1. Origens da modernidade política

Quando uma decisão política pode ser considerada legítima?

Atualmente, tendemos a entender que o que torna uma decisão governamental legítima é o fato de ela ter sido tomada por um governo cuja autoridade se assenta na autonomia dos indivíduos que compõem uma população.

Uma das características distintivas da filosofia política moderna é justamente essa busca de justificar a política com base em uma referência à autonomia individual. Já nas organizações sociais pré-modernas, os vínculos existentes entre governantes e governados eram percebidos como naturais, ou seja, como elementos que fazem parte de uma ordem natural do mundo. Entedia-se normalmente que essa ordem envolvia um conjunto papéis sociais estabelecidos pela própria natureza: o pai, a mulher, o filho, o governante, o nobre, o servo. Estes papéis deveriam ser imutáveis (justamente por fazerem parte de uma ordem natural eterna) mas era reconhecido que, ao longo da vida, uma pessoa deveria transitar por múltiplos papéis, seja porque alguns deles se sucedem no tempo (criança, adulto, idoso), seja porque outros são acumuláveis (como filha, nobre e mulher).

Uma ideia compartilhada entre várias culturas antigas era a de que cada pessoa tinha os papéis sociais que lhe eram destinados e que, por isso, deveríamos acolher com abnegação (e, se possível, com felicidade) as consequências necessárias do lugar social que ocupamos. Os gregos da antiguidade partilhavam com os antigos chineses e os hindus a noção de que a ordem social era apenas um reflexo da ordem eterna e sagrada do mundo: o cosmos, o tao, o rta.

O caráter sagrado dessa ordem imanente fazia com que todo esforço no sentido de rompê-la fosse entendido como uma (vã) tentativa de fugir ao destino inescapável, um tipo de empresa que fatalmente conduziria a desastres. O homem sábio era aquele capaz de reconhecer a ordem natural. A pessoa virtuosa era aquela capaz de seguir o fluxo inevitável da ordem porque, como dizia Aristóteles, “a natureza nada faz sem um propósito” e “o objetivo para o qual cada coisa foi criada — sua finalidade — é o que há de melhor para ela” (2006, 1252b).

Em geral, deveria ser possível que cada pessoa aceitasse o seu carma e cumprisse os papéis que lhe eram destinados por essa ordem superior. Entretanto, o teatro grego mostrou que o fato de a mesma pessoa desempenhar papéis simultâneos poderia levar a situações paradoxais, em que os comportamentos exigidos por cada papel poderiam se chocar de maneira irremediável. Orestes deveria matar e não matar sua mãe. Antígona deveria obedecer e desobedecer às ordens de Creonte. Quando a ordem natural determinava comportamentos contraditórios para a mesma pessoa, aflorava a tragédia propriamente dita: a inevitabilidade de uma pessoa ter de descumprir as obrigações ligadas a um de seus papéis e de enfrentar as nefastas consequências dessa inevitável fratura da ordem natural.

Nesse contexto, o que tornava legítimo um governo não era o assentimento real ou fictício dos cidadãos, visto que o governante também desempenhava um papel natural: a existência de senhores e súditos fazia parte da própria natureza das coisas, restando aos homens apenas identificar quais seriam as melhores formas de exercer a autoridade política. Como a existência de um governo era (e normalmente ainda é) entendida como parte de uma ordem natural inescapável, os sábios deveriam identificar os critérios do bom governo, de um governo capaz de produzir estabilidade e prosperidade. O mais importante não era a forma do governo, mas a garantia de os governantes atuarem em conformidade com os valores de inscritos na ordem natural.

Nas sociedades modernas, por mais que seja mantida a velha noção de que existe uma ordem natural, os vínculos políticos são excluídos dessa ordem: não mais se considera que exista uma autoridade natural dos governantes. Os modernos continuaram acreditando que era necessária a existência de governos (ou seja, da cisão social entre governantes e governados), mas não mais justificavam a autoridade de um governante específico na própria natureza. Isso não significa que os antigos papéis sociais tenham sido abolidos, mas apenas que os vínculos entre os governantes concretos e seus súditos passassem da ordem natural para uma ordem artificial, constituída por meio de contratos.

Exemplo claro dessa mudança são as diferenças entre os modos como Aristóteles e Hobbes justificam a escravidão. Aristóteles considerava que a cidade (polis) era uma organização natural e que o homem era naturalmente um animal político, ou seja, um animal que por natureza integra alguma cidade. Além disso, ele afirmava que a polis era composta por famílias e que as famílias eram compostas por três relações: “o senhor e o escravo, o marido e a mulher, o pai e os filhos” (2006, 1253b). Nesses três casos, a cultura grega reconhecia a existência de uma relação de domínio, que era apresentada como uma decorrência do princípio natural de que o superior tem direito de comandar os inferiores. Note-se que a escravidão era considerada uma situação indesejável (quem quer perder sua liberdade?), mas não era tida como uma situação especialmente degradante: tratava-se apenas de uma das formas legítimas de submissão que formava as estruturas familiares. Sendo “o macho é por natureza superior e a fêmea inferior”, caberia ao marido o exercício do domínio natural sobre a esposa, da mesma forma que as mães tinham o direito de dirigir o comportamento de seus filhos.

Embora boa parte dos gregos utilizasse essa mesma abordagem naturalizante para justificar a escravidão, Aristóteles percebeu que esse tipo de argumento conduzia a uma situação paradoxal: qualificar como natural a escravização de prisioneiros de guerra que se tratavam de homens tão (ou mais) educados e honrados que os seus captores. Essa possibilidade de que homens inferiores escravizassem homens superiores fez com que Aristóteles defendesse que o direito de escravizar os prisioneiros poupados na guerra não era natural, mas convencional: ele decorria de uma lei da pólis e não de um princípio imanente.

Mas que legitimidade tem a polis para estabelecer uma lei que permite a escravização dos derrotados? Essa é uma pergunta que Aristóteles não precisava enfrentar diretamente porque ele considerava que “na ordem natural, a cidade tem precedência sobre a família e sobre cada um de nós individualmente, pois o todo deve necessariamente ter precedência sobre as partes” (2006, 1252b). Aristóteles sentia que era necessário justificar a sumissão de um homem por outro, mas ele tomava por óbvio que todos os cidadãos eram naturalmente submetidos à pólis. Assim como os cristãos não enxergam necessidade de justificar a autoridade de Jeová sobre as pessoas e os liberais contemporâneos não vêem necessidade de justificar a igualidade entre homens e mulheres, os filósofos gregos não entendiam ser necessário justificar a submissão dos indivíduos à comunidade política.

Essa precedência natural da coletividade sobre os seus integrantes constitui uma das maiores diferenças entre as perspectivas antigas e as modernas. A teoria de Thomas Hobbes, por exemplo, é moderna justamente na medida em que inverte essa equação: é o indivíduo que tem precedência natural sobre a comunidade política, pois cada pessoa é entendida como um organismo livre e autônomo. Para Aristóteles, cada humano era visto como um órgão da polis, unida a ela por um vínculo natural de pertinência. Já para Hobbes, cada comunidade política deveria ser compreendida como um agregado de seres humanos naturalmente livres.

O reconhecimento hobbesiano da autonomia de todos os seres humanos tornava inviável justificar a escravidão com base em um vínculo natural de dominação (já que todos os seres humanos seriam naturalmente livres), mas também fechava as portas para uma escravidão baseada na lei, visto que nenhuma convenção social poderia reduzir a liberdade natural dos indivíduos. Portanto, Hobbes considerava insustentáveis tanto os argumentos de Aristóteles a favor de uma escravidão natural quanto aqueles que justificavam uma escravidão legal.

Todavia, como os demais pensadores europeus de meados do século XVII, a teoria sustentada no Leviatã tampouco entendia que a escravidão era ilegítima. A justificativa hobbesiana para o direito de escravizar outras pessoas causa um grande estranhamento à sensibilidade contemporânea: ele o fundou no consentimento autônomo do servo, expressado por meio de um contrato.

Os pensadores contemporâneos perguntariam: como pode alguém celebrar legitimamente um contrato por meio do qual abre mão de sua própria liberdade? Hobbes identificou essa dificuldade e, para contorná-la, esclareceu que 0 domínio pode ser adquirido de duas maneiras: por geração e por conquista.

"O direito de domínio por geração é aquele que o pai tem sobre seus filhos, e chama-se paterno. Esse direito não deriva da geração, como se o pai tivesse domínio sobre seu filho por tê-lo procriado, e sim do consentimento do filho, seja expressamente ou por outros argumentos suficientemente declarados. [...]
O domínio adquirido por conquista, ou vitória militar, é aquele que alguns autores chamam despótico, de despótes, que significa senhor ou amo, e é o domínio do senhor sobre seu servo. O domínio é adquirido pelo vencedor quando o vencido, para evitar o iminente golpe de morte, promete por palavras expressas, ou por outros suficientes sinais de sua vontade, que enquanto sua vida e a liberdade de seu corpo lho permitirem, o vencedor terá direito a seu uso, a seu bel-prazer. Após realizado esse pacto o vencido torna-se servo, mas não antes. [...]
Portanto não é a vitória que confere o direito de domínio sobre o vencido, mas o pacto celebrado por este. E ele não adquire a obrigação por ter sido conquistado, isto é, batido, tomado ou posto em fuga, mas por ter aparecido e ter-se submetido ao vencedor.

Na teoria moderna de Hobbes, o domínio absoluto de uma pessoa por outra precisa ser justificada como decorrência de um contrato que fosse expressão da autonomia da vontade. A categoria contrato permite a milagrosa passagem da autonomia do indivíduo à escravidão legitimada pelo consentimento, e é justamente esse mesmo conceito que permitiu justificar a sujeição da autonomia individual a uma soberania dos governos. A lógica é a mesma nos dois processos de submissão: a racionalidade exige de cada pessoa que, para manter sua vida e sua segurança, abra mão da sua liberdade.

A marca peculiar das teorias modernas é essa tentativa de justificar a submissão política como uma forma de exercício da autonomia individual. O sujeito moderno é justamente uma pessoa que se sujeita, de modo autônomo, à autoridade de um indivíduo (na escravidão) ou de uma coletividade (no governo).

Mas por que uma pessoa abriria mão de algo que lhe é tão caro como a própria liberdade? O único motivo que se afigura razoável para Hobbes é que as pessoas valorizam sua liberdade, mas valorizam ainda mais a sua vida. Como a vida é condição da liberdade, o bem primário a ser garantido pelas organizações políticas é a proteção das pessoas contra o risco de que venham a enfrentar situações de guerra, em que a vida de todos é submetida a uma ameaça constante.

Na teoria de Hobbes, o desejo de proteção contra a morte arbitrária e o medo constante funciona como um interesse humano central, centralidade essa que é melhor compreendida quando atentamos para o fato de que ele escreveu o Leviatã quando a Europa enfrentava mais de cem anos de conflagrações religiosas desencadeadas pela Reforma Protestante.

O Hobbes contemporâneo poderia ser um refugiado da guerra civil da Síria ou do Yemen, que após enfrentar a situação desumana dos conflitos, admitisse que a submissão a qualquer governo (inclusive à ditadura de Al Assad ou ao fundamentalismo do Estado Islâmico) seria uma alternativa melhor do que a continuidade indefinida da guerra.

Outro Hobbes contemporâneo poderia ser um palestino que, por mais ilegítima que tenha sido a Nakba (a expulsão dos palestinos de suas terras nos conflitos de 1947-48), é mais importante para os habitantes atuais dos territórios palestinos a criação de uma situação que suspendesse o risco constante de terem sua vida extinta pelo necropoder (Mbembe, 2016) exercido por Israel na ocupação contemporânea da Palestina. Todavia, como indica Mbembe, o necropoder não envolve propriamente uma tentativa de submissão política (como na Síria ou no Yemen), pois Israel não tem como objetivo incorporar as populações palestinas ao seu domínio. Mbembe chama de ocupação colonial contemporânea justamente esse entrelaçamento de populações nas quais ocorre uma dominação absoluta, dentro de um regime de separação legalmente imposta (apartheid), gera sistemas de sujeição que não se abrem para a possibilidade de integração (2016).

Essa ocupação colonial não era o modelo defendido por Hobbes, pois ela envolve uma segregação interna que não conduz à pacificação do território, mas à produção de uma guerra sem fim. Dessa forma, creio que o Hobbes contemporâneo seria justamente um israelense que postulasse a inclusão dos palestinos como cidadãos israelenses, submetidos todos à autoridade absoluta do governo. A tese hobbesiana era a de que a sujeição voluntária daria ao governo legitimidade para impor o fim da guerra, pois nenhum súdito deveria ter a possibilidade (nem o poder) de se insurgir contra a força de um governo concentrado. Para Hobbes, a ocupação colonial poderia ser compatível com a dominação de outros povos, mas o projeto político que ele defendia para as sociedades europeias envolvia a integração dos sujeitos como cidadãos de uma unidade política.

Ocorre que essa unidade política deveria vir acompanhada de uma unidade religiosa, visto que Hobbes entendia que a pluralidade de religiões inviabilizaria a estabilidade do reino. Essa abordagem estratégica da religião foi causa de uma rejeição muito grande das ideias de Hobbes por seus contemporâneos, que não estavam dispostos a abandonar suas identidades religiosas nem tinham abertura para submeter-se a um governante que não fosse comprometido com suas próprias convicções religiosas. A ideia de incorporar as populações palestinas como cidadãos israeleses não parece palatável nem para os judeus nem para os muçulmanos, e esse estranhamento nos faz perceber com mais clareza a proposta de Hobbes: para superar uma crise dessas proporções, seria necessário constituir um governo extremamente forte e comprometido com a manutenção da paz.

Esse governo central poderia ser uma democracia ou uma oligarquia, mas as características desses modelos de organização tornam pouco provável que eles conseguissem gerar a estabilidade necessária. Oligarquias e democracias envolvem sistemas de coordenação entre diferentes grupos e a existência de tensões internas muito grandes tornaria previsíveis novas conflagrações, como as que envolvem há décadas a situação dos curdos na Turquia e no Iraque, ou os Rohingiya no Mianmar. Por esse motivo, Hobbes sugeriu que a melhor forma de governo para garantir a estabilidade de uma sociedade dividida seria uma monarquia absoluta, em que todos os cidadãos (independentemente de sua religião ou cultura) fossem igualmente submetidos a poder absoluto do monarca.

Thomas Hobbes viveu um momento em que não havia uma noção de territorialidade dos governos e a luta entre católicos e protestantes não respeitava as fronteiras dos reinos: era aceitável que os monarcas, para defender a sua religião, apoiassem nobres de outros reinos que se insurgissem contra monarcas que tinha religião diversa. Nosso imaginado Hobbes sírio estaria em situação semelhante, visto que os destinos da Síria são decididos no entrechoque das grandes potências de hoje, na forma como elas estimulam e financiam diferentes atores nas guerras do Oriente Médio ou do Norte da África, ou nos golpes de estado da América Latina.

Essa interferência direta dos reis e dos papas (e dos EUA, da Rússia ou do Irã) nos equilíbrios internos de outros reinos alimentava a beligerância e faziam com que as guerras religiosas que ocorriam dentro de cada unidade política fossem, na prática, elementos de uma conflagração maior, na qual todas as potências europeias estavam envolvidas.

Cada aparente vitória dava margem a insurreições dos grupos vencidos, que levavam a novas guerras, em um ciclo que parecia não ter fim e que terminou sendo percebido como uma espécie de empate técnico: nenhum dos polos tinha poder suficiente para exterminar o outro. O reconhecimento dessa impossibilidade de vitória fez com que, em certo ponto, os governos envolvidos nesse conflito buscassem uma forma de submeter católicos e protestantes a uma ordem que fosse amargamente aceitável por ambos os grupos.

Um primeiro equilíbrio foi alcançado na Paz de Augsburg (1552), em que foi determinado o direito de que os monarcas definissem a religião de seu reino, pelo princípio cuius regio, eius religio (Whaley 2012). Porém, guerras continuaram a emergir entre os principais reinos europeus por quase cem anos, até fosse celebrada a Paz de Vestfália (Peace of Westphalia), em 1648, quando um complexo acordo celebrado entre os monarcas europeus colocou fim à Guerra dos 30 anos, encerrando conflitos entre França e Espanha, entre Espanha e Holanda, entre o Sacro-Império, a França e a Suíça, além dos variados aliados desses reinos (Whaley 2012).

Nos tratados que estabeleceram a Paz de Vestfália, o princípio do cuius regio, eius religio foi substituído por uma regra de tolerância religiosa, em que reis católicos permitiriam o culto privado de cidadãos protestantes, e vice-versa. Como era de se esperar, essa decisão foi duramente criticada pelo Papado, tanto porque caracterizava uma aceitação definitiva do protestantismo como porque reconhecia a transferência para os reis protestantes de muitos bens da Igreja Católica. Essa crítica, porém, não teve grande impacto nas profundas consequências trazidas pela Paz de Vestfália, que é um dos marcos da construção de uma nova ordem política europeia, com a cristalização dos Estados territoriais e a formação do moderno sistema internacional, no qual ficou estabelecida um princípio de não intervenção: cada estado deveria se abster de intervir na soberania dos outros (Philpott 2014).

Embora a tese hobbesiana da autonomia individual fosse impopular em 1648, a ideia de uma autonomia estatal foi estabelecida na Europa, como forma de colocar fim às intervenções que eram feitas em nome de garantir os direitos de religião. A lógica de Vestfália é a mesma lógica de Hobbes: os Estados decidem abrir mão de sua liberdade para estabelecer um sistema em que a sua segurança seja garantida, mas essa é uma regra que precisa ampliar a noção de Estado para englobar não apenas as grandes potências, mas todas as unidades políticas, independentemente de suas estruturas internas e de suas culturas particulares. Além disso, a Paz de Vestfália é um acordo explícito, uma figura jurídica bem mais concreta que o contrato tácito de Hobbes.

A troca da liberdade natural (idealizada) por segurança política (também idealizada) é a tônica dos discursos políticos da modernidade, que buscam justificar uma autoridade estatal altamente centralizada (e bastante real) e um sistema internacional baseado no respeito recíproco à soberania dos vários Estados. Mas não podemos perder de vista que esses discursos modernos foram inicialmente formulados no contexto de uma sociedade medieval, profundamente ligada à autoridade tradicional dos monarcas, então justificada pelo direito divino dos reis. Distante da fórmula hobbesiana, a Paz de Vestfália não foi celebrada em nome da autonomia dos súditos, mas em nome dos princípios religiosos e da autoridade tradicional.

Hobbes formulou uma justificação inovadora dos governos centralizados, que foi veementemente rejeitada pela maioria de seus contemporâneos, sendo que seu nome logo “se tornou um sinônimo para ateísmo, imoralidade e uma gama de visões politicamente inaceitáveis” (Parkin 2007). Pesou contra ele especialmente a sua defesa de que o caráter absoluto da soberania permitiria aos monarcas regular assuntos religiosos, posição que escandalizou a Igreja Católica a tal ponto que a totalidade de sua obra foi incluída no Index Librorum Prohibitorum de 1649 a 1703.

Inobstante, a centralização política que Hobbes advogava era um fenômeno que estava em curso, embora fosse justificado na época por outros tipos de discursos filosóficos. A modernidade filosófica chegou antes da modernidade política, cujo marco inicial é tipicamente estabelecido na consolidação dos Estados nacionais como unidades básicas de governo.

Essa articulação contratual de unidades políticas, como uma alternativa à guerra, permitiu que Daniel Philpott defendesse a ideia de que esses tratados teriam estabelecido, pela primeira vez, uma Constituição Internacional: um conjunto de regras estabelecidas por acordos mútuos celebrados entre unidades políticas, com o objetivo de definir (i) que unidades podem ser consideradas legítimas e (ii) que direitos e deveres elas têm umas perante as outras (Philpott 2014). O processo que entendemos como modernização pode ser entendido como o avanço gradual do estabelecimento de relações políticas por meio de acordos celebrados entre partes autônomas, seja nas relações entre os cidadãos ou nas relações entre os estados.

Trata-se, portanto, de um processo que reconhece a incapacidade das ordens tradicionais em lidar com o crescente pluralismo das comunidades políticas e que busca evitar a dissolução por meio de acordos que gerem novas formas de articulação política. Essas novas formas de articulação têm um ponto em comum: elas tratam os seus integrantes em base igualitária, visto que essa igualdade é um pressuposto necessário para a validade jurídica dos contratos. Como estabeleceu Kant com clareza, nenhuma pessoa pode ser considerada objeto, pois cada indivíduo deve ser tratado como um sujeito, como uma subjetividade autônoma, capaz de direitos e deveres em nome próprio.

Esse tipo de arranjo enfrenta uma dificuldade prática: os acordos são celebrados por pessoas que têm conjuntos de valores inseridos em uma tradição determinada e que não estão dispostas a abrir deles. Elas podem fazer concessões mútuas, mas o resultado desse regime de concessões é tipicamente uma construção híbrida: as novas instituições são parcialmente inovadoras, mas parcialmente reprodutoras dos valores tradicionais. A modernização não é um processo de refundação completa, mas de transformação gradual, com sucessivas ondas de destradicionalização.

No caso da Paz de Vestfália, a paz cristã e perpétua foi construída a partir do reconhecimento de que a unidade interna de cada Estado não podia ser garantida sem a estabilidade externa. Porém, esse equilíbrio internacional não poderia ser garantido se as partes contratantes não tivessem força para evitar as guerras civis, que poderiam gerar uma reação em cadeia por toda a Europa.

O modelo de governo que emergiu desse contexto envolveu a concentração dos poderes nas mãos do monarca, o que implicou a dissolução dos velhos laços de suserania e vassalagem. Se os reinos medievais eram uma espécie de federação de nobres, unidos ao rei por laços de lealdade, os governos modernos se organizavam pelos princípios de centralização defendidos por Hobbes. A multiplicidade de nobres, cada qual com sua milícia particular, gerava um risco constante de que tais exércitos fossem mobilizados uns contra os outros. No modelo feudal, os servos eram vinculados diretamente aos nobres e só indiretamente aos reis. Na concentração de poder político que está na raiz da modernidade, foi preciso estabelecer um vínculo direto entre os indivíduos e o governo central, que não fosse mediado por autoridades intermediárias.

A concentração de poder em um monarca viabiliza uma curiosa equalização das pessoas: todos são iguais em sua submissão, e a única diferença social admitida é justamente aquela que se opera entre o monarca e os seus súditos. Em outras palavras, todos os súditos são igualmente pequenos perante a figura de um monarca absoluto. Essa centralidade dos monarcas representava uma ruptura da tradição dominante e ocorria em sociedades heterogêneas, que desafiavam a velha noção de que os monarcas seriam como os pais, ou como os pastores de seu rebanho. A comunidade formada pelos cidadãos (especialmente pelos nobres e pela burguesia ascendente) não podia ser lida como uma família (tratada como uma unidade natural pelos modernos), nem podia ser entendida como um rebanho (naturalmente submetido ao pastor), mas afirmava-se explicitamente como uma sociedade: uma unidade artificial, estabelecida mediante um contrato celebrado por homens livres.

No plano interno dos Estados, trata-se de um contrato que não é expresso, mas tácito: ele não foi explicitamente celebrado, mas a sua existência é inferida do fato de que o efetivo comportamento das pessoas perante o governo é de submissão. Para Hobbes, tal submissão somente se torna compreensível quando entendemos que a concentração da autoridade política em um governo central parece indesejável pelos riscos de que o governo se torne tirânico, mas trata-se da única alternativa racional para seres humanos que enfrentam os riscos de uma guerra civil (ou seja, de todos os seres humanos, porque a guerra civil é um fantasma que espreita todo tipo de organização política). Creio que a síntese da teoria hobbesiana é que a tirania é ruim, mas a guerra civil é ainda pior, assim como a morte é pior que a escravidão. Portanto, devemos reconhecer que tacitamente legitimamos governos tirânicos capazes de por fim à guerra, assim como os escravos tacitamente legitimam a sua condição.

O paradigma político moderno pode ser descrito como um modelo de explicação da legitimidade das decisões baseado na combinação de vários elementos: (i) indivíduos autônomos (ii) percebidos como sujeitos de direitos naturais, (iii) capazes de estabelecer vínculos contratuais tácitos em função da (iv) racionalidade ser o único critério legítimo de ação, que conduzem a (v) governos centralizados que são constituídos a partir da (vi) negação de valor objetivo às relações tradicionalmente estabelecidas e (v) reconhecimento de que apenas a submissão voluntária pode ser considerada legítima.

Descrita dessa forma, a modernidade não é uma teoria, mas é uma certa forma de organização social: uma organização baseada no estabelecimento de um sistema político isento de relações de vassalagem, mas unificado por uma submissão de todas as pessoas ao poder central. Esse arranjo poderia se tornar estável desde que os monarcas conseguissem manter a paz (interna e externa), além de níveis toleráveis de bem-estar e de justiça, tornando pouco atrativos os riscos de uma sublevação.

Essa nova organização social demandava discursos de justificação inovadores, pois não era possível fundamentar essas relações sociais novas com base nos mitos de unidade cultural e religiosa que estão na base das sociedades tradicionais. Esses novos discursos de explicação e de legitimação são as teorias políticas da modernidade.

Na modernidade, não surgiu uma teoria unificada, mas uma pletora de teorias diferentes, que tinham alguns pontos de convergência e muitos pontos de divergência. Além disso, essas teorias não se apresentaram inicialmente como modernas: não foram chamadas de modernas pelos seus autores nem por seus contemporâneos. Elas não se apresentavam como teorias novas, mas como teorias verdadeiras, como modelos capazes de orientar a organização política de uma sociedade entendida como uma associação de homens brancos cristãos livres. Uma das características fundamentais das teorias modernas é que elas não se apresentam como uma nova versão, ou como uma proposta alternativa, mas como resultados objetivamente válidos de uma análise objetiva da natureza humana.

2. A modernidade barroca e seus limites

Nos anos que se seguiram à reforma protestante, havia uma percepção clara de que se vivia um tempo de ruptura na Europa. Esse é o período de florescimento das cidades, da descoberta do “novo mundo”, da revolução científica, dos sistemas heliocêntricos. A soma desses movimentos foi percebida como uma descontinuidade histórica tão grande que pessoas do século XVI já começaram a qualificar o tempo anterior como uma idade média (medium aevum): o período entre a queda do Império Romano e a Reforma (Green 1992). Porém, foi apenas duas décadas depois da Paz de Vestfália que se consolidou a tripartição entre os períodos antigo, medieval e moderno (Green 1992): a nova ordem cunhava o termo moderno para marcar a sua diferença com relação às ordens anteriores.

Tratava-se do desafio de organizar uma ordem política que não era mais unitária. Evidentemente, não se tratava da primeira vez que esse desafio era enfrentado: antigas formações políticas multiculturais, multirreligiosas e multiétnicas foram organizadas na forma do império. O império era uma forma de governo conhecida pelos antigos gregos, mas rejeitada pelos filósofos porque ele era incompatível coma a existência de cidadãos livres e iguais. Diferentemente do que ocorria na polis grega ou na respublica romana, a unidade do império unidade se dava na forma da submissão de todos os habitantes a um centro único de poder. A falta de homogeneidade nos sistemas simbólicos e nos governos locais era compensada por uma unidade estritamente política, por um vínculo de pura e total submissão.

Durante algum tempo, a união de cidades independentes na Liga Helênica conseguiu conter a força expansiva do Império Persa, mas esse modelo federativo pouco depois ruiu nas mãos do Império Macedônio. Os impérios venceram as cidades-estado e se impuseram durante longo tempo como as formas políticas mais efetivas.

Enquanto a cidade é uma unidade tradicional, o império é antitradicional, no sentido de que ele se constitui justamente com o estabelecimento de um poder sobre territórios cujas autoridades tradicionais foram destituídas. A dominação política pura, decorrente da imposição violenta, pode conduzir à ação coesa de um grupo de comunidades heterogêneas, mas esse tipo de estratégia deixa os impérios sujeitos a pressões internas muito grandes.

A ausência da força estabilizadora de uma tradição compartilhada (que propicia a submissão espontânea daqueles que sentem uma ordem tradicional como natural) faz com que seja previsível que cada grupo social submetido tenha pretensão de recobrar sua autonomia. O império é fruto da conquista e a conquista precisa ser mantida por rituais de submissão que reproduzem a diferença entre o dominador e o dominado.

O equilíbrio do império é instável porque a força bélica da unidade central tem de tão maior do que o das unidades subordinadas, que não valha a pena uma tentativa de insurreição. Porém, quando o poder central se enfraquece, os impérios tendem a se dissolver em uma pluralidade de unidades menores, nas quais opera a força coesiva das tradições.

Os romanos constituíram um império que, quando ruiu, deu espaço a uma multiplicidade de reinos particulares. Nesse ambiente plural, cada aliança formada gera uma concentração de poder que exige novas alianças de seus adversários, para que haja certo equilíbrio de forças entre os grupos antagônicos. As alianças medievais de nobres não se davam de modo impessoal, mas pelos vínculos de lealdade estabelecidos pessoalmente entre um nobre e o rei, o que gerava uma sociedade em rede: múltiplas ordens de poder, múltiplas lideranças locais, tudo isso permeado por uma tradição cristã e por uma cultura de fundo relativamente partilhada.

A organização feudal era um mosaico complexo, que foi dissolvido quando os governos se tornaram novamente centralizados e passaram a adotar como modelo justamente as leis do antigo Império Romano. Esse antes da modernidade, que tipicamente chamamos de pré-modernidade, era constituído por narrativas e por vínculos sociais fundados na tradição. Uma sociedade múltipla em seus estratos, mas estabilizada na ideia de uma unidade cultural: um rei, uma fé, uma lei. Essa ordem politicamente descentralizada mas culturalmente unitária foi a ordem social que entrou em colapso com a Reforma e as guerras civis religiosas que se seguiram, e de cujos escombros emergiram os novos Estados Modernos, com suas teorias racionais de justificação e suas pretensões imperiais.

Com o fim das guerras religiosas, a pretensão dos governos que se impuseram não era a de dominar as (grandes) minorias religiosas, dentro de uma dinâmica imperial que impõe um governo a vários povos governados. A alternativa construída pela modernidade foi a de criar uma unidade política que pudesse aspirar autoridade e não apenas obediência, até porque a superioridade militar dos governantes não chegava ao grau de hegemonia que afastava do horizonte que os grupos submetidos retomassem a guerra purificadora. O resultado foi a inversão do equilíbrio medieval, com a formação de sociedades pluriculturais unificadas por uma política altamente centralizada.

Como descreve Bruno Latour, o tecido social moderno “não é mais inteiriço” (Latour 1994), e a ausência de unidade cultural impediu que as monarquias continuassem se apresentando como como uma exigência natural da ordem das coisas. O discurso justificador foi gradualmente migrando para o reconhecimento do Estado como uma construção artificial de homens cujas discordâncias somente permitiam a identificação consensual de parte da ordem anterior, e esses elementos deveriam ser consensuais porque eles decorreriam da racionalidade humana. O restante do que era antes apresentado como parte da ordem natural (incluindo as autoridades religiosas e os costumes) foi deslocado para o campo do que não é racionalizável: as idiossincrasias, os gostos, os sentimentos religiosos, as lealdades nacionais.

Houve, portanto, uma deflação da ordem natural, reduzida ao mínimo consensual entre católicos e protestantes, o que conduziu a religiosidade ao campo da liberdade privada de crença, um âmbito doméstico que não deveria ter impacto direto na vida pública. Com isso, funda-se “uma religião totalmente individual e espiritual”, o que fez com que os modernos pudessem ser ao mesmo tempo laicos (em sua vida pública) e piedosos (em sua vida privada) (Latour 1994).

Esse arranjo torna possível estabelecer uma organização política centralizada como os antigos impérios, mas com um discurso legitimador que era alheio à forma imperial, mas que fazia parte da cosmovisão medieval na Europa: a ideia de que era legítimo estabelecer unidades políticas por meio da associação voluntária de indivíduos, tal como no vínculo existente entre os suseranos e os vassalos.

A forma política que emergiu das guerras religiosas representou o trânsito de uma comunidade tradicional para uma sociedade, ou seja, como associação voluntária de indivíduos autônomos. Esse desenvolvimento curioso da feudalidade gerou uma sociedade feita apenas de vassalos e que pressupunha a igualdade jurídica dos membros como condição para a validade do contrato social. Por mais coesa que seja a teoria hobbesiana, o equilíbrio encontrado pela Europa moderna foi construir uma sociedade instável: havia uma convergência pressuposta sobre alguns princípios fundamentais (os direitos naturais), caracterizada como uma ordem natural acessível pela razão (e, logo, por todas as pessoas), mas cada indivíduo poderia seguir livremente suas preferências e credos particulares, desde que não violasse a liberdade de todos nem pretendesse hegemonia.

O resultado desses equilíbrios foi a construção de uma sociedade híbrida, em que instituições modernas (como os governos centralizados) continuavam sendo justificadas com base nas teorias tradicionais (especialmente a ideia do direito divino dos Reis). No século XVII, não havia a modernidade neoclássica do iluminismo, mas uma modernidade barroca, equilibrando-se entre o sagrado e o profano, dividida entre o humanismo dos modernos e os sentimentos religiosos da tradição medieval. Não havia emergido uma sociedade laica, mas uma sociedade cristã tolerante com as vertentes predominantes do cristianismo. Tratava-se de uma época na qual a centralização do Estado moderno não era ainda acoplada a uma filosofia plenamente moderna, que já havia sido formulada, mas que não parecia tolerável.

Essas forças em tensão conduziram a uma série de construções teóricas barrocas, em que o individualismo autonomista de Hobbes precisou ser compatibilizado com os valores tradicionais, que podiam ingressar nas teorias racionalistas desde que eles fossem lidos como parte da ordem natural. A radical deflação da ordem natural que encontramos no Leviatã foi mitigada por teorias posteriores, que mantiveram uma série dos direitos tradicionais, transfigurados em direitos naturais.

O principal filósofo político dessa era foi John Locke, que conseguiu um equilíbrio tão estável entre esses polos que até hoje sua teoria é uma das mais influentes. Nos Tratados sobre o Governo Civil, de 1689, Locke combateu duramente os defensores tardios do direito divino dos reis (que ainda era a opinião dominante no senso comum da época) e defendeu uma versão alternativa do contratualismo, na qual os seres humanos teriam aberto mão de sua liberdade absoluta para conquistar mais segurança, mas teriam mantido uma série de direitos naturais, visto que não seria racional constituir o governo com poderes absolutos que foi descrito por Hobbes. Mas esses direitos naturais eram justamente os direitos tradicionais das elites britânicas, o que permitiu a tese barroca de que era preciso ser radicalmente racional, desde que a racionalidade consagrasse na ordem natural os principais direitos da tradição.

Esse caráter barroco poderia minar a consistência teóricas das teorias modernas, mas ele ampliava sensivelmente a possibilidade de que as pessoas se identificassem com as narrativas dos teóricos, visto que as pessoas da época estavam verdadeiramente divididas e buscavam acoplar suas sensibilidades tradicionais e suas sensibilidades modernas em um sistema no qual essas forças pudessem coexistir. Um dos grandes sucessos das teorias dessa época foi o de permitir uma distinção clara entre os cientistas (que falam racionalmente da ordem natural das coisas, uma referência que se mantinha sólida, apesar da deflação de seus conteúdos) e os políticos (que tomam decisões prudenciais, com base em sua autoridade e não em um conhecimento objetivo). Os políticos deveriam tomar as decisões com base nos interesses gerais, nos valores dominantes, nas conveniências da população, mas deveriam respeitar os limites estabelecidos pelos direitos naturais, racionalmente identificados.

As tentativas de explicar esse equilíbrio social precário da modernidade barroca e de justificar suas construções híbridas como se elas fossem a consequência necessária de uma razão triunfante conduziu a uma série de teorias voltadas a produzir o Santo Graal da modernidade: a justificação racional de uma posição valorativa, ou seja, a fundamentação. Esse projeto remonta a Descartes e sua dúvida hiperbólica, voltada a dissolver os simulacros presentes na cultura e, com isso, oferecer bases sólidas para o desenvolvimento de um conhecimento verdadeiro. Descartes buscou duvidar de tudo, até chegar ao ponto em que a incerteza parecia sem sentido, que ele identificou com a dúvida acerca da própria existência da pessoa que duvida: o famoso cogito ergo sum. A construção de Descartes deixou muito a desejar, pois a partir desse pequeno ponto de apoio ele buscou extrair demasiadas consequências, inclusive uma prova racional da existência de Deus. Tal como seu contemporâneo Locke, Descartes termina por atribuir à ordem natural alguns elementos faziam parte de sua própria cultura.

Não demorou muito para que alguns pensadores modernos se dessem conta do caráter híbrido dessas construções que, por vias tortuosas, buscavam qualificar como racionais alguns dos elementos culturais que os filósofos achavam tão sólidos que não pareceria viável duvidar deles. O grande nome ligado a esse diagnóstico é o do filósofo escocês David Hume, que em meados do século XVIII formulou a perturbadora hipótese de que tudo aquilo que chamamos de conhecimento não passaria de um conjunto de crenças sem fundamento objetivo. Talvez a ordem natural não passasse de uma ilusão de nossas mentes, de padrões inventados artificialmente pelas pessoas e considerados racionais apenas como uma maneira de justificar sua validade objetiva. Curiosamente, o próprio Hume tentou afastar essa tese sob o argumento de que existe uma natureza humana, que condiciona os seres humanos a pensar e a sentir de determinadas formas, o que faz com que seja inevitável para nós chegar a certas conclusões e adotar certos valores.

As ideias de Hume marcam com clareza que o objetivo dos filósofos modernos não deveria ser o de equilibrar a racionalidade com a tradição, por meio da identificação de um grande conjunto de direitos naturais. O que lhes restava era reconhecer a radical deflação da ordem natural, reconhecendo o caráter artificial de quase todos os conteúdos, exceto daqueles que a natureza humana não seria capaz de colocar em questão. Esse posicionamento dá origem a um giro copernicano no discurso filosófico da modernidade: o sistema não gira mais em torno da ordem natural das coisas, mas da própria natureza humana.

Não se trata mais de utilizar a razão humana para descobrira a ordem natural das coisas (que a razão humana não consegue discernir com clareza), mas de usar a razão para entender a razão. A razão, voltada reflexivamente sobre si mesma, poderia nos ensinar as estruturas da racionalidade, que são parte da natureza humana. Se alguma verdade objetiva é possível, ela não pode ser aprendida por meio da observação cuidadosa dos fatos, mas da observação cuidadosa do modo como os humanos percebem o mundo.

Embora esse caminho tenha sido iniciado por Hume, quem o completa foi Kant. As teses de Hume desafiaram Immanuel Kant a buscar um caminho alternativo de fundamentação, e a saída por ele proposta foi o de admitir que todo o conhecimento sobre o mundo empírico não passaria de crenças, mas que seria possível conhecer objetivamente a estrutura de nossa própria consciência (que não é empírica) e que algumas afirmações seriam objetivamente verdadeiras porque elas são necessárias para a nossa própria estrutura cognitiva. Não era possível salvar todo o conhecimento humano, mas deveria ser possível fundamentar certas afirmações que teriam um caráter objetivamente válido.

3. Modernidade e colonização

Embora a racionalidade tenha sofrido uma deflação ao longo da modernidade, as concepções modernas buscaram demonstrar que havia ao menos um certo nicho em que seria possível construir um conhecimento objetivamente verdadeiro. A racionalidade e a autonomia são elementos da natureza humana, que é observada sempre no nível do indivíduo, pois se considera que cada pessoa tem um conjunto de afetos (especialmente uma tendência a buscar sua felicidade individual e a evitar o sofrimento), de habilidades (especialmente a racionalidade, que é a capacidade de avaliar racionalmente uma situação) e de direitos (especialmente a autonomia de contratar).

O paradigma moderno está ligado à crença de que devemos abandonar a busca de uma tradição objetivamente válida, mas que ainda é possível buscar uma verdade objetiva na ciência, visto que todos os homens possuem uma racionalidade comum, e uma validade objetiva nos governos constituídos por indivíduos naturalmente autônomos.

A herança grega indicava que os indivíduos, para se tornarem pessoas plenas, precisam viver dentro de uma comunidade, e a comunidade é definida por uma certa tradição compartilhada. Os filósofos gregos supunham a existência de um vínculo natural entre a pessoa e a cidade, pois o local em que poderia ocorrer um desenvolvimento ótimo das pessoas seria esse tipo de comunidade de cidadãos livres e relativamente iguais. Segundo Aristóteles, o homem que "não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade [...], e se poderia compará-lo a uma peça isolada do jogo de gamão" (1253a)

Devemos reconhecer, como Latour, que as organizações modernas são profundamente híbridas, em que os mitos fundantes são radicalmente novos (especialmente na construção de um indivíduo autônomo), mas as práticas políticas guardam uma continuidade muito grande com os modelos anteriores. E não deve causar espanto que a política moderna não seja fundada sobre uma teoria abstrata, mas sob o mito fundador do contrato social: uma narrativa de como as pessoas construíram suas sociedades. Os filósofos dirão que esta é apenas uma alegoria, no que têm parte da razão, visto que Hobbes nunca postulou uma existência histórica do contrato. Porém, que interessa a concepção original de Hobbes, quando cultura contemporânea escolheu se concentrar nas narrativas?

O contrato tácito de Hobbes podia ser uma estratégia de justificação jurídica, mas o que o senso comum toma por contratualismo é a narrativa de como o homem era o lobo do homem, em uma luta de todos contra todos, e de como a formulação do contrato uma solução plausível para resolver o problema da guerra civil. A releitura contemporânea desse mito se dá pela constituição como resultado da vontade popular, como concretização de um poder originário. Por isso modernidade é um bom rótulo para designar um conjunto de teorias e de mitos, mas é um nome problemático para falar de articulações políticas concretas.

Anthony Giddens descreve essa tensão indicando que boa parte das discussões sobre a modernidade enfoca questões de epistemologia e de filosofia, tentando diferenciar os modelos teóricos modernos e seus limites. Um outro enfoque, que é o privilegiado pela análise de Giddens, enfatiza os aspectos culturais da modernidade, ressaltando certas características que poderiam qualificar uma sociedade, e não uma teoria, como modernas (Giddens 1991). O enfoque nas sociedades mostra mais continuidades do que rupturas, pois as estruturas sociais se modificam de modo mais gradual e discreto. As teorias são objetos sujeitos a inovações mais dramáticas, e por isso mesmo é mais fácil perceber nelas, e não nas próprias instituições sociais, uma descontinuidade mais clara com relação às sociedades tradicionais prevalecentes na Europa medieval.

Entretanto, por maior que seja essa descontinuidade, cada uma das teorias se afasta apenas parcialmente dos modelos anteriores, o que faz com que todo modelo teórico que qualificamos como moderno sejam efetivamente híbridos. No caso das teorias modernas, essa hibridez se mostra especialmente no fato de que tais abordagens buscaram romper os padrões tradicionais de justificação dos vínculos políticos, mas sua pretensa racionalização termina por "descobrir", na ordem natural, a sua própria cultura.

Locke, por exemplo, tenta equilibrar a racionalidade moderna com os direitos tradicionais sobre a terra, e não devemos perder de vista que toda teoria que tenta equilibrar polos que se tensionam tende a gerar um resultado híbrido. Para se manter no campo da mitologia moderna, Locke precisa traduzir os direitos tradicionais como direitos naturais, inserindo o direito de herança dentro de uma ordem natural imutável. Hoje, fazemos o mesmo com a igualdade entre homens e mulheres e com a possibilidade do casamento de pessoas do mesmo sexo, que muitas vezes são defendidos como se fossem verdades naturais e não construções culturais.

As mitologias jurídicas modernas são impuras, especialmente porque tentam equilibras o individualismo contratualista com um culturalismo nacionalista, gerando uma vaga noção de autodeterminação dos povos. Reafirmamos constantemente que os povos podem se autodeterminar, colocamos esse princípio na própria Constituição, mas não temos um critério minimamente seguro para definir quando uma população é um povo, o que nos conduz sempre a tensões: os grupos que pretendem autonomia se designam como povos (como os indígenas, os catalães e os curdos), mas tipicamente não são reconhecidos como povos, mas apenas como populações dotadas de uma certa cultura (como os paulistas, os parisienses ou os cantoneses).

Ocorre que essa imprecisão no conceito de povo é insuperável, pois ela decorre do fato de que as mitologias modernas precisam oferecer narrativas que justifiquem a ruptura dos governos tradicionais, mas sem fraturar as tradições culturais que dão coesão a uma sociedade (e que são lidas por ela como naturais) e sem estimular guerras de secessão (entre os vários grupos que compõem as sociedades modernas).

Evidentemente, não é possível fazer tudo isso ao mesmo tempo, o que nos conduziu a ter um mito fundante (da autodeterminação dos povos) que somente pode ser aplicado de forma seletiva, a depender dos interesses políticos do intérprete: aos brasileiros e não aos ianomâmi, aos espanhóis e não aos catalães, aos turcos e não aos curdos. A modernidade busca equilibrar mitos que se apresentam como universais (que deveriam ser aplicáveis a qualquer sociedade), mas que justificaram práticas políticas da mais absoluta seletividade: a liberdade abstrata dos europeus era compatível com a escravidão concreta dos africanos, a igualdade universal dos europeus era compatível com a colonização da Argélia ou do Brasil.

Esse fenômeno de seletividade não é um desvio da modernidade, mas a sua própria realização, pois os mitos modernos se estruturaram em torno da justificação de uma ordem natural mínima que pudesse ser imposta, com validade objetiva, a grupos sociais heterogêneos. Não se trata de um retorno ao imperialismo clássico, mas da construção de um modelo híbrido: é preciso ter a submissão puramente política dos impérios, mas é preciso reforçar os vínculos culturais que estabilizam uma república. Esse tipo de hibridismo somente é viável no contexto em que as várias religiões a serem concatenadas são calcadas em uma mesma cultura de fundo, o que permite a percepção dos valores tradicionais convergentes como valores naturais objetivos.

Inicialmente, os governos modernos não se apresentaram como laicos, embora propusessem o reconhecimento de uma liberdade de culto para as religiões cristãs. A partir da revolução francesa, a ideia de laicidade ganhou espaço, mas ocorre que mesmo o racionalismo radical dos iluministas garantia uma via por meio da qual os valores cristãos poderiam ingressar legitimamente no jogo político: a noção de cultura. Como a maioria das populações da França e do Brasil é cristã, torna-se possível afirmar que os valores cristãos como valores culturais da nação, argumento que até hoje justifica a presença de símbolos religiosos em repartições públicas pretensamente laicas, como escolas e tribunais.

Na versão iluminista, os valores cristãos não eram tomados simplesmente como parte da cultura francesa (ou europeia), mas eram afirmados como valores racionalmente válidos e, portanto, naturais. Ao perceber a sua própria cultura como natural, os europeus puderam justificar "racionalmente" o projeto de expansão de seus domínios.

No plano nacional, o projeto modernizante exigia a construção de governos fundados na autonomia e na racionalidade dos súditos, mas essa autonomia e essa racionalidade só eram idealizações utilizadas somente no plano das populações europeias. Já no plano internacional, com relação a populações que não eram suficientemente esclarecidas, o modernizador era justamente o de levar os valores naturais (da cultura cristã) e o conhecimento objetivo (da ciência) para todos os cantos do planeta.

Era preciso suplantar as obscurantistas culturas locais e os vínculos de poder tradicionais, com o objetivo de trazer todas essas culturas para o campo da Cultura, e a violência era um meio plenamente legítimo para promover essa purificação cultural. Esse projeto aportou no Brasil juntamente com a colonização portuguesa, justificada em termos da superioridade europeia, que não era somente bélica, mas também cultural e moral. Por isso, devemos reconhecer que a colonização não era um desvio do projeto de modernização, mas era o próprio projeto internacional da modernidade europeia.

4. Os híbridos da modernidade: "e se jamais tivermos sido modernos?"

Modernidade é uma categoria que designa com precisão certos discursos legitimadores (racionalizantes, individualistas, antitradicionais), mas que é muito problemática quando se trata de descrever organizações políticas concretas, porque elas nunca se organizaram na prática conforme os ideais explícitos da modernidade. A racionalização sempre foi imperfeita, com o constante contrabando de valores culturais para o conjunto dos valores naturais. A noção de povo mescla o individualismo contratualista com antigas noções coletivistas de pertinência ao grupo. Parte das tradições foi reformada, mas outra parte foi convertida em lei, pois uma certa unidade cultural sempre foi um elemento importante de estabilização política.

Além disso, o universalismo da modernidade sempre foi muito seletivo. Os europeus durante séculos consideraram a sua liberdade compatível com a escravidão dos africanos e dos indígenas. A situação de submissão das mulheres a seus maridos permaneceu inalterada durante a maior parte da modernidade. Faz apenas cinquenta anos que começamos a entender como parte do direito de liberdade a possibilidade de estabelecer relações homoafetivas. E hoje estamos apenas no começo do processo de adaptar as instituições para o reconhecimento de que as pessoas podem transitar entre diferentes papéis de gênero, subvertendo a noção tradicional de que cada pessoa tem um gênero naturalmente predeterminado pelo seu sexo. A ruptura dos vínculos de submissão e dos papéis sociais tradicionais tem ocorrido aos poucos, sendo visível que hoje existe uma forte reação tradicionalista contra esses movimentos de ruptura.

Nesse contexto, devemos reconhecer que Teoria Política Moderna é o título de um conjunto de teorias (relativamente) bem definidas, mas Estado Moderno é o nome de tantas formas de organização diversas que é difícil encontrar um padrão suficientemente claro para aplicar essa expressão com segurança. E é justamente o fato de que as organizações reais nunca realizaram plenamente as aspirações teóricas da modernidade que fez Bruno Latour se perguntar, enquanto antropólogo e europeu: “e se jamais tivermos sido modernos?” (Latour 1994).

A resposta de um jurista brasileiro seria claramente a de que, no Brasil, nunca fomos modernos. Nunca valorizamos esse discurso racionalista, essa tentativa particularmente europeia de organizar sua peculiar forma de impor governos centralizados como se eles fossem uma exigência racional. Nossos governos foram impostos pela força, pela colonização, pela escravização, pela submissão imperial em sua forma bruta. Não precisávamos, aqui, de mitos fundantes que permitissem a burgueses católicos e protestantes prestarem lealdade ao mesmo rei. Aqui, o monarca impôs sua obediência literalmente a ferro e a fogo. A unidade nacional foi mantida por meio de guerras que impediram a independência das províncias e por uma escravidão longeva, cuja manutenção era objetivo comum de nossas variadas oligarquias locais.

O trabalho livre gera frutos mais abundantes que aqueles permitidos pela baixa produtividade dos regimes escravistas e senhoriais, o que torna previsível que as sociedades que contem com mão de obra suficiente para promover as atividades produtivas não optem pelo regime escravocrata. Porém, nos lugares em que a falta de mão-de-obra impede a plena exploração das riquezas, é previsível que as organizações políticas promovam formas de fixar as pessoas à terra, com a servidão, ou mesmo a apropriação completa de outros seres humanos na qualidade de escravos.

Estamos tão acostumados às mitologias modernas que nos é difícil pensar que há meros duzentos anos muitos brasileiros pensavam ser impossível constituir uma sociedade sem escravos. Estamos tão acostumados a nossas leituras de liberdade como a possibilidade de fazer o que se quer e ser o que se deseja, que esquecemos que há alguns séculos a liberdade significava basicamente o direito natural de não ser reduzido à escravidão ou à servidão. Nossas antigas elites se perguntavam como seria possível sociedades sem servidão? com o mesmo ceticismo com que nossas novas elites se perguntam como é possível manter os nossos padrões de vida se houver uma distribuição mais efetiva de renda? A escravidão aparecia uma necessidade prática, assim como os nossos graus atuais de concentração de renda e patrimônio, que viabilizam a existência de uma "classe média" em um país pobre, de um grupo educado e potencialmente moderno (e modernizante), dentro de uma nação permeada pelos valores conservadores e autoritários (que não por acaso são a tônica dos nossos governantes atuais).

No Brasil, a dissolução da escravatura foi seguida quase imediatamente pela queda da monarquia que promoveu a abolição. Com a implantação de nossa república oligárquica, tivemos um processo limitado de modernização, mas o mito que moveu esse processo não era ligado ao contratualismo europeu (um acordo entre iguais que põe fim à beligerância), mas o da miscigenação pacífica que criou um povo unitário a partir da influência de suas três raças. A modernidade europeia se baseou em uma ordem racionalizada, mantida por uma cisão cirúrgica entre ciência e política, entre governo e sociedade, entre indivíduo e Estado, entre fatos e direito. Nossos mitos aqui celebram a hibridez, a miscigenação, a combinação, em suma, a unidade tradicional dos antigos e não a sociedade artificial dos modernos. Apesar disso, nosso discurso científico seguiu os cânones da metrópole, enfrentando a difícil tarefa de instituir, nos trópicos, uma sociedade moderna que nunca poderia ser moderna porque também deveria ser católica e tradicionalista.

Esse caráter híbrido da organização brasileira faz com que a resposta de Latour à pergunta sobre se a modernidade existiu como fenômeno (e não apenas como modelo descritivo) seja inspiradora. Ele apontou que a teoria moderna sempre foi falha especialmente porque não é suficiente para compreender que os fenômenos sociais sempre foram híbridos demais para serem devidamente explicados por uma teoria baseada em um forte ideal de purificação, voltado a garantir uma ordem natural de pequenas dimensões, mas absolutamente pura (e por isso mesmo vinculante). Segundo Latour, os modernos consideram que os híbridos constituem um “horror que deve ser evitado a qualquer custo através de uma purificação incessante a maníaca”, mas esse horror é apresentado como dispositivo de ocultação: a modernidade permite a proliferação dos híbridos cuja existência ela nega.

Ao fazer suas diferenças dicotômicas entre saber/poder, política/direito, ciência/opinião (entre várias outras), a modernidade exige que classifiquemos cada fenômeno em um desses polos. Porém, enquanto a realidade é híbrida, a teoria precisa ser purificada e, portanto, cega: o judiciário não pode ser descrito como um lugar de poder político (mas de saber), a realização do direito se dá como política (mas é pensada como sistema), as opiniões dos juristas são lidas como uma ciência do direito, mesmo quando se constituem como doxa. O modelo explicativo moderno precisa de um alto grau de abstração para que possa funcionar com suas divisões arbitrárias, o que o distancia dos fatos que elas dizem que buscam descrever. Como em Luhmann, a teoria se torna prescritiva (justificando as tentativas de manter a pureza dos sistemas contra os riscos de corrupção sistêmica), embora se apresente como descritiva.

Não é por acaso que a contestação fundamental da teoria moderna está em indicar que ela nunca foi pura, mas que sempre esteve a serviço de certas ordens de poder, que ela sempre justificou: para manter os privilégios na forma de direitos naturais, para impor submissão às colônias, para justificar a centralização absoluta do poder e os projetos de purificação que marcam a modernidade, especialmente na forma de um movimento eugenista que não era privilégio dos nazistas, mas que era a expressão corrente da biopolítica moderna: o exercício da política sobre a própria constituição da sociedade que o governo teoricamente deveria representar (e não modelar).

Não deve causar espanto que, mesmo depois de conquistar a sua independência, o Brasil continuou inserido no projeto de modernização. No século XIX, tanto o Brasil quanto todos os outros países periféricos do mundo aspiravam chegar no mesmo patamar político das potências europeias, e o caminho mais promissor para chegar a esse objetivo parecia o de emular, nos trópicos, as características das potências centrais.

Inobstante, a modernização brasileira não poderia se servir dos mitos legitimadores da política europeia. É tão absurdo tratar o Brasil como se fôssemos originados de uma associação livre de sujeitos autônomos que as mitologias da modernidade nos são completamente estranhas, que isso nunca foi proposto. Há uma incorporação de categorias modernas em certos momentos (como atesta o positivismo da nossa bandeira), mas o que tivemos não foi uma apropriação dos mitos fundantes da modernidade europeia (individutalistas e racionalizantes), mas apenas do projeto modernizador: a busca de nos aproximar ao modelo de racionalidade e de organização política das potências centrais.

Aqui, o projeto modernizador oitocentista (de construção de uma sociedade burguesa industrial e produtiva) foi acoplado com os mitos da pré-modernidade: mitos de unicidade, que levavam os teóricos a formular teorias orgânicas: os componentes heterogêneos da sociedade eram unificados porque cada um desempenhava uma função específica dentro de um conjunto. Evidentemente, tratava-se da função culturalmente atribuída a cada um, mas isso era percebido como se cada classe de pessoas tivesse uma função naturalmente determinada. Na modernidade europeia, as metáforas orgânicas (de uma unidade natural) perderam espaço para metáforas associativas (de uma unidade artificialmente construída), mas não são esses os elementos de construção dos mitos latino-americanos.

Em nossa modernidade periférica pós-colonial, ganharam relevo os projetos ligados à transformação de uma sociedade arcaica em uma sociedade moderna. Não se tratava de reconhecer a autonomia individual das pessoas, mas a necessidade de uma centralização política educar as pessoas, transformando-as em sujeitos modernos (que não eram o pressuposto dos mitos fundantes, mas eram o próprio objetivo do projeto). Precisávamos de uma sociedade de pessoas modernas, para que pudéssemos aplicar aqui os mitos da modernidade: o contrato social, a associação de pessoas livres, a liberdade individual. Mas como é possível implantar um projeto modernizador em uma sociedade conservadora, profundamente ligada a seus valores religiosos, às funções sexuais tradicionais e à família tradicional?

Não deve causar espanto que o conservadorismo religioso dos brasileiros (e não só dos brasileiros) tenha feito uma leitura do projeto modernizador como um projeto anticristão. Nunca fomos um país em que um candidato manifestamente ateu tivesse chances de chegar a altos cargos no executivo. Em 1985, quando Fernando Henrique Cardoso era candidato ao governo de São Paulo, o entrevistador conservador Boris Casoy lhe perguntou no último debate: “Senador, o Sr. acredita em Deus?”[2]. O sociólogo deu uma resposta plenamente moderna: disse que respeitava todas as religiosidades, mas que aquela era “uma pergunta típica de alguém que quer levar uma questão íntima para o público, que quer usar uma armadilha para saber a convicção pessoal do senador Fernando Henrique Cardoso, que não está em jogo”. A tese de que FHC teria perdido aquela eleição em função dessa resposta é compatível com o resultado de uma pesquisa feita em 2007 pela CNT/Sensus para a Revista Veja, que indicou que 59% dos eleitores não votariam em uma pessoa ateia, independentemente de quem ela fosse. Em comparação, 34% disseram que não votariam em um homossexual, 12% que não votariam em mulheres e apenas 1% indicou que não votaria em negros[3].

É sintomático que, em 2020, o deputado Marco Feliciano, da bancada evangélica, acusou pelo twitter o candidato liberal Luciano Huck pela suposta intenção de formar uma chapa com o governador Flávio Dino, do Partido Comunista do Brasil, afirmando que “Comunistas são Ateus!”. Se o uso do ateísmo como uma qualidade depreciativa mostra a importância central da religiosidade como signo de moralidade, a resposta de Flávio Dino sugere que, ainda hoje, candidato comunista precisa afirmar-se cristão para poder afirmar a laicidade do Estado sem perder eleitores: “Um obscuro parlamentar resolveu desrespeitar a minha fé. Sou católico, mas respeito todas as correntes religiosas. E obedeço à laicidade do Estado. O parlamentar está precisando ler a Bíblia e a Constituição.”[4]

A íntima relação religiosidade e cultura não é estranha ao projeto de uma modernidade que se iniciou como forma de promover a coexistência pacífica entre cristãos, e somente entre eles. Logo os judeus passaram a ser envolvidos também nessa equação de liberdade de culto, mas a extensão desse reconhecimento a práticas religiosas que não faziam parte da cultura europeia demorou mais algumas centenas de anos, em um processo de abertura que não se completou totalmente porque não parece possível implantar totalmente um projeto de laicidade em sociedades extensamente religiosas, com a brasileira.

Outro ponto em que a modernidade gera modelos muito híbridos é na questão da autonomia individual. Embora a modernidade tenha sido construída como uma afirmação das pautas valorativas do liberalismo, faz já quase 200 anos que foi diagnosticado que não era justificada a crença de que as receitas do liberalismo (governo limitado e autonomia contratual ilimitada) conduziriam a organizações políticas mais justas.

A expectativa liberal de que a garantia da liberdade individual promoveria relações sociais legítimas foi criticada duramente por Marx, que identificou que a mudança de status das pessoas (tratadas como livres e iguais) gerou, na prática, uma mercantilização do trabalho e, em última instância, das pessoas. Quando a força de trabalho humana se torna uma mercadoria, torna-se justificável que cada um pague por ela tão pouco quanto possível.

Marx e Engels notaram que a liberdade dos trabalhadores para negociar a sua força de trabalho conduzia a uma multiplicidade de relações de exploração, visto que a igualdade entre trabalhadores e empregadores somente existe como ficção teórica. Embora não houvesse mais relações de servidão, a liberdade irrestrita de contratar legitima situações de exploração intensa, justificadas como o exercício da autonomia individual .

O diagnóstico marxiano é a de que o mercado tende a conferir a certos trabalhos um valor inferior às necessidades humanas de subsistência digna, o que fatalmente conduziria a um momento no qual uma parcela substancial da sociedade não teria acesso a uma vida digna. O processo contemporâneo de uberização parece dar nova vitalidade à tese marxiana de que a liberdade de contratar conduz a uma exploração ilegítima do trabalho, embora os avanços da automação tornem duvidosa a permanência tese de que as populações marginalizadas tenderiam a se sublevar contra as relações de exploração mediadas pelos contratos e garantida por um estado de direito comprometido com fazer cumprir esses acordos privados.

A permanência desse conflito entre o capital e o trabalho indica que a correlação moderna entre autonomia e submissão não é acidental, pois a liberdade individual idealizada é a condição necessária para justificar a submissão absoluta a um governo soberano e para justificar a superexploração do trabalho, seja na metróplole, seja nas colônias. Além disso, como indicam Mattei e Nader, o projeto colonial de levar os valores "universais" do estado de direito aos povos submetidos serve fundamentalmente para criar as bases para que essa lógica de superexploração contratual do trabalho seja aplicada ao mundo globalizado.

Esses elementos apontam para o caráter necessariamente híbrido da modernidade, cujos projetos de universalização somente podem operar de forma seletiva e cujos princípios estão vinculados a formas de organização política que impedem a sua própria realização. Porém, essa hibridez não precisa ser pensada como um problema, visto que sistemas mais coesos podem gerar organizações totalizantes que não deixem espaço suficiente para a pluralidade das sociedades modernas.

O desafio de organizar politicamente sociedades complexas não parece compatível com sistemas que resolvem os paradoxos mediante a afirmação de valores absolutos e que se comprometem com a geração de uma grande homogeneidade cultural. Nesse sentido, o caráter paradoxal das teorias modernas parece ser compatível com o caráter paradoxal das nossas próprias sociedades, com seus valores incompatíveis, com seus interesses inconciliáveis, com seus equilíbrios precários.

Considero que a crítica mais contundente à modernidade não se faz quando revelamos as inconsistências que decorrem de sua inevitável incapacidade de sistematizar elementos tão plurais. Se a modernidade foi vista pelos antigos como uma grande ruptura (por negar a prevalência absoluta da tradição), os contemporâneos podem enxergá-las como reverente demais para com os princípios tradicionais da cultura europeia, que são indevidamente elevados ao patamar de razões naturais, e com as formas tradicionais de dominação (que são cristalizadas em uma noção naturalizada de propriedade).

Essa mudança de diagnóstico não aponta principalmente para uma alteração substancial das concepções modernas (que se modificaram ao longo do tempo, mas principalmente no sentido de radicalizar princípios de autonomia individual), mas para uma alteração substancial do contexto em que elas estão inseridas. O racionalismo individualista que era revolucionário em 1750 hoje nos soa conservador, pois as concessões modernas à tradição europeia não são mais condições de sua aceitabilidade, mas limites à sua adaptação ao mundo contemporâneo.

Creio que a crítica mais dura à modernidade, iniciada por Nietzsche, foi indicar que ela é vinculada a uma concepção do mundo como realização de essências e não como um processo histórico. A falta de historicidade do pensamento moderno o leva para insistir na busca de critérios transcendentais, de valores absolutos, de uma natureza humana imanente e de uma racionalidade objetiva que dependem da existência de uma ordem natural imanente. Essa herança grega da modernidade estabelece limites além dos quais os pensadores modernos não podem avançar, e os condena a oferecer respostas que não dialogam suficientemente com o caráter complexo dos problemas contemporâneos e com a consciência linguística da filosofia atual.

Os pensadores que levaram a sério a nossa condição histórica se viram levados a transitar nas fronteiras do pensamento moderno e, inclusive, a transpô-las. O historicismo radical do pensamento contemporâneo, especialmente o reconhecimento do caráter paradoxal das narrativas linguísticas com as quais construímos nossos universos simbólicos, é o movimento que nos impele a construir novos modelos explicativos e a renovar os repertórios conceituais, em busca de alcançar uma compreensão mais adequada da condição humana e de nossas relações com o ambiente natural e cultural em que estamos inseridos. O desenvolvimento de uma consciência histórica, que tem raízes no século XIX e se refina ao longo do século XX, é a força que nos conduz a enfrentar o desafio de construir concepções pós-modernas.