desenvolvem e utilizam.
Porém, não é assim que a prática jurídica é operada. Advogados não fazem pesquisas empíricas sobre a efetividade de suas petições nem fazem escolhas estratégicas baseadas em pesquisas empíricas realizadas por outros investigadores. O ponto relevante a ser ressaltado é que os advogados poderiam pautar suas condutas por esse tipo de conhecimento empírico, mas não é essa a forma usual de sua prática contemporânea, o que torna legítimo questionar os motivos pelos quais avançaram com tanta força os movimentos pela medicina ou pela gestão baseada em evidências, enquanto o direito continuou sendo uma prática meramente doutrinária e prudencial.
Uma possível chave de compreensão seria a dificuldade acerca da produção de um saber jurídico baseado em evidências, construído a partir da formulação e da execução de testes empíricos. O conhecimento científico opera do desenvolvimento de saberes cada vez mais capazes de resistirem a testes que avaliem se as suas previsões sobre a empiria se confirmam ou não. O reconhecimento por uma comunidade é apenas parte do jogo da ciência, visto que a veracidade dos modelos explicativos produzidos pelos cientistas está sempre sujeito a testes empíricos.
O caráter estável da natureza permite que a formulação de novos testes resulte em uma ampliação do repertório de conhecimentos, o que gera um saber cumulativo acerca da natureza. No caso do direito, o caráter cumulativo dos conhecimentos é limitado pelo fato de que o objeto do conhecimento está em constante mutação. A caracterização mais radical desse fato é dada pela célebre afirmação de von Kirchmann, em uma conferência de 1847 intitulada Da falta de valor da jurisprudência como ciência: “ao converter o acidental em seu objeto, a ciência mesma se torna acidental: três palavras retificadoras do legislador e bibliotecas inteiras se convertem em lixo [Makulatur] (Kirchmann, 2011). A estabilidade da natureza permite que haja valor em uma ciência que se desenvolve a passos lentos, mas seguros, no esclarecimento de relações que demandam um longo e penoso trabalho de elucidação. No caso do direito, quando o pesquisador compreende adequadamente o seu objeto, depois de anos de esforço, a realidade que ele buscava descrever já se encontra fatalmente transformada (Kirchmann, 2011).
No caso do direito, a acumulação de conhecimentos a longo prazo é limitada pela constante alteração dos objetos descritos, ressaltada por Kirchmann, e também pela alteração constante dos auditórios que as avaliam. Por outro lado, esse mesmo desafio é enfrentando também pela administração e pela economia, que também lidam com contextos mutáveis e modelos que não têm aplicação de longo prazo, por serem dependentes dos contextos históricos e sociais nos quais se inserem. Essa consideração sugere que as percepções de Kirchmann se relacionam com a pretensão da dogmática de ser considerada uma ciência dos sentidos juridicamente válidos, o que seria uma construção efetivamente estranha, dado que esse não seria um objeto empírico, exceto sob a suposição contrafática de que os juízes atuam conforme as regras do seu próprio discurso.
Visto da perspectiva dos juízes, não é possível construir uma ciência jurídica observacional, pois não há teste empírico possível para o verdadeiro sentido do direito. Porém, visto da perspectiva dos advogados, que podem propor testes empíricos, seria viável desenvolver um conhecimento científico, ainda que de escopo limitado pela sua inserção histórica e pela eficácia contextual de suas intervenções práticas.
4. Dogmática e ciência
Antes de explorar as possibilidades de uma ciência empírica do direito, fundada em pesquisas observacionais, devemos ressaltar que, por mais que o conhecimento científico seja uma episteme, ele é produzido por uma techne específica, que guia as atividades dos pesquisadores.
Os cientistas realizam atividades práticas voltadas a testar empiricamente suas intuições, o que exige a tomada de uma série de decisões estratégicas. Quando define um projeto de investigação, cada pesquisador precisa resolver uma infinidade de questões que são práticas, e não teóricas.
Utilizarei bases de dados existentes ou farei entrevistas para identificar as opiniões prevalentes em uma comunidade? Adotarei uma abordagem quantitativa ou qualitativa? Qual tamanho de amostra equilibra a solidez dos possíveis resultados com os custos que posso pagar e com o tempo disponível?
Essas são escolhas estratégicas, movidas por projeções acerca do benefício de cada opção metodológica e por expectativas de uso eficiente dos recursos disponíveis, especialmente do tempo. Como ressalta Lyotard, é preciso abandonar a ideia de que o conhecimento é descoberto e reconhecer claramente que o conhecimento é produzido por meio de uma atividade bastante onerosa (Lyotard, 2009). No atual estágio do saber humano, somente conseguimos produzir conhecimentos inovadores por meio da mobilização intensiva de recursos cuja disponibilidade é muito limitada, como a competência de profissionais especializados e a disponibilidade de laboratórios excepcionalmente caros.
Trata-se também de recursos que são excepcionalmente concentrados nos países mais ricos, que são justamente aqueles beneficiados pela proteção jurídica dos copyrights, que garantem a manutenção desse sistema voltado a garantir a rentabilidade do capital que financiou as pesquisas (Mattei et Nader, 2008). O conhecimento científico, desenvolvido por meio de pesquisas, tem como requisito fundamental uma política de financiamento público, que custeie diretamente ou incentive a sua produção, e que ofereça garantias sólidas de retorno financeiro para quem atua nessa atividade essencial para a riqueza das nações contemporâneas.
Portanto, quando discutimos a possibilidade de desenvolver um conhecimento científico acerca do direito, não podemos ignorar que esse tipo de conhecimento ainda é muito incipiente e que a produção de uma episteme jurídica exige tanto a formação de profissionais especializados na realização de investigações empíricas quanto o financiamento das atividades de pesquisa. Todavia, como ocorre com todo investimento público ou privado, esse tipo de estrutura investigativa somente alcança níveis de excelência nas áreas em que existe uma boa relação de custo-benefício: o custo gigantesco das pesquisas científicas, tanto em termos de tempo como em termos de capital, precisa ser compatível com os benefícios sociais gerados pelo conhecimento produzido.
No campo do direito, devemos reconhecer que os custos da pesquisa científica talvez não compensem seus eventuais benefícios. A hipótese da qual partimos é a de que as estruturas do discurso dogmático são capazes de produzir uma prática relativamente consistente, dado que a atuação conjunta de um grande número de magistrados tende a construir um discurso dogmático que permite a articulação de suas práticas individuais em uma atuação coordenada. O fato de que os juízes tendem ser sensíveis aos argumentos dogmáticos faz com que os advogados sejam capazes de alcançar níveis razoáveis de eficiência por meio da estruturação de argumentos dogmaticamente consistentes.
É claro que todo advogado tempera a dogmática com uma série de escolhas estratégicas, mas elas não são baseadas em evidências científicas, ou seja, em observações empíricas cuidadosas e rigorosos testes de hipóteses. Os conhecimentos que movem essa modulação da dogmática provêm da experiência prática dos advogados, cuja longa vivência permite a construção de um repertório individual de intuições baseadas em sua experiência pessoal e também no senso comum partilhado pelos outros especialistas. Como os advogados tendem a atuar em nichos bem determinados, as intuições de um profissional experiente podem ser guias suficientes para uma ação suficientemente efetiva.
O conhecimento dogmático não esgota a techne dos advogados porque, na prática, a tomada de decisões estratégicas envolve parâmetros que escapam a toda dogmática, como a capacidade que os advogados desenvolvem de prever as decisões de cada julgador, tendo em vista o seu histórico de decisões. A vivência prática de advogados experientes faz com que eles consigam identificar os juízes mais progressistas, os mais rigorosos na aferição de requisitos para concessão de liminares, os mais engajados em certas pautas sociais.
Faz parte da perícia dos advogados adaptar seu discurso a características pessoais dos juízes com que eles interagem ou podem interagir. Faz parte dessa techne saber uma série de coisas que em nada se relacionam com a interpretação do direito, mas que podem ser relevantes para obter um resultado positivo: como se vestir, como falar, a que festas ir para ser reconhecido como um profissional de prestígio. Ao menos a partir de certo ponto da carreira, advogado não é um simples produtor de petições, mas é um profissional que precisa desenvolver um prestígio pessoal, que faça com que ele seja conhecido e reconhecido pelos julgadores, pois os critérios de tomada de decisão não são simplesmente textuais e interpretativos.
Ocorre que todo esse savoir faire não é codificado em livros acadêmicos nem é transmitido nas faculdades de direito, que se concentram apenas na capacitação dos estudantes a produzir um discurso dogmático consistente. Não contamos uma formação jurídica que produza advogados hábeis e, talvez, não seja essa a vocação dos cursos de direito contemporâneos. Por outro lado, espera-se que os estudantes em formação façam estágios em escritórios de prestígio, onde podem aprender um pouco sobre os saberes práticos do direito.
Do lado dos juízes, por mais que a sua prática discursiva seja orientada pela necessidade de oferecer justificativas dogmáticas para as suas escolhas, devemos reconhecer que os conhecimentos exigidos por uma atuação eficiente também ultrapassam muito o conhecimento da dogmática. O magistrado não é apenas um produtor de decisões, mas é um coordenador de um conjunto de dezenas de pessoas que trabalham com vistas ao processamento dos feitos. Em um mundo ideal, o juiz poderia ser uma pessoa dedicada a decidir os casos que lhe são submetidos, mas no mundo real ele precisa tomar uma série de decisões gerenciais, voltadas a garantir uma apreciação em tempo hábil, administrando os recursos que lhe são disponibilizados de modo eficiente, conduzindo a decisões que equilibrem celeridade e solidez.
A techne dos profissionais do direito não é a mesma, pois os produtos que eles desenvolvem são diversos. Porém, a interação linguística que eles operam, na postulação de intervenções e no julgamento dos pedidos, é realizada de acordo com os códigos linguísticos que são definidos pela dogmática. A necessidade de operar esse discurso comum faz com que os juristas normalmente produzam discursos compatíveis com os pressupostos da linguagem dogmática: os textos têm um significado objetivo, que pode ser apreendido por meio de interpretações adequadas e aplicado de modo objetivo.
O discurso dogmático estabelece as bases de uma ficção operativa: ele confere aos juristas a possibilidade de entender sua atividade como se ela envolvesse a concretização de um conhecimento compartilhado sobre o mundo. Na tradição continental europeia, esse conhecimento era chamado tradicionalmente de jurisprudência, um tempo que parecia justo na medida em que designa a techne dos juristas naquilo que ela parece efetivamente ser: uma prudência, uma capacidade de tomar decisões adequadas, que não pode ser reduzida a uma ciência, ou seja, um conhecimento intelectual acerca de determinado objeto. Segundo Tercio, a jurisprudência correspondia a um modo de “pensar problemas sob a forma de conflitos a serem resolvidos por decisão de autoridade, mas procurando sempre fórmulas generalizadoras” (Ferraz Jr., 1980), que permitissem que o mesmo formato fosse posteriormente aplicada a outros casos.
A consolidação de uma dogmática permite a operação de um milagre hermenêutico: a conversão da prudência em episteme. Quando os critérios dogmáticos se tornam suficientemente estáveis e completos, a prática decisória que eles organizam pode deixar de se ver como o que ela é (a aplicação coordenada de parâmetros decisórios consolidados em uma cultura) e passar a afirmar-se como algo que ela gostaria de ser: uma atividade intelectual voltada a concretizar um conhecimento objetivo acerca de certos objetos que existem no mundo.
Na modernidade europeia, a cristalização de uma dogmática civilista (fundada nas reinterpretações modernas do direito romano contido no Corpus Iuris Civilis) permitiu aos juristas que não se enxergassem apenas como pessoas dotadas de uma techne decisória e retórica, mas como cientistas capazes de conhecer objetivamente o próprio direito. Um direito que não poderia ser reduzido a uma prática decisória, mas que era compreendido como uma decorrência da própria ordem natural do mundo, cristalizada no velho conhecimento dos romanos.
Na época romana, pretores encarregados de aplicar o direito com prudência poderiam ser vistos como pessoas que deveriam se orientar por uma capacidade personalíssima: sua habilidade de determinar direitos e deveres compatíveis com a história institucional e, ao mesmo tempo, capazes de gerar precedentes adequados. Tal como ocorria na tradição bramânica, o exercício da phronesis poderia oxigenar o sistema, viabilizando a sua contínua atualização, sem a necessidade de uma constante atualização legislativa. Uma prática argumentativa consistente pode oferecer o necessário equilíbrio entre o respeito à tradição e a transformação das relações sociais que se mostram desacopladas de seu contexto histórico.
Desde que haja um número relativamente pequeno de magistrados e que eles possam acompanhar relativamente bem a atuação um dos outros, parece viável que esse equilíbrio seja alcançado pela elaboração constante de novas exceções, por via de equidade, mesmo que cada uma dessas pequenas rupturas se caracterize por uma demanda especial de justificação. Qual seria o motivo pelo qual o caso julgado merece uma solução particular? Que tipo de nova regra, aplicável às situações futuras, seria aberta pelo reconhecimento dessa excepcionalidade? O fato de que os múltiplos magistrados falam em nome de um sistema simbólico único faz com que cada afloramento de equidade exija uma readequação hermenêutica de todo o sistema. A equidade é necessária para evitar absurdos, mas ela própria é uma fonte potencial de absurdos, o que faz com que a sua aplicação deva envolver sempre o comedimento reflexivo que os gregos chamavam de phronesis.
No discurso da modernidade, a legitimidade do sistema de justiça não poderia ser baseada na capacidade pessoal de advogados e magistrados, pois as inspirações agostinianas dos modernos impediam essa confiança na intuição modelada por uma longa experiência. Essa experiência também cristalizava preconceitos e naturalizava opressões, pois ninguém é bom juiz acerca de seus próprios princípios e convicções. A modernidade tentava equilibrar a confiança em uma ação racional dos indivíduos com o reconhecimento de que a atuação articulada de múltiplos magistrados somente seria efetiva na medida em que eles se limitassem a aplicar objetivamente uma ordem jurídica objetivamente válida.
No discurso anglo-saxão, a autoridade do direito continuava sendo baseada na respeitabilidade de uma tradição, que era renovada a cada decisão de common law, com sua afirmação reiterada da validade dos precedentes. Nesse mundo, o direito continuou sendo tratado como techne, como a capacidade de produzir petições e decisões adequadas, a partir de um conjunto de precedentes. No direito codificado da modernidade continental europeia, não havia uma tradição a ser perpetuada, mas uma tradição a ser substituída por novos sistemas de direito legislado. Nesse âmbito, o desafio jurídico foi bastante modificado: como é possível manter um sistema de decisões consistentes, previsíveis e seguras, se a única referência objetiva é um texto legislativo cujos limites são amplamente reconhecidos?
A resposta, nesse caso, nada teve de inovadora: era preciso restabelecer uma tradição interpretativa, mas que seguia a estrutura das comunidades hermenêuticas que se criaram em torno de textos sagrados. Na idade média, o saber dos juristas era o de avaliar um complexo conjunto de fontes, na busca de tomar as decisões que fossem adequadas, o que exigia uma peculiar prudência, fundada nas habilidades retóricas do trivium. Na idade moderna, esse caráter prudencial e retórico pareceu demasiadamente inseguro, já que se tratava de libertar o direito da tradição medieval, e instaurar um direito legislado proveniente da autoridade do legislador.
É evidente que nenhum sistema afasta totalmente a equidade, a reinterpretação e os outros mecanismos que viabilizam uma alteração interna das ordens simbólicas. Em nome da sua devida aplicação, os intérpretes fatalmente introduzem alterações em um sistema. Cada aplicação pontual contribui para deslocar o padrão decisório geral, e esse caráter relativamente instável das atividades hermenêuticas é inevitável. Todavia o comprometimento moderno com a tripartição dos poderes e com a definição dos legisladores como representantes da soberania, envolveu a produção de um conhecimento jurídico que buscou afirmar-se como episteme, e não como prudência: as decisões dos juízes deveriam ser medidas em termos de sua fidelidade ao sistema normativo, e não à sua capacidade de realizar uma justiça, cuja devida caracterização não lhes era confiada.
5. Uma ciência dogmática do direito?
Devemos reconhecer que, tal com o direito, a ciência envolve uma prática discursiva que também tem a sua techne dogmática, ligada aos critérios pelos quais podemos considerar que uma certa afirmação tenderia a sobreviver, ou não, ao confronto com a prática. Muito embora o objetivo imediato de juristas e cientistas seja o de construir narrativas convincentes perante seus pares, esses dois grupos operam estruturas retóricas bastante diversas, visto que os argumentos aptos a convencer os médicos de que uma certa vacina contra Covid-19 é eficiente são muito diversos daqueles capazes de persuadir um grupo de juízes que uma determinada interpretação constitucional é correta.
No caso de médicos e engenheiros, o sistema de avaliação de suas teses é a produção de um teste empírico, capaz de mensurar as consequências práticas de uma determinada estratégia. O convencimento dos pares é muito relevante para obter a autorização e o financiamento para a realização de um teste, bem como para definir a solidez das conclusões que se busca extrair de uma observação empírica. Porém, como as afirmações de médicos e engenheiros têm por objeto algumas relações físicas objetivamente existente, a avaliação concreta de diagnósticos e de propostas de intervenção depende de uma forma de confronto com a realidade.
Já no caso dos juristas, suas teses não têm por objeto alguma forma de consequência empírica mensurável, mas têm por objeto a definição de direitos e deveres cuja única existência é como significados de um discurso social. Não existem direitos e deveres no mundo físico e, portanto, não é possível testar empiricamente afirmações deônticas. Tal como no caso dos religiosos e dos psicanalistas, o desafio da formação de peritos está na habilitação dos estudantes para produzir discursos que serão percebidos como sólidos pelos seus pares e que, nessa exata medida, serão incorporados aos critérios utilizados para avaliar a solidez de novas propostas.
Embora esses critérios sejam todos linguísticos, existe uma dimensão empírica na atividade de juristas e psicanalistas, pois a produção de certos discursos pode (ou não) interferir no comportamento das pessoas que se deseja mobilizar. Existe uma eficiência prática dos discursos que não é medida por critérios semânticos (sua capacidade de cumprir os critérios de validade estratificados em um campo), mas por critérios pragmáticos (sua capacidade efetiva de interferir no comportamento de outras pessoas).
Ocorre que os critérios de adequação semântica não são necessariamente convergentes com os critérios de eficiência retórica. Uma análise de adequação semântica envolve um raciocínio hermenêutico e dedutivo, capaz de avaliar em que medida certas proposições operam adequadamente os conceitos dominantes em um campo e os cânones interpretativos estratificados. No centro desse debate está a atribuição adequada de significados, a qualificação jurídica de certos atos, a determinação as consequências jurídicas de determinadas ações.
A eficiência retórica aponta para uma análise pragmática: quais são os tipos de argumentos que tendem a ser reconhecidos? Essa abordagem é movida por uma desconfiança de que os critérios semânticos dos juristas são operados de modo enviesado, com uma distância razoável entre o que se diz e o que se faz.
Quando o comportamento dos juristas pode ser antecipado por meio de uma análise semântica (que, por exemplo, considere que é previsível que uma decisão judicial imponha uma penalidade prevista na norma), a convergência entre discursos e práticas faz com que análises meramente semânticas possam se mostrar como eficientes na prática argumentativa. Essa é a aposta típica do que a tradição europeia chama de “ciência do direito” ou de “metodologia jurídica”: a tese de é possível identificar padrões semânticos de atribuição de significado e de que esses padrões são guias adequados para a prática jurídica.
A eficiência prática desse tipo de discursos depende de uma efetiva convergência entre o que se diz e o que se faz, um tipo de cenário que depende da existência de uma cultura jurídica estratificada e de uma comunidade jurídica que a aplique com grande fidelidade, resultando no que a própria comunidade dos juristas chama de “segurança jurídica”: a presença de um alto grau de previsibilidade no comportamento dos atores do sistema de justiça.
A segurança jurídica é um curioso artefato cultural. Por um lado, ela parece ser o produto da estratificação de um “sistema jurídico”, cuja densidade cultural é tão grande que ele passa a ser considerado como um sistema social autônomo, com regras próprias de atribuição de significado, capazes de manter seus resultados previsíveis mesmo em casos de tensionamento político e de gerarem soluções contrárias à opinião pública. Por outro lado, a segurança jurídica parece ser causa dessa própria estratificação, na medida em que a autonomia do direito decorreria da relativa previsibilidade de que os juristas atuarão de acordo com os critérios semânticos do direito, ou seja, de que os comportamentos corresponderão aos discursos.
A convergência entre o que se diz e o que se faz gera um cenário dentro do qual pôde emergir a peculiar noção de “ciência do direito”: um conhecimento que pretende prever os resultados de um sistema político a partir de uma abordagem semântica, tratando aquilo que os juristas dizem como se os conceitos estratificados na cultura jurídica correspondessem a determinados objetos no mundo, tais como o sentido correto da norma ou o jus puniendi do Estado.
Essa convergência entre comportamentos e discursos é sempre limitada, visto que sempre há pontos variados nos quais aflora um descolamento. O princípio da igualdade tende a falhar no tratamento das minorias ou dos migrantes. A liberdade tende a ser interpretada dentro dos quadros de uma cultura hegemônica, que prevê restrições específicas aos comportamentos das mulheres. A aplicação regular dos precedentes tem formas variadas de criar situações excepcionais para se acomodar concepções e comportamentos estratificados em uma cultura, cuja vedação seria sentida como socialmente absurda. Assim como a conjugação dos verbos irregulares, que são deformados pelo uso linguístico, a multiplicidade de exceções jurídicas não segue um padrão claro, embora seja sentida como “bom direito” para ouvidos bem treinados.
Podemos catalogar as regras sobre a devida conjugação dos verbos irregulares em português, ou em francês, mas essa sistematização não pode ser confundida propriamente com uma ciência sobre a natureza. Trata-se de um conhecimento acerca de certos parâmetros linguísticos, de preferências estilísticas que afloram de um uso reiterado e longo dessas linguagens.
Se um jurista oferecesse uma descrição sistemática do modo pelo qual os juízes constroem seus argumentos para enfrentar os casos regulares e irregulares, esse modelo explicativo poderia ser considerado científico: um modelo que trata de um comportamento específico. Porém, não é esse tipo de abordagem descritiva que constitui a prática atual: os juristas pressupõem que sua própria atividade pode ser lida como a expressão de uma ordem normativa imanente, que seria interpretada pelos seus atos. Esse pressuposto contrafático é o constituidor da dogmática jurídica, cuja descrição sistemática passou a ser apresentada como uma ciência do direito.
Um cientista pode descrever quais são os padrões linguísticos dominantes em certo grupo, em um dado tempo. Porém, ele não pode confundir esses padrões, sempre contextuais e historicamente dados, como o modo correto de se expressar em um idioma. Está correta a expressão erudita ou a popular? Ao cientista somente é dado descrever e explicar o que fazemos, sem se pronunciar sobre o que deveríamos fazer, para sermos corretos, bons ou justos.
Aqui devemos fazer um esclarecimento: este é o conceito positivista de ciência, entendida como uma construção de modelos explicativos acerca de fenômenos observáveis. A noção mais antiga de ciência atribui a nossa racionalidade a capacidade de descobrir as verdades íntimas das coisas, as noções naturais de justiça e equidade, que permitiriam que uma techne se apresentasse também como prudência. As antigas noções de ciência eram inspiradas pela noção de que nossa racionalidade não era capaz apenas de reconhecer relações de causalidade, mas também seria capaz de identificar os critérios objetivos de bem. A verdadeira razão seria o que os teólogos católicos chamam de recta ratio, a racionalidade que se exerce a partir dos parâmetros morais objetivos, que ela própria deveria ser capaz de reconhecer.
Quando falamos hoje em dia de uma ciência do direito, o mais comum é que nos refiramos a esse ideal da dogmática, que pretende ideologicamente se despir de seu caráter prudencial e decisório, e assumir os ares de um conhecimento dedutivo, inferido a partir de uma interpretação correta da ordem jurídica vigente. A ciência dogmática do direito nada tem de científica, no sentido positivista do termo, que somente reconhece cientificidade a discursos explicativos acerca de relações entre fenômenos. Não é possível haver uma ciência dos significados corretos de um texto, visto que o sentido linguístico não é um objeto empiricamente observável. Nenhuma tese sobre a significação das normas pode ser testada por meios observacionais.
Não há dúvidas de que a formação dos juristas contemporâneos exige uma capacitação na produção de discursos adequados aos critérios dogmáticos de adequação argumentativa. Embora a dogmática se apresente como uma episteme a ser aprendida, ela deve ser encarada como um conjunto de orientações normativas, que definem os parâmetros por meio dos quais uma comunidade avalia que certa proposição pode ser considerada como uma fiel interpretação da ordem jurídica.
Os juristas não são cientistas incumbidos de fazer descrições rigorosas acerca de objetos empíricos, mas são profissionais cuja função social é participar de certos discursos retóricos, por meio do qual são definidos os direitos e deveres de cada cidadão. A academia jurídica está tradicionalmente ligada promoção de um saber prático (Tholozan, 2021), uma techne consistente na capacidade de produzir textos adequados aos parâmetros da dogmática jurídica.
O desenvolvimento dessa perícia exige uma série de exercícios práticos e também a aquisição de um repertório de conhecimentos, que viabilizem a adoção de estratégias retóricas adequadas. Não parece haver dúvida que o cultivo das habilidades práticas exige um exercício constante, que nem sempre é oferecido nas faculdades de direito, mas existe um debate cada vez mais intenso acerca do tipo de conhecimento que um jurista deve adquirir, para tornar-se capaz de exercer adequadamente as suas funções.
Enquanto as faculdades contemporâneas continuarem adotando acriticamente os pressupostos de uma dogmática, que se apresenta como episteme, não formaremos juristas capazes de compreender reflexivamente acerca de sua própria função política e social. Durante muito tempo, essa reprodução acrítica de subjetividades resultou no que Duncan Kennedy justamente qualificou como um treinamento que naturaliza as relações de poder vigentes no campo jurídico (Kennedy, 1998) e que Warat nomeou poeticamente com um processo de pinguinização (Sousa et Costa, 2021). A constante defesa de uma cientificidade sui generis para a atividade jurídica é signo de que continuamos nesse processo ideológico, no qual um sistema político de tomada de decisões se apresenta como exercício tecnicamente orientado de uma prática interpretativa que revela significados subjacentes.
Dados os desafios contemporâneos de um direito composto por uma quantidade avassaladora de elementos a serem coordenados, parece impossível que sejamos capazes de enfrentar essas dificuldades munidos apenas das nossas velhas estratégias aristocráticas, que confiam a interpretação jurídica a um grupo restrito de especialistas e, com isso, viabilizam que o discurso constante desses juristas terminem por cristalizar uma cultura interpretativa e orientações dogmáticas sólidas. Esse parece ser o correspondente jurídico de uma crença na mão invisível do mercado: a expectativa infundada de que a combinação das práticas interpretativas individuais conduzirá à consolidação de um sistema de justiça eficaz e consistente.
Para escapar do liberalismo ingênuo, que defendia a liberdade dos mercados como um direito natural cuja violação acarretaria a ruína, os economistas precisaram desenvolver um conhecimento mais rico sobre as relações econômicas e sobre as consequências tanto de decisões governamentais (na macroeconomia) quanto das decisões individuais (na microeconomia). Esse tipo de conhecimento empírico gera modelos explicativos limitados, mas ainda assim mais efetivos do que a crença de que as decisões econômicas mais adequadas devem ser tomadas a partir de um sistema dedutivo baseado em uma tradição econômica que confunde a descrição objetiva do mundo com as percepções sociais hegemônicas.
No caso do direito, precisamos abandonar as ilusões da dogmática acrítica, mesmo que a sua transmissão constitua a espinha dorsal da estratégia de segurança jurídica, ao produzir juízes movidos por um habitus compartilhado. Por mais que o formalismo (incrivelmente!) ainda pareça nos oferecer os modelos mais eficientes de prática judicial e advocatícia, parece claro que esses instrumentos são insuficientes para o enfrentamento dos desafios contemporâneos em uma sociedade democrática. Precisamos rever criticamente nossa própria cultura e nossas estratégias decisórias, e esse tipo de reflexão exige um conhecimento empírico que está sendo desenvolvido, mas que ainda tem muito a caminhar antes que se torne um guia prático mais efetivo que os discursos dogmáticos (Horta et Costa, 2017).
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